terça-feira, 29 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23828: Notas de leitura (1525): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte V: VPV: "O grande significado do livro, de Spínola, Portugal e o Futuro, era vir a público dizer que a guerra estava perdida"...


1. Vasco Pulido Valente não gostava dos militares, nem dos capitães de Abril, nem muito menos do general Spínola. (Quanto aos antigos combatentes, ignorava-os, pura e simplesmente.) 

Nas entrevistas que dá ao jornalista João Céu e Silva não trata bem nem uns nem outros. Referimo-nos ao livro "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.), de que já fizemos cinco notas de leitura (com esta) (*)

Algumas das suas declarações, que ficam agora para a posteridade, mostram como ele tinha tendência, apesar da sua formação académica (e científica), para usar e  abusar do cliché, do estereótipo, do juízo algo sumário. Talvez defeito da sua prática jornalistíca, da "escola de O Independente" (onde fez tandem com Paulo Portas, Miguel Esteves Cardoso e outros)  , do gosto pela parangona,  o "título de caixa alta",  a frase bombástica, as letras garrafais...  Panfletário, afinal, coisa que não deve ser um historiador.

Veja-se o que ele diz sobre o Spínola (mais o político do que o militar, e muito menos o comandante-chefe e governador-geral da Guiné): "o homem era muito estúpido, mesmo bronco" (pág. 184). (Provavelmente, ainda há hoje portugueses que  pensam assim, num juizo a preto e branco, mesmo que publicamente não o manifestem; VPM tinha fama de dizer em voz alto aquilo que alguns ou até muitos pensavam em voz baixa, da nossa elite dirigente, política, de Spínola a Cavaco, de Otelo a Cunhal, mas também social, económica e cultural).

Não tenho ideia de, ao longo do livro, ele citar outros historiadores que estudaram ou analisaram o mesmo período (o fim do marcelismo e o 25 de Abril) ou as mesmas figuras (como o Spínola e o Costa Gomes, de que há já biografias "académicas" e livros de memórias)... 

No caso do Spínola, por exemplo, poderíamos citar o Carlos Alexandre Morais, que foi seu íntimo colaborador na Guiné ("António de Spínola. O Homem. Lisboa, Editorial Estampa, 2007) (**) ou o seu biógrafo, Luís Nuno Rodrigues ("Spínola: biografia". Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010) (***).

Em suma, VPM não parecia gostar do contraditório e tinha tendência para desvalorizar o trabalho de outros historiadores, seus colegas, de "outras escolas" (teóricas ou institucionais): afinal ele vinha de Oxford ...Para ele, os historiadores portugueses, mesmo os bons, eram "amadores" e a universidade portuguesa não lhes oferecia as necessárias condições para trabalhar a sério: a biografia de Salazar, por exemplo,  para ser um trabalho sério, teria que levar uns bons... quinze anos, uma vida!...

Mas VPM não dizia sempre mal dos militares: afinal, pagavam bem quando estes o convidavam, no pós-25 de Abril. para fazer conferências (por ex., no Instituto de Altos Estudos Militares), tinham sítios seletos onde não entravam "saias",  com bares bem  recheados e requintados...

2. Vejamos então o que VPV (em final de vida, ele devia ter consciência disso, do seu "prognóstico reservado"...)  disse ao João Céu e Silva sobre Spínola e o seu livro ("Portugal e o Futuro", lançado em fevereiro de 1974),  além do seu papel no "fim do regime" e no pós-25 de Abril..

(Confesso que também li o livro, na altura, sem entender grande coisa da "solução política" que o autor propunha para as colónias..., mas tive logo a sensação  que era, pelo menos, uma pedrada no charco do marcelismo; devo tê-lo, ao livro, algures guardado no sótão, já roído pelos ratos... Sim, como diz o VPV, toda a gente foi comprar e ler o livro, sem entender patavina do que o homem dizia e sobretudo do que iria acontecer a seguir...)

Spínola e O Spínola que eu conheci são dois descritores do nosso blogue: temos cerca de 450 referências, o que é obra... Apesar de ser (ou ter sido) uma figura controversa como militar e como político.

 

(i) Spínola, Portugal e o Futuro  (1974) 




P- O livro de Spínola, Portugal e o Futuro, foi a machada final no regime ?


R- Sim, porque se o vice-comandante das Forças Armadas em todos os territórios em que se está em conflito vem a público dizer que a guerra está perdida, então a guerra está mesmo perdia.

Foi isso que Spínola fez, esse é o grande significado do livro Portugal e o Futuro [lançado a 22/2/1974] e não o que lá estava escrito, que era uma quantidade de dislates que não convenciam (pág. 150) ninguém. 

O livro não tem qualquer importância e é um dislate, pois defendia uma comunidade de estados portugueses em África governada por um centralismo democrático!

(…) Fazia-se uma federação com todas as colónias e depois, para evitar que houvesse negros independentistas nas assembleias, governava-se aquilo com centralismo democrático. Isto são ideias de um partido estalinista, à PCP.

O verdadeiro significado do livro, no entanto, era o de que a guerra estava perdida e essa verdade simples era dita pelo vice-chefe do Estado-Maior – General das Forças Armadas – portanto, estava perdida” (pág. 181).(… )

Ficou marcada a posição de Spínola, que resultou depois na presidência da Junta de Salvação Nacional – foram buscar Spínola por causa do livro. (pág. 183).

 Spínola: imagem à direita,  retirada da capa do livro de Luís Nuno Rodrigues, "Spínola: biografia",(Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010), com a devida vénia...



(ii) E depois,  o  Mário Soares ainda lhe dará uma comenda...


(…) A PIDE sabia disto tudo [a preparação do 25 de Abril] e, segundo Otelo, não investigou nada, não os seguiu, não atrapalhou a conspiração, porque, se não tinham medo dos civis, já dos militares tinham e muito, e também não sabiam como é que estes iriam reagir. Sabiam de tudo mas não tocaram em nada (pág. 183).

(…) As tropas milicianas mercenárias eram uns tipos que estavam aparafusados a nada senão a um regime que lhes pagava para combater, não eram as Forças Armadas de Portugal. Estas tinham uma legitimidade e um sentido que os milicianos nunca poderiam ter.

O Spínola é a peça principal para o fim do regime mas não tem o poder. Esse está nas mãos dos capitães desde o princípio.

(…) Os golpes do Spínola [depois do 25 de Abril] têm aquele ar de touradas: “Eu sou muito valente, eu é que pego o touro”. Foi assim no 28 de Setembro e foi assim no 11 de Março, uma exibição do marialvismo português. Eu li um relato de um capitão que lá esteve e que conta esses episódios de Spínola: “Vou eu,vou eu” (pag. 184)

(…) Aquilo era uma coisa totalmente improvisada, o homem era muito estúpido, mesmo bronco, e não havia qualquer organização… (pág. 184)

(…) Os capitães [conseguem toureá-lo], coletivamente, são mais espertos do que ele. O homem não via realmente o que estava a fazer. Pode-se dizer que ele era um exemplar que vinha de um regime caduco e que não estava no seu tempo” (pág. 185)

(…) [Soares ainda lhe deu uma comenda] , mas foi por outras razões. Quando Soares quis elimibar o poder militar que havia em Portugal, ou seja, o Conselho da Revolução, pediu ajuda aa Spínola para ver se provocava os capitães, e pô-lo nos festejos de abril. Foi a provocação máxima que se podia fazer aos capitães. (pág. 183)

João Céu e Silva recorda um escrito de VPV de 1993 (sem citar a referência bibliográfica):

(…) Quando entrei no Instituto Superior de Economia para dar umas vaguíssimas aulas no outono de 1973, compreendi, aliás sem dar grande importância à coisa, que o homem [Marcello Caetano,] estava perdido.

O retrato de Amílcar Cabral ornamentava a cantina, os “exames” consistiam em trabalhos coletivos, os professores eram marxistas-leninistas e a classe média explorava, com aplicação, os prazeres do sexo

O mundo autoritário e austero do Estado Novo morrera e com ele a guerra colonial. (pág. 185).

 [Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses retos / Negritos e itálicos, para efeitos de publicação deste poste: LG]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23825: Notas de leitura (1524): "Por Cabral, Sempre - Forum Amícar Cabral 2013 - Comunicações e discursos"; organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Sobre o VPV, vd a última notas de leitura de LG:


(***) Vd. poste de  6 de maio de  2010 > Guiné 63/74 - P6329: Notas de leitura (101): Spínola, a biografia de Luís Nuno Rodrigues (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23827: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte III - Abrantes e Santa Margarida; três dias de detenção e, o Rosa e o Cunha


1. Continuação da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.


III - abrantes e santa margarida…

Chegado ao RI 2 (regimento de infantaria), Abrantes, apresento-me ao oficial de dia, um tenente, que logo reage:
- Mas…, de onde vem?! Leiria?!... Então, em Leiria anda fardado dessa maneira?!’
- Não, propriamente, mas o calor...
- Olhe, fica registada a sua apresentação, mas eu não o vi! Deixe-me cá ver a que companhia pertence... Pois é, a 2796 formou e já saiu daqui há muitos dias, rumo ao campo militar de Santa Margarida, para o IAO...

Agradeci e parti para Santa Margarida, onde me esperava a Companhia de Caçadores Independente 2796.

Chegado, ainda passei um certo tempo até encontrar o local onde a companhia estava instalada, uma vez que o campo militar é bastante grande e ‘abriga’ muitas companhias, das diversas armas.
Apresentei-me ao comandante, o tenente Assunção e Silva e restantes companheiros de missão, após o que me informaram que ficaria integrado no 4º grupo de combate.

Na altura, o efectivo da companhia ainda não estava completo, pois ainda faltavam alguns elementos, graduados, 1ºs cabos e soldados, segundo informação, que iriam ter connosco à Guiné, em rendição individual.
Na altura, recordo-me dos graduados que já se tinham apresentado, Ponte, comandante do 1º grupo de combate, Manso, comandante do 2º grupo, Campinho, comandante do 3º grupo, e Rodrigues, comandante do 4º grupo, 1º sargento Moreira e 2º sargento Baptista, furriéis Magalhães, Ferreira, Neves, Amaral, Fernandes, Rosa, Cunha, Chaves, Silva, Oliveira, Coelho, Fabrício, Anjos.
Mais tarde, já em missão, na Guiné, para complemento do efectivo, por falhas ao embarque, casos do Rosa e Cunha, ou por baixas, recebemos o Tristão, o Esteves, o Pereira, o Queiroz, o Guimarães, o Vilas Boas e o Matias.

Normalmente, o IAO, instrução de aperfeiçoamento operacional, era feito em mês e meio, mas o nosso levaria três meses, pelas nossas contas.
Tudo foi correndo dentro do estabelecido e normal, com os fins-de-semana na Figueira da Foz ou em Lisboa, com saída do campo militar à quinta-feira, final da tarde, e regresso segunda-feira, às oito da manhã.
Nos intervalos das operações, aproveitei para experimentar vários tipos de viaturas militares, como o Jeep Willys, os Unimog 411 e 404, a Mercedes, a Berliet.
Descubro um amigo de cavalaria, de Coimbra, que me dá a oportunidade de experimentar um M47, o tradicional tanque de guerra, complicado de manobrar, primeiro, pelo reduzido espaço do habitáculo do condutor, depois, pelos instrumentos de manobra que requerem concentração e prática.


três dias de detenção!

E já estava um pouco saturado e cansado daquele cenário, apesar de enorme, em dimensão, mas que se tornava um pouco claustrofóbico!
A vontade irresistível de sair dali, nem que fosse por uns momentos, tomou conta dos meus sentidos e levou-me a pegar num Unimog 411 e partir por aí fora.
Comigo, foi um enfermeiro de uma outra companhia que eu tinha conhecido nas Caldas da Rainha.
Partimos do campo militar cerca das nove da noite e, depois de quilómetros e quilómetros de maluquices, regressámos ao campo militar, pelas seis da manhã.
Antes de lá chegarmos, perdemo-nos um pouco, tendo ido dar a uma herdade, aguardando que alguém aparecesse, pois o ladrar dos cães acordaria qualquer um, num raio alargado.
Acendem-se luzes e aparece um senhor, em roupão, a quem perguntámos como chegar ao campo militar.
Olha para nós, com ar de reprovação, e diz-nos para irmos sempre em frente, até chegarmos às traseiras da capela.
Mais tarde, viemos a saber que se tratava de um coronel de cavalaria do campo militar, já com uns anos a viver ali.

Quando chegámos ao campo militar, só tive tempo de estacionar o Unimog e ir às instalações preparar-me para a formatura, pois tínhamos mais um treino militar.
O sargento Moreira chama-me, a pedido do tenente Fernando Assunção e Silva, nosso comandante de companhia, que me diz terem dado como desviado aquele Unimog, sem outra explicação, e lamenta ter de me punir pelo acto, tanto mais que não tinha carta de condução militar.
Respondi que tinha toda a razão e direito de me punir.
Acrescentou que seria para exemplo da companhia.
E, assim, levei três dias de detenção, correspondendo ao período do fim-de-semana, coisa a que já estava habituado, de certa forma, de experiências anteriores...
Mas esta punição já não podia ser apagada por ninguém, como foram as anteriores, pelo sargento-ajudante de Leiria, como lhe contei.

E confirmei isto, trinta e cinco anos mais tarde, quando tratei do meu processo para o estatuto de pensionista, em que era necessário apresentar a caderneta militar.
Fui aos serviços do exército, na Av de Berna e em Chelas, onde me disseram que não podiam dar-me a caderneta, pois tinha levado o mesmo caminho de algumas outras...
Perguntei o que queriam dizer com aquilo e acabaram por dizer-me que todas as que estavam um pouco ‘sujas’ foram destruídas, para bem dos seus proprietários...
Claro que entendi...
Mas deram-me um papel com o resumo do meu currículo militar, que ainda guardo, e lá constam os tais três dias de detenção, de Santa Margarida, ‘porrada’ que já ninguém pôde ‘limpar’...

Passar o fim de semana, em serviços, dentro do campo militar, era uma tortura.
Depois de todos terem saído, peguei nas minhas coisinhas e ala para a Figueira da Foz, final da tarde de quinta-feira.
Sábado, final da manhã, telefonei para o campo militar e falei com um elemento do meu grupo que logo me diz que as coisas não estavam bem - anda tudo ‘à porrada’ nos refeitórios - o que deu origem a queixas ao responsável pelos refeitórios e messes.
Eu pedi-lhe para falar com os nossos e tentar controlar a coisa, pois só poderia regressar na segunda de manhã.

Na segunda feira, o tenente Assunção e Silva pergunta-me:
- Então, Cruz, correu tudo bem?
- Sim, tudo bem!
- Tem a certeza?...
- Sim, tudo controlado!

Ele já sabia que eu me tinha pirado... Mas, que castigo pior do que ir para a Guiné?...
- Realmente, o Adolfo parece que nasceu para infringir regras...

Pois, uma espécie de instinto a atirar para o lado errado...
Entretanto, recebo um aerograma do meu irmão, ainda em Moçambique, que me fala em qualquer coisa relacionada com uma Guiomar, um conhecimento das suas férias à Metrópole, cerca de um ano antes, pedindo-me que, se ela aparecesse a querer aproximar-se, eu tratasse do assunto, como entendesse.
Mas ninguém apareceu nem ouvi nada que se relacionasse com o assunto, pensando que tudo estaria resolvido, sem que necessitasse da minha intervenção.
Se algo acontecesse, eu não estaria na Figueira da Foz, pois estava de partida para a Guiné.
E achei melhor nem falar em nada aos meus pais e irmã.
No entanto, isto seria o inicio de mais um problema...


o rosa e o cunha...

Dentro deste cenário do Campo Militar de Santa Margarida, alguns graduados eram notados com uma forte cumplicidade: o Rosa, o Cunha, o Neves, o Cruz (nomes de guerra).
Neste contexto, não é difícil imaginar que algo poderia acontecer, com prejuízo para a companhia, claro.
E, quem estivesse bem atento, reparava no temperamento e postura particulares daqueles graduados, além do facto de que o Cruz tinha sido punido pelo tenente Assunção e Silva.
Melhor dizendo, poderiam pensar na eventualidade daqueles graduados faltarem ao embarque para a Guiné, o que piorava a situação da companhia, que estava desfalcada de alguns elementos, esperado aparecerem em rendição individual.
E a suspeição deu sinais, pelas conversas entre o tenente Assunção e Silva e o alferes Ponte, comandante do 1º grupo.

"Pois, Adolfo, era mais um caso a juntar aos muitos que aconteciam, desde o início da guerra do ultramar - dar o salto para o estrangeiro..."

Entretanto, recebo mais uma boa notícia: nasceu a minha primita Filipa, a segunda filha da minha prima Lena, e a alegria aumentou e abraçou a família, restando-me esperar a oportunidade de uma visita para conhecer e dar as boas vindas à Filipa.

Finais de Outubro e dão-nos umas massas para comprarmos algumas roupas específicas, antes do embarque, o que faríamos no Casão Militar, Lisboa, o tal local já muito bem conhecido do Daniel...

Dia vinte e sete, vou à Figueira da Foz e fico para o dia seguinte, dia do aniversário da minha mãe.
Com beijos apertados, dou os parabéns à minha mãe e despeço-me, sem conseguir dizer mais nada...

(Continua)

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Nota do editor

Poste anterior de 27 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23821: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte II - Tavira e Leiria

Guiné 61/74 - P23826: Humor de caserna (57): O anedotário da Spinolândia (VIII): "Porra, porra, lá iam lixando o Comandante-Chefe" (Gen Spínola, abril de 1972, quando o seu heli terá aterrado, por engano, numa clareira do mato, cercada de "turras", confundidos com comandos africanos)

Guiné > Algures > s/d (c. 1969) > O alf mil pil heli Al III Jorge Félix (BA 12, Bissalanca, 1968/70) e o gen Spínola (Com-Chefe e Governador Geral, CTIG, 1968/73)...  O Jorge Félix terá sido um dos pilotos de heli, com quem o general mais terá gostado de voar...   E com ele não nenhum susto como o de abril de 1972, uma história insólita contada neste poste...

Foto (e legenda): © Jorge Félix (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014, 364 pp.).


1. Não sei se esta história é verdadeira ou não. Mas tenho que a  tomar como verídica, já que foi contada em primeira mão por um capitão do quadro, comandante da CCAÇ 3399/ BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), o cap inf Horácio José Gomes Teixeira Malheiro, que esteve na "periferia dos acontecimentos" (*).

Temos que admitir que, quando se falava das peripécias do gen Spínola,  no CTIG, muitas vezes se mistura(va)  ficção e realidade.  Daí esta história  vir "engrossar" a nossa série "Humor de caserna" e o "anedotário da Spinolândia" (**). A história do heli  é perfeitamente verosímil e desta vez o general (e os seus acompanhantes) terá apanhado um valente susto...

A história consta do livro do nosso já saudoso Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022),  "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014, 364 pp.), cuja capa se reproduz acima. 

Vamos reproduzir aqui um excerto do capítulo 10º ("O capitão de Aldeia Formosa, Horácio Malheiro"). É um depoimento do comandante da CCAÇ 3399 sobre a excelente articulação e cooperação, em operações, com o cap inf Rui Ferreira e os seus homens da CCAÇ 18 (pp. 179-196), não obstante os graves incidentes do Natal de 1971, rapidamente ultrapassados e esquecidos (*).

O cap inf Horácio Malheiro (não sabemos que posto tinha em 2014, aquando da publicação do livro, "Quebo"), dá vários exemplos de ações conjuntas que se traduziram em  "êxitos para o Batalhão" (pág. 191).

Uma delas, louvada de resto pelo gen Spínola, terá sido na sequência da Op Muralha Quimérica, em abril de 1972. "uma operação que visava evitar a entrada na Guiné de elementos da ONU que vinham verificar a existência de Zonas Libertadas onde o Exército Português não entrava e assim seriam reconhecidas internacionalmente como legítimas representantes dos Povos da Guiné" (pág. 192).

Decorreu durante 12 dias e envolveu forças  da CCAÇ 3399, CCAÇ 18, paraquedistas, comandos africanos e o Grupo Especial  do Marcelino da Mata. A operação teve como comandante, o ten cor paraquedista, Araújo e Sá, do BCP 12.


2. Um situação insólita em que o Com-Chefe se ia lixando...

por Horácio Malheiro

(...) Lembro-me de uma situação insólita que se passou nessa altura. Estava a minha Companhia de reserva em Aldeia Formosa quando recebo ordens urgentes  para embarcar nos helis, que  estavam estacionados  na pista,  e seria já no voo que teria conhecimento do destino  e missão.

Embarcámos de imediato e quando nos preparávamos  para descolar, soube nessa altura  que a missão era resgatar o general Spínola que presumivelmente teria sido aprisionado  pelo IN quando o seu heli  teria aterrado no meio de forças IN na altura confundidas com os Comandos Africanos.

Na altura da descolagem,  o meu piloto, comandante da  esquadrilha de helis, recebeu, via rádio, uma comunicação do heli do general Spínola informando que já vinha a caminho, pelo que apeámos s e aguardámos a sua chegada.

Quando chegou o heli do general, este saiu todo sujo de fuligem bem como o seu ajudante de campo, capitão Tomás, cujas mãos tremiam descontroladamente ao cumprimentar-me.

O general teve só um comentário ao desembarcar: "Porra, porra, lá iam lixando o Comandante-Chefe", e seguiu para a sede de Batalhão.

Já no bar,  em conversa, soube que o general tinha mandado aterrar o heli numa clareira da mata onde vislumbrou  militares africanos IN de camuflado que confundiu com os Comandos Africanos por terem adoptado no terreno um dispositivo de segurança à aterragem.

Quando aterrou e apeou,  foi recebido a tiro e todos se atiraram ao chão que tinha sido queimado e daí o terem ficado cheios de fuligem. Passado este instante de estupefacção, entraram a correr para o heli que descolou de imediato, debaixo de fogo IN,  que mal adivinhava  que tinha tido ao seu alcance o maior "ronco" da guerra da Guiné, que seria a captura ou abate do (...) Comandante-Chefe  [do Exército Português] " (pp. 192/193).

[Selecção / revisão e fixação de texto / parênteses retos, para efeitos de publicação deste poste: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23817: In Memoriam (463): Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022)... Um excerto do livro "Quebo" (2014): Recordando os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971, "se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida"

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23825: Notas de leitura (1524): "Por Cabral, Sempre - Forum Amícar Cabral 2013 - Comunicações e discursos"; organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Após percorrer as cerca de quinhentas páginas de comunicações, discursos e mensagens do Fórum Amílcar Cabral 2013, tinha como consigna apreciar o pensamento revolucionário do líder do PAIGC na contemporaneidade, fica-nos um ressaibo de mágoa pelas oportunidades perdidas de lançar um olhar mais aprofundado como esse pensamento, depois de gerar duas independências, falhou rotundamente por falta de aplicação, por incapacidade dos seguidores e, quanto aos dias de hoje, discernir como esse pensamento não pode ser usado por elites políticas gananciosas e sem perspetiva. E que o pensamento de Cabral foi e é marcante atesta-o a investigação feita por dois sociólogos na Guiné e em Cabo Verde, nessa expressão musical e popular que é o rap entoa-se o nome de Cabral para reivindicar sentido da História e para ter esperança no futuro. Quantas outras investigações originais como esta poderiam ter sido convocadas num fórum designado Amílcar Cabral onde a generalidade das intervenções são boas para deitar para o lixo, é duro de dizer mas temos que nos apegar à verdade do que se leu, uma sensaboria.

Um abraço do
Mário



Cabral, o pensamento revolucionário no mundo contemporâneo (2)

Mário Beja Santos

Por Cabral, Sempre, comunicações e discursos apresentados no Fórum Internacional Amílcar Cabral, em janeiro de 2013, na Praia, com organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016, tinha como tema central a leitura do pensamento de Amílcar Cabral à luz da contemporaneidade. Depois de tudo lido, o primeiro comentário é de desapontamento. 

Tirando um escasso número de intervenções que trazem um novo olhar seja sobre o pensamento revolucionário de Amílcar Cabral, seja pela atualidade que uma boa parte do seu pensamento comporta, há para ali muito salamaleque e vacuidade, muito mais do mesmo, até uma certa farronca de alegados investigadores que pegaram noutros escritos e apresentam o fruto do seu trabalho como um acontecimento. 

No texto anterior, fez-se referência a duas comunicações substantivas, resta-nos uma incursão pelo trabalho de Miguel de Barros e de Redy Wilson Lima dedicado ao pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, investigação séria que apraz saudar. E também uma pequena alusão à mensagem do embaixador finlandês Mikko Pyhälä, que nos fala da ajuda escandinava antes da independência da Guiné-Bissau.

O resumo do trabalho sobre a música de intervenção é bem sugestiva para o desenvolvimento da comunicação, como consta:

“Nos anos de 1990, com a vaga de democratização na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, quer o PAIGC, quer o PAICV, partidos tidos como ‘força, luz e guia do povo’, perdem esse estatuto, pondo fim simultaneamente à cadeia de domesticação dos espíritos, precipitando uma descoletivização social das organizações juvenis sob o prisma comunista. Isto fez com que os jovens reinventassem formas de sociabilidade no seio dos grupos de pares, num contexto marcado pela globalização e afro-americanização do mundo, em que a cultura hip-hop, através do seu elemento oral, o rap, aparece como veículo da libertação de expressão e protesto dos grupos urbanos, em situação de maior precariedade. Pretende-se aqui analisar de que forma os jovens guineenses e cabo-verdianos recontextualizaram através do rap, na nova conjuntura dos dois países, o discurso pan-africanista e nacionalista de Amílcar Cabral, tendo em conta o risco de branqueamento da memória coletiva e histórica; a suposta traição dos seus ideais pelos atuais políticos e dirigentes; a necessidade de o resgatar enquanto guia do povo, e de representá-lo como um MC (mensageiro da verdade).

Proceda-se a uma síntese. O apelo ao rap parece residir na sua própria acessibilidade e na facilidade de utilização pela maioria dos jovens com escassos recursos, económicos e culturais. A vaga de democratização, o abrir das portas à liberalização política e o contemporâneo da desideologização do debate público e político, ganhou relevo o rap e o recurso simbólico global no fomento de identidades locais. Para os jovens o recurso à memória de Cabral é uma exteriorização pela insatisfação dos sonhos perdidos e dos planos de desenvolvimento que não tiveram seguimento. O rap tornou-se um instrumento para exteriorizar a crítica e acenar para um futuro mais promissor. Os dois autores falam das realidades socioeconómicas e culturais dos dois países e assim se chega à presença de Cabral na música rap. Das recolhas feitas, em ambos os países avultam quatro aspetos fundamentais: preocupação em manter Cabral como referência face ao risco de branqueamento da memória; crítica aos políticos por se terem alheado do pensamento de Cabral; utilização de Cabral como portador de esperança; Cabral referenciado como mensageiro da verdade. Há quem em mensagem rap refira que a geração mais nova duvida da sua própria história, a imagem de Cabral já não se encontra nos livros da escolaridade básica e os mais novos não conhecem a história dos seus heróis. De uma forma global, a preocupação com a manutenção e atualização da memória viva de Cabral está mais presente nas narrativas dos rappers cabo-verdianos do que guineenses. Este facto pode ser entendido na medida em que a luta pela independência dos dois países não teve como teatro de operações Cabo-Verde, vivenciando assim Cabral quase de uma forma espiritual. É um trabalho de grande sugestão, com diferentes e elucidativos exemplos, bom seria que esta investigação tivesse ampla publicidade. Os mesmos autores abordam a questão do pan-africanismo tratado nesta corrente musical. Concluem referindo o ímpeto que estas mensagens acarretam no espaço público pelo seu vigor reivindicativo. Consideram que há dois elementos que concorrem para maior uso e apropriação do rap como forma da prática de ideologia de libertação: o crioulo enquanto instrumento e a rádio como veículo de comunicação. “Cabral é ainda a principal referência da juventude e fonte de inspiração para as forças progressistas de uma mudança significativa em toda a África tendo em conta a sua eficaz visão de liderança, num continente caraterizado pela liderança deficiente e a necessidade de encontrar líderes comprometidos com a prosperidade das suas sociedades.

Da mensagem do embaixador Mikko Pyhälä parece do maior interesse destacar o papel que tiveram as sociais-democracias nórdicas na ajuda à luta da Guiné-Bissau, fala de Kalvi Sorja, que foi primeiro-ministro da Finlândia, e de outro primeiro-ministro finlandês, Paavo Lipponen, da social-democrata Birgitta Dahl, viria a ser presidente do parlamento sueco, a referência maior cabe a Olof Palme. “Muitos afirmaram que o sucesso da luta deveu-se em absoluto ao carisma e génio de Amílcar Cabral que na análise da sociedade e da opressão coloniais foi mais profundo do que Frantz Fanon e que como estudioso da liberdade e como estratega foi mais claro do que Che Guevara. Afirmou-se que Cabral conseguiu integrar valores africanos e europeus, e que com o amplo conhecimento do país que obteve quando realizou o recenseamento agrícola passou a conhecer o potencial dos vários grupos étnicos e sociais para a revolução. Para o êxito desta revolução era necessário uma aliança entre os cabo-verdianos e os guineenses. Cabral não sobrevalorizou a espontaneidade dos camponeses como fez Che Guevara. Para Cabral, a atividade militar só era possível com base num longo e paciente trabalho político e, embora insistisse que os guerrilheiros fossem militantes armados, nunca promoveu o militarismo. O sociólogo finlandês Juhani Koponen escreveu que Cabral foi o mais brilhante pensador da jovem África. Para o escritor sueco Per Wästberg, Cabral foi o mais brilhante dos líderes que as lutas africanas pela independência produziram e a sua perda foi irreparável”.

Amílcar Cabral na Guiné com a sua primeira mulher, Maria Helena Vilhena Rodrigues
Miguel de Barros, sociólogo guineense
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Notas do editor

Poste anterior de 21 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23801: Notas de leitura (1520): "Por Cabral, Sempre - Forum Amícar Cabral 2013 - Comunicações e discursos"; organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 27 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23820: Notas de leitura (1523): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte IV “Devo à Providência a graça de ser pobre” (Salazar, Braga, 1936)

Guiné 61/74 - P23824: Ser solidário (251): Divulgação da campanha de fundos que visa ajudar o luso-guineense Mamadu Baio, músico de Tabatô, a publicar o seu primeiro CD em Portugal onde vive há 10 anos... Ponto da situação: 33 doadores (cinco do blogue), num total de 1800 euros (1/3 da meta)...Camaradas e amigos, ainda podem fazer uma pequena doação até ao dia 4 de dezembro

      



Estamos a organizar um crowdfunding para financiar o próximo disco em https://gofund.me/2efcdc4a 

Ululalo é um tema do próximo disco de Mamadu Baio. Este concerto aconteceu no Camones, em Lisboa, a 4 de junho de 2022. João Graça (violino), Avito Nanque (guitarra eléctrica), Mamadu Baio (voz e guitarra) e Sanassi di Gongoma (percussão e voz). Imagens captadas e misturadas por Juan Ferracioli. Um agradecimento especial à Cláudia Loureiro, que tem dado um apoio inestimável ao projecto. 


1. Mensagem de Mamadu Baio e João Graça, músicos, membros da nossa Tabanca Grande:

Data - domingo, 27/11/2022, 18:56 

Assunto - apoio à divulgação - novo disco de Mamadu Baio

Olá, amigos da Guiné:

Estamos a organizar uma recolha de fundos para a gravação do novo disco de Mamadu Baio (https://gofund.me/2efcdc4a), que terminará no dia 4 de dezembro.

É muito importante para nós conseguirmos chegar a mais pessoas, e imaginámos que o vosso/nosso  blogue nos poderia trazer isso - um público mais alargado de pessoas que gostam de música africana, em geral, e guineense, em particular..

As músicas do disco estão prontas, só falta mesmo é conseguirmos os fundos a que nos propusemos. Neste momento estamos a 30% do objectivo (que são dos 5 mil euros).

Obrigado pela vossa atenção a este email, tudo de bom.

João Graça e Mamadu Baio



Lisboa > O Mamadu Baio e alguns dos músicos com que toca, em Lisboa, incluindo o João Graça


Foto (e legenda): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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2. Lista dos 33 doadores (cinco, dos que deram o nome, são do nosso blogue, e os seus nomes vêm a negrito)


Anônimo | €10 |Nhá 6 horas

Rafael Filipe Neto | €20 | há um mês

Frederico Silva | €50 | há um mês

Anônimo | €80 | há um mês
  
Anônimo | €50 | há um mês

Anônimo | €40 | há um mês

Anônimo | €100 | há 2 meses

Rebecca Turner | €50 | há 2 meses

James Lumley-Savile | €30 | há 2 meses

Jaime Silva | €40 | há 2 meses

Jorge Ferreira ! €50 | há 2 meses

Pablo Durán | €30  há 2 meses

Catarina Neves ! €100 | há 2 meses

Simon Potts | €200 | há 2 meses

Cristina Roça | €100 | há 2 meses

Paulo Franco | €20 | há 2 meses

Anônimo |  €20 | há 3 meses

Will Samson ! €30 ! há 3 meses

Ernestino Caniço | €40 | há 3 meses

Estela Louçã | €50 | há 3 meses

Virgílio Valente  | €50 | há 3 meses

Jose Barbedo | €100 | há 3 meses

Ana Teresa Klut | €20 | há 3 meses

Nuno Conceicao | €60 | há 3 meses

Ana Fonseca | €30 | há 3 meses

Diogo Cabral | €150 | há 3 meses

Cláudia Loureiro | €20 | há 3 meses

Sílvia Roque | €50 | há 3 meses

Nuno Macedo | €20 | há 3 meses

Anônimo | €100 | há 3 meses

Anônimo | €30 | há 3 meses

Anônimo | €30 | há 3 meses

João Graça | €30 | há 3 meses

Total: 1.800 euros


3. Mensagem de João Graça:

[A campanha está a terminar, dia 4 de dezembro é a nossa meta! Por isso quem se quiser juntar, é agora.]

Caros amigos,

O Mamadu Baio é um grande ser humano, sábio, generoso... e músico guineense absolutamente singular e original, radicado em Portugal há cerca de 10 anos.

Ele vem de uma aldeia da Guiné-Bissau, Tabatô, onde todos os seus habitantes são músicos. Uma das funções dos músicos griots (ou djidius, em crioulo) é precisamente tocar para os régulos (chefes tribais) quando há uma ameaça de conflito entre etnias, para prevenir a violência e promover a paz.

Também são eles quem, em sociedades sem escrita, transmitem as notícias e divulgam as lendas e as narrativas, dando variados conselhos sobre os relacionamentos interpessoais, baseados no respeito e dignidade humana. Valores esses que são uma preocupação reflectida nas letras deste artista.

Conheci o Mamadu em Bissau, em 2009, numa noite que não irei esquecer. A nossa amizade aprofundou-se, tocámos juntos, visitei a sua aldeia, num dos momentos mais belos da minha existência. De volta a Portugal a música uniu-nos novamente, e juntei-me ao Mamadu no violino em variados concertos.

O projecto, composto por músicas autorais e inspiradas na fusão de diferentes sonoridades, desde o jazz, afrobeat, desert blues e reggae, ganhou maturidade, e está pronto a dar o salto para um disco, que queremos que seja uma celebração, com a dignidade que merece.

Um disco precisa de recursos financeiros para pagar o estúdio de gravação, as cópias, a promoção, os videoclipes de divulgação, enfim todo um processo moroso e oneroso que colocará a música do Mamadu no lugar onde merece estar.

Para isso contamos com o teu precioso apoio financeiro para tornar esta utopia possível. Pode ser pouco mas é valioso, como a gota de água que se transforma em ribeiro.

Muito obrigado,
João Graça

PS - Em alternativa à plataforma (que aceita google pay e cartão) podes fazer a doação através de transferência bancária - LT14 3250 0134 8530 2306 - enviando nome e email; que me comprometo a colocá-la na plataforma

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 22 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23546: Ser solidário (250): Divulgação de uma campanha de fundos que visa ajudar o luso-guineense Mamadu Baio, músico de Tabatô, a publicar o seu primeiro CD em Portugal onde vive há 10 anos (João Graça, médico e músico)

Guiné 61/74 - P23823: (De) Caras (190): Vitor Amaro dos Santos (Lousã, 1944 - Coimbra, 2014), o primeiro comandante´da CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970 /72): continuamos a honrar a sua memória


Foto: Cortesia de Benjamim Durães (2019)


1. Não se pode falar desta efeméride, a trágica data de 26 de novembro de 1970(*), sem evocar e honrar aqui a memória do cor art ref, DFA, Vitor Manuel Amaro dos Santos (Lousã, 1944 - Coimbra, 2014), membro da nossa Tabanca Grande, nº 781 (**)

Quando ainda era vivo, telefonou-me, de Coimbra, a dizer que tinha tentado deixar um comentário no poste P9335, de 9 de janeiro de 2012 (***)... O que escreveu teria acabado por se perder...

Tentei reconstituir o essencial da nossa longa conversa ao telefone, nessa noite do dia 12 de janeiro de 2012. Uma primeira versão saiu como comentário a esse poste (***):

(i) Segundo a explicação que me foi dada pelo antigo comandante da CART 2715 / BARY 2917 (Xime, 1970/72), o relatório (de que foi publicado um excerto, em 11 de maio de 2010, sob o poste P6368) (****), embora assinado por Spínola, seria uma peça "burocrática", que valia o que valia...

Não era um documento apócrifo, mas ele sentia que as críticas que eram dirigidas ao comandante da companhia, na ocasião da Op Abencerragem Candente, eram injustas e omitiam o contexto em que fora decida e imposta pelo comandante (interino) do BART 2917, contra as "mais elementares regras de segurança" (sic)...

(ii) Se não vejamos: a operação era conhecida (e falada) por toda a gente (até em Bafatá!), e portanto o PAIGC teve todas as condições, 4 dias depois da invasão de Conacri (Op Mar Verde), para palnear e montar uma emboscada (em L), pensando em massacrar as nossas tropas a caminho da famigerada Ponta do Inglês;

(iii) Segundo ele, na emboscada do dia 26/11/1970, haveria uma poderosa força de 200 homens do PAIGC, enquadrada por 10 cubanos (!) (o que me pareceu manifestamente exagerado, embora o emquadramento cubano seja verosímil)...

(iv) O cap art Amaro dos Santos seria obrigado a deixar o comando da CART 2715 em janeiro de 1971, por imperiosas razões de saúde; contou-me a sua versão deos acontecimentos (dramática, e ainda então sofrida, mesmo passados tantos anos) , e queria um dia ainda poder publicá-la no nosso blogue...

(v) Tinha do gen Spínola as melhores impressões: no dia seguinte, 27, ele estava lá no Xime para lhe dar um abraço de consolo e de solidariedade!... O Amaro dos Santos explicou-lhe o sucedido!... E o Com-Chefe terá depois tomado as suas decisões...

(vi) Fiz questão de dizer-lhe que ele, Amaro dos Santos, como comandante operacional, era um camarada nosso, e como tal estava acima de qualquer crítica (neste blogue)... Tinha direito ao seu bom nome, razão porque não faziasentido o seu nome completo figurar, entre parênteis retos, no poste P6368 (****)... (Fora já retirado, não vinha aliás no documento original, onde o capitão era referido apenas como o comandante da CART 2715)...

(vii) Por outro lado, convidei-o para integrar a nossa Tabanca Grande (convite que fazia todo o sentido, e que ele terá recebido com agrado, embora não me tendo dado logo o seu OK):

(viii Ficou surpreendido, isso sim, por ele lhe dizer... que eu também estivera là!, na Op Abencerragem Candente... E que fui um dos homens da CCAÇ 12 que foi à frente da coluna - eramos mais de 250 homens em pleno mato, dois agrupamentos - resgatar os corpos dos nossos infelizes camaradas, o Cunha e mais cinco;

(ix) Um dos nossos homens trouxe o cadáver do Cunha às costas (!), durante quilómetros até ao Xime (os feridos graves foram helievacuados em Madina Colhido), o nosso "bom gigante" Abibo Jau, que viria a ser fuzilado pelo PAIGC, logo a seguir à independência - creio que em 11 de Março de 1975, se não erro -, juntamente com o comandante da CCAÇ 21, o ten Comando graduado Jamanca...

(x) Corria ainda o boato, entre os homens da CART 2715, que os "pretos" da CCAÇ 12 se haviam recusado a a socorrer os "tugas" da CART 2715, o que é falso, garanti eu ao cap Amaro dos Satis; eu fui um dos "pretos" que estive na testa da coluna, logo que acabou o fogo, a socorrer os feridos e a transportar os mortos...

Despedi-me, ao telefone, com um alfabravo, do cor Amaro dos Santos... camarada que nunca mais vi desde esse fatídico dia 26/11/1970 e em que ele teve um comportamento heróico! (Esta conversa ao telefone ocorreu dois anos e um mês antes da sua morte, prematura, em Coimbra, a 28/2/2014, com 69 anos). (*****)

2. Outro comentário ao poste P9335, por parte do editor LG:


Há um ponto em que temos de chegar a acordo - por mor da verdade! - que é a data em que o gen Spínola "decapita" o BART 2917  ( a expressão é do Amaro dos Santos)...

O Amaro dos Santos diz que foi após o regresso de férias, logo a seguir à fatídica operação no Xime, planeada pelo 2º comandante, e pensada em termos da sua glória e honra... Que teria sido a 27 que o gen Spínola teria demitido o ten cor Domingos Magalhães Filipe...

A memória (ou a amargura) podia estar aqui a atraiçoar o Amaro dos Santos...

Não se sabe das razões por que o ten cor art Domingos Magalhães Filipe foi substituído (aliás, mais tarde, pelo ten cor inf Polidoro Monteiro)... Vem na História da Unidade, ou pelo menos nos anexos elaborados pelo Benjamim Durães (ex- fur mil op esp, CSS/BART 2917) a seguinte informação lacónica:

"Apresentação compulsiva no Quartel-General em Bissau, em 12/11/70, deixando o Comando do BART 2917"...

Se foi a 12 de novembro de 1970, então isto não tem nada a ver com a Op Abencerragem Candente (que foi planeada para se realizar três dias depois da Op Mar Verde, e acabou por levar dois dias, 25 e 26/11/1970, com as consequências trágicas que conhecemos).

Por que razão é que o gen Spínola não afastou também o 2º comandante, o major art Anjos de Carvalho, como aconteceu ao batalhão anterior, o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) ?

Isso é outra história: dizia-se, em Bambadinca, no meu tempo, por se tratar de um antigo professor da Academia Militar... Só ? Ou só por isso?

3. Comentário do "ex-cap Amaro Santos" (sic) ao poste P6368 (***):

Camaradas Luis Graça e Benjamim Durães:

A postagem, nesta página, de um documento, no mínimo "Confidencial", por revelar nome completo, posto, sub-unidade operacional e localidade onde estava sediada, Xime, por si só, não é relevante. O que sobressai é o seu significado!

Não consigo o "politicamente correcto"... Desculpem-me, porque sou um fã do blogue !

Uma pergunta...Quando se fala na Op Aberração [Abencerragem] Candente, nome meu, a propósito dos 6 mortos e 9 feridos graves, sofridos pelas NT, ao escolher-se um documento tão importante (bloguismo de investigação, parece, né !?), acaba por se " denunciar" a 3 milhões de internautas que o capitão, "com precária preparação táctica para conduzir a sua subunidade no mato... sem noções elementares de segurança...por não se ter deslocado em adequado dispositivo..." é obviamente o " culpado" pelas baixas havidas!?

Onde está a recusa de julgar os combatentes, o direito ao bom nome, as regras ou os valores éticos... blá, blá, blá !

Isto é cruel, falso (existe uma outra verdade... ) mas, pior, é perverso pelas consequências...

Não brinquem, camaradas, são seis almas boas, heróis que a Pátria h0nra. Ponto final.

Ex-Cap. Amaro dos Santos, Cmdt da Cart 2715. 

_________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23818: Efemérides (376): foi há 52 anos, a carnificina da Op Abencerragem Candente, 26/11/1970, subsector do Xime..."Choro para uma morte anuncidada" (poema de Luís Graça)

(**) Vd. poste de 26 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19235: Tabanca Grande (470): Vítor Manuel Amaro dos Santos (1944-2014), cor art ref, DFA, cmtd da CART 2715 (Xime, 1970/72), senta-se, a título póstumo, à sombra do nosso poilão, no lugar nº 781, no dia em que se comemoram os 48 anos da Op Abencerrragem Candente, em que as NT tiveram 6 mortos e 9 feridos graves na antiga picada da Ponta do Inglês

(***) Vd. poste de 9 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9335: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72): Baixas: mortos e feridos (Benjamim Durães)

(****) Vd. poste de 11 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6368: O Spínola que eu conheci (20): "Erros graves cometidos do ponto de vista de segurança explicam o êxito da emboscada do IN, em 26/11/1970, na região Xime-Ponta do Inglês [, Op Abencerragem Candente] " (Benjamim Durães / Jorge Cabral / Luís Graça)

(*****) Último poste da série > 7 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23822: (De)Caras (189): Joaquim de Araújo Cunha, ex-fur mil mec auto, CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970/72), natural de Barcelos, morto em combate, em 26/11/1970, no decurso da Op Abencerragem Candente

domingo, 27 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23822: (De)Caras (189): Joaquim de Araújo Cunha, ex-fur mil mec auto, CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970/72), natural de Barcelos, morto em combate, em 26/11/1970, no decurso da Op Abencerragem Candente

 

Guiné > Região de Bafatá >Xime > CART 2715> s/d >  O Joaquim de Araújo Cunha parece ser o militar da direita, na brincadeira com um jovem guineense... Ainda se estava nos dias alegres do Xime... A foto  chegou-nos sem legenda nem data, mas é seguramente anterior à trágico desfecho da Op Abencerragem Candente,  em 26/11/1970... A legenda, galhofeira, podia ser: "Arraial minhoto no Xime: quem não tem cão, caça com gato"... 

CART 2715 tinha chegado ao Xime em final de maio de 1970... O comando e CCS do BART 2917 ficaram sedidados em Bambadinca (sector L1) (A CART 2714 em Mansambo e a CART 2716 no Xitoel). 

Depois de efetuar a sobreposição e render a CART2520,  a CART 2715 assumiu em 8 de junho de 1970 a responsabilidade do respectivo subsector, com um destacamento em Enxalé, sendo este guarnecido ora com um pelotão, ora com dois pelotões conforme as necessidades operacionais. Seis meses depois sofre um duro golpe com a morte de cinco dos seus militares, em 26/11/21970 (Op Abencerragem Candente). (O guia que foi morto, a 6ª vítima, Seco Camará, pertencia à CCS/BART 2917.) 

Teve cinco comandantes de companhia (o primeiro, o cap art Vitor Manuel Amaro dos Santos). Em 14 de março de 1972, foi rendida no subsector de Xime pela CART 3494, tendo recolhido a Bissau a fim de efectuar o embarque de regresso.

Foto gentilmente cedida pela sobrinha do Joaquim de Araújo Cunha (1948-1970) Ana Rita Silva (Barcelos).


1. O Joaquim de Araújo Cunha, fur mil mec auto, da CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970/72), foi uma das seis vítimas mortais da violenta emboscada em L que as NT sofreram na antiga picada Xime - Ponta do Inglês, no decurso da Op Abencerragem Candente (Xime, 25-26 nov 1970 ) (*).

Em tempos  recebemos, na caixa de comemtários do  poste P9863, de 8 de maio de 2012 (**)  uma mensagem subscrita por  uma sobrinha do Cunha, não tendo porém deixado   o seu nome, ou qualquer contacto ( email ou nº de telemóvel):

"Sou Sobrinha do Fur Mil Joaquim de Araújo Cunha. Apesar da mágoa, a minha mãe gostou muito de ler estas palavras e perceber que era acarinhado pelos colegas. Temos, ainda, guardadas todas a fotografias pelo que teremos todo o gosto em as partilhar. Obrigada. Cumprimentos para todos" (11 de março de 2015 às 22:14).

No Facebook da Tabanca Grande Luís Graça, encontrámos finalmente o seu nome e o link para a sua página, e a foto que reproduzimos acima:

Ana Rita Silva: "Sou a sobrinha do Joaquim de Araújo Cunha. Não tive o prazer de conhecer o meu tio mas guardo algumas histórias. Agradeço em nome de toda a família - especialmente em nome dos irmãos ainda vivos- a lembrança e as palavras de carinho, apesar de tudo. Muita saúde para todos. Aproveito para desejar um Santo Natal e um próspero Ano Novo". (26 de novembro de 2022, 23:05).

O nosso camarada António Duarte fez o comentário o seguinte: "Ana Rita Silva consulte o blogue da Tabanca Grande Luís Graça . É com emoção que se vê uma sobrinha do nosso camarada Cunha a vir ao nosso encontro, dos que passando pela Guiné/Xime não tiveram o azar do seu tio."(27 de novembro de 2022, 11:40)

E nós acrescentámos: 

"Tabanca Grande Luís Graça: Querida Ana: fui dos últimos a estar com o seu tio Araújo, à mesa, às 3 da manhã do dia 26, e fui dos primeiros a vê-lo morto por volta das 9h00 da manhã... Foi um dos nossos soldados que o trouxe às costas, o "gigante" Abibo Jau, da CCAÇ 12, durante quilómetros até à sua "casa", o quartel do Xime... Nunca percebi por que razão é que um furriel mecânico auto (!) ia à frente, com uma secção, atrás do guia do Seco Camará,  de uma força de 250 homens (dois destacamentos, CART 2715 e CCAÇ 12)... Tem aqui no blogue o meu contacto. Luís Graça." (27 de novembro de 2022, 10:14)

E depois agradecemos a foto que nos disponibilizou:

 "Ana, obrigado pela foto do tio Araújo Cunha. Não tínhamos nenhuma foto dele, desse tempo (trágico) da Guiné!... Luís Graça.". (***)

O Joaquim de Araújo Cunha era natural de Outeiro, São Miguel da Carreira, Barcelos, Está sepultado no cemitério da sua freguesia natal. A sobrinha Ana Rita Silva vive em Barcelos e é mestre em direito pela Universidade de Coimbra (segundo informação da sua página no Facebook). 

Votos do nosso editor LG:

"Ana, desejo-lhe também um Feliz Natal de 2022, a si e aos seus. E  acalente sempre a memória do seu querido tio e nosso saudoso e bom camrada. Nós aqui, há muito que recusámos deixá-lo inumado na vala comum do esquecimento". Tem mais de meia dúzia de referências no nosso blogue".
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(**) Vd. poste de 8 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9863: (De)caras (10): Relembrando o Fur Mil Joaquim de Araújo Cunha, natural de Barcelos, que pertencia à CART 2715 (Xime, 1970/72), e que foi morto de morte matada em 26/11/1970 (José Nascimento, CART 2520, Xime, 1969/70)

Guiné 61/74 - P23821: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte II - Tavira e Leiria


1. Continuação da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.


II - tavira…

Depois de uns dias de férias na Figueira da Foz, intervalo da recruta para a especialidade, a sequência natural: Tavira.
Comboio da linha do Oeste, até ao Rossio, passar o Tejo de barco e apanhar outro comboio no Barreiro - aventura!

Cheguei ao Barreiro, final do dia, e disseram-me que só teria comboio para Tavira de manhã cedo.
Como lá estavam mais dois instruendos que também iam para Tavira, fazer a especialidade, trocámos ideias sobre como passar a noite, até à hora do comboio.
Entrámos numa ‘tasca’, jantámos umas coisas e pedimos aos donos que nos deixassem lá dormir, com sucesso, e dormimos apoiados nas mesas.
Isto fez-me lembrar os meus tempos de boleia…

De manhã, bem cedo, acordaram-nos, tomámos o pequeno-almoço e lá fomos apanhar o ‘quim’ para Tavira.
No comboio, cada um procurou o melhor lugar para descansar, até Tavira.
Fui dormitando, dormitando, até que sou acordado por um senhor revisor, dizendo-me que tinha de sair, pois era fim de linha - estava em Vila Real de Santo António!
Ainda perguntei se mais alguém tinha ficado no comboio, mas disse-me que só eu, pelo que concluí que os outros nem repararam que eu tinha ficado dentro do comboio!
Conclusão: espera mais um comboio, para voltar para trás e chegar ao destino, Tavira.

Chegado a Tavira, apresentação no CISMI (centro de instrução de sargentos milicianos de infantaria) e inserção na 1ª Companhia de Atiradores de Infantaria, cujo comandante fiquei a saber que era o célebre ‘muleta negra’, porque andava apoiado numa espécie de pingalim, resultado de ferimentos no ultramar.
Também tive oportunidade de conhecer e conviver com o célebre ex-alferes Robles, agora, capitão, com uma ‘pancada’ de alto nível, fruto de experiências de guerra colonial em Angola e Guiné.
Curioso, termos concluído que tínhamos conhecimentos comuns de Coimbra, de onde era natural.

Entretanto, a minha tia Jú telefona-me a dizer que o primo Jaime Abreu Cardoso estava à minha espera, pois eu fazia parte de uma lista dos instruendos seleccionados nas Caldas da Rainha para seguirem para Lamego.
Claro que eu disse logo à tia Jú que não ia para lá e até já estava em especialidade, em Tavira, e nem sabia que o Jaime era oficial do quadro e estava lá, pensava que tinha feito a tropa normal e mais nada.
Ela, com razão, respondeu-me que era pena, pois teria a protecção do Jaime, já capitão e com medalhas, além de poder ir com ele passar os fins de semana a Vieira do Minho.
Realmente, uma pena, pois poderia ter uma tropa melhor e, quem sabe, até retomar a vida académica, no Norte, com as facilidades, além de considerar-me nos ‘meus domínios’…

Voltando a Tavira, tive a sorte de conseguir autorização de ‘pernoita fora’, pelo que logo arranjei um quarto, do lado de lá do rio, mas bem perto do centro da cidade.
E não esqueci a rua: Dr. Augusto Silva Carvalho, 15. A dona da casa era viúva e tinha uma filha que tocava piano, interessante, naquele tempo, e tinha amigas que se juntavam a nós, nos serões, bem divertidos.

Eu estava habituado a controlar as aplicações e exercícios militares, principalmente, os nocturnos, de forma a safar-me, o mais possível, desta vez, com o sentido no meu quarto, para tirar a farda e vestir a roupa de civil.
Uma das primeiras formaturas, com revista, o capitão ‘muleta negra’ toca-me nas pernas com a bengala, ordenando que passasse pelo gabinete, dentro de uma hora, com o cabelo rapado, para grande aflição do comandante do pelotão, o alferes Soares, um porreiríssimo.
Sim, ninguém acreditava que eu andava na tropa, pelo menos, pelo tamanho do meu cabelinho.
E até evitava pôr bem a boina para não estragar o cabelinho.
E o ‘muleta negra’ ainda hoje está à minha espera para me ver com o cabelo rapado!…

Um dos companheiros de arma que lá conheci, o Pedro, de Santo Tirso, passou a ser o meu parceiro de farras, como Luz de Tavira, Faro, Vila Real de Santo António,…
Em Luz de Tavira, conhecemos umas miúdas bem engraçadas que passaram a ser a nossa companhia, sempre que podíamos, principalmente, alguns finais de dia e fins de semana - uma óptima forma de passarmos o tempo.
No entanto, sempre éramos avisados do risco de termos de casar em plena parada do quartel…
E o Pedro ficou ‘maluquinho’ com uma daquelas miúdas, lamentando-se, pois tinha a namorada em Santo Tirso.
Não posso deixar de lembrar o esquema que montei, sempre que tinha exercício nocturno, normalmente, na serra.
Formávamos na parada do quartel e saíamos pelo portão sul, que dava para a Atalaia, um espaço livre que ficava nas traseiras do quartel, onde fazíamos exercícios, de dia.
Quando chegava ao portão sul, já eu tinha a G3 quase desmanchada e metida dentro da farda, após o que virava à esquerda, enquanto o resto do grupo virava à direita.
Com passo rápido, atravessava a Atalaia e seguia em direcção ao outro lado do rio, onde tinha o quarto!
No dia seguinte, um esquema parecido, com a G3 desmanchada dentro da farda e reentrada no quartel, para mais um dia jeitoso…

Um dia, chegados ao quartel, depois de exercícios no exterior, um cheiro horrível inundava o quartel!
Toca para o almoço e a malta entra no refeitório, onde o ar era irrespirável, tal a intensidade do cheiro, o que nos levou a rejeitar a refeição, logo, levantamento de rancho!
Como era a segunda vez, o quartel seria fechado, pelas informações que nos chegaram.
Acto imediato, a população de Tavira à porta do quartel, suplicando que não avançássemos com o processo.
O oficial de dia, em pânico, pede-nos para ficarmos por ali, sujando os pratos, sinal de que não haveria levantamento de rancho, mas reconhecendo o erro da cozinha.
Afinal, ele também era responsável, pois era obrigado a provar e aprovar a refeição, logo, conivente.
O que tinha acontecido: o almoço era peixe, mas tinha chegado atrasado e sem a quantidade adequada, pelo que foram arranjar dobrada, à pressa, metida nas panelas, sem a operação de lavagem completa - dobrada com feijão branco, com condimento especial…

Tirando este episódio, posso afirmar que foi o meu melhor tempo do serviço militar, sem qualquer dúvida.
Terminada a especialidade, apresento as minhas opções de colocação, para dar instrução, por ordem de preferência, Figueira da Foz, Coimbra, Leiria.

"Pelo menos, Adolfo, aproveitou bem esse tempo no Algarve.
Se tivesse ido para o Norte, mesmo sabendo que lá tinha o seu primo, talvez não tivesse sido tão bom."


Sim, Daniel, aproveitei bem aquele tempinho, no Algarve!
Mas, se eu adivinhasse o que me estava destinado, acredite que nunca teria deixado de fazer a especialidade em Lamego, independente do facto de lá ter o meu primo…


leiria…

Colocado em Leiria, no RI 7 (regimento de infantaria), apresento-me uns dias depois e sou inserido na 1ª companhia de instrução, cujo capitão era um ‘gajo’ aceitável.
Naturalmente, procuro um quarto na cidade, muito importante, para mim, apesar de ficar distante do quartel, sete quilómetros, mas havia muitos táxis…
E os trabalhos militares começaram, já com tudo organizado, sempre atento a todos os momentos que eu pudesse aproveitar fora do quartel, pois o ambiente era propício a aventuras e distrações…
Entretanto, surge o sinal de uma amizade, não só pelas circunstâncias de estarmos no mesmo barco, mas pelo facto de constatar que era uma pessoa educada e digna de confiança, o Vilas Boas Soares, do Porto.
Como mostrou interesse em ter um quarto na cidade, dei-lhe a indicação da minha casa e lá foi, tendo conseguido.
Passámos a parceiros de aventuras, nomeadamente, frequentando a pastelaria Soraya, no centro, junto ao cinema, local de encontro de malta jovem, principalmente, das meninas do lar que ficava junto ao outro quartel, o RAL 4 (regimento de artilharia ligeira).
Sempre que em dias de folga ou que conseguíamos ‘desenfiar-nos’, o ponto de encontro era na Soraya, de onde partíamos para as festinhas particulares.

Eu continuava sem grande jeito para cumprimento de normas e regras militares, o que se traduzia em algumas inconveniências, principalmente, para o comandante da companhia, um capitão do quadro.
Mas os homens a quem eu dava instrução eram tratados como homens que eram, não como bichos, pois os meus princípios e valores reinavam, sempre atento a uma ligação saudável, respeitadora.
O mesmo não se passava com alguns outros instrutores, com necessidade de afirmação, com recalcamentos ou complexos, que usavam as divisas ou galões para satisfazerem as suas necessidades de afirmação.
Por isso, todos aqueles a quem dei instrução me tratavam com carinho e respeito, o que nos enchia o ego, naturalmente.

Além da instrução militar e dos serviços de escala ao quartel, outras tarefas me eram atribuídas, como comandar um pelotão de piquete, para promoção e defesa da ordem militar, fora do quartel, assim como para a protecção do património nacional, nomeadamente, Mosteiro da Batalha.
Claro que viria o dia em que estas tarefas me seriam confiadas, que remédio…
Para aquele segundo caso, chega a minha vez e toca a formar o pelotão e sair do quartel, pelas oito da manhã, com chegada ao Mosteiro da Batalha e organização imediata da operação, com distribuição dos homens pelos pontos estratégicos.
Era um dia inteiro nestas circunstâncias, o que causava algum mal-estar aos homens, pois não tinham possibilidade de se ausentarem do seu posto, por muito tempo.
A meio da tarde, um dos homens, aflito da barriga, resolve fazer uma necessidade num canto do interior do Mosteiro, supondo-se livre de ser descoberto.
Uma denúncia, talvez de alguém em visita ao Mosteiro, acaba por fazer com que eu seja solicitado pelo presidente da câmara, para registo e responsabilização pelo acto.
Depois de algum tempo de conversa e mais conversa, a coisa ficou por ali, entre nós, pessoas bem-intencionadas, tolerantes e compreensivas.
Não deixei de notar a satisfação do presidente da câmara pela forma como lhe apresentei o pedido de desculpas, reacção que me deixou sensibilizado.
O homem em questão, confrontado por mim, não sabia onde se meter, coitado.
Chegados ao quartel, antes de entrarmos, tive uma conversa com ele, sosseguei-o e recomendei-lhe mais atenção e cuidado, a partir daquele momento, quer na vida militar, quer na etapa seguinte, a vida civil.

Mais um dia de rotina se iniciava, as companhias formadas, na parada, o meu grupo sozinho, pois eu tinha-me atrasado, o que obrigou o capitão como que a apresentá-lo a ele mesmo.
Mas a coisa foi notada pelo major de instrução, um militarista em toda a linha, temido por todos, desde a família até aos seus superiores.
Chamou o capitão e perguntou-lhe por que razão o grupo estava sem o graduado e ele próprio formou o grupo, ao que respondeu que o graduado tinha ido à caserna tratar de qualquer coisa…
Vá ao meu gabinete, após o destroçar das companhias.
E o capitão levou uma ‘piçada’, como dizíamos, um raspanete, uma chamada de atenção, nem sei se registada!
Mandou chamar-me e só me disse que eu pagaria caro o que acabara de acontecer.


dez dias de detenção…

Alguns dias passaram e eu sou escalado como comandante de piquete, logo, vinte e quatro horas de serviço, retido no quartel, sempre pronto para qualquer emergência.
Tinha uma festa na cidade e saí do quartel, a seguir ao jantar.
Estava muito bem na Soraya, com a malta, preparados para a festinha, cerca das dez da noite, toca o telefone e chamam pelo meu nome.
Eu nem queria acreditar que havia, por ali, alguém com um nome igual ao meu!
Repetem o meu nome, mas referem o RI 7.
Dei um salto e fui ao telefone: era do quartel, realmente, e logo me dizem que tinha tocado a piquete, que não saiu, pois faltava o comandante…
Desculpei-me e lá tive de ir ao quarto mudar de roupa.
Cheguei ao quartel, por volta da meia-noite e, quando me preparava para entrar, sou recebido pelo oficial de dia, que era, nem mais nem menos, o capitão da minha companhia:
- Eu não lhe disse que iria pagar caro?

Limitei-me a pedir desculpa pela infracção, mas não respondeu, claro.

Entrei e fui direitinho às instalações onde estava a equipa de piquete e logo alguém me disse que tinha havia desordem na cidade e, por isso, o piquete tinha sido requisitado, mas não saiu, pois eu não aparecia…
No dia seguinte, sou chamado ao segundo comandante do quartel que me dá conhecimento dos dez dias de detenção, com manobras militares fora do quartel, mas com um processo que daria despromoção e, até, possibilidade de imediata mobilização para o ultramar.
Falei com um sargento-ajudante da secretaria-geral que me aconselhou a falar com o capelão, pois poderia dar uma palavrinha ao primeiro comandante do quartel, a última palavra no veredicto.
Tudo correu bem, pois o primeiro comandante não permitiu a despromoção, limitando-se a confirmar a detenção.
E lá fui fazer os dez dias de manobras, em que executei diversas tarefas, dentro de algumas especialidades, incluindo saltos livres de helicóptero alouette, carregado de material de campanha, parte dos exercícios, na zona do pinhal de Leiria.
E não podia recusar nada!
Último dia, regresso ao quartel, pelas cinco horas da manhã, saturado e cansado, barba de dez dias, farda número três cheia de lama e pó, com o resto do grupo nas mesmas circunstâncias, sou recebido por um 1.º cabo, que estava de serviço, com um papel na mão:
- Desculpe, mas tenho aqui uma nota para si.
- Não estou com cabeça para notas!
- Pois, mas isto é importante…
Sim, ‘importante’: mobilizado para a província da Guiné!...

Dei instruções para que tratassem do espólio, entregassem as viaturas e recolhessem às casernas.
Não quis saber de mais nada, nem tomei banho e saí do quartel, com destino ao meu quarto, na cidade, após o que zarpei para a Figueira.
Lá fiquei duas semanas, alta recriação, sem nada dizer.
E as duas semanas passaram depressa…

Regresso a Leiria e, quando entro no quartel, logo na porta de armas, disseram-me que andavam à minha procura há muito tempo, com avisos constantes pelos altifalantes.
Dirijo-me à secretaria-geral e logo o sargento-ajudante me vem falar:
- Afinal, o que pretende da vida?! Vai continuar com essa postura pelo resto do seu tempo militar?! Acabou de apanhar um castigo, safou-se da despromoção e desaparece de cena?! A sua companhia está à sua espera, há muito tempo, em Abrantes!
- Tem razão, mas fiquei tão decepcionado com aquela nota que me deram: mobilizado para a Guiné.
- Eu vou tentar limpar as ‘nódoas’ que tem registadas, mas tem de me prometer que guardará só para si. E sabe porque o faço? Porque tenho um filho da sua idade e gostaria que fizessem o mesmo por ele! Veja se encontra o seu caminho certo e não se distraia, durante a comissão, na Guiné, pois aquilo é sério… E, quando voltar, não retome a sua vida civil com este comportamento, pois pode sofrer desgostos…’

Manifestei o meu agradecimento e lá fui direito a Abrantes.

"Realmente, Adolfo, vejo uma mistura de desleixo, de ingenuidade, para não dizer imaturidade! Desculpe a minha franqueza…"
- Sim, reconheço um pouco de tudo isso…

(Continua)

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Nota do editor

Poste anterior de 24 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23814: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte I - "e toma lá com o edital!"

Guiné 61/74 - P23820: Notas de leitura (1523): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte IV “Devo à Providência a graça de ser pobre” (Salazar, Braga, 1936)

1. Jornalista e escritor, com formação em história, João Céu e Silva não escreveu propriamemte uma biografia de Vasco Pulido Valente (VPV) (1941-2020), mas fez com ele uma interessantíssima, para não dizer apaixonante,  viagem pela história de Portugal, desde 1807 (início das invasões francesas e saída da corte para o Brasil) até à atualidade, valendo-se da sua centena de horas de entrevistas gravadas, ao longo de quase dois anos, e da vastíssima cultura histórica do VPV.

É um trabalho, não propriamente para eruditos mas para o grande público, incluindo os leitores daquele que foi um dos maiores (e mais polémicos) cronistas do seu tempo. Inevitavelmente, a vida do entrevistado vem ao de cima, desde a sua origem familiar às suas múltiplas atividades, como académico, historiador, investigador, jornalista, cronista e até político (cuja carreira terá sido cortada ao meio com a morte de Sá Carneiro). O único tabu que impôs (e muito bem) ao entrevistador foi a sua vida privada.

Não devendo, pelas nossas regras editoriais, entrarmos pela análise da atualidade política (o mesmo é  dizer, das últimas quatro décadas) vamo-nos centrar na apeciação que o VPV faz, no livro, da fase final do Estado Novo, do 25 de Abril, da descolonização e do 25 de novembro, terminando aqui, nas duas próximas  notas, a nossa leitura deste livro.(*)

Para todos os  efeitos, é um livro escrito a quatro mãos, baeado na resposta do VPM a um vastíssimo e exaustivo guião  de perguntas, mesmo que o entrevistado já não tenha tido oportunidade de rever o essencial das suas declarações. (A  obra saiu um ano depois da sua morte.)

Homem de ego elevado, estrangeirado como Eça de Queiroz (seu autor de cabeceira), tão  inteligente e lúcido quanto sarcástico e amargurado no fim da sua vida (morre, precocemente,  aos 78 anos, de doença crónica degenerativa), aceitou o desafio (e agarrou a oportunidade) de ditar, de algum modo, para a posteridade o seu "testamento" através do seu quase biógrafo João Céu e Silva.  

O livro tem tido, ao que parece,  boa aceitação, e inscreve-se numa série que o autor criou, "Uma longa viagem com..." (Antes de VPV, foram entrevistados outros escritores como, por exemplo,  José Saramago ou António Lobo Antunes, dois autores que, diga-se de passagem, o VPV estava longe de admirar; e o Saramago, esse,  destestava-o mesmo, talvez por pescar am águas que os historiadores consideram como suas, caso, por exemplo, do Memorial do Convento ou o Ano da Morte de Ricardo Reis; aliás, criticava o seu "realismo mágico",  deslocado aqui e agora, num Portugal por fim obrigado a confinar-se ao continente europeu e à sua cultura, "perdido" o império e as suas ilusões de grandeza; e quanto à atribuição do prémio Nobel da Literatura,  era qualquer coisa que não impressionava o implacável e iconoclasta VPV, um colecionador de "ódios de estimação").

Mas deixemos aqui, para uso e eventual proveito dos nossos leitores,  dois apontamentos do pensamento do VPV sobre o fim do Estado Novo, regime de que ele era particularmente crítico, de resto como outros historiadores devido ao bloqueio que representou à modernização da sociedade e da economia portuguesas. (No fundo, é uma ideia quase de "senso comum", da parte daqueles que fazem "história espontânea", mesmo sendo "anti-salazaristas": cumprida a sua missão (saneamento financeiro e neutralidade político-militar de Portgal na II Guerra Mundial), Salazar devia ter voltado a Coimbra, e deixado o país apanhar o comboio das democracias ocidentais que triunfaram sobre as"potências do Eixo"... Mas na realidade, não foi isso que aconteceu, infelizmente para todos nós: o homem sentia que tinha uma missão divina a cumprir na terra...

A seguir, excertos de João Céu e Silva . "Uma longa viagem com Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.), com a devida vénia ao autor e à editora;



(i) Estado Novo
e desenvolvimento económico


(…) Nas décadas de 1950 e 1960 houve boas condições para Portugal crescer e obter mais riqueza (…) (pág 129).

(…) Pode não se acreditar, mas nos anos  50 o PIB português  cresceu à volta de  quatro a cinco por cento ao ano e  nos anos 60 conseguiu chegar aos seis e sete  por cento ao ano.. 

Portanto, o regime salazarista  teve muito sucesso económico, uma situação que Salazar não gostava, daí a célebre frase dele (…) quando fala aos ministros sobre o desenvolvimento económico do país, com o qual estavam todos de acordo: “Se quereis enriquecer, então está bem, cedo às vossas pretensões”. (…).

Isto é que era o verdadeiro Salazar, o que dissera “Devo à Providência a graça de ser pobre” (#), era ao mesmo tempo dizer que não era corrupto e, fundamentalmente, a afirmação de que a pobreza era uma virtude. Essa é uma premissa que nunca se tem percebido na interpretação de Salazar (pág. 130)

(#) Discurso em Braga, em 1936, dez anos de regime, “o grande discurso de Salazar” (pág. 164).

(ii) Fim do regime


P – Nos últimos anos do regime, os portugueses não se levantam porquê ? (pág. 174)

 Porque têm medo e porque a política deixou de ser a ocupação fundamental.  A grande libertação moral dos anso 60, os grandes movimentos idealistas dos hippies e do Paz e Amor é que preocupava as pessoas. Não eram coisas diretamente políticas, antes uma imposição americana, que nem se prestava muito às adaptações portuguesas.  

Bastava ver o que ser passava nos cafés da Avenida de Roma. No Vá-Vá ou no Roma, que eram o retrato de uma nova mentalidade. Eram modas e conversas que levavam a que as pesssoas andassem preocupadas com outras coisas e ficassem desligadas da realidade política – não queriam saber dela para nada. Formalmente, eram todos contra, mas isso já não queria  dizer nada porque não as preocupava. O único problema que existia era a guerra colonial, de maneira que essa gente  era contra os militares porque lhes cheirava a  colónias. Quanto ao resto, não aquecia nem arrefecia. (pag. 174/175)

(…) Os meninos emigravam voluntariamente, não só para fugirem à tropa mas para terem experiência no estrangeiro. Isto estava tudo dissolvido e a chegada de Marceloo Caetano não resolve, piora. Porque havia menos medo de Marcello do que de Salazar. (…) 

Estavam até às tantas da manhã em festas, as pessoas fumavam drogas leves e iam para a cama com A e com B,  um estilo de vida contra o qual não havia nada a fazer

E então veio o 25 de Abril, que era uma consequência  disto e também um movimento irresistível. (pág. 175).

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos  / Links, para efeitos de publicação deste poste:  LG]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 25 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23815: Notas de leitura (1522): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (5) (Mário Beja Santos)

Vd. postes anteriores:

24 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23811: Notas de leitura (1521): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte III: Salazar, Caetano e as Forças Armadas... (Considerar os capitães milicianos como "voluntários" e "mercenários", raia o insulto, não?!..)

18 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23793: Notas de leitura (1518): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte II: A guerra de África não foi nada parecido como o trauma da I Grande Guerra...

17 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23791: Notas de leitura (1517): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte I . As colónias não valiam o preço...