Mostrar mensagens com a etiqueta Comandos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Comandos. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium

1. Parte XVIII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 21 de Outubro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XVIII


1- Extinção da Companhia de Comandos do CTIG 

Um Allouette mergulhou numa bolanha, no sector de Tite, não se sabia ainda se fora atingido ou se fora um acidente. Desencadeou-se uma autêntica batalha, daquelas que só se vêem nos filmes. 
O grupo guerrilheiro, talvez por ser pouco numeroso, não se atreveu a sair da mata. Um grupo reduzido de Comandos foi rapidamente transportado para o local, para proteger o heli, sob fogo da mata. O Coronel Kruz Abecasis, Comandante da Base Aérea, ele próprio a pilotar o Dakota, meteu os páras dentro do avião, largou-os na zona da batalha, os pára-quedas abriram-se e toda a gente parou o fogo! 

Um mecânico francês que estava em Bissau a fazer a manutenção dos Allouettes foi transportado noutro heli para o local com o equipamento necessário para ver se conseguia tirar o aparelho das águas da bolanha. E não é que conseguiu? 

Entrámos em Maio. Dia a dia, a Companhia de Comandos aproximava-se do fim, quase todas as semanas lá se ia mais um ou dois com a comissão terminada. Feitas as contas aos efectivos e às previsões para as saídas dentro dos próximos três meses, o capitão propôs ao Comandante Militar concentrar o pessoal remanescente num grupo e fechar as instalações da Companhia. 

Em Lamego estavam a formar-se companhias de Comandos. Lá para Agosto chegaria a Bissau uma, e um ou dois meses mês depois esperava-se outra. O capitão mostrou-lhe o relatório com o despacho do Brigadeiro Comandante Militar. Proceda-se. Foi o que fez, reuniu-se com os chefes de equipa e comunicou-lhes que, por insuficiência de efectivos, a Companhia de Comandos do CTIG iria ser extinta. 

E agora qual vai ser a nossa situação, voltamos para as nossas unidades de origem, como vai ser? 
Mantemo-nos aqui até ver, à ordem do Comandante Militar, o nosso capitão vai ser colocado no QG, mas tanto quanto sei não pretende lá ficar.

No dia 20 de Junho procedeu-se à cerimónia do encerramento da actividade da Companhia de Comandos do CTIG. Os que sobraram dos outros grupos passaram para o Grupo "Diabólicos". 
Às 09h00 estava o pessoal formado na parada de Brá. Os que estavam prestes a acabar a comissão, o pessoal da secretaria, da manutenção e os que tinham ainda alguns meses até ao final da comissão.

Os “últimos” da Companhia de Comandos do CTIG 

Comandos com a comissão terminada ou em vias de a acabar 


A foto apanhou-os em sentido, o Sargento Cordeiro, os Furriéis Ázera e Valente de Sousa, o Black, o Jamanca, os resistentes todos, continência ao Capitão, o Guião nas mãos de uma escolta, o pessoal de apoio ao lado. 




Furriel Valente de Sousa recebe o guião das mãos do Furriel Guedes. 

O Capitão Leandro mandou ler alguns louvores que o Governador e o Comandante Militar concedeu, despediu-se, direita volver, destroçar. 


O último desfile em Brá. Acabava assim a CCmds do CTIG. 

Tudo na mesma como até aqui, só somos menos, o resto tudo igual, instrução todos os dias, horários habituais, mais unidos que nunca.   Vários comandantes de Batalhão tinham solicitado ao Comandante Militar que o grupo ficasse em permanência nas respectivas sedes, o Brigadeiro decidira manter, para já, o grupo em Bissau às suas ordens directas. 

Dias depois, para não perderem a forma, foram até Canjambari, sector de Farim. Desembarcaram do Dakota em Farim, apanharam uma coluna para Jumbembem e, logo a seguir, outra para Canjambari. 

Saíram daqui mal a noite caiu, aproveitando a escuridão. Viu-se logo, desde o início, que era mais uma operação sem objectivo definido. Quando chegaram ao rio, nem o local da cambança o guia descobriu. Num local que lhes pareceu mais estreito, socorreram-se de uma corda para passar para o outro lado, uma operação dentro da operação, demorou horas, escuridão quase total. 
Há jacaré aqui, lembrou-se um de perguntar. Hááá… manga deles, afirmaram convictos os dois milícias que os acompanhavam. Quando se ouviu um chlap na água que lhes pareceu suspeito, a travessia acelerou, todos ansiosos por alcançar a outra margem. 

Cambado o rio, internaram-se no mato por um trilho, andaram e andaram. O guia, a tremer todo, dizia não saber como dar com o trilho de acesso ao acampamento, ou não queria levá-los lá, o que deu no mesmo. 

Voltou tudo à calmaria, aproveitaram o local para descansar um pouco, alguns passaram mesmo pelas brasas, os outros alerta até que o dia abriu os olhos a todos ainda não eram 6 horas. Em movimento, pela mata dentro, ribeiro ao lado, um jacaré na água, macacos a ganirem, aos saltos nas árvores, trilhos fora, sinais recentes de passagem, o costume. 

Passou-lhes uma Dornier eram para aí 11 da manhã, entraram em contacto rádio, seguiram para oeste conforme indicação do PCV, 5 kms no máximo, uma bolanha e aguardaram aí, onde foram recolhidos. 

************

2 - Mansoa

Mansoa ficava a uns escassos 60 quilómetros de Bissau, uma estrada alcatroada que se fazia com o ponteiro do conta-quilometros a bater nos 80, 90, um depósito inteiro antes, uma paragem em Nhacra para ver o óleo, combustível, arrefecer uns minutos, arrancar depois, pé na tábua outra vez, passar a ponte sobre o rio e estava-se na entrada da povoação. 
Era uma cidade para os padrões locais, uma povoação estratégica, a unir Bissau a Bissorã por um lado, a Mansabá pelo outro, o Olossato acima, o K3 na estrada para Farim. As outras ligações de Mansoa para leste, Bafatá, estavam desactivadas. Era um dos vértices do muito falado triângulo do Oio, famoso pelo trabalho que o IN dava às NT. 


Os guerrilheiros até à data dentro do tal triângulo, Mansoa, Bissorã e Mansabá, pareciam querer sair dele, alargar a guerrilha a outras paragens, aproximar-se de Bissau. Começaram a andar às voltas da tabanca de Mansoa, flagelações de longe primeiro, uma ou outra morteirada uns dias depois. Achando que lhe dava jeito dispor de mais uma força operacional, o comandante do batalhão de Mansoa pediu ao Comandante Militar que o grupo se deslocasse para lá.

Já se conheciam de outras guerras. O Tenente-Coronel Lemos comandava um batalhão martirizado que estivera uns tempos em intervenção, a apagar focos da guerrilha, as companhias dispersas por onde calhou, até estacionarem em quadrícula no sector de Mansoa. 
Encontravam-se outra vez, com outro coronel a assistir, o comandante do agrupamento, um homem macio, afável, num corpo grande, uma imagem passiva, de escassas palavras, sim, talvez, boa ideia, hum, ah, da boca dele não se ouvia muito mais. 

O tenente-coronel descreveu a situação, o que o batalhão encontrara quando chegara, não muito confortável, acentuou, e conseguira, disse, mantê-los dentro do triângulo, à caça deles quase todos os dias, e eles agora outra vez a darem sinal, como se o triângulo já lhes fosse demasiado apertado. Estão aqui, às nossas portas! Sempre devem ter estado, se calhar, alvitrou para o lado. 
O seu grupo fica por determinação do nosso Comandante Militar aqui às minhas ordens, para o que for preciso

Alojaram-se na povoação, um pré-fabricado para as praças, um quarto para os furriéis. E ficaram à espera, prontos para o que desse e viesse.  Era uma zona propícia a muita informação, notícias chegavam a toda a hora, viam-se ansiedades nalguns rostos, razões não lhes faltavam, mas a povoação de Mansoa mantinha-se até agora fora do alcance do fogo inimigo. O maior barulho que ouvira, aliás, uma semana já passada, fora afinal, um grande estrondo de um raio a atingir o posto rádio, disseram os que viram, ele, sentado debaixo de um alpendre num final de tarde, só ouviu o barulho e viu militares e civis a correrem, chuva da grossa a desabar-lhes em cima. 
Deixou-se ficar, estava na maré de não correr por aí além, as forças, que já não eram muitas, para quando fossem precisas. A chuva passara, o ar clareou, os militares e os civis regressaram, a rirem-se, para as coisas que estavam a fazer. 

No 14-04, Alegre ao lado, pé na tábua para Bissau, matar saudades das ostras e do frango assado do Fonseca. A época das chuvas que começara timidamente em meados de Maio, estava agora em pleno, chuveiradas frequentes, das grossas, logo o sol a aparecer, a estrada secava num raio, até fumo nascia do alcatrão. 
Em Bissau deu as voltas que tinha a dar, encontrou gente conhecida, conversa até se fazerem horas, o Alegre e o Furriel Valente de Sousa a chegarem. 
Embora que se faz tarde, outra vez para Mansoa, nem pararam em Nhacra, o motor do jeep no máximo, sentia-se o calor do motor, tens visto o óleo, claro meu alferes, não só visto, atestado também. Já de noite, à chegada a Mansoa, polvorosa no ar. Que aconteceu? O nosso tenente-coronel tem andado a tarde toda à sua procura. 

Você pregou-nos um susto danado, temos estado a tarde toda à rasca por sua causa! Porquê? Chegou uma informação, estava montada uma emboscada na estrada para Bissau, a seguir à ponte! Contactámos o QG, andaram e devem estar ainda à sua procura, não o encontraram em lado nenhum. Não volte a sair assim, quando sair avise-me antes, e leve o grupo todo consigo!

************

3 - Valium 

Mansoa era uma povoação já com muita gente, com muito movimento, a estrada para norte a rasgá-la em duas, casas maiores de um lado e doutro, atrás as do pessoal nativo, vielas estreitas, uma ou outra esplanada onde se servia muita cerveja e mancarra. Via-se tudo em 2 horas, desde que se parasse meia hora em cada esplanada, desculpando o exagero. 
Dois ou três soldados do grupo começaram a ser vistos na loja de uma família libanesa com três meninas, de idades próximas das deles. Mas, pelos vistos, não tiveram grande a sorte, quando por lá apareciam, parece que elas se evaporavam. Depois passaram a rondar a tabanca, cheiravam-na à procura das bajudas, de alguma mais interessante, se não houvesse, outra qualquer que lhes desse corda, umas cervejas pelo meio para desinibir, tantas que às vezes transbordava para fora da boca, impropérios no meio.
 
Um soldado desses, um valente alentejano, deve ter acordado naquela manhã cheio de sede. Tinha começado a beber logo ao acordar, acrescentara-lhe bem ao almoço, prosseguira durante a tarde a conversa com as loiras, começou a ver morenas por todo o lado, não resistiu a uma, passou-lhe os lábios pela cara, a mão pelas mamas, entusiasmou-se demais, estava visto. 
Burburinho, o dono dela aos berros, não toca nela, a tabanca agitada, anda daí, os camaradas a puxá-lo, qual quê, só quero esclarecer, está tudo esclarecido, anda daí, não saio daqui sem esclarecer o assunto, a algazarra a aumentar. 

O Furriel Ázera chamado ao barulho aplicou-se com tanto cuidado a acalmar que a coisa esfriou. Meteram-no na camarata, talvez um sono lhe fizesse bem, enganaram-se, apareceu na esplanada, parecia que tinha o diabo no corpo. 

Elementos do grupo em Mansoa. Julho 1966. 

Quando deram por ela, Portugal estava a perder por 3 a zero, os coreanos com foguetes no rabo, apareciam aos milhões por todo o campo. A esplanada fria, o entusiasmo a ir-se, correra tudo tão bem até este jogo. A primeira parte ainda a meio e o Eusébio enfiou a primeira. A confiança não era muita, os aplausos e gritos que se ouviram foram mortiços. Já muito próximo do intervalo, penalti, outra vez as redes dos coreanos abanaram. Eusébio, claro, quem havia de ser? 
Aqui as palmas e os gritos já tinham outra força. A segunda parte a começar, e a bola não havia maneira de largar as chuteiras dos nossos. A todo o momento se esperava o empate. Não demorou muito. Cervejas em cima das mesas a festejar outro golo de Eusébio. Começa tudo de novo, diz um. Unhas a ficarem mais curtas, ó Eusébio arruma essa merda, o Eusébio pega na bola e enfia-a outra vez lá dentro. Depois o José Augusto também quis molhar a sopa, todos aos saltos a gritarem na esplanada, turras se calhar também no mato, nem trovoada nem nada, a esta hora a guerra é outra, golo, goooolo! 

O rádio não se calava, seria o Artur Agostinho, o Amadeu José de Freitas, o Nuno Brás, o Alves dos Santos ou todos ao mesmo tempo, que é que interessa, aplausos por todo o lado, mais duas cervejas, uma grade faz favor, pago eu. 

Eu, se os nossos ganharem, atenção pessoal, bebo uma à saúde de cada um de nós, o alentejano outra vez ao ataque, e depois vou ao homem da bajuda esclarecer o assunto, e mais umas palavras que ninguém percebeu. 
Uma grande salva de palmas, afinal tudo tão fácil quem diria, palmas de Mansoa a ouvirem-se em todo o lado.

O tenente-coronel tinha-se resolvido pela ofensiva, com o staff atrás, chamara-o para uma saída para uns dias depois. Sairiam de Mansoa, manhãzinha cedo, na estrada para Bissau, passariam a ponte guardada por uma secção, apear-se-iam aí, mato dentro, iriam conferir trilhos. 
Ao sair da reunião, duas escadas logo abaixo, o Furriel Ázera aguardava-o para lhe dar conta do que se estava a passar. Para a camarata à procura do alentejano, estes tipos não são capazes de resolver os problemas deles, nem uma borracheira. Viu o soldado a resfolegar, agitado, palavras sem sentido mais que as outras. Chame o médico, Ázera! Ele é que sabe como fazer! 
Médico em acção, um valium para cima, uma injecção para ser mais rápido. Para quê, logo mais desperto o alentejano. Dormir bem é o que precisas, não, eu só quero esclarecer, quase a chorar, só esclarecer, mais nada, está tudo claro, não é necessário tanto esclarecimento, só dormir. Enfermeiro ao lado do médico, e o nosso valente não sossegava. Não deixe, meu alferes, não deixe o gajo dar-me a injecção! O enfermeiro com o dedo na seringa a desperdiçar líquido, não deite mais fora, é tudo para aproveitar, apartou o médico. 
Cerveja nos olhos, o meu alferes não vai deixar, pois não? 
Uma injecção só, não custa nada e vai fazer-te bem, calças para baixo anda, o meu alferes não vai deixar-me apanhar uma injecção, pois não? Dois camaradas ao lado, as calças já em baixo, nem a minha mãe era capaz de me fazer isto, o enfermeiro a tirar-lhe a agulha, algodão em cima, o choro convulsivo a esmorecer, o ronco pesado toda a santa noite, disseram os outros de manhã. 

(Continua)

Texto e fotos: © Virgínio Briote
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 15 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15254: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVII Parte): Fima, enfermeira do Partido; Cassaprica e Correspondência

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15254: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVII Parte): Fima, enfermeira do Partido; Cassaprica e Correspondência

1. Parte XVII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 14 de Outubro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XVII

Fima, enfermeira do Partido 

As cordas apertadas demais, os pulsos a inchar, amarrados atrás das costas. Tinha acabado de ser apanhado pelos tugas, ainda nem sabia como, e logo a ele é que deveria acontecer. Como comandante do acampamento, sempre fora muito rigoroso com os homens que estavam sob o seu comando, sempre exigira que se deslocassem separados uns dos outros, que parassem de vez em quando, escutassem a mata e só depois voltariam a caminhar. E afinal, fora apanhado desprevenido, sem arma, sem nada. 

Viera a semana passada1 dos lados de Sano no Senegal. Muito cansado. Estivera com os camaradas do sector, os dias pelas noites fora, analisaram o trabalho do mês, cada um apresentou o seu trabalho, as emboscadas que fizeram, as minas que plantaram, os ataques aos quartéis da tropa. 
Tinham feito o balanço da situação em cada zona, leram em voz alta as directivas do camarada secretário-geral, as orientações gerais para a luta, a referência expressa à luta dos povos da Guiné e Cabo Verde, para a independência nacional, para a libertação, nunca contra o povo português, juntos na mesma luta contra o colonialismo e o imperialismo, depois as orientações locais, o plano para o mês, não descansar a tropa, escrever papel para deixar junto aos quartéis deles, para desmoralizar, e a ordem para mudar, outra vez, o acampamento de Uália. 
Enquanto regressava com os camaradas, ia pensando nos locais, escolheu o melhor, bem dentro da mata, uma centena de metros a seguir à bolanha, um barraco junto a esta para vigiar tudo em volta. 
Sacos de arroz, mancarra, bicicletas, cunhetes de munições, armas, tanta coisa, casas às costas, tão pouca gente, precisaram mais que uma vez.

Acampamento da guerrilha. Foto de Knut Andreasson. Com a devida vénia. 

Tinha acabado de cavar um abrigo, precisava de se lavar. Fora à bolanha para tomar banho e trazer água.
Viu-se cercado por dois soldados de arma apontada, sem saber como, os tugas emboscados ali mesmo, os garrafões na mão dele, que a tropa tinha deixado em Morés da última vez.

Abriram-me a boca à força, eu não sabia para quê, um lenço preto nos dentes, atado na nuca, outra vez que me levantasse, sem palavras, corda nos pés, uma à cintura presa ao soldado fula. 
Tropa diferente esta, não era a que estava habituado a ver passar. Sem emblemas, sem anéis, sem fitas que os outros tugas trazem sempre ao pescoço, ronco nenhum, sem capacetes até, aquele tem barrete diferente, caras pintadas de preto, nunca vira tropa assim. 
Estranhos, calados, o cano das armas deles também têm olhos, vêem por ele, para a esquerda, para a frente, para a direita, aquele está sempre a olhar para as árvores, tudo muito devagar, assim é mais difícil camaradas vê-los. 
Vi-os à frente, no carreiro para Uália, nosso pessoal descuidado a esta hora da manhã, sem aviso, pode ser uma desgraça, tanto trabalho para nada. Todos não estão, felizmente, mandei pessoal para Mansabá, dois para montar mina e mais dois para segurança. 
Aquelas bajudas com os cestos à cabeça vão ser apanhadas, gritai, gritai com toda a força que puderdes, mais alto, mulheres do PAIGC, glória da nossa luta, assim, para camarada ouvir! 
Os tugas todos a correr, o traidor fula amarrado a mim, não deixa andar, se eu pudesse! Aquelas crianças ali também! 
A enfermeira de Morés? A mulher do Ramos, do Pedro Ramos com a criança às costas?! Porque não fugiu? Não, não lhe façam mal, ela trata do nosso pessoal da luta, faz curativos só, os tugas não me ouvem, lenço não deixa.

Enfermaria do PAIGC. Foto de Knut Andreasson. Com a devida vénia. 

Não sei, não tenho nada para dizer, meu nome é Fima2, sou enfermeira, não falo nada de guerra, trato de feridos só, não pode mexer nesse papel, é carta de meu marido, ouviu? Não pode tirar bilhete de meu marido, não pode! Tenho filhinha às costas, não vê? É hora de ela mamar, deixa!

Bilhete encontrado em poder de Fima Siga 
____________

Notas
1 - Adaptado do depoimento do Prisioneiro.
2 - Informações posteriores confirmaram que um dos capturados era uma enfermeira da base de Morés e mulher de Pedro Ramos, comandante da guerrilha.
3 - Uma ou duas semanas depois houve informação sobre queixas que terá apresentado sobre a forma como terá sido tratada no momento da captura.

************

Cassaprica 

Ofegante, braços cruzados, calada, a exigir respostas. Já não tenho novidades, é?
Olhos, uns olhos grandes, agora cinzentos, brilhantes, húmidos, silêncio, tréguas.
A força das mãos nos braços dele, os olhos a exigir-lhe silêncio agora, não digas nada de que te arrependas a seguir, pára um minuto só, pára!
Gente a passar, a olhar para eles, os dois a olharem para o lado, como se nada se passasse, a mão dela na boca dele, a tapá-la.
A história a andar para trás, tudo a correr para o fim e agora outra vez, tentativas para se descolar, ela a arrastá-lo para o jardim, a empurrá-lo para a rede, em cima dele, vencido.
Passou pelo Bento, arranjou transporte para Brá, um bom banho e meteu-se na cama com os documentos que lhe deram na 2.ª Repartição.

"Cassaprica é o maior acampamento IN existente na área deste posto administrativo. Há um caminho bastante perigoso, porém muito importante, uma vez iludida a vigilância dos sentinelas, pois corta a retirada do IN para a República da Guiné-Conakry em caso de operação em Camissorã. Ainda o mesmo disse que em Bagadai perto de Cane Faque, estão a construir uma jangada de paus para transportar a Cane Faque e daí para Caule uma arma bastante pesada. Também informou que mais de metade dos elementos da guerrilha passou para Caule onde existe um acampamento e um pequeno estabelecimento. Que no entroncamento da estrada velha de Cacafal com a estrada de Cambeque, do lado esquerdo de quem vai para Cabo Nepo, junto a uma árvore grande, existe um abrigo onde o IN aguarda oportunidade de montar emboscada à tropa. (...)"
Três folhas com os depoimentos de guerrilheiros apanhados. Tinham dito tudo o que sabiam e, nada de admirações, também coisas que só se recordaram, certamente, quando os polícias lhes apertaram as unhas, localização dos acampamentos, disposição, quantos guerrilheiros em cada, armas, os nomes dos comissários políticos em alguns casos.
Dentro de uma pasta, uma etiqueta na capa a classificá-los. Estivera a lê-los, o sono a chegar, enfiara-os na pasta e fechou o mosquiteiro.

No outro dia, no QG, deu andamento às informações. Documentos vistos outra vez um por um, algumas notas ao lado, localização de guias, onde falar com eles, transportes, esboçar o plano de operação. Na 3.ª Rep. ficaram de marcar a data, os meios, as horas das marés, as coisas do costume.
Entrou no VW preto que tinha alugado para o fim de semana e meteu a pequena pasta dentro do porta-documentos. Começou a descer para Bissau, um fim de tarde agradável, sentia-se bem sem saber porquê, nada que fazer agora, e se passasse pela casa da Teresa, era capaz de ser boa ideia arrumar o assunto hoje, não?
Rua sem movimento àquela hora, viram-se logo, ela sentada na espreguiçadeira a ler, cadernos espalhados pela relva.
Vamos dar uma volta?
É só um instante, vou-me arranjar.
Parecia outra, que nada tinha acontecido no dia anterior. Dentro do carro, à espera, e o pai dela a subir a rua. Olhos a cruzarem-se, teve que sair do carro.
Senhor alferes, então?
Como está, senhor Vasco?
Então o que diz àquela história da orelha?
Orelha?
Então, olhos fixos nele, o caso do Hotel Portugal, não sabe? Toda a cidade sabe, um horror! Um grupo de fuzileiros ao passar na esplanada do hotel, um deles foi directo a uma mesa com gente de cá, puxou pela orelha de um, sem dizer nada, facalhão na mão, zás, cortou-a, a correr pela rua abaixo, a rir-se, o ferido a escorrer sangue atrás deles, dá-ma, dá a minha orelha!
Não acredita? Testemunhas é o que não falta!
Não sabias ainda, a Teresa parecia que tinha acabado de tomar banho, toda fresca a chegar, a dar um beijo ao papá.

Como da primeira vez em que saíram sós, pouco movimento a esta hora, o carro devagar, mal se ouvia o motor, pelas ruas a descer para o porto, algumas fardas verdes na esplanada do Bento, cortaram para a direita, quartel da marinha, a caminho da Sacor.


Encostou o carro, o Geba orgulhoso lá em baixo, o ilhéu do rei em frente, ele a abrir a porta, a pé pela estrada uns metros até lá à frente, a olhar para o rio com a Ricoh na mão, a magicar como abordar o assunto. Deu a volta por dar, olhou para o carro, pareceu-lhe ver a Teresa com a pasta na mão. Deu-lhes a pressa aos dois, ele a voar sem correr, ela atrapalhada, pareceu-lhe, a fechar o porta-documentos.

Para onde vamos? Então ainda agora chegámos, que pressa é que te deu? Não te estou a perceber, andas tão estranho ultimamente, o que se passa contigo?

************

Correspondência

"Faz hoje 15 meses que cheguei. Não é ainda tempo para pensar no fim, muitos meses ainda à frente. Há quem tenha calendário no quarto e todas as noites risque o dia, menos um que falta!
Começo a ter dificuldades em escrever. Não tenho novidades para contar, continua tudo igual, vida calma, sem grandes sobressaltos, o que é óptimo. Estou de boa saúde, desde que estou aqui só tive uma vez paludismo, umas ligeiras febres, aliás, os dentes têm-me deixado sossegado. De vez em quando dou uma corrida para desenferrujar os músculos das pernas. Estou cansado de descansar. Nas horas vagas, que são muitas, leio o que aparece. Os Lartéguys já os li todos, da Indochina à Argélia, as últimas aventuras do império francês a desmoronar-se, os Centuriões, os Pretorianos, os Mercenários. Livros de guerra, que, não sei porquê, são os que se vendem mais aqui. Contraditório, julgo. Livros com outros assuntos vêem-se pouco por aqui. Acabei ontem 'A Confissão do Silêncio' de um tal Shlumberger, uma história de espionagens, passada na 2.ª Guerra. Entre mãos para começar tenho um do Urbano, “Terra ocupada”, a seguir se não tiver outro, a 'Náusea do Sartre', há meses em espera para o retomar. Não sei é se vou conseguir acabá-lo.
O café Bento, uma instituição cá de Bissau, já te falei dele, com uma esplanada enorme debaixo de árvores, onde a gente se junta no final do dia a saborear o fresco, tem um pequeno quiosque onde além do Português Suave, do SG Ventil e de outras marcas de tabaco, rebuçados e chocolates, também vende livros, as últimas novidades literárias acabadas de chegar da metrópole. E é lá que costumo ver o que há de novo.
Cinema não tenho visto nada ultimamente, as fitas que mais passam são coboiadas, o mais interessante destes filmes é ver a assistência, entusiasmada com a cavalaria a chegar quando os peles-vermelhas estão quase a entrar no círculo das carroças dos colonos, ficam tão contentes que se põem a pé, a aplaudir, boinas ao ar. Qualquer coisa serve para o pessoal fazer uma festa. Na montra do cinema está há já algum tempo anunciado um filme do 007, quando vier sou capaz de o ir ver.
Como vês, levo uma vida pacata, tranquila. E pronto já contei a minha vida destes dias, tudo o que escrever daqui para a frente, é só porque não se manda uma carta com tão poucas linhas, até podes pensar que não escrevo mais, por outras coisas, estou a brincar com a menina dos meus olhos, claro.
E por aí, ora conta, como vão as coisas? A vida pelo Porto, pelo Carvalhido, pelo teu trabalho, pelos teus estudos, as aulas de alemão com a Frau Kissau, como vai isso tudo? O 6 ainda não foi substituído pelo trólei? Continua a trilhar pachorrento, da Praça para o Monte dos Burgos para cima e para baixo?
Quando será que nos voltamos a sentar, os dois juntos nesses bancos tão apertados, a ver a chuva do Porto a bater nas vidraças, tu com o teu sobretudo azul escuro, de botões prateados, a cheirar a Madame Rochas ou será Lancôme, e as tuas mãos macias de Atrix? Trouxe os teus cheiros comigo, tenho-os guardado bem pelos vistos, quando me lembro de ti, vêm também.
(…)
Nunca tive muita facilidade em falar de mim, dos meus afectos, em dizer o que sinto. Àqueles de quem gosto, então sempre me foi ainda mais difícil dizer quanto os aprecio, por vezes é-me mais fácil feri-los que reconhecer quanto gosto deles. É uma força mais forte que eu, é uma fraqueza, talvez. Nunca soube como devia fazer, nunca fui capaz de exprimir o afecto que me liga a ti. E, no entanto, foste até agora a melhor coisa que me aconteceu.
Uma estrada tão comprida, falta tanto, tanto tempo ainda, que às vezes penso, será que vamos conseguir?"

************
(Continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 8 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15221: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVI Parte): Cabral no Oio; Uma carta e Galinha à cafriela

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15221: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVI Parte): Cabral no Oio; Uma carta e Galinha à cafriela

1. Parte XVI de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 7 de Outubro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XVI

Cabral no Oio 

Parece que o Amílcar Cabral está cá dentro. Há informações que referem a presença dele numa reunião de quadros na zona do Oio, dispara-lhe o capitão, no quarto em Brá, olhos na meia-noite do relógio de pulso.

Amílcar Cabral. Foto na net.

E que está a retirar, para o Senegal, pela zona de Bigene. Certezas não há, pode até já ter passado ou estar a caminho da fronteira por outro lado. De qualquer maneira vamos trabalhar com as informações que temos. Há apoio da Força Aérea, estão a ser movimentadas tropas da zona e o QG quer que um grupo vá para a fronteira.
Amanhã, às 5 em Bissalanca, nos helis. Vou estar em cima no PCA.
O Alegre já dormia, teve que se pôr a pé, meteu-se no jeep para Bissau à procura de um chefe de equipa.
Grupo acordado, material conferido, reunião, os procedimentos habituais. Pequeno-almoço na cantina às 4 e meia, grupo ao corrente dos pormenores.
Era apenas uma hipótese, não passava disso. Mas teriam que estar preparados para se encontrarem com uma larga coluna do IN a servir de escolta.

Levantaram à hora, com a Guiné a acordar, rumaram para norte. Cerca de quarenta minutos depois estavam na zona, T-6 a aparecerem, já a brilharem ao Sol, vai estar um dia quente.


Dos helis viram os trilhos, o Tenente Caldas, o piloto, a indicar-lhe com a cabeça para uma clareira, aí mesmo, ok, vamos baixar. Ouviu a comunicação com o resto da esquadrilha, preparar a formação, por cima das árvores, abrir portas, uma mão no cinto outra na arma, saltar.
Tiros dispersos e altos para os helis1, os T6, barulhentos e lentos, a picarem, fumos a sair das asas, rebentamentos, o costume, nada que não se tivesse visto antes. Reagrupados, correram a abrigar-se, vegetação rasteira, não havia muito onde.
Os T-6 referiam estar um grupo a entrar numa mata em frente, para aí a meio quilómetro, na direcção da fronteira, iam picar nessa direcção. Coluna por um trilho fora, o Sol em cima deles, rebentamentos de vários lados, todos a considerável distância.
Pouco tempo depois, um Dornier comunicava não ver sinais de movimento e que informações recentes confirmavam a presença de Amílcar Cabral no Oio, e que terá passado a fronteira durante a noite, por outro lado, para leste de Bigene. Sempre em frente, a caminho da fronteira, nem tempo tiveram para meter guias da zona, iam por ali em direcção à mata como se estivessem a descer a Avenida da Liberdade.
Boca seca, borbotos brancos de saliva nos cantos dos lábios colados, uma chuvada agora é que vinha a calhar, nem uma nuvem, o sol muito grande. Ao longe, no caminho para lá, a mata prometia-lhes sombra, pelo menos.
Valente, arranque com a sua equipa. Os cinco a andar, parecia um bailado, uma eternidade. Desapareceram na mata, uns minutos.
Um sinal deles, lá foi o resto do grupo abrigar-se do sol. Não há muito tempo tinha passado por ali gente, pelas cascas de abacaxi que viram espalhadas. Não os tinham comido todos. Cortaram o que lhes apeteceu, sentaram-se à sombra, limparam a saliva da boca com fatias cortadas com o punhal. O silêncio, um oásis!

À noite estava em Bissau. Tinha passado pelo Bento depois de jantar, as pernas doridas a pedirem descanso, mas a levarem-no para a Sé, rua acima, luzes das janelas a apagarem-se.
____________

Nota
1 - Esta manhã, enquanto bombardeavam Djagali, os Portugueses mandaram uns 50 homens de helicóptero até à zona da fronteira. Foram interceptados por combatentes do PAIGC; retrocederam, depois de algumas horas de combate, deixando vários mortos no terreno. Quando chegámos, a estrada estava livre”. “Com os rebeldes da Guiné”, por Gérard Chaliand, no “Le Nouvel Observateur”, 13/07/66. Gérard Chaliand, amigo do Cabral, a relatar o que não aconteceu.

************

Uma carta2

Desenrasque-se.
Nas mãos tinha a carta que o capitão acabara de lhe entregar, uma carta dirigida ao Ministro do Exército.

Exmo. Senhor Ministro de Exército 

Excelência,

Venho respeitosamente dirigir-me a Vossa Excelência expondo-lhe o seguinte. 
Sou mãe do 2.º Sargento Mil. M. A., morto em Angola, no Quitexe, em 23 de Abril de 1963. Após 22 meses (?) ao serviço da Pátria, o meu filho, que era a luz dos meus olhos, lá se ficou. 
Hoje tive conhecimento que outro meu filho, o 1.º Cabo Mil C. A., acaba de ser mobilizado para a Guiné, para onde parte no dia 9 deste mês. 
Sou pobre, se não ia pessoalmente, de joelhos, pedir a Vossa Excelência que tenha pena de mim. Com a morte do meu filho nunca mais fui a mesma. Se há pessoas desamparadas da sorte, uma delas sou eu, perdi completamente o gosto por viver. 
Não choro os meus filhos à Pátria, choro sim a sua morte quando vejo companheiros deles, depois de apurados, descerem aos hospitais militares e ficarem livres. Não ensino procedimentos destes aos meus filhos, custar-me-ia muito vê-los tomar atitudes idênticas. 
Mas apelo ao coração, que presumo ser bom, de Vossa Excelência, que certamente também é Pai. A metrópole é também a nossa Pátria e o meu filho ficaria aqui a cumprir o tempo necessário e não mo mandaria para longe entrar em combates. Há seis anos, o meu marido teve uma trombose. Vive, mas é um doente, e com tudo isto vejo agravar o seu sofrimento. 
Não me convenço que meu filho vá para tão longe. E, pelos seus filhos, Senhor Ministro, peço-lhe que mo deixe ficar. Vossa Excelência terá a certeza que eu terei mais meia dúzia de anos de vida, nunca mais de alegria, mas para melhor poder amparar o meu marido e meus filhos, para os quais sempre tenho vivido. 
Julgo bater à porta de Deus e a Ele fico a pedir para que Vossa Excelência e Família tenham uma vida cheia de saúde e felicidade. 
Respeitosamente de Vossa Excelência 
4 de Fevereiro de 1965.

Nessa mesma manhã encontrou-se com o Furriel. Começaram por falar da equipa, do estado físico e anímico dos homens, das famílias e aí, perguntou-lhe como vivia a mulher as vésperas das saídas para o mato, uma vez que estava há algum tempo em Bissau com uma filha recém-nascida.
Fica muito ansiosa, fica triste, claro. Mói-me o juízo a toda a hora, já não posso ouvir mais, sempre com a mesma ladainha, que o Capitão Saint-Clair do QG, que ainda é nosso parente, também é de opinião que isto dos comandos não é vida para um tipo casado, ainda para mais com uma filha. E já lhe disse que me arranja lugar na repartição dele.
O que penso disto, meu alferes? É complicado. São capazes de ter alguma razão. E eu desde que ela chegou com a miúda, não sei, custa-me um bocado, às vezes. Não era surpresa, há algum tempo que se notava. Desde a vinda da mulher, o Furriel começou a esmorecer, mal se dera no princípio, agora o entusiasmo, via-se, não era o mesmo.
Faça o requerimento, não precisa de falar de razões, simplesmente pede para sair, por motivos pessoais, mais nada, pena também, que é que se pode fazer?

Com dois chefes de equipa, Sarg. Mário Valente e Furriel C. Azevedo, em Brá

Entraram os dois ao mesmo tempo para os comandos como instruendos, foram depois instrutores do grupo, participaram em todas as operações até àquela data e tinha grande respeito pela intrepidez e sentido de camaradagem daquele furriel.
Estava a perder um bom chefe de equipa, de muita confiança, como se provou naquele infeliz caso passado em Barro. Viera a saber mais tarde pelo Sargento Valente, que o Bacar Jassi, lá na língua dele, terá pedido ao Céu, que houvesse fogo naquela ida a Sano, que a primeira rajada iria para as costas do alferes, que o tinha mandado atar e prender junto com turras. Mamadú Jaló3 terá ouvido o desabafo, falou ao ouvido do furriel Azevedo, que por sua vez comunicou aos outros chefes de equipa, todos de olho no Bacar Jassi, da ida até ao regresso a Barro.

A morte do Silva, da equipa do furriel, em Jabadá, a única baixa definitiva até então, abalara-os, pela morte do camarada, claro, mas também pela forma como ocorrera, a equipa a andar para a frente e o Silva a ficar para trás. Compreendera as razões, o fogo cruzado, directo neles, a equipa com pressa de atingir a orla da mata pelo menos, mas deixar o Silva para trás, custava-lhe entender isso.
Se até no curso se tinham escolhido uns aos outros, por tantas afinidades, sempre juntos em parelhas, para o cinema, para o café, para o Cupilom, para todo o lado, logo ali que deveriam estar mais juntos que nunca, e quando era mesmo preciso, o Silva ficara para trás.

Um jantar de despedida com os chefes de equipa do grupo no Fonseca4 marcou o fim da comissão do furriel nos comandos depois da despedida oficial em Brá, aquela tarde. No meio do frango assado e Casal Garcia, desmancharam-se a rir, quando alguém contou uma história de há meses. E, sabe-se como é, contar uma história às vezes é como andar à procura de material dentro dos acampamentos inimigos. Quando menos se conta, em vez de uma granada à mostra sai uma ou duas dúzias atrás, presas numa corda.
A insensatez dos vinte e poucos anos que todos tinham, a lotaria que lhes tinha saído na roleta que era a guerra que estavam a viver e as armas que tinham nas mãos davam-lhes a sensação de impunidade que valia bem desafiar todos os regulamentos. Não eram todos os que assim pensavam, claro.
Acrescentava-se o desafio que o Saraiva lhes tinha incutido no curso. Que podiam fazer tudo, mesmo o que não fosse permitido. Desde que não se deixassem apanhar.
Então, um deles, provavelmente farto de dormir no Cupilom, terá tido a ideia de levar para o aquartelamento de Brá uma gentil morena. A porta de armas de Brá era guardada pelo Batalhão residente, logo não parecia ser uma tarefa muito fácil meter lá dentro a jovem. Por isso mesmo, deve ter pensado o aventureiro.
Convencida a jovem, enfiou-lhe um camuflado, meteu-a no jeep no banco ao lado do condutor e ele próprio carregou no botão, arrancou do Cupilom directo a Brá e à porta de armas. Só os dois, sem testemunhas. Nada difícil, afinal, deve ter pensado, quando viu a cancela a fechar-se atrás deles. Depois, seguiu-se a manobra de estacionar mesmo em frente à messe de oficiais, sacou a jovem do jeep, entrou no edifício dos quartos e meteu-se com ela no quarto. O que também não lhe pareceu ter sido complicado, depois de ter fechado à chave a porta do quarto que repartia com outro camarada, ausente naqueles dias.
Os dois na cama, a trocarem umas impressões, e ao imprevidente militar aconteceu o que não esperava. Batidas na porta acompanhadas da voz do capitão a chamar pelo seu nome. Seguiu-se o silêncio que seria de esperar, que sem dificuldade se imagina, ao mesmo tempo que não davam sinais de abrandamento os toques impertinentes na porta e o seu nome na boca do comandante. Este, minutos sem resposta, teve o bom senso que faltava a outros em situações bem menos graves. Foi-se embora.
No dia seguinte, na reunião que era costume começar as actividades do dia, os alferes da Companhia ouviram o capitão dizer, baixo mas em bom som, que se alguma vez encontrasse alguém, fosse quem fosse, com uma mulher no quarto, lhe aplicava o máximo da sua competência e o punha na rua. Isto tudo, de seguida, sem largar os olhos do presumível infractor. E, depois do silêncio de todos, perguntou a cada um se tinha entendido? Os não implicados olharam uns para os outros sem perceberem a que propósito o capitão abordara assunto que lhes pareceu tão despropositado.

Despediram-se na esplanada do Bento com um abraço, uma amizade como só aqui. O furriel para o ninho, ele não sabia para onde. Uma volta pelo Bissau velho como havia quem lhe chamasse, uma sensação de desencanto a desenhar-se, tão cedo ainda e sem sono.
__________

Notas
2 - Esta carta foi enviada para o Ministério do Exército em princípios de 1965 e reencaminhada pela 1.ª Rep/QG, em Abril ou Maio de 1966, para a Companhia de Comandos.
3 - Morto mais tarde no Morés
4 - Restaurante também conhecido por Solar dos 10, na altura um dos mais conhecidos restaurantes de Bissau

************

Galinha à cafriela5

"Temos que ser nós a pô-los daqui para fora, esta terra é nossa, não nos faltam apoios, é todo o mundo a dar-nos razão! Desde meados deste século, os colonialistas têm sido corridos de todo o lado, ficaram os portugueses e por quê, camaradas? Porque de todos os impérios, o deles é o mais atrasado, não só economicamente como também em termos culturais. Uma taxa de alfabetização baixíssima, um país inculto, atrasado, governado por um grupo de lacaios em nome de um ditador e dos interesses de meia dúzia de famílias." 
"Por isso dizemos e insistimos, somos aliados do povo português na mesma luta contra o colonialismo e contra o fascismo. Mas esta situação, os camaradas não duvidem, está a mudar e ainda vai ser no nosso tempo e vamos ser nós que vamos acabar com o colonialismo na nossa terra. Temos amigos em todo o mundo, URSS, Suécia, China, Noruega, Cuba, toda a África, toda a Ásia, todo o mundo, amigos que nos ajudam com armas, comida, medicamentos, técnicos. 
Mas temos que ser nós, camaradas, nós é que temos que fazer o trabalho aqui na Guiné e em Cabo Verde, de os pôr daqui para fora!"6

Uma rua de Bissau. Foto do blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Com a vénia que é devida.

Aqueles tempos calmos, com tempo para tudo, o sossego das tardes de Bissau estavam cada vez mais longe. Depois dos incidentes do Pijiguiti a vida nunca mais foi a mesma. Interrogatórios, Pide, tropa a chegar todos os dias, incidentes em todo o lado, prisões durante a noite, a vida cada vez mais difícil.
Benilde, a mãe de Teresa, pensava em como era tranquila a vida em S. Vicente, difícil a subsistência, mas o ambiente era outro, como era bom se o Vasco conseguisse ser colocado em Cabo Verde, na Praia ou no Mindelo.
Teresa estava com 19 anos, vivia com a ansiedade própria da idade o que ouvia contar em casa e entre os amigos, as gloriosas lutas que se travavam nas matas contra a tropa colonialista, as tentativas de alfabetização das populações, nas escolas dispersas pelo mato, os progressos pela emancipação, o caminho irreversível para a independência. O relacionamento dela com aquele militar era motivo de reprovação dos amigos e de desconfiança do próprio pai.
Coisas separadas, pai, não têm nada que ver, sei tomar conta de mim, já não sou menina.

A mamã contou ao papá do nosso encontro. A princípio ficou calado, continuou a comer, mas não ficou de muito boa cara, não. No fim de jantar, então falou, que ainda sou muito nova, que tenho muito tempo à frente. É mesmo a sério, virado para mim?
Quando queres vir jantar a casa? Quando pode ser? Não pode ser amanhã? Fica para sábado então, posso dizer à mamã?
Mas espera, Teresa, jantar?
Então, não ficou combinado, apresentar-te ao meu pai?
Apresentar-me ao teu pai? Combinado com quem?
Jantar só, que importância tem?

Teresa no varandim, com aqueles olhos. A mãe como se fosse para a festa, música de morna, a sala grande, sente-se, esteja à vontade, a Tesa faz-lhe companhia, vou ver as coisas, sumo de abacaxi com gelo, quer?
Sentia-se fraco, não lhe apetecia nada estar ali, bem melhor não ter vindo. Os dois sentados, ele a passar a vista pelo salão, uma mesa ao canto, fotos antigas de outras terras, rostos desconhecidos, gazelas de pau-preto, cadeiras de palhinha, a luz suave filtrada pelas cortinas, o que estou eu aqui a fazer e os pais a entrar.
Ora viva, então, como está, ah? Igualmente muito prazer, então?
Sorriso sem palavras, cumprimentos, quer beber alguma coisa fresca, ah já está servido, então?
Então nada, desta vez apeteceu-lhe mesmo responder.
Calor, hem, esta humidade não deixa a gente respirar, então? Vocês lá em Portugal tem um clima bem mais ameno, mais temperado, mas muito frio no Inverno, não? Acho que nunca prepararam as vossas casas para o frio, se calhar porque se habituaram a estarem lá só de passagem, não é, no regresso dos Brasis por onde andaram, só paravam em Lisboa para descarregarem o ouro, a prata, as especiarias, não é, gargalhada que lhe pareceu trocista.
Assim! O pai da Teresa além de trabalhar nos escritórios de uma grande empresa "colonialista" era também um humorista.
Nunca pensei nesse assunto.
Na sua idade também pensava noutras coisas, não é, a Mabilde e uma ajudante de travessas na mão, cadeiras a afastarem-se, é melhor sentarmo-nos, então. Galinha à cafriela, saladas, abacaxi, bananas, e para beber, cerveja, Casal Garcia, tinto do Dão, o que quer beber?
Então? De onde é o senhor, o que faz na vida civil, como vai a metrópole, o que dizem lá desta guerra, o Salazar está para durar? Não vai durar a vida toda não é, vem outro a seguir, já deve estar escolhido, claro, quem será, quem lhe parece que seja?
Que não estava a par, não fazia ideia.
Quando lá estive aqui há tempos, a estudantada, gente da sua idade, não é, andava alvoroçada, falava-se da guarda a cavalo em Lisboa, espancamentos em quem passava, lojas trancadas.
Sabe, isto está um problema, vai ser cada vez mais difícil continuar nesta situação, na vossa metrópole e aqui, a tendência é só para agravar… a URSS, a China, a América veja lá… a Suécia, a Noruega, o mundo todo, menos a Espanha do Franco, o governo português tem as portas fechadas em quase todos os países, agora até o Brasil! Mas, o povo português faz parte da grande família africana, dos guineenses e cabo-verdianos, disso nunca nos podemos esquecer. Partilhamos a história há mais de cinco séculos!
Agora, esta guerra está a ser suportada por vós, pela vossa juventude, quando regressam deixaram cá o melhor das vossas vidas, muitos até deixam bocados deles e outros nem regressam, não é?
A mãe Benilde não parava quieta, a galinha não passava, atravessada na garganta, não havia maneira de ir para baixo, sumo na mão, a da Teresa, a acalmá-lo, no joelho por baixo da mesa.
Que estava a par da agitação estudantil, que deveriam ter alguns motivos, mais outros da idade, adiante se veria.
E então, a Tesa o que é para si? A Tesa é muito boa menina, sabe? Um bocado senhora do seu nariz, às vezes teimosa demais, muito boa estudante, até agora.
____________

Notas
5 - Galinha do campo com um molho ácido e cebolada
6 - Amílcar Cabral, numa das emissões da Rádio do PAIGC, Conacri

(Continua)
************
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 1 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15186: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XV Parte): ME-14-04; Partir mantenhas; Buba, outra vez e Vamos ser independentes

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15186: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XV Parte): ME-14-04; Partir mantenhas; Buba, outra vez e Vamos ser independentes

1. Parte XV de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 30 de Setembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XV

ME-14-04

Um ano e pouco depois da formação dos grupos, a sangria continuava, uns incapacitados e outros a acabarem as comissões. 
Dos 4 grupos iniciais ficaram dois, os que tinham alferes, os Diabólicos e os Vampiros. Os que sobraram dos Apaches e dos Centuriões foram repartidos pelos outros dois grupos. 
Dos outros dois chefes de grupo, um seguiu o seu caminho, psiquiatria primeiro, baixa a librium e triptyzol, às vezes com água, outras vezes não, até que teimou em pedir alta. Foi convalescer para Guilege, na altura um dos sítios mais aquecidos da Guiné. O camarada de Brá acompanhou-o a Bissalanca, beberam uma água no bar do aeroporto à espera do embarque no Dornier. Amigos e companheiros de quarto durante meses despediram-se, sem palavras, com um abraço. 
Quando lá chegares diz qualquer coisa! 
Dois ou três dias depois dizia-se em Brá que tinha sido bem recebido pela NT e pelo IN também, que logo na noite da chegada não quis faltar, convidando-o a assistir e a participar na festa, metido nos buracos até acabarem as comemorações. 
Continuava assim o seu percurso, só lhe faltava mudar o líquido, o que parece não ter demorado muito. 
A permanência dele por lá não foi fácil, como se calculava. E quando a comissão foi dada por terminada, no aeroporto em Bissalanca não era capaz de falar, só abanava a cabeça, a chamada para o embarque na TAP, o abraço do camarada e amigo, lá ia ele sem o saco de viagem. E quando subia as escadas para o avião, parece que não queria deixar aquela terra, escorregou, ainda desceu um ou dois degraus desamparado, a amarrar-se a um dos corrimões, a hospedeira a tentar dar-lhe a mão, o camarada a respirar melhor quando a porta do avião se fechou. O outro alferes adoeceu quase logo no início da actividade operacional do grupo, ficou de baixa, embora se ocupasse na instrução física, em que era bastante competente. O sargento Mário Dias chefiou o grupo até chegar a vez dele acabar a comissão e os Apaches mantiveram um desempenho excelente. 

O capitão continuava a sua saga, endireitá-los a qualquer custo. Assim não estranhava que não estivesse nada satisfeito, mas mesmo nada, com a comunicação que a PM lhe tinha apresentado naquela manhã. Um jipe dos comandos com seis gajos dentro, a entrar por um campo de mancarra, junto ao hospital? Que é isto? Estas brincadeiras ainda não acabaram? Não quero mais histórias destas aqui! 
Estendeu-lhe a participação da PM assinada pelo comandante, Capitão Matos Guerra. Trate de averiguar o que se passou. 
Mudando de assunto, amanhã tenho tarefa para si. Vai levar a Nhacra o 1.º Cabo Pinto. 
Quem, meu capitão? 
A D. Cecília Supico Pinto do M. N. F., parece que agora quer que que lhe chamem 1.º Cabo Pinto e vem com a D. Renata, também da organização. 
O que vai fazer? Vai escoltá-las até Nhacra, deixá-las lá. Amanhã passam cá a manhã, mostramos-lhes as instalações, almoçam connosco, pega no seu grupo e leva-as a Nhacra. Depois regressa. 
Foi mesmo assim, no dia seguinte entre duas Mercedes, o 14-04, já recomposto, foi entregar as senhoras ao pessoal de Nhacra.

************

Partir mantenhas1

Temos aqui um guia apanhado aos terroristas e outro daqui, um caçador nativo, bom conhecedor da região e homem da nossa confiança, o tenente-coronel de óculos chegados à ponta do nariz, cócegas no mapa com o pingalim. 

Deixaram Aldeia Formosa pelas 15 horas daquela tarde, dois grupos de combate de uma companhia de caçadores atrás, mais um pelotão de milícias, uma Fox à frente, outra a fechar a coluna. 
Estava prevista a chegada à base de ligação, Saala Delta, pelas 18h30, deixar aí o apoio, e começar a progressão rumo ao objectivo, que deveria ser alcançado ao alvorecer. Segundo a ordem de operações, os grupos de combate da companhia de apoio deveriam estacionar, emboscados na estrada, frente a Nhantafará. 
Paragens, algumas demoradas, devidas a problemas com uma das viaturas e alguns atascamentos atrasaram a caminhada. Saala Delta só foi atingida pelas duas da madrugada. 
Pararam, chamaram o intérprete, falaram com um guia, depois com o outro. O guia IN dizia não conhecer a estrada, o caçador que estávamos mesmo, mesmo, em Saala Delta, um soldado das milícias que já passou, que talvez seja para trás. Melhor esperar pelo acordar do dia, progredir depois. 
Por volta das cinco, o grupo reiniciou a progressão, companhia para trás, emboscada. A certa altura, de um momento para o outro, o tal guia apanhado aos terroristas ajoelhou-se e não quis continuar. Bem se insistiu, tentou saber-se o que se passava, nada. Embora tivessem perdido tempo a tentar resolver o assunto não ficaram com dúvidas que estavam no rumo certo, que o objectivo estava próximo. Prosseguiram com cautelas redobradas até que avistaram, recortadas na neblina, duas ou três barracas. 
Duas equipas destacaram-se com o guia, o tal caçador da inteira confiança do comandante do batalhão. Enquanto os dez homens procuravam dispor-se em linha, com os olhos no acampamento, deixaram de prestar atenção ao caçador. E quando o soldado guineense que o acompanhava se lembrou dele ainda o viram, mas a desaparecer entre as casas de mato.

Na mesma altura, como se estivesse tudo combinado, aparece o PCV2 às voltas em cima deles, a solicitar indicação de posição.
Uma rajada foi disparada sobre os intrusos. Ataque imediato à tabanca mesmo em frente, alguns guerrilheiros com armas nas mãos e população a correrem, cada um para seu lado, todos misturados, mulheres e crianças aos gritos.
Os atacantes a recolherem as crianças, as mães, os anciãos e o IN a esgueirar-se de qualquer maneira, a disparar sobre aquela gente toda, sem contemplações.
Nada mais havia a fazer, só tirar dali as pessoas e procurar abrigo. A pouco mais de cem metros, foram disparados roquetes para a zona do abarracamento. E pelo mesmo caminho, com os civis à frente, dirigiram-se ao reencontro da companhia de apoio. Uns quilómetros depois ainda se ouviram alguns rebentamentos, vindos da mata do acampamento que tinham deixado a arder.

Quatro mulheres, 6 crianças, 3 velhos, uma pistola Seska, cinco calças de caqui, duas camisas, um par de polainitos, três barretes, seis bornais, três almotolias de óleo, três centenas de cartuchos de calibres diversos, caixas de fósforos do Ghana, suspensórios, recipientes de material de limpeza, portas-cartucheiras Simonov, calças civis, prospectos "Faúlha", documentos em marabú, uma revista francesa sobre África, quatro exemplares de "O nosso primeiro livro de leitura", cadernos escolares de Augusto Sanco, exemplares de jornais "Libertação", foi tudo, meu tenente-coronel.

Uma aselhice que, afinal, acabou por trazer algum benefício ao batalhão. Sem que ninguém se apercebesse, as duas equipas a organizarem-se para o ataque, e o guia de toda a confiança do tenente-coronel a ir “partir mantenhas” com os parentes que tinha no acampamento do PAIGC. 
Alguém do batalhão disse mais tarde que o comandante tinha recebido a informação que o guia morrera durante a fuga, nas proximidades do acampamento. 
A Fox à frente, luzes no máximo, os picadores a pé a abrirem caminho à coluna, o regresso interminável a Buba, os olhos a fecharem-se-lhes de cansaço e sono, uma sensação de frustração que nem visto. 
Depois, no cais, em Buba, continuaram a dormitar, à espera da lancha para Bolama. 
Chegaram já quase à noite, àquela cidade do passado. Parada nos tempos, mesmo assim uma beleza. 

Bolama, Hotel Turismo. Imagem do blogue de Luís Graça e Camaradas da Guiné. A devida vénia.
____________

Notas
1 - Cumprimentar
2 - Posto de Comando Volante, ou PCA, Posto Comando Aéreo, normalmente em Dornier

************

Buba, outra vez3

“Reconhecimentos aéreos confirmam a existência de uma base IN junto ao pontão de Buba Tombó. Na última operação ali efectuada, as NT foram emboscadas por um grupo calculado em cerca de 100 elementos. Na mesma acção foram levantadas 2 minas a/c e um fornilho na estrada Buba-Buba Tombó. Sabe-se que o mesmo itinerário se encontra minado e que a picada Sare Tuto-Buba Tombó também devia estar minada contra pessoal pois nele já foi accionada uma mina a/p. O acampamento de Buba Tombó serve de ligação entre as bases de Antuane e Injassane para os reabastecimentos IN e corta a estrada em Buba e Fulacunda. Não há guia para o acampamento, apenas guias conhecedores da zona”.

Quinze homens do grupo de comandos saíram de Buba pouco passava das 21h00, iniciando a progressão pela estrada na direcção de Buba Tombó. A cerca de três quilómetros desta tabanca, local indicado por um dos guias da zona, tentaram entrar na mata através de várias pontuadas. Sem sucesso. Visibilidade zero, lua escondida e vegetação densa. Decidiu-se aguardar o amanhecer, entrar na mata e procurar um caminho para o acampamento.
Já com a mata em frente, a estudá-la com os olhos, com uma pequena bolanha a separá-la, surgiu a parelha de T-6. Procurou estabelecer-se a ligação rádio, o que não foi possível. As frequências tinham sido alteradas, sem conhecimento do grupo! Estabelecida uma ligação verificou-se que os indicativos também não estavam certos.
Os T-6 começaram a picar sobre a mata, deviam ter avistado algo com interesse, e o grupo que já se encontrava muito próximo abrigou-se o melhor que pôde. Com as frequências e os indicativos alterados não havia a certeza de quem estava a falar com quem e os pilotos dos T-6 decidiram afastar-se.
O grupo de comandos torneou a bolanha e, não encontrando carreiros de acesso ao acampamento, foi-se internando na mata até avistar um elemento IN que disparou uma longa rajada de PPSH, atingindo um milícia, conhecedor da zona que os acompanhava, gravemente no ventre. Com os intestinos pendurados, uma equipa ficou a prestar-lhe o socorro possível, enquanto as outras duas se lançaram na direcção do guerrilheiro. Apareceram as barracas, recolheu-se o material que foi possível transportar, o de menor interesse destruiu-se. O acampamento era constituído por duas casas com 12 camas numa e 8 noutra e defendidas por abrigos cavados no terreno à volta.

Abrigos com disposição idêntica a esta. Foto na net.

Não sendo possível evacuar o ferido no local, foi transportado numa maca improvisada, a corta-mato, enquanto o IN fazia fogo de morteiro e de RPG sobre o acampamento, sem consequências para o grupo, já a retirar pela mata.
Viram os T-6 a sobrevoá-los quando já se encontravam a caminho de Buba.
____________

Nota
3 - Operação "Olinda", Buba

************

Vamos ser independentes 

Naquele fim de tarde, quando, vindo da Amura, descia a rua em direcção à Sé, viu o pai da Teresa, de calção, no pequeno jardim, a tratar da relva e das flores. Aliás, viram-se um ao outro ao mesmo tempo, um a desviar os olhos para o outro lado, para uma montra de uma casa de fotografias, o pai mais demorado, a endireitar-se, sacho na mão, talvez a magicar, se calhar é aquele o tipo que anda atrás da Tesa.

Sé de Bissau

Lá em baixo, acabada a missa da tarde, Teresa, véu dobrado numa mão, braço na mãe, ia começar a subida da rua para casa quando o viu. E agora, perguntou-se ele.

A mãe conhece-te de vista, já te viu da janela mais que uma vez, uma tardinha perguntou-me até se te conhecia. 
Sei lá, mãe, um militar qualquer, como hei-de saber, queres que lhe pergunte o nome, porque está a passar na rua? 
Que atrevida que estás, Tesa, julgas que tenho os olhos fechados? 
E se nós mudássemos a conversa, mãe? 

Uns tempos mais tarde viu-me a falar contigo, junto ao jipe. Quando me viu voltar a correr, fez-se desentendida, desceu para o jardim, para a minha beira, eu calada, com o livro na mão. Desconfiei da chegada tão repentina, fiz de conta que não entendi, falou-me da carta da tia de Santo Antão a dizer que vinha passar um tempo connosco. Fiz-me ausente, desinteressada, ah sim, quando? 
E não me largava, a perguntar-me como iam as aulas. 
Tentei evitar até não poder mais, a mamã não saía dali, sempre com perguntas. 
Sim conheço-o, tem mal, mãe? 
Que não, desde que eu lhe contasse tudo, que tivesse cuidado, que vocês, militares longe das famílias, saudosos das namoradas, estavam aqui de passagem, só queriam divertir-se. 
Um dia que calhe eu apresento-to, está bem mamã? E arrumei os livros e o assunto.

Mais coisa menos coisa, a conversa terá sido assim, contara-lhe ela, dias depois.

Rua de Bissau. © Foto do blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.

De saída da missa, então, de braço dado com a mãe, mudou de passeio e subiam a rua, ele a olhar para o chão, como quem não quer a coisa, até ficarem frente a frente.
A mãe Benilde, um amigo, as mãos estendidas.

A mamã gostou de te conhecer, acha-te simpático, é verdade! Que pareces atinado.
É, depende dos dias e dos momentos, também acho, agora simpático, como as aparências enganam, se ela te conhecesse melhor! Mas gosto de estar contigo, embora haja coisas que nos separam.
O quê? Esta guerra! Nem entendo porque te envolves assim tanto. Porquê?
Porque sou soldado!

Na guerra mostramos quem somos. Em combate não há capitães, sargentos ou alferes, somos todos soldados. Soldados com as caras sujas, olhos muito abertos, o crepitar das metralhadoras, balas a riscarem a noite, rebentamentos surdos dos morteiros, ouvidos a zunirem, pó a cair com folhas de árvores, gritos, sangue nas fardas rasgadas, nó na garganta, a sensação de não estar nem vivo nem morto, confusão, o silêncio, os soldados e as fardas lavadas, os emblemas a brilharem ao sol, os tambores a rufarem, o clarim a tocar aos mortos, o frio pela espinha, os jipes, os camiões, as lagartas dos carros de assalto, o barulho dos helis.

Não sei, Teresa, sei lá!
Não sentes uma ponta de remorso pelo que andais a fazer? Custa-te a entender a luta deste povo? Nem sequer te interessa o assunto!

Claro que estamos a fazer tropelias, não o devíamos fazer, não é para isso que estamos aqui. Ficamos fora de controlo, às vezes. Lutamos pelo gosto da luta. Gostamos disto, desta adrenalina. Mas odeio a guerra, esta ou qualquer outra. Não quero morrer, nem quero que os outros morram. Mas, por mim, não a vamos perder. 

Não respondes?
Um assunto muito pessoal, só teu? Para outras conversas és íntimo comigo, porque é que esta é diferente, tens outras vidas de que não queres falar comigo?
Obrigo-te a estar aqui?
Quando vai ser, não sei. Já estivemos mais longe. Eu era menina, andava para aí no 3.º ano, quando tudo começou a sério. Até 63, tirando o caso do Pijiguiti4, ao que ouvi dizer, era só conversa. Nem me lembro de alguma vez ter ouvido falar em independência.
Depois a história passou a escrever-se de outra forma. Foi pena, mas para trás tem sido sempre assim, não se consegue quase nada a bem, é pena, mas é assim. Já pensaste no que farias se fosses guineense ou cabo-verdiano? Alistavas-te no partido ou no colonialismo?
Olha, não vai ser já já, vai demorar ainda uns anos, mas tenho a certeza que a nossa bandeira vai subir no mastro do palácio, lá em cima na praça, e eu vou estar no meio do povo, a vê-la ao vento. Podes crer! As minhas aulas vão andando, obrigada!

O barulho dos ramos das árvores e um mocho ou uma coruja lá para trás, dos lados do cemitério, os dois sentados na espreguiçadeira que mal dava para um.
____________

Nota
4 - Manifestação de trabalhadores do porto de Bissau em 3 Agosto de 1959. A repressão causou mais de 50 vítimas segundo o PAIGC e 16 segundo as autoridades de então.

(Continua)
************
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 24 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15149: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIV Parte): Fuzileiros, Páras e Felupes; O que se terá passado em Catió; Casamento com data marcada e Ponto da situação em Brá

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15149: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIV Parte): Fuzileiros, Páras e Felupes; O que se terá passado em Catió; Casamento com data marcada e Ponto da situação em Brá

1. Parte XIV de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 21 de Setembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XIV

Fuzileiros, páras e felupes

A acabar de chegar a Brá, uma carta em cima da cama.

“Caro Alferes
Já antes da sua partida para a zona de Cuntima estava prevista uma operação na área do Ingoré, base de Campada. A ideia é o seu grupo embarcar nos helis até Teixeira Pinto, onde aguardará indicações para intervir.

Não será um golpe de mão clássico, visto que as notícias não definem bem a localização. Como as forças empenhadas são numerosas procurar-se-á o IN de dia, no caso de não se encontrar de noite. Pormenores da operação ser-lhe-ão dados pelo Tenente-Coronel H. Calado. A data prevista é de 3 para 4. Felicidades, um abraço, cap. Leandro.”


Cena do filme. Um descampado enorme, palmeiras desgarradas aqui e além, a mancha de militares a surgir ao longe numa nuvem de pó, a lembrar-lhe a cavalaria dos filmes de coubóis no cinema Batalha do Porto, só não bateu palmas porque as trazia ocupadas, a G3 numa mão, a Sudayev1, apanhada momentos antes, na outra.

Um pelotão de páras junto aos helis, mais as forças do batalhão do Tenente-Coronel Calado, dispersas aqui e além, e Felupes2 com a pila à mostra, conhecidos antropófagos locais, armados de arcos e setas envenenadas. As palmeiras, o fumo e os pós no ar, cheiros de pólvora e as cores da Guiné numa tarde a aproximar-se do fim.

Tinham saído do aeroporto de Bissalanca às 6h00 montados nos helis e cerca de uma hora depois estavam em Susana, no norte, mesmo junto à fronteira. Depois ficaram ali à espera que os outros destacamentos envolvidos fizessem saltar a caça. Pelo rádio foi acompanhando a guerra em directo. Houve tempo para meterem uma bucha, para passarem pelas brasas, e chegaram até a pensar que regressariam sem chegarem a entrar em acção até o atento Dornier confirmar que o IN estava a retirar, disperso em pequenos grupos, por locais diferentes.


É agora, dêem-lhes caça! Ordem para embarcarem já passava das 13. Dez ou quinze minutos depois, dispostos aos pares, os helis largaram-nos numa bolanha em Cassum.

Mal puseram os pés no chão foram recebidos com fogo muito alto, algumas rajadas de PPSHs e Kalashs.

Dirigiram-se para norte, a caminho da fronteira, junto a um carreiro pisado de fresco, até que os dois homens da frente fizeram alto e deram indicações para o pessoal se ajoelhar. O chefe do grupo, que seguia logo a seguir, chegou-se ao Jamanca e ao Kássimo e viu um guerrilheiro atrás de uma palmeira, aflito, a olhar para todos os lados, arma a brilhar nas mãos, para camarada fazer fogo no tuga danado, só podia ser.

A equipa da frente dividiu-se em duas parelhas, rodearam-no, o olhar dele não parava e não os via, um apareceu-lhe de frente, o outro do lado direito, o guerrilheiro não atirou a arma para o chão como lhe mandaram, uma voz algures deve tê-lo distraído, hesitou, o Kássimo, a 20 metros para aí, atirou. Deram uma volta pela zona, o PCA montado no Dornier em contacto a dizer-lhes que os avistaram, que estavam em cima da fronteira, que retirassem pelo mesmo caminho, o rádio a ouvir-se melhor agora, e que mais, que mais apanharam? Mais nada?
A voz do cavaleiro do ar a achar que era pouco resultado para tanta gente.
____________

Notas:
1 - Pistola-Metralhadora “Sudayev” cal. 7,62 mm M-943
2 - Grupo étnico que compreende as populações existentes no Sul de Casamance e São Domingos na Guiné, entre os rios Casamance e o Cacheu. Os felupes dedicam-se à pesca, à cultura do arroz, da mandioca e da batata-doce.

************

O que se terá passado em Catió? 

Esgueiraram-se pelo caminho, a olhar para um lado e para o outro, as sombras da lua atrás deles, o barulho do gerador a ajudá-los. Encostaram-se ao pré-fabricado, colados à parede, ficaram assim um bocado, a luz acesa no quarto, janela com cortinado pequeno. 
Deve estar lá dentro, sussurra um para o outro. Este a espreitar entre os cortinados, a rir-se, mão na boca. Olhó o filho da puta! 

Deixa ver, diz o outro, mete os olhos e vê os óculos, a pele muito branca, em pelota, gordinho, barriga em cima da cama, as nádegas redondas, salientes, para o ar. 
Qué que o filho da puta tá a fazer, todo nu, de cu pró ar? Tá a jogar às cartas? 
São cartas com gajas nuas, tão todas espalhadas na cama! 
Ai o cabrão! E agora? 
Agora, pá, deita-se qualquer merda pró chão, para fazer barulho. Esse vaso, isso, esse serve, ali junto à porta pró gajo sair. 
Estrondo lá fora, cacos a partirem-se. Não está vento, o que será? Põe-se a pé, enfia as calças, as botas. Coração aos saltos, vai abrir a porta, volta a fechar, que esquecimento! Pistola na mão, abre outra vez a porta, espreita para um lado, para o outro. Um barulho na esquina, pareceu-lhe, pé ante pé, aí foi ele, o militar destemido em direcção à esquina.

No hospital em Bissau o tenente-coronel lembrava-se de pouco. Estrelas, muitas na cabeça entrapada e não se lembrava de muito mais, não. O major do QG insistia, mas meu tenente-coronel há-de se lembrar de mais alguma coisa. 

Houve algum problema com alguém lá do Batalhão em Catió? Não houve? Não desconfia de ninguém? E em Teixeira Pinto, recorda-se de alguma coisa? Houve alguns casos disciplinares não houve, meu tenente-coronel? 

Problemas, sim, um ou outro, todos temos, mão na cabeça dorida. 

Meu coronel, tem que haver qualquer antecedente, qualquer história para trás, qualquer coisa, veja se se lembra! 

Eu estava em cima da cama com o mapa da zona de Catió, estava a analisá-lo, a ver as referências, a assinalar a disposição inimiga, pareceu-me ouvir o barulho de qualquer coisa a partir, um ruído de passos na esquina, não, não me lembro de mais nada, a cabeça dói-me muito. 

Na rede suspensa nas duas árvores do jardim, Teresa tinha posto o livro de lado, estendeu os olhos para longe, para a rua com pouco movimento àquela hora. Viu um jipe dos comandos, um soldado ao volante, pareceu-lhe o Alegre, deixa lá ver quem é que está na Ultramarina. Pôs-se a pé, olhos para a rua, portão aberto, rua abaixo a correr. 

Então! Estava ali a estudar e tu aqui! 
Pareceu-lhe uma menina, mais pequena. Olá, Teresa! Fica-te bem essa saia branca, os ténis brancos também. 
Nem disseste que ias nem que chegaste, nunca mais apareceste! 
A Dora faz anos no sábado, queres ir? 
O Alegre a apontar para o relógio, está na hora, meu alferes. 

Foi então ao QG tratar de um assunto qualquer. E quando passava junto à secção de Justiça um camarada, em jeito de brincadeira, claro, perguntou-lhe quando tinha sido a última vez que estivera em Catió. Catió? Porquê? Porque o teu nome foi falado a respeito do caso de Catió! Qual caso? 

No jeep, de regresso a Brá, a cabeça não parou. Não escondia o gozo que lhe dava imaginar como tudo teria sido e intrigava-o alguém ter pensado que ele seria capaz de tal safadeza. 

************

Casamento com data marcada

O alferes adjunto do capitão para os assuntos administrativos, tinha assumido o comando do grupo “Vampiros”. O Vilaça andava com o moral apagado, há meses que não saía. Vou sair na próxima, dizia alto, chegava-se à véspera e não, não consigo, pá, não estou em condições. Passou a ser tema de conversa entre os outros chefes de grupo, que combinaram colocar a questão ao capitão. 

O que é que nós podemos fazer se ele não quiser? A psiquiatria não é bem assim, não podemos empurrá-lo para lá se não for da vontade dele. É melhor mantê-lo debaixo de olho, ocupá-lo com trabalhos aqui dentro, que há muito para fazer, enquanto o tempo vai passando e a evolução dele também nos dá tempo para arranjar a melhor solução. E vejam se ele bebe só água. 

O Vilaça levantava-se quando calhava, à tarde ia para Bissau, regressava quase de manhã ou mais cedo se alguém o trouxesse. De início, os outros não atribuíram grande importância, o quadro a agravar-se alertou-os para medidas imediatas que o capitão encarava agora. 

Agora o Luís, também? Num dos primeiros dias de Abril entrou-lhe no quarto, sem mais nada, desembaraçado como de costume, é pá, olha, estás convidado para o meu casamento. É pá, ouviste o que te disse ou não? 

Que dependia, se a data coincidisse com a estadia dele na metrópole, teria muito gosto. 
Que não era na metrópole mas na Guiné. Não é brincadeira nenhuma não senhor, vou-me casar com a Lurdes. 
Lurdes? Que Lurdes? 


À entrada da messe, em Brá, com o Luís 

O Luís era oriundo de famílias bem colocadas, o pai, médico com nome numa cidade do litoral, era uma pessoa muito respeitada, bem relacionado, até com as irmãs do Dr. Salazar, a quem media as tensões quando elas iam passar o mês de Agosto à Figueira. 

Medrara no enorme areal com as ondas a rebentarem lá ao fundo, sempre junto da namorada, cresceram e estudaram no liceu local até se separarem com promessas, ela a terminar o curso, ele a caminho da Guiné. Mantiveram-se em contacto o tempo todo, numa fúria de cartas para lá e para cá. 

No regresso de férias viera encantado, saudoso, morto por regressar de vez à metrópole e consumar o que tinha deixado a meio. Agora, a dois meses do fim da comissão, mudara de ideias? 

A Lurdes. A Lurdes era uma moça nascida em Bissau, aí dos seus 23 anos mais ou menos um, com raízes familiares em Cabo Verde, tu cá tu lá com as autoridades locais, as colonialistas e as outras. Tinham ou dizia-se que tinham propriedades no Gabú, em Bafatá, arrozais inteiros no leste e no sul, agora ao abandono ou nas mãos da guerrilha, plantações de abacaxi, mato, comércio em várias localidades, uma das famílias com mais teres que havia naquela zona da Guiné. 

Morena, um metro e setenta para aí, alta para os padrões locais, cabelos loiros, olhos irrequietos, esverdeados, figura atraente, foi um ai mal se viram. O Luís entrou logo em casa, lá nisso ele fazia jus à imagem que tinha de não recuar perante nada, inimigo ou amigo, tanto se lhe dava. 
Até àquela altura, ao que se sabia até então, sempre mantivera alguma distância em relação às beldades locais, o eterno noivo da que lá na metrópole, pacientemente aguardava a chegada do seu mais que tudo. 

Nunca se souberam grandes pormenores de como evoluiu a relação, mas não é difícil a gente imaginar, o Luís a acabar a comissão, as forças a irem-se, as fraquezas a virem, e não se sabe mais porque o Luís não era de grandes falares sobre assuntos dessa natureza. 

Ia marcar a data, logo diria. Seria em Bissau, os pais dela iam tratar de tudo, falar ao Bispo, o Governador ou um representante deveria estar presente, outras autoridades do pró e do contra também, iria ser certamente o acontecimento social mais importante do ano na capital da Guiné. 
E os camaradas a olhar para ele, a magicar, isto é a sério? Uma coisa tão repentina, o tipo não estará embrulhado? Não será melhor a gente ver o que se passa? 

Juntaram-se cá fora na cidade, trocaram impressões, estabeleceram o plano principal e outro alternativo, o objectivo assente logo desde o início, todos de acordo que aquele casamento só se faria com o conhecimento antecipado dos pais do Luís, a não ser que o fizessem por cima dos outros dois alferes, que o Vilaça estava fora dos campeonatos todos. 

Abordaram com tacto o capitão. Desconfiado, olhos dentro dos óculos castanhos, não mostrou grande interesse no caso, que se tratava de um assunto particular e, em assuntos destes era partidário da não ingerência. 

Cá fora os dois, parecendo-lhes que do capitão não viria grande ajuda decidiram pôr a família ao par, os pais, claro. Jogaram à porra, calhou a um o cumprimento da missão, telefonar ao pai do Luís. 

Não queria acreditar, devia ser brincadeira deles. 
É verdade, doutor, sou eu que estou a falar. 
Senhor alferes, esse casamento não se faz, não se pode fazer, compreendeu? 
Tem que ser o senhor doutor a tratar do assunto, não podemos ser nós. 
Poucos dias depois soube-se que o capitão tinha chamado o noivo ao gabinete, que preparasse o grupo para uma estadia de uma a duas semanas, pelo menos, para a zona sul. 
Mas ainda agora regressámos de Farim e já vamos sair outra vez, meu capitão? 
E quem lhe disse que agora é o alferes que escala as saídas? 
Uma semana muito comprida para o Luís, quase até ao fim da comissão. E quando pôs os pés em Brá, não o perderam de vista, só o largaram quando o viram embarcar de regresso a Lisboa. 

************

Ponto da situação em Brá

Os primeiros grupos, os 'Fantasmas', 'Camaleões' e 'Panteras', percorreram a Guiné de uma ponta a outra. Com o entusiasmo inicial, superaram tudo o que fossem dificuldades, empregaram-se a fundo, os resultados ultrapassaram as expectativas e eram vistos com muito apreço pelo Comandante Militar e pelo próprio Governador-Geral. 

Olha vão ali os gajos dos Comandos, a maralha a olhar para eles. Sabe-se como é, ganharam fama e respeito pelo trabalho que fizeram e por aquilo que contaram também. As comissões individuais e as baixas em combate ou por doença, começaram a fazer estragos, os grupos ficaram mais pequenos, era necessário começar novo curso de quadros, aproveitar os resistentes e formar novos grupos. 

O Major Dinis fora entretanto promovido e regressou a Lisboa.  Depois o Capitão Rubim tomara conta do Centro e foi o que se sabe. Não por incompetência militar, operacionalmente até era bem competente. Talvez uma certa dificuldade ou falta de paciência no jogo diplomático dos corredores do QG. As questões prendiam-se com a logística e com o emprego operacional dos grupos. 

Promessas e mais promessas. Resolveu bater com a porta, sem estrondo como era da sua maneira. Não se entenderam também uns com os outros, a história da Associação Comercial, os problemas disciplinares e os alferes também não ajudaram muito, a verdade tem que se dizer. 
De baixa estatura, o corpo maciço escondia uma robustez física incomum. Espantava num tipo daqueles, o jeito que tinha para o desenho, para as pinturas, para tudo que metesse mãos. O tempo vago passava-o a montar modelos de peças de artilharia, carros de combate, aviões de sonho, militares e civis, navios de guerra, desde patrulhas a porta-aviões. Tudo pintado nas cores dos originais, os nomes e tudo. Na saída, deixou-lhe ficar um porta-aviões, as outras maravilhas levou-as todas. 

Dois meses depois de ter tomado posse, o novo comandante de companhia estava a ver a história toda para trás, relatórios e actas nas mãos. 

Analisara a organização, o quadro orgânico, os efectivos, o sistema de recrutamento, as instalações, a alimentação, a administração, fardamentos, cargas. O estado moral, físico e disciplinar do pessoal. Os oficiais, sargentos e praças, os materiais, a instrução durante e depois do curso, as operações em que intervieram, antes e depois da sua tomada de posse, a forma como os grupos estavam a ser utilizados, tudo a pente fino. 

Apesar de ter poucos anos ainda como oficial, achava que, atendendo às circunstâncias próprias do povo português, o pessoal, entenda-se cabos e soldados, era quase sempre bom. Quando surgiam problemas, normalmente deviam-se à organização, frequentemente mal montada ou aos graduados, algumas vezes as duas coisas juntas. Neste caso dos Comandos da Guiné, os oficiais eram cruciais na organização, não se cansava de insistir. 

Saía com eles para o mato, acompanhava-os na instrução, fazia-lhes ver a importância do papel deles na organização, moralizava-os, até os tempos livres aproveitava para os acompanhar. 
Os alferes tinham colaborado e também neles sentiu a necessidade de falarem com ele. A agressividade incrível com que tinham sido formados e treinados, jovens de 20 e poucos! Como é possível que possam ter dois comportamentos tão distintos, no mato em contacto com o IN e umas horas depois com a PM e a população civil na cidade? 

E seria mesmo adequado que estivessem tão próximos de Bissau? Não seria mais sensato, e mais proveitoso até, que estivessem em Mansabá, em Nova Lamego, em Buba, ou num sítio desses? De quem fora a ideia, tê-los a meia dúzia de passos da cidade? 

Em alguns casos, não tinha dúvidas, tinham sido mal orientados, deixados ao sabor da intuição de cada um, sem a mínima directiva. Até achava que o produto final era positivo e, se tivessem tido orientação, os problemas disciplinares que ocorreram não teriam existido. 

Dos cinco alferes a que a companhia tinha direito, quatro comandantes de grupo e um adjunto, restavam-lhe agora dois, o sobrevivente dos chefes de grupo iniciais e o adjunto, o Caldeira, até então com mais experiência administrativa que operacional. E, pelo que tinha visto deles até agora, achava-os competentes, mereciam-lhe confiança, esperava que continuassem como até aqui na parte operacional, e se integrassem no seu estilo de comando. Contava com eles, eram as pedras base do edifício a reconstruir, dissera-lhes mais que uma vez. 

No relatório inicial que fizera para o Comandante Militar, adiantara várias propostas, pensara até que com tantas dificuldades, de tanto lado, se calhar não seria má ideia extinguir os grupos. O Brigadeiro refutou com o argumento de que, apesar de todas as dificuldades, os grupos até então existentes eram os que mais contactos tinham tido com o IN e com mais material capturado até à data. Vira os resultados das tropas especiais que a 3.ª Repartição tinha preparado para o brigadeiro, comparou-os com os fuzos, os páras e com os anteriores grupos de comandos.

 Contacto efectivo com o IN em mais de 80% das saídas para o mato. Ouvira o Brigadeiro dizer que não se podia esquecer que os Comandos, a maior parte das vezes, actuavam em áreas densas de IN, em grupos de 20 a 25 homens e às vezes menos, enquanto as outras forças não se metiam lá com efectivos inferiores a meia centena de homens. 

Nem um por cento do efectivo total das NT na Guiné, quase 10% das baixas totais causadas ao IN. Extingui-los? Não, a saída deve ser outra, o Brigadeiro a decidir-se por outra solução, para aproveitar o pessoal que restava. 

Concluíram a reunião assentando que deveria ser feito o recompletamento para manter o quadro orgânico, isolá-los em Brá, resolver a questão alimentar, ministrar o próximo curso e utilizar os grupos em operações específicas para Comandos e não para reforçar algumas guarnições em sector. 

O capitão regressara encorajado, sentira o apoio que andava a reclamar.  Depois mudou quase toda a organização administrativa, conseguiu mais praças para o recompletamento, arranjou cozinheiros, alimentação própria, obrigou-os a almoçar todos juntos, disciplinou as saídas, arranjou novas viaturas, melhorou as instalações, e conseguiu, o que não fora nada fácil, fazer aprovar as orientações e normas para o emprego dos grupos. 

Agora, todo este tempo passado, achava que valera a pena, que tinha feito bom trabalho. 
Os grupos melhoraram os resultados, os conflitos com a PM deixaram praticamente de ocorrer, nem um castigo fora necessário.

(Continua)

Texto e fotos: © Virgínio Briote
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 10 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15098: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIII Parte): Conversa em Brá e Nunca digas adeus a Cuntima