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quarta-feira, 12 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24219: Historiografia da presença portuguesa em África (363): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
Mais vale tarde do que nunca, abre-se finalmente uma janela para se chegar a essa sociedade comercial que era a mais importante da Guiné colonial, a Casa Gouveia. Fazendo uma declaração de interesses, não sei quantos dias e quantas noites estive em Mato de Cão a ver passar em duas direções estas embarcações, por vezes ao nível de comboio, e não poucas vezes sob a custódia de uma embarcação da armada, designadamente do tipo LDM. Bati a várias portas, recebi muita afabilidade e zero resultados. E, imprevistamente, depois de mais uma tentativa junto do Ministério da Economia (não esquecer que a CUF foi nacionalizada em 11 de março de 1975, dando origem à Quimigal, processo da competência daquele departamento ministerial), sou informado de um arquivo no Barreiro que devo contatar um responsável da Fundação Amélia de Mello, por sinal alguém que ensinou na Faculdade de Direito de Bissau e que esteve à frente da gestão dos Armazéns do Povo. Abrem-se as esperanças de vir ver a papelada da Casa Gouveia, há sérias dúvidas quanto à fartura da documentação. Mas saí deste agradável encontro com uns bons quilos de papel e comecei por este belo trabalho de Maria Eugénia Mata. Digo sem prosápia que a sorte algumas vezes favorece os ousados, ou aqueles que não esmorecem.

Um abraço do
Mário



Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (1)

Mário Beja Santos

Há anos que procuro saber por onde andam os arquivos da Casa Gouveia, a principal empresa comercial da Guiné, associada à CUF. Finalmente abriu-se-me uma porta, há um arquivo no Barreiro, indicaram-me o nome de alguém que durante anos na Guiné estivera na gestão dos Armazéns do Povo, depois da libertação para eles convergiram o património da Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosa e Comandita, hoje assunto passado, tal como outros grandes empreendimentos, caiu na água levando ao tempo mais de 5 mil trabalhadores para o desemprego. Recebido com enorme afabilidade na Fundação Amélia de Mello, tenho a promessa de uma viagem ao Barreiro, ver o que há e não há. Entretanto, recebi uns bons quilos de publicações, comecei por este título Globalização em Português, atas do simpósio que se realizou na Academia das Ciências em Lisboa, Princípia, 2021. 

Chamou-me à atenção a comunicação de Maria Eugénia Mata com o título "Casa Gouvêa: Monetarização e Integração da Guiné na Economia Mundial". Vale a pena aqui respigar alguns dados pertinentes que permitem desvelar o poder deste empreendimento.

A investigadora dá inicialmente o quadro da Guiné até 1879, data em que a colónia se desafetou de Cabo Verde. Em jeito de síntese, observa a autora que:
“A colonização portuguesa ofereceu uma língua oficial comum, o português, que originou o crioulo, e uma moeda comum, o real até 1911, e o escudo de 1911 até à independência. Todos estes elementos acentuaram a perda da identidade étnica das populações da Guiné, em favor de uma identidade cultural nova, crioula, sobretudo urbana, não necessariamente apoiante da situação colonial prevalecente". E destaca uma figura que a historiografia ignora, Manuel António Martins, capitão de uma sumaca que fazia a ligação de Lisboa aos Açores e que se fixou como comerciante no final do século XVIII em Cabo Verde. Martins esclarece que o comércio de Bissau neste tempo tinha 400 fogos e 5 mil almas, estava na mão de comerciantes estrangeiros: “a ilha de Bissau tem dois comerciantes, e tudo mais são caixeiros de negociantes estrangeiros que para ali negoceiam, e se forem contemplados nestes números os dois primeiros não se errará muito”.

Escreverá em 1831 um relatório sobre a Guiné e sobre a forma como se deveria reorganizar a colónia. “Uma hipótese era o reforço militar com 300 a 400 homens, e a deportação de 8 mil homens das tribos de Papel (régulos e seus descendentes em redor de Bissau) para Cabo Verde. A alternativa seria a criação de uma companhia com avultado capital para o comércio com a Guiné, para substituir ao longo do rio Nunes as feitorias de diferentes nações que ali operavam, por acordo secreto com o régulo da entrada neste rio. Visionariamente, a companhia (que só veio a ter paralelo com a Casa Gouveia de 1921 em diante) sustentaria financeiramente as despesas locais, diminuindo os gastos públicos, pagando impostos sobre a exportação, que ajudariam a fazenda pública.”

Há, pois, companhias estrangeiras e autora revela que no caso da Guiné duas companhias puderam ser identificadas no Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria: a The British Caima Timber Estate Wood Company e a Compagnie de la Guinée Portugaise, de Bruxelas, fundada pelo marquês de Livery, que se propunha a atividades agrícolas e comerciais. É neste contexto que são referidos outros comerciantes, caso de António Silva Gouveia, que terá chegado a Bolama em 1879 e um conjunto de casas comerciais, que terão curta ou média existência. O Governo português compreende que tem de dar apoio a iniciativas nacionais, vão geógrafos para mapear as colónias e é neste contexto que aparecem referências à CUF, que tinha por alvo principal a compra de sementes oleaginosas e que trabalhava também com saboarias. Um elemento enviado pelo Governo para identificar o potencial agrícola e comercial da colónia, tenente Manuel César d’Oliveira irá referir o nome da CUF, esta empresa fora fundada em 1865. Importa aqui anotar que a autora falar sempre em Gouvêa, pois é este o nome que consta escrito no seu passaporte do Governo Civil de Lisboa, ele era natural de Pinhel, e aparece profissionalmente como importador-exportador.

Entra agora em cena o BNU, teve contrato em finais de novembro de 1901 para abrir na Guiné uma primeira agência em Bolama, previa-se outra em Bissau, só acontecerá em 1917. Pretendo aqui relevar um dado dos meus trabalhos quando andei no Arquivo Histórico da BNU, a documentação inicial da delegação em Bolama é praticamente inexistente, a explicação que me deram os arquivistas era de que o desempenho do BNU era efetuado pela Casa Gouveia em Bolama. Ainda guardo a expetativa de vir a folhear esta documentação…

A investigadora dá-nos o contexto de conflitos interétnicos que se vivia na Guiné desde a década de 1880, alude às concessões de terras a colonos, à exigência que a esses se vai pôr de apresentar os documentos justificativos da posse desses terrenos. Observa igualmente que, “em 1917, a administração portuguesa tinha em paz apenas o concelho de Bolama e o de Bissau, onde abriu a segunda agência do BNU na Guiné, em 1917. Tudo mais eram circunscrições militares”.

As notas bancárias chegam com o BNU, portanto. Ao princípio, houve imensos problemas, pois os comerciantes estavam habituados a fazer as transações com moedas de prata. E vem uma nota curiosa: “Em 1915, a agência de Bolama pediu à sede para adotarem cores variadas consoante os diferentes valores das notas, para tornar mais fácil o seu uso entre pessoas analfabetas.”

Se a circulação fiduciária se revelava difícil, não menos se revelou a difusão e a adoção do sistema métrico, os comerciantes usavam o palmo e a braçada como medidas para o têxtil. Mas as casas comerciais aceitaram sem nenhuma dificuldade o nome sistema de peso e medidas.

António Silva Gouveia foi eleito deputado à Câmara dos Deputados como representante da Guiné, de 1911 a 1915, e a autora observa que ele ali defendeu menores impostos sobre a exportação do amendoim, reclamou cais acostáveis para Bolama e Bissau e preços que permitissem dar sustentabilidade à economia da Guiné. Seguem-se outros dados importantes:
“Em 1921, militarmente pacificada a Guiné, a sua casa comercial A. S. Gouvêa, de comercialização de coconote, amendoim e óleo de palma, foi transformada numa sociedade. Gouvêa, nascido em 1852, morador na que é hoje a rua Victor Cordon, 19, 2.º andar, em Lisboa, e a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lda., afiliada da Companhia União Fabril, representada por Alfredo da Silva, constituíram a 19 de março de 1921 a A. S. Gouvêa, sociedade por quotas, por tempo indeterminado. Eram objetivos da sociedade a industrialização e o comércio de produtos coloniais, com exceção do negócio bancário.”

A sociedade interessava a Alfredo da Silva pelas matérias-primas. A frota da sociedade assegurava as ligações marítimas para o comércio bilateral de mercadorias e o transporte de passageiros em 3 classes de confortos e de preços, de acordo com a localização dos camarotes. O que os documentos nos dizem é que os navios da sociedade levavam para a Guiné produtos alimentares exportados pela metrópole, como azeite e azeitonas, os diferentes tipos de vinhos, batata, leite em pó e condensado, frutas e frescos e outros elementos dos hábitos alimentares portugueses, como a sardinha, o bacalhau, classificados como géneros de primeira necessidade.

(continua)


Antigo armazém da Casa Gouveia em Bolama
Casa Gouveia em Bissau
Instalações da então Casa Gouveia no Ilhéu do Rei
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24199: Historiografia da presença portuguesa em África (362): Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24199: Historiografia da presença portuguesa em África (362): Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
A sorte não favorece só os audazes, há bancas da Feira da Ladra onde se podem descobrir pepitas, esta conferência de António Júlio de Castro Fernandes tem muito que se lhe diga, recordo que em 1955 ele produziu, e seguramente que não era um exclusivo para a administração do BNU, um documento bem encorpado sobre a situação da Guiné e já numa previsão de mudanças geoestratégicas e geopolíticas, queixando-se da falta de qualidade dos funcionários da administração e da estagnação económica, baseada numa avidez de duas ou três culturas, de fraquíssima qualidade, só de puro escoamento em Portugal, escreveu para quem o quis ler que a Guiné em termos socioeconómicos e culturais tinha que dar uma grande volta. O que não aconteceu. Seguramente escalado para se dirigir à administração colonial, aos empresários locais, adoçou o discurso, nada de temores com subversões (houve quem previsse que os tumultos nacionalistas podiam começar pela Guiné), e vendeu a receita tão cara aos dirigentes do Estado Novo que a nossa presença em África era uma especificidade em prol da civilização ocidental e da mensagem cristã. No ano seguinte a esta alocução de fé e da inabalável crença do Estado Novo de que não haverá política de abandono, a subversão estará em marcha.

Um abraço do
Mário



Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas

Mário Beja Santos

Nome sonante do Estado Novo, economista, banqueiro, membro do Governo, Presidente da Comissão Executiva da União Nacional, António Júlio de Castro Fernandes era grande conhecedor da realidade económica da Guiné. Queria lembrar ao leitor o documento que assinou pelo seu punho em 1955 e enviado à administração do BNU, a que ele pertencia, documento que parcialmente transcrevi no meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba", o BNU da Guiné, Edições Húmus, 2019, onde revela que não se pode perder mais tempo numa atitude de desenvolvimento, estavam previstas grandes alterações em torno da colónia, era um risco não mudar o estado das coisas. Se o leitor estiver interessado tem o documento integral à sua disposição na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

A conferência que ele vai proferir em 23 de abril de 1960 direciona-se para três temas: Portugal na Guiné; presente e futuro da Guiné; e condicionalismo político. Não traz nada de novo acerca do descobrimento da Guiné, a não ser não ter referenciado Nuno Tristão como o primeiro a chegar à região, mas sim Diogo Gomes, em 1456. Refere sumariamente a colonização e dirige-se ao auditório falando do presente e do futuro. Estamos em 1960, na fronteira norte está a República do Senegal que então fazia parte da Federação do Mali. “Sobre vários aspetos, a Guiné Portuguesa é um país singular, que se destaca pelas características próprias entre as paisagens do Sudão e o grande planalto da Guiné Superior, com a sua particular estrutura de terras baixas, irrigadas por rios largos e numerosos, um território meio continental e meio insular.”

Dá-nos uma água-forte do mosaico étnico, e discreteia sobre a economia, baseada na agricultura. “O ponto fraco do sistema reside na monocultura, não em sentido literal porque, na área da província, há três ou quatro culturas com relevante valor económico. Assim, temos: a mancarra em Farim, Bafatá e Gabu; a palmeira de azeite em Cacheu, Geba e Arquipélago de Bijagós; o arroz em Mansoa, Catió, Fulacunda, Bissau e São Domingos. É visível que a agricultura guineense está concentrada em número restrito de produtos: o amendoim, o coconote e o óleo de palma, que são artigos de exportação; o arroz e o milho, de consumo interno. O primeiro problema que se põe é o de transitar para um esquema em que os produtos cultivados sejam mais numerosos e em que as explorações evoluam no sentido da policultura. É preciso imprimir à economia agrícola da Guiné características de variedade e flexibilidade que lhe faltam. As grandes culturas tradicionais correspondem a direções que estão certas e bem pode dizer-se que têm sentido funcional. O arroz e o milho são os produtos-base da alimentação do indígena. As oleaginosas são o ouro da província. Mas não só podem aclimatar-se outras culturas como aquelas são suscetíveis de adquirir maior extensão. Há que vitalizar e enriquecer um sistema que se enquistou na rotina, sem que nela encontrasse um equilíbrio salutar.”

E tece considerações sobre os problemas da qualidade, o amendoim era de baixa qualidade, o óleo de palma dificilmente colocável no estrangeiro, a mancarra ia acarretar o empobrecimento dos solos, impunha-se sanear e valorizar a agricultura da Guiné, que se encontrava num quadro de estagnação. A indústria da Guiné pouco representava, as suas trinta e tantas unidades fabris eram complementares da lavoura. E espraia-se sobre os planos de fomento, a recuperação de terras para o arroz, um programa de regularização e dragagem do rio Geba, a construção de pontes sobre o Geba, o Corubal e o Cacheu, a conclusão da ponte do cais de Bissau e dos cais de Catió e Cacheu. Faz sempre menção ao I Plano de Fomento e ao II, onde se previra a instalação de uma estação agrária para aproveitamento dos terrenos alagados, ribeirinhos do Geba.

E assim se chegou à questão mais delicada, o condicionalismo político, socorre-se de um punhado de lugares comuns para falar da África Negra, do nacionalismo africano, pretende que fique claro que o continente não é nem homogéneo nem uniforme, da ebulição dos novos Estados parece que se deseja um regresso às origens, renasceram ódios, é intensa a hostilidade ao Ocidente, e faz uma observação de caráter pessoal:
“A África é de tal modo complemento da Europa que bem podemos admitir a hipótese de, passado algum tempo, se refazer a colaboração que está na ordem natural das coisas e arrefecer e apagar-se o ímpeto agressivo de um racismo negro que é de criação puramente artificial, produto da propaganda dos agitadores mais do que a expressão autêntica de uma aversão hereditária. Ouvimos por toda a África o tambor da guerra. Nem a África pode organizar-se unitariamente, porque nela não há fator de unidade, nem sequer lhe é possível organizar-se pela simples transformação dos territórios coloniais em Estados autónomos.”

E o político que abraçou o nacional sindicalismo e que se entusiasmou pelo corporativismo e é um peso pesado da União Nacional dá conta à audiência do que fará Portugal. Não se percebe como os responsáveis do Ocidente querem fazer frente à invasão comunista, parece que todos querem descolonizar e recomendam a descolonização a quem não a quer fazer, porque há a especificidade portuguesa. “Não conhecemos os equívocos em que outros tropeçam porque, dentro das nossas fronteiras, nos territórios portugueses, o nacionalismo só tem um sentido. Não há, no nosso Ultramar, nacionalismo que não seja português ou, se o preferirmos, que não seja nacional. Nós vivemos à margem dos equívocos em que outros se transviam. Como eles, nós não temos nações negras dentro dos limites em que se exerce a soberania portuguesa. Na nossa África, é efetiva a presença de uma nação, a Nação Portuguesa. Não corremos o risco de nos desnortearmos, ao ponto de nos atormentar as vigílias a ideia de que dominamos e recusamos o direito à vida a nações escravizadas. A nossa experiência africana é mais larga que a dos outros povos, mais longa e mais rica de conteúdo.”

Está dado o mote para avisar a audiência, os meios de comunicação e a opinião pública em geral de que não iremos praticar a política do abandono, a renunciar ao que é irrenunciável. E evoca-se a lição da história:
“Começámos por nos aventurar pelas rotas do Atlântico Sul e do Índico, lutando com as tempestades em frágeis caravelas, a dobrar os promontórios, de mandar as aguadas, aprender a conhecer o litoral do grande continente. Depois, fundámos os nossos estabelecimentos da costa. Desde logo nos aventurámos através do sertão inóspito, ganhando palmo a palmo a terra e as gentes alma a alma. É que, para nós, colonizar não era apenas criar balcões de comércio ou mesmo fazendas prósperas. Era serviço de Deus e da Pátria. Fomos em África soldados e missionários, mercadores e lavradores, mas fomos, acima de tudo e na mais larga acessão da palavra, homens humanizando outros homens.”

E na sua alocução não deixa de mencionar os valores materiais e morais da Civilização Ocidental e Cristã. E termina a sua conferência com o apelo à energia firme; a aceitação voluntária de sacrifícios e riscos, vivia-se a hora em que se propunha a Portugal o problema de sobreviver ou não sobreviver na sua dimensão mundial. Havia que estar unidos e confiar nos chefes e na aliança inquebrantável de todos os portugueses de boa vontade. Sagaz, não menciona uma só vez a erupção do nacionalismo africano na Guiné ou a subversão latente, não havia que descolonizar porque éramos todos portugueses. Bem silenciou as tensões já existentes, deverá ter considerado que era a comunicação adequada para comemorar a epopeia henriquina. No ano seguinte, tudo começará a ser diferente.

Imagem da época da sede da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné, projeto do arquiteto Jorge Chaves, teve intervenções no interior de um jovem que seria um grande nome das artes plásticas portuguesas, José Escada
Desenho de António Júlio de Castro Fernandes, por Almada Negreiros, 1932
António Júlio de Castro Fernandes, retrato a óleo de Maluda, 1975
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24175: Historiografia da presença portuguesa em África (361): Informações sobre a Guiné no Anuário Colonial de 1917 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23831: Historiografia da presença portuguesa em África (345): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Temos três versões documentais, René Pélissier consultou os arquivos franceses, o Capitão Velez Caroço elaborou relatórios sobre as suas idas e vindas acompanhando uma Comissão Franco-Portuguesa à cata de provas de que o avião francês aterrara em solo da colónia portuguesa, e temos as cartas do chefe do BNU de Bissau para a administração em Lisboa. O historiador francês sobrecarrega de pormenores as peripécias das missões vindas do Senegal à Guiné portuguesa e a brutalidade dos interrogatórios aos Felupes para apurar se efetivamente o avião desaparecido caíra em chão Felupe, esta etnia que dava sobejas provas de revolta, vendo tanta intimidação, desataram a fugir para os pântanos e para a colónia francesa; o Capitão Velez Caroço desmonta a argumentação de que o avião francês pudesse ter aterrado em solo da colónia portuguesa, e chegamos à tragicomédia de se percorrer os Bijagós para saber se os alemães tinham raptado os franceses...; o gerente do BNU revela sobretudo a preocupação de que era indispensável pôr cobro aos desmandos dos Felupes, declaradamente insubmissos, a verdade é que findo este período de revoltas dever-se-á ter chegado a um acordo tácito de que eles jamais provocariam as autoridades coloniais, ficando num discreto regime de uma quase auto-gestão, como se comprovou com o seu procedimento durante o período da luta armada.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3)

Mário Beja Santos

Aquele ano de 1933 em que ocorreu o desaparecimento do avião do piloto Gaté foi praticamente dominado pela chamada revolta dos Felupes. Na investigação a que procedi no então Arquivo Histórico do BNU, encontrei um telegrama datado de 10 de novembro desse ano, provém da administração em Lisboa, com o seguinte teor: “Este telegrama é absolutamente confidencial e só poderá ser decifrado pelo gerente devendo na sua ausência ser devolvido indecifrado ao expedidor – telegrafe-se se o gentio se revoltou – telegrafe-se se ordem restabelecida quem como foi sufocada a alteração. Telegrafe as notícias que puder pormenorizando. Este telegrama é absolutamente confidencial para toda e qualquer pessoa seja qual for a sua categoria”.
No dia 13, o gerente de Bissau envia carta detalhada ao administrador do BNU:
“Há cerca de 3 meses levantou voo de Dacar, com destino a Ziguinchor, um avião francês tripulado pelo aviador Gatti (na verdade, o seu nome era Gaté) acompanhado de um observador. Por qualquer razão desconhecida – diz-se que fugindo a um tornado, o avião desviou-se da sua rota e presume-se que por falta de gasolina tenha caído em território desta colónia, a uns 40 ou 50 quilómetros da fronteira Norte, na região dos Felupes, área do posto civil de Susana, circunscrição de Canchungo.
O governo francês, supondo que o avião tenha de facto caído nesta região, solicitou do nosso que mandasse proceder às necessárias pesquisas. Diz-se que essas pesquisas foram efetuadas sem resultado. Há 20 dias, pouco mais ou menos, apareceram na área do posto de Susana a mulher do aviador desaparecido e uma outra senhora francesa acompanhada de um sargento aviador francês e ainda de um outro indivíduo que se dizia comerciante de Dacar, para fazerem por sua vez, novas pesquisas.

O administrador da circunscrição não consentiu nessas diligências sem autorização superior, essa equipa francesa foi a Bolama conferenciar com o governador, regressando ao posto de Susana acompanhada pelo ajudante de campo deste.
Em breve começaram a circular boatos sobre o aparecimento de vestígios do avião e dois ou três dias depois seguia também para Susana o Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, capitão Velez Caroço. Afirma-se que este oficial, depois de iniciadas novas pesquisas, notando certo retraimento do gentio, receando qualquer agressão dos Felupes que desde sempre se têm mantido mais ou menos rebeldes, pagando o imposto positivamente quando e como quer, sem que lhes tenha sido aplicado o corretivo necessário por falta de recursos, cobardia ou desleixo, resolveu, de acordo com o governador, não continuar as suas diligências sem se fazer acompanhar de uma pequena força militar.

No dia seguinte ao da ida daqueles oficiais a Bolama, regressaram a Bissau com um pequeno contingente, e daqui partiram de novo para Susana, armados e municiados. Os Felupes receberam-nos hostilmente, travando-se um combate em que morreram dois soldados, ficando vários feridos. O facto foi comunicado ao governador, seguindo imediatamente para o local, com reforços, o Capitão Sinel de Cordes, Comandante da Polícia. Chegado este a Susana, e posto ocorrente do que se tinha passado, entendeu, e muitíssimo bem, que era preciso castigar energicamente os revoltosos, tanto mais que já no ano passado, na mesma região, tinham cortado a cabeça a cinco soldados”
.

O relatório do chefe da delegação em Bissau do BNU é bastante minucioso, convocam-se Fulas para coadjuvarem as tropas regulares, dirigem-se a Jufunco, a povoação revoltada, aguardam-se ainda centenas de Fulas vindos de Bambadinca. Os rumores eram os mais desencontrados: que aos aviadores desaparecidos tinham sido cortadas as cabeças, por exemplo. Iniciada a batida, os revoltosos refugiavam-se nos pântanos, o governador seguiu para o campo de operações, voltou dias depois a Bissau, o chefe da delegação falou com ele, ficou informado que o gentio se tinha posto em fuga e que o governador tinha dado por fim a operação, deixando apenas na região uma pequena força para policiamento.

O chefe da delegação mostra-se contrariado coma decisão do governador, a região dos Felupes era uma verdadeira dor de cabeça. “A ação das nossas tropas está longe, muito longe mesmo, segundo as informações que temos, de se poder considerar decisiva. Ainda nos últimos dias foi assaltada pelos rebeldes uma camioneta que conduzia auxiliares, escapando, por milagre, o condutor do carro; aos outros foi a todos cortada a cabeça e membros e os troncos decapitados deixados na estrada alinhados, numa demonstração de ameaça e requintada selvajaria. Não desejamos comentar a medida governamental, porque isso não está na nossa índole, nem temos fundamento bastante para considerar desastrosa a ordem de retirada. A saída das nossas tropas da região revoltada sem terem infligido um exemplar castigo aos revoltosos é desprestigiante e será mal interpretada pelos vizinhos franceses, que estabeleceram postos militares ao longo da nossa fronteira.
Sabe-se que em Ziguinchor um francês que acompanhou as duas senhoras a que atrás fizemos menção ao referir-se a nossa ação nas pesquisas do avião desaparecido nos alcunhou de cobardes. Talvez tenha sido por isso que o Capitão Sinel de Cordes, calmo e sereno, mas decidido, tivesse a intenção de acabar de vez com a lenda dos Felupes, lenda que tem custado a vida a soldados e auxiliares indígenas”
.

Mais tarde, o gerente de Bissau volta a escrever uma carta para Lisboa, informando que se encontra na região dos Felupes apenas um oficial, o Tenente Dores Santos à frente de um destacamento, não se tinham registado até então novos atos de insubordinação ativa. “Consta que os chefes revoltosos – Alfredo e Coelho – das tabancas de Jufunco e Egine, respetivamente, se refugiaram com parte da sua gente no território francês, sendo ambos presos pelas autoridades respetivas. Iniciaram-se diligências oficiosas junto daquelas autoridades para que, às nossas, esses chefes fossem entregues”.

E mais não sabemos, jamais se voltará a encontrar documentação sobre o desaparecimento do avião, fica-se com um quadro claro de que no início da década de 1930 a região Felupe dava provas evidentes de insubmissão, tudo aponta para declarações forjadas de que o avião francês viera aterrar em território da Guiné portuguesa, no decurso do envio de tropas terá havido interrogatórios cruéis e altamente intimidantes, no somatório de todas estas rebeliões os Felupes entenderam que não possuíam capacidade para ripostar contra a autoridade colonial, terá sido essa a razão do chamado ensimesmamento dos Felupes, para lhes ser reconhecida a sua autonomia nem com o PAIGC pactuaram, mantiveram-se à margem, salvo exceções no período da luta armada. Assim se põe termo a este episódio rocambolesco de um avião desaparecido em território insubmisso.

Imagem do BNU em Bolama, ao tempo do desaparecimento do avião do piloto Gaté
Avião Potez-Salmson
Dança do choro, Susana, década de 1960
Dacar, Senegal, anos 1930
Uma mais que colorida festa Felupe, imagem de Eta Oliveira (do Wattpad), com a devida vénia
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Nota do editor

Postes anteriores da série de:

16 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)
e
23 DE NOVEMBRO DE 2022 Guiné 61/74 - P23808: Historiografia da presença portuguesa em África (344): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23808: Historiografia da presença portuguesa em África (344): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Março de 2022:

Queridos amigos,
A história deste avião desaparecido tem foros de tragicomédia, o palco principal foi o chão Felupe, tudo começou com um avião desaparecido, as autoridades senegalesas consideraram que se despenhou no mar devido a um tornado, a viúva moveu o céu e a terra para haver inquérito in loco, temos três peças fundamentais para analisar o assunto. Primeiro, o que escreve René Pélissier na sua História da Guiné, 1841-1936, volume II, Editorial Estampa, 1997, houvera rebelião Felupe no início da década de 1930, aparentemente contida, refere os aspectos caricatos e mitológicos do canibalismo Felupe, entramos depois no desaparecimento de 30 de junho de 1933 que vai levar a interrogatórios duríssimos à palmatória, os inquiridos disseram tudo o que o inquiridor pretendia, nasceu a confusão de que o avião teria caído em chão Felupe na Guiné portuguesa, nada se comprovou, certo e seguro foi o registo de declarações contraditórias e por vezes delirantes; segundo, a documentação elaborada pelo capitão Jorge Vellez Caroço em que se encontra nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, o oficial também desmonta as inverdades e aproveita a oportunidade para criticar abertamente a intrusão missionária francesa e responsabilizar os missionários portugueses de não estarem cabalmente a cumprir o seu múnus. Iremos ver seguidamente o que já aqui se escreveu sobre o relatório do BNU da Guiné, em 1933, não se possui mais documentação sobre este caso.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2)

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia aparecem dois relatórios com a assinatura do Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, em que apresenta ao Governador Carvalho Viegas o resultado das pesquisas desenvolvidas por uma comissão de inquérito que envolveu autoridades francesas e portuguesas para apurar se um desaparecido avião francês tinha aterrado em solo colonial português, houvera denúncias que testemunharam que tal tinha acontecido. São documentos de leitura obrigatória e contribuem, a seu modo, para introduzir uma nova abordagem ao extenso comentário do historiador René Pélissier no seu trabalho "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936", Editorial Estampa, 1997; acontece igualmente que o assunto aparece tratado também no ano do desaparecimento do avião (1933), num relatório enviado pela delegação do BNU na Guiné para a sede em Lisboa, e que consta do meu livro "Os Cronistas desconhecidos do canal de Geba, o BNU da Guiné", Húmus, 2019.

Fez-se referência no texto anterior a um conjunto de diligências associadas ao desaparecimento de um avião francês, o relatório oficial de Dacar dava-o como desaparecido no mar, por efeito de um tornado, a mulher do aviador não estava conformada, apelou às autoridades francesas, seguiu-se um conjunto de diligências, não conduziram a coisa nenhuma.

Vejamos agora o relatório dos Serviços de Negócios Indígenas, referente ao ano de 1934, assinado pelo Capitão Velez Caroço, este tivera grave contencioso com o governador, houve mesmo apreciação em Lisboa do seu comportamento, processo arquivado, daí poder entender-se o cuidado da sua escrita sobre o Caso Gaté. Observa que toda a sua ação dentro da colónia foi a de conseguir o regresso dos indígenas refugiados em território francês e procurar a pacificação da região com a cooperação das autoridades de Ziguinchor. Tinha acompanhado o jornalista Didier Poulain na sua visita à região dos Felupes e, igualmente, enquanto membro da Comissão Internacional sobre o Affaire Gaté procurara desempenhar da melhor maneira a sua missão tanto em território nacional como em território francês. E dirige-se ao governador do seguinte modo:
“Brevemente serei afastado desta Direção de Serviços. Apenas terei de dizer a V. Exª que deixo com eles a saudade de não poder levar ao fim dos problemas, que era meu desejo concluir, saindo com a consciência tranquila de que trabalhei quanto pude o mais e melhor que sei”. A data deste relatório é de 30 de março de 1935, Bolama.

Convirá ter-se em atenção, neste acervo que está nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia a outros documentos, logo o aditamento que o dito Capitão Jorge Velez Caroço fez ao relatório sobre a visita à região dos Felupes do jornalista Didier Poulain, a data é de novembro de 1934:
“Na visita ao Administrador Superior do Casamansa, Mr. Chartier, foi-me revelado que o órgão parisiense Le Journal, largamente subsidiado por Madame Gaté vinha proceder a investigações sobre a queda do avião tripulado pelo marido e para tal incumbira o jornalista e aviador Didier Poulain. Depois da sua estada na região, o referido jornalista tinha a convicção de que o aeroplano caíra na região dos Felupes. O jornalista do Le Matin chegara a conclusões totalmente opostas. O guia de Didier Poulain, de nome Mussá, apenas pôde informar ter visto um avião sobre Carabar, não garantia a data em que o avião fora visto, tendo, no entanto, apurado que as horas a que foi visto esse avião não condiziam com as do voo do avião de Gaté, o avião teria sido visto a uma hora em que o aviador Gaté nem sequer tinha ainda levantado voo. Este Didier Poulain prestou informações falsas a Madame Gaté. O administrador do Casamansa informou o seu governo que o avião de Gaté não podia ter caído na nossa Guiné, mas sim nos mares, e possivelmente bem perto do ponto de partida. Vários aviadores se tinham pronunciado que nem as condições atmosféricas nem a quantidade de gasolina que continha o depósito do avião de Gaté lhe permitiam o voo tão longo, não podendo atingir a Guiné Portuguesa. O jornalista Didier Poulain visitou Jufunco e toda a região dos Felupes e se não viu mais foi porque não quis ver”.

Igualmente há que ter em conta o relatório sobre a visita à região dos Felupes de Didier Poulain, feito igualmente pelo Capitão Jorge Velez Caroço, datado de outubro de 1934. A missão era a de acompanhar o jornalista na sua visita a Jufunco, procurando indagar dos fins com que essa visita se fazia e características especiais que a definiam.

“Didier Poulain era capitão aviador e combateu na Grande Guerra. Encontra-se presentemente ao serviço do Affaire Gaté. Diz-se interessado nos usos e custos indígenas. O Capitão Rouxel voara anteriormente sobre território português sem respeito pelas condições que haviam sido estabelecidas pelo governo da colónia. O Capitão Rouxel agira incorretamente. Madame Gaté fora acompanhada na sua visita à região Felupe por Mr. Figuier, um comerciante que afirmara ao signatário que pouca importância mereciam as informações de Madame Gaté. Cheguei à conclusão de que o avião Gaté não aterrou na Guiné Portuguesa. A receção dos Felupes aos visitantes franceses foi muito cordial. O guia de Madame Gaté fora habilidoso a pôr todos os indígenas a dizer que sim a todas as perguntas de Madame Gaté. Apareceu extemporaneamente um pedaço de tela de avião conforme mostrou o Sargento Chambon, que acompanhara Madame Gaté.
As próprias autoridades francesas tinham concluído não haver provas da queda do avião Gaté. Didier Poulain criticava o facto de o governo francês ter consentido sempre que Madame Gaté procedesse a investigações particulares. Didier referiu a versão que Madame Gaté fez correr de que o marido estava nos Bijagós prisioneiro dos alemães”
.

E vai tecer mais considerações que tem a ver com a missão e extrapolam, fala sobre o problema missionário em que era escandalosa a intrusão francesa preparando indígenas da nossa colónia. Os missionários franceses ensinavam os nossos indígenas a exprimirem-se em crioulo. Criticava igualmente as missões portuguesas que só procuravam instalar-se nos grandes meios, fugiam às duras provas de trabalhar no interior do mato.

Temos agora o relatório da comissão internacional franco-portuguesa com vista a encontrar os restos do avião desaparecido em 30 de junho de 1933, no decurso de um voo experimental que tinha na tripulação o Piloto-ajudante Gaté e como passageiro o Sargento Brée. Portugal fazia-se representar pelo Capitão Jorge Velez Caroço e pelo Administrador Arrobas Martins, responsável pela região dos Felupes em Susana; a França fazia-se representar pelo Capitão Dendoid, reuniram-se em 18 de dezembro de 1934 em Ziguinchor e começaram as suas pesquisas em 22 de dezembro. Nos Bijagós Madame Gaté pretendia que o seu marido estava prisioneiro numa companhia alemã, concessionária num grupo que fazia a exploração do óleo de palma. A comissão visitou várias ilhas sem qualquer resultado. E acontece que a empresa alemã a que Madame Gaté fazia referência tinha capitais mistos portugueses e alemães. Não fazia qualquer sentido que aquela empresa retivesse como prisioneiros dois aviadores que teriam sidos transportados por mar, já que o avião não tinha combustível para chegar aos Bijagós. O governador português também deu conta da informação que lhe fora prestada pelo Coronel do Regimento de Atiradores Senegaleses, em Dacar, ele tinha a convicção de que o avião caíra no mar. O governador pedia que se verificasse a informação antes de começarem as pesquisas na região dos Felupes.

Temos agora outro documento, o relatório da Comissão Franco-Portuguesa constituída para encontrar os restos do avião Potez-Salmson n.º 821, desaparecido em 30 de junho de 1933 no decurso do voo experimental acima de Cabo Verde. Dá-se a constituição do grupo, do lado português estão presentes o Capitão Velez Caroço e também o Administrador Martins. Apareceu, segundo se ouviu dizer, um pedaço de tela em território Felupe, na Guiné portuguesa, mas a testemunha ouvida pela Comissão Franco-Portuguesa não conseguiu obter informações precisas por quem inicialmente fizera tal declaração, Moussa N’Doyle, estava em Dacar e de lá não saía. Dava-se um prémio da região Felupe do Senegal a quem entregasse uma peça do avião desaparecido ou informações que permitissem encontrar o aparelho. Madame Gaté trouxera uma grande quantidade de tela para a Guiné e distribuiu-a pelos indígenas. Velez Caroço escreve o seguinte: “nós encontrámos 1 m2 em Bolama e cerca de 3-4 m2 em Susana. Esta tela não pode de modo algum ser considerada como proveniente do avião de Gaté”. Para Velez Caroço tinham sido 15 dias de inquéritos inúteis na região Felupe, o Coronel Comandante do 7.º Regimento de Atiradores Senegaleses era perentório de que o avião tinha sido atingido por um tornado. Foram ouvidos outros depoimentos e a questão do tornado era uma constante. Em 8 de fevereiro de 1935 Velez Caroço faz o seu relatório, é profundamente cáustico: nascera a lenda dos aviadores devorados pelos antropófagos de Jufunco; contradiziam-se as declarações de quem vira e de quando um avião, até já se falava na fronteira da Gâmbia e do Senegal; eram completamente fantasiosas as declarações de Moussa N’Doyle; chegara-se ao cúmulo de alguém ter dito que vira uma peça grande metálica, de forma cilíndrica, que se assemelhava ao motor do avião, veio-se a descobrir que não passava de uma caldeira de alambique; fizera-se um reconhecimento aéreo na região Felupe, sem quaisquer resultados, embora houvesse ali locais onde o avião pudesse aterrar; e alerta o governador para casos de indisciplina, desobediência e agressão às autoridades administrativas portuguesas em região Felupe. Concluído a consulta deste acervo, vamos dar a palavra ao chefe da delegação do BNU, enviou relatório sobre toda esta questão para Lisboa.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
A surpresa de dois extensos relatórios assinados pelo Capitão Jorge Frederico Velez Caroço e destinados ao governador da Guiné, Major Carvalho Viegas, encontrados nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, ressuscita alguns dados aqui já versados, caso do importante relatório do chefe da delegação do BNU da Guiné sobre os acontecimentos relacionados com as rebeliões Felupes, que dominaram o início da década de 1930. Valeu a pena regressar à leitura da obra de René Pélissier, "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936, Volume II, Editorial Estampa, 1997", ele trata com bastante detalhe o chamado L'Affaire Gaté, consultou as fontes documentais francesas que mostram claramente que este desastre aéreo ocorreu em território senegalês, não teve qualquer ligação com a Guiné Portuguesa. Mas acendeu-se o rastilho a uma tragicomédia onde até se fantasiou que havia uma base naval alemã nos Bijagós... Que o leitor se prepare para novos episódios.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1)

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia aparecem dois relatórios com a assinatura do Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, em que apresenta ao Governador Carvalho Viegas o resultado das pesquisas desenvolvidas por uma comissão de inquérito que envolveu autoridades francesas e portuguesas para apurar se um desaparecido avião francês tinha aterrado em solo colonial português, houvera denúncias que testemunharam que tal tinha acontecido. São documentos de leitura obrigatória e procuram clarificar um extenso comentário do historiador René Pélissier no seu trabalho "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936", Volume II, Editorial Estampa, 1997; acontece igualmente que o assunto aparece tratado também no ano do desaparecimento do avião (1933), num relatório enviado pela delegação do BNU na Guiné para a sede em Lisboa, e que consta do meu livro "Os Cronistas desconhecidos do canal de Geba, o BNU da Guiné", Húmus, 2019.

Comecemos por René Pélissier, que teve a faculdade de consultar arquivos em França sobre o assunto, inicia o seu texto por nos falar nas rebeliões dos Felupes (1933, 1934, 1935), na mitologia de que eram antropófagos, o que nunca se demonstrou, e lança-se diretamente em L’Affaire Gaté, dando-nos a cronologia dos acontecimentos. Tudo começou no dia 30 de junho de 1933, enquanto executavam um exercício de voo em altitude, dois aviadores da Base Aérea de Dacar, o Ajudante-chefe Gaté e o Sargento Mecânico Brée, apanhados num tornado, desaparecem no seu Potez-Salmson; no mês seguinte, as autoridades da base procederam a buscas, não encontraram o aparelho nem os corpos, arquivaram o caso, não foram conhecidas buscas desenvolvidas pelas autoridades portuguesas; no verão, a Senhora Gaté, insatisfeita com o inquérito oficial, a expensas suas, ciente que o marido está vivo, vem ao Senegal, entra em contato com o Senhor Figuié, este encarrega um agente seu, Moussa N’Doye, de procurar saber mais em meio africano; na Gâmbia como no Casamansa, obtém informações de um avião avistado dirigindo-se para sul; a Senhora Gaté, acompanhada pelo casal Figuié e Moussa N’Doye entram em chão felupe guineense; esta missão contata em Susana Apaim-Ba, conhecido por Alfredo, feiticeiro de Jufunco, este declara não ter visto qualquer avião; o administrador de Canchungo, comandante Joaquim Esteves, junta-se aos franceses, convoca uma reunião com Felupes; os chefes declaram nada saber, mas Mamadu Sissé diz que viu um avião dirigindo-se para o sul que deve ter aterrado em Jufunco; a Senhora Gaté parte para Bissau e depois para Bolama, onde o Governador Carvalho Viegas mostra o processo das investigações e facilita a viagem à Senhora Gaté, que regressa aos Felupes; inopinadamente, há Felupes que afirmam que o avião está em Jufunco, entregam a Esteves um pedaço de lona do avião, trazido por um africano, dizendo que o encontrou em Jufunco, se tudo estava mirabolante mais mirabolante ficou quando o comandante Esteves declara que o dito Alfredo quis mandá-lo assassinar, ele vai ser interrogado pelos franceses; aparece agora Capitão Velez Caroço, manda prender Alfredo, em Susana o comandante Esteves interroga os suspeitos à palmatória, depois de torturado Alfredo confessa que o avião aterrou em Jufunco, dá informações contraditórias sobre os dois aviadores e diz que recebeu instruções do Deus da Guerra para destruir o avião, continua o interrogatório, as versões dos prisioneiros divergem cada vez mais, depois os prisioneiros invadem-se, chegam soldados e metralhadoras de Susana, Velez Caroço recomeça os interrogatórios, é-lhe dito que o avião foi desenterrado – temos aqui já todos os ingredientes para uma telenovela de aventura e ação, com pozinhos de crime e mistério; Velez Caroço e as tropas partem de Susana para Jufunco, a zona é militarizada, chegam dois oficiais aviadores franceses ao S. Domingos, há notícia de combates em frente de Jufunco, o capitão de armas de Bolama, Joaquim Sinel de Cordes, parte para ir buscar reforços e acabar com a resistência de Jufunco, vive-se já um clima de guerra, Alfredo invadiu-se e passou pela Casamansa, os Felupes refugiaram-se na floresta; já em novembro, Moussa N’Doye regressa a Dacar e anuncia que os portugueses queimaram Jufunco – esta é a versão dos factos nas fontes francesas, de uma hipótese nunca fundamentada de que um avião francês, por obra do acaso, ter aterrado em Jufunco, estalou a rebelião dos Felupes; toda esta sequência trágica irá prolongar-se por 1934 e 1935, como René Pélissier pormenoriza: o Exército está em chão Felupe, ali passa seis meses, desconhece-se o número real das baixas dos Felupes, tudo se agudiza em maio de 1934, nova ofensiva contra os Felupes; em Paris, a Senhora Gaté não desarma, escreve para os órgãos de soberania, diz que o marido está preso nos Bijagós pelos alemães, e diz mesmo existir no arquipélago uma base naval alemã, a tragicomédia refina-se, as operações contra os Felupes prosseguem.

É altura de fazer ouvir o responsável pelo BNU da Guiné, ele recebera de Lisboa o seguinte telegrama: “Este telegrama é absolutamente confidencial e só poderá ser decifrado pelo gerente devendo na sua ausência ser devolvido indecifrado ao expedidor – telegrafe-se se o gentio se revoltou – telegrafe se ordem restabelecida quem e como foi sufocada a operação. Telegrafe as notícias que puder pormenorizando”.

A 13, em carta talhada o gerente de Bissau escreve para Lisboa:
“Há cerca de 3 meses levantou voo de Dacar com destino a Ziguinchor um avião francês tripulado por aviador e acompanhado de um observador. Por qualquer razão desconhecida – diz-se que fugindo a um tornado, o avião desviou-se da sua rota e presume-se que por falta de gasolina tenha caído em território desta colónia, a uns 40 ou 50 quilómetros da fronteira norte, na região dos Felupes, área do posto civil de Susana, circunscrição de Canchungo. O governo francês, supondo que o avião tenha de facto caído nesta região, solicitou do nosso que mandasse proceder às necessárias pesquisas. Diz-se que essas pesquisas foram efetuadas sem resultado. Há 20 dias, pouco mais ou menos, apareceram na área do posto de Susana, a mulher do aviador desaparecido e uma outra senhora francesa, acompanhadas de um sargento aviador francês e ainda de um outro indivíduo que se dizia comerciante de Dacar, para fazerem, por sua vez, novas pesquisas. O governador autorizou e este grupo regressou ao posto de Susana acompanhado pelo ajudante de campo do governador. Em breve começaram a circular boatos sobre o aparecimento de vestígios do avião. O Capitão Velez Caroço, notando certo retraimento do gentio, receando qualquer agressão dos Felupes, que desde sempre se tem mantido mais ou menos rebelde, pagando o imposto positivamente quando e como quer, sem que lhes tenha sido aplicado o corretivo necessário por falta de recursos, cobardia ou desleixo, resolveu, de acordo com o governador, não continuar as suas diligências sem se fazer acompanhar de uma pequena força militar.
Regressaram a Bissau e daqui partiram de novo para Susana, armados e municiados. Os Felupes receberam-nos hostilmente, travando-se um combate em que morreram 2 soldados, ficando vários feridos. Imediatamente seguiu para o local o Capitão Sinel de Cordes, que castigou os revoltosos, tanto mais que já no ano passado, na mesma região, tinham cortado a cabeça a 5 soldados. Entretanto, era mandado chamar Bora Sanhá, alferes de segunda linha, para se lhe ordenar que organizasse o mais rápido possível um grupo de irregulares Fulas, com o fim de coadjuvarem as tropas regulares. Poucas horas depois, Bora Sanhá escolhia 100 homens da sua confiança, alguns deles seus antigos companheiros de armas, embarcaram para Jufunco. Corriam os mais desencontrados boatos sobre o que se estava a passar com os Felupes. O Capitão Sinel de Cordes assumiu o comando de regulares e irregulares, ao todo cerca de 400 armas e 5 metralhadoras, começando a bater os revoltosos com a energia que o momento impunha. Os revoltosos refugiram-se entre pântanos. O governador seguiu para o campo de operações. Voltando a Bissau, o governador trocou impressões comigo sobre o que se passava com os Felupes. Que tinham sofrido importantes baixas, resolvera dar por finda as operações, visto que os acontecimentos não tinham a gravidade que lhes atribuía. As nossas tropas, à custa de sacrifícios grandes, tem avançado e arrasado todas as populações por onde têm passado, incendiando as palhotas e destruindo as culturas”
.

A carta é longa, tem o condão de introduzir importantes detalhes sobre tudo o que se passou e que, mais adiante encontrará os relatórios posteriores de Velez Caroço, depositado nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, aspetos complementares de grande interesse, se bem que, há que o reconhecer, toda esta história não tem pés nem cabeça se atendermos aos relatórios franceses que davam como seguro que o desastre aéreo ocorrera noutras paragens. E vemos misturados a compreensível ansiedade da Senhora Gaté com o encadeamento de rebeliões Felupes que dão a toda esta trama o ar de uma telenovela de tempos coloniais, onde se cruzam hipóteses absurdas de uma base naval alemã nos Bijagós, interrogatórios brutais a Felupes e a ganância de informadores que a troco de compensações de alguns milhares de francos inventavam a queda de um avião que uns viam ter passado, mas que concretamente ninguém sabia dizer para onde. Que o leitor se prepare, há ainda mais condimentos para adubar esta história verdadeiramente estereofónica.

(continua)
Avião Potez-Salmson
Uma mais que colorida festa Felupe, imagem de Eta Oliveira (do Wattpad), com a devida vénia
Dança do choro, Susana, década de 1960
Dacar, Senegal, anos 1930
René Pélissier
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23773: Historiografia da presença portuguesa em África (342): A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23464: Historiografia da presença portuguesa em África (327): O arquiteto Luís Benavente e o restauro da Fortaleza da Amura no número que a revista Oceanos de outubro/dezembro de 1996 dedicou às Fortalezas da Expansão Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se regressa à história da Fortaleza de S. José da Amura a pretexto das intervenções propostas por um arquiteto de nomeada, Luís Benavente, alguém que deixou nome em importantíssimos trabalhos de reedificação e construção. Entendia que a Amura corria o risco de ter "coisas a mais", era entendimento, desde o início da guerra da independência, que a fortaleza devia ter um importante desempenho militar, ali se colocou o Comando-Chefe, ali tinham estado unidades militares, garantiu-se a solidez dos panos de muralha, mas Luís Benavente era contrário a uma excessiva ocupação daquele espaço, havia que respeitar a consagração do monumento nacional. Era no seu interior que o Governador e Comandante-Chefe António Spínola reunia diariamente com os seus Altos Comandos, a Amura viveu outro momento histórico em 26 de abril de 1974, as unidades militares em peso tinham aderido ao MFA, daqui partiram para depor, no Palácio do Governo, o General Bettencourt Rodrigues, que no dia seguinte seguiu para Lisboa.

Um abraço do
Mário



O arquiteto Luís Benavente e o restauro da fortaleza da Amura

Mário Beja Santos

Luís Benavente é um nome sonante da arquitetura portuguesa no século XX. No número que a revista Oceanos de outubro/dezembro de 1996 dedicou às Fortalezas da Expansão Portuguesa, o professor José Manuel Fernandes dedicou um artigo a este insigne arquiteto e ao seu trabalho nas fortalezas de África. E escreve: “Durante 17 anos – nas décadas de 1950, 60 e 70 – o arquiteto Luís Benavente esteve ligado às fortificações da costa africana, com especial relevo para os monumentos nas ilhas de S. Tomé e Príncipe e de Cabo Verde, mas também na Guiné-Bissau, em Angola, em Moçambique e até no Gana. Destacado do Ministério das Obras Públicas, onde era Diretor dos Monumentos Nacionais, Luís Benavente pôde dedicar-se com certa continuidade a visitar, estudar, fotografar e desenhar inúmeras fortalezas, executando propostas de restauro ou de reconstrução para vários desses vestígios militares da Expansão Portuguesa em África. O seu espólio profissional está depositado na Torre do Tombo”. A revista Oceanos mostra imagens do Forte de S. Sebastião em S. Tomé, a Fortaleza de S. José da Amura em Bissau, a Fortaleza Real de S. Filipe na Ilha de Santiago e o Forte de S. Pedro da Barra em Angola.

Luís Benavente visita a Guiné de 12 a 15 de julho de 1962, visita o Fortim de Cacheu, que entende como uma “reconstrução com possibilidades dentro do que de facto deveria ter sido” e visita uma pequena mas interessante igreja nas suas proximidades, “provavelmente do início do século XVII”. Segue para Bissau e visita S. José da Amura que considera “obra notável pelas suas proporções e dimensão”. Recomenda o levantamento destas duas obras militares com proteção urbanística da de S. José e com medidas para restauro e controlo da intervenção arquitetónica no seu interior. E é ao restauro de S. José que irá dedicar-se nos anos seguintes, conhecendo-se uma sua proposta desenvolvida com data de 25 de fevereiro de 1969 e despachada positivamente por Rui Patrício em 18 de março de 1969. Num ofício do Ministério do Ultramar, com data de 18 de junho de 1970, o arquiteto discorda da hipótese de “pôr coisas a mais” no interior da fortaleza, sugerindo que novas funções militares sejam resolvidas em outro edifício, alheio à fortaleza. Neste mesmo ofício refere o desejo, expresso em conversa com António de Spínola, de que “… à Fortaleza fosse dado através do seu restauro um aspeto de acordo com a sua importância e mérito”.

No relatório de 1962, Luís Benavente mencionava a construção inicial de S. José da Amura (em 1696, pelo Capitão-mor José Pinheiro) e a sua primeira construção (em 1753, segundo planos de Frei Manuel de Vinhais Sarmento, continuada em 1766 com traçado pelo Coronel Manuel Germano da Mata).

Não é a primeira vez que o nome Luís Benavente é invocado no blogue. Em 13 de janeiro de 2015, a então doutoranda Vera Mariz aludia à remodelação de 1968/69 da fortaleza da Amura para passar a receber o Comando-Chefe, a Companhia de Polícia Militar e o Comando-Chefe do Agrupamento de Bissau, de que o arquiteto notoriamente discordava, eram coisas a mais dentro de um monumento nacional, propunha que tais serviços militares fossem incorporados em edifício à parte. (Vd. postes P14145 e P14147)

Bem curiosa me parece a intervenção do arquiteto guineense Fernando J. P. Teixeira que no VII Encontro do Conselho Internacional dos Arquitetos de Língua Portuguesa se referiu à evolução histórica da fortaleza. Recorda que as datas da construção desta fortaleza não são coincidentes nas diversas fontes consultadas e não deixa de citar uma observação do Visconde Sá da Bandeira: “… e o cimento da cantaria bem podia ser amassado com sangue; porque mais de dois mil dos nossos que morreram nesta edificação, e não foi senão sob o fogo de canhões de uma esquadrilha que se conseguiu elevar a praça de guerra S. José de Bissau”. Criada a Companhia Geral de Comércio e Navegação do Grão-Pará e Maranhão, com estatutos em 1775, uma das deficiências notadas pela administração nos portos de Bissau e Cacheu era a fragilidade das suas fortalezas. As edificações anteriores tinham sido o Forte de Cacheu, construído em 1589 e os fortes de Guinala e Biguba, no Sul, tinham sido construídos de adobe e pouco duraram. A Companhia reclamava trabalhos de defesa em Bissau e Cacheu para se garantir o comércio. Esta mesma Companhia negociou com o régulo de Intim a compra de uma porção de terra para erguer a fortaleza. E assim se traçou um quadrado de pedra com mais de uma centena de metros por fachada, com doze metros de altura, flanqueado por quatro bastiões. O interior esteve permanentemente em reparação, estava destinado a residência do governador de Bissau, a ter casernas para 200-300 soldados, uma igreja e um poço. Os seus baluartes passaram a ser conhecidos por Bandeira, Balança, Onça e Puana.

Os Papéis hostilizavam a presença de quem vivia dentro dos muros de Bissau, eram muros de pedra e cal, com quatro metros de altura, fora achava-se a povoação com centenas de palhotas e meia dúzia de casas onde residiam negociantes e agentes de firmas francesas, de Gorée e inglesas, da Gâmbia, estavam sujeitos a todos os ultrajes, razão pela qual havia quem defendesse a ideia de transferir os armazéns e estabelecimentos para o Ilhéu do Rei.

É na visita de 1962 que Benavente aconselha o levantamento e a proteção urbanística do forte e medidas para o restauro e controlo de intervenção arquitetónica no seu interior. Já se sabe que em 1970 Benavente discordava de pôr coisas a mais dentro da Amura. Seguramente que se referia às instalações do Comando-Chefe, da Polícia e do Comando-Chefe do Agrupamento de Bissau.

A dinâmica de Bissau contribuiu para que S. José da Amura ganhasse respeitabilidade. Em 1914 Bissau foi elevada à categoria de cidade. O engenheiro Guedes Quinhones traçou-lhe o risco que de certo modo veio a conhecer execução. Apareceram as grandes casas comerciais, o Banco Nacional Ultramarino, surgiu a primeira fábrica de gelo acionada por um locomóvel. Em 1923 o governo concede foral ao município de Bissau, dois anos depois foi inaugurado o novo mercado e o cemitério municipal, em 1935 lançou-se a primeira pedra da futura Catedral de Bissau. No ano seguinte, o antigo bairro indígena passou para Santa Luzia e passou a fazer parte integrante da cidade. De 1936 a 1939 a cidade cresce e surge o bairro Portugal com casas destinadas a funcionários. Em 4 de dezembro de 1939 a Amura é considerado monumento nacional. E em 1941 é inaugurado o Monumento ao Esforço da Raça, que tinha sido começado a construir em 1934 (as pedras tinham vindo do Porto, onde fora feito o projeto da autoria do arquiteto Ponce de Castro).

A cidade transformara-se, a Avenida da República ganhou vida com a Catedral e o Palácio do Governo. E as muralhas do baluarte de Puana, em S. José da Amura, que haviam ruido, foram reerguidas em 1946. Dentro erigiu-se um Monumento aos Heróis da Ocupação.

É esta em síntese a história do principal monumento que a presença portuguesa legou à República da Guiné-Bissau.

Três imagens retiradas do trabalho do arquiteto Fernando J. P. Teixeira sobre a evolução histórica da Fortaleza de S. José da Amura publicado no site didinho.org
Entrada chamada do Pidjiquiti
Fortaleza da Amura, imagem de 1962, de Durval Faria, já publicada no blogue
Pormenor do Monumento ao Esforço da Raça, hoje na Praça dos Heróis Nacionais
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quarta-feira, 29 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23396: Historiografia da presença portuguesa em África (323): Dados sobre a Guiné no início da década de 1920, trabalho de um aluno da Escola Colonial (1850-1925) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Para saber um pouco mais sobre o aparecimento e funcionamento da Escola Colonial que teve a sua origem na Sociedade de Geografia de Lisboa em 1906 recomenda-se a leitura do artigo publicado em TECOP - Textos e Contextos do Orientalismo Português. A Escola tinha o seu anuário e qualquer estudioso da Guiné poderá confrontar a importância que ela tinha nos estudos dos futuros administradores e outros quadros coloniais, recorde-se que o estudo das línguas nativas era nesta escola a prioridade das prioridades. O que me parece logo curioso na observação do aluno é ele querer privilegiar a rede hidrográfica, isto a um tempo em que as escolas coloniais introduziam a discussão nos caminhos-de-ferro e da ampliação da rede de estradas macadamizadas. Um outro aspeto que me parece da maior utilidade e que se depreende da leitura deste trabalho escolar é o entusiasmo quanto às potencialidades guineenses, o que está em conformidade com os diferentes estudos feitos na época. Não é percetível a queda da importância da borracha, mas sabemos que a I Guerra Mundial foi determinante para o crescimento da cultura do arroz, e assim será até à década de 1950.

Um abraço do
Mário


Dados sobre a Guiné no início da década de 1920, trabalho de um aluno da Escola Colonial

Mário Beja Santos

A Escola Colonial nasceu em 1906 na dependência da Sociedade de Geografia de Lisboa, era a primeira tentativa séria de formar quadros da administração e conhecedores das múltiplas línguas nativas faladas nas parcelas do Império. Quem lê o anuário da Escola Colonial encontrará as caraterísticas dos diferentes sistemas de ensino, os seus conteúdos e, curiosamente, trabalhos dos alunos. A folhear o Anuário de 1923-1924 encontrei um trabalho de um aluno sobre a Guiné, é óbvio que quem o elaborou consultou estatísticas mas não esconde o seu entusiasmo quanto às potencialidades da colónia.

Depois de dizer que a Guiné está a cinco ou seis dias de viagem da metrópole e que está a conhecer melhores indicadores de desenvolvimento, refere os seus principais portos: Bolama, Bissau, Cacheu, Cacine e Bafatá, adiantando que os principais rios que constituem a rede fluvial são Cacheu, Mansoa, Geba, Corubal e Compony (? incompreensível a referência, este rio situa-se no que é hoje a Guiné Conacri, à época fazia parte da Guiné Francesa). O porto de Bissau já era o de maior movimento, tinha a sua importância por fazer o comércio proveniente dos Bijagós e do Rio Grande de Buba. Ponto curioso é o aluno defender a rede hidrográfica em detrimento dos transportes terrestres, na época vários institutos coloniais já davam primazia à importância do transporte terrestre, e como pude verificar quando estudei a correspondência do BNU da Guiné, os comerciantes defensores da manutenção da capital em Bolama propunham uma rede viária por toda a colónia, que assim privilegiaria o tráfego comercial de Bolama sobre Bissau. Pois bem, o aluno apostava no desenvolvimento da Guiné pela sua rede hidrográfica navegável por pequenos vapores e lanchas: “Limpando e melhorando alguns dos canais e estudando melhor a hidrografia, poucas serão as estradas a abrir como grandes artérias de comércio, e essas mesmas quase se limitam ao oriente da província, na região entre o Corubal e o Geba”.

E refere as riquezas da agricultura, o seu solo ubérrimo que produz mancarra, arroz, cana-sacarina, algodão, tabaco, cola, borracha, magníficos pastos, muita pesca, ouro (?), no entanto, impunham-se trabalhos, tais como, a balizagem das barras do Cacheu, do Canal de Orango e do Cacine, completando as dos de Geba e Arcas, colocando faróis na ponta oeste de Bolama e no porto de Bissau, intensificando o alumiamento da costa. E de seguida o aluno lança-se nos números para mostrar a crescente importância do impor, expor e do movimento comercial, com exceção dos anos 1914 e 1915, início da guerra. Os produtos mais exportados eram o arroz, o amendoim, o coconote, a borracha, a cera e os couros secos. Os países-destino das exportações eram principalmente Portugal, Espanha, França, Holanda e Reino Unido; a Marinha que mais frequentava a colónia era a alemã, seguindo-se a portuguesa, a francesa, a grega e a britânica. As importações de Portugal tinham crescido significativamente, mas o aluno dizia abertamente que Portugal ainda não tinha no comércio da colónia o lugar que lhe devia pertencer.

E dá sugestões:
“Seria desejável que o comércio e indústria nacionais se abalançassem à concorrência com o comércio estrangeiro no fornecimento de tecidos de algodão aos indígenas tendo, como têm, por si, as vantagens provenientes de um menor frete, dada a proximidade que existe entre a colónia e a metrópole. O facto de a indústria dos algodões ser a primeira, pela sua importância, entre as indústrias nacionais, gozando de uma enorme proteção pautal, devia impô-la à concorrência das estrangeiras. Mas infelizmente não se dá isso ainda. Nós ainda vemos a França e a Inglaterra venderem aquilo que nós, por uma questão de interesse e de amor próprio, devíamos procurar ser os únicos a vender.
Antes da guerra, a Guiné importava, como a metrópole o fazia, quase todo o arroz que necessitava para o seu consumo, importância essa que orçava por uns 60 a 70 contos anuais. Com a guerra, a Guiné com a falta de transportes, ficou na situação de suportar necessidades e quase a fome com a falta desse produto, que constitui a base da sua alimentação, ou na contingência de ter de cultivar. Assim fez; e optando por esta solução, de tal forma se dedicou a esta cultura que, tendo importado 70 contos de arroz em 1914, em 1915 somente importou 21 contos e em 1916 somente 697 escudos; hoje possui o arroz para o seu consumo e com pouco de boa-vontade esta colónia poderia ser a fornecedora da metrópole. Apesar de a Guiné ter terrenos esplêndidos para a cultura do arroz, aonde poderia ser feita uma cultura intensiva e próspera, a metrópole vê-se na necessidade de importar ainda, anualmente, 20 milhões de quilos do estrangeiro! Com a carne dá-se outro tanto. É Portugal um dos países da Europa aonde a carne é mais cara e aonde a sua população menos quantidade come, devido ao seu elevado preço. Pois na Guiné, a cinco dias de viagem da metrópole, aonde ela não falta e as pastagens são abundantíssimas, e aonde os indígenas têm magníficas aptidões para a criação de gados, desde 1916, deixaram-se morrer devido a uma epizootia pneumónica, mais de 100 mil cabeças de gado, em virtude de não se ter mandado para lá um veterinário e respetivo pessoal competente para combater a epidemia, como a colónia insistentemente pediu.
Com a borracha dá-se facto idêntico; há no sertão milhares de toneladas; pois o indígena não a extrai ou, se a extrai, fá-lo por forma a perder-se a maior parte e a desvalorizar-se a que se aproveita. Esta borracha vai para a Inglaterra e depois nós importamo-la!”
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No termo do seu trabalho, o aluno não identificado lista as medidas que julga indispensáveis para incrementar o desenvolvimento da colónia: intensificar as carreiras marítimas; melhorar a iluminação da costa; apetrechamento dos portos de modo a permitir uma rápida vazão dos produtos; procurar desenvolver nos territórios de leste a criação de gados; ensinar aos indígenas os modernos processos de cultura dos produtos existentes na colónia; completar o estudo da sua hidrografia; manter uma flotilha de pequenos vapores para passageiros e carga entre os portos da província; intensificação de comunicações com Cabo Verde, aumentando assim as suas relações comerciais.

Aqui se deixa o olhar de um aluno da escola colonial há cerca de um século.
A Sociedade de Geografia de Lisboa, gravura de 1901
Imagem antiga do cais do Pidjiquiti
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23378: Historiografia da presença portuguesa em África (322): A Guiné e as Campanhas Coloniais (1850-1925) (Mário Beja Santos)