domingo, 17 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5665: (Ex)citações (54): Comentário ao texto de José Belo no Poste 5660 (José Brás)

1. Na impossibilidade de o nosso camarada José Brás colocar este texto como comentário no poste do outro nosso camarada José Belo, fica aqui a sua transcrição:


Comentário de José Brás* ao texto de José Belo** (Poste 5660)***:
"Algumas considerações sobre a descolonização" 


Caríssimo José Belo
Não poderia concordar mais contigo quando dizes, e passo a citar:
"Pelas dramáticas consequências, não só para Portugal nos milhares de refugiados, como para os novos países que, de imediato, se viram envolvidos em sangrentos conflitos internos, será, numa perspectiva de análise histórica futura, a descolonização, na sua forma e resultados, assunto de muito, e aprofundado, estudo. Talvez com menos "compreensão" para com alguns dos responsáveis."

E diria até mais, não deixando de colocar à frente de tudo a tragédia humana que aquilo foi, para Portugal que se viu em meia dúzia de meses com uma população muito acrescida por cidadãos sem nada para fazerem e a necessitarem de apoio, para os próprios que deixaram vidas de trabalho e esperanças e saíram escorraçados de uma terra que já consideravam sua, para os angolanos que se viram nos tais sangrentos e longos conflitos, mas também sem ninguém que soubesse construir, conduzir camiões, fazer paredes, cortar cabelos e barbas, costurar, manter as máquinas, porque eram brancos os motoristas e os pedreiros e carpinteiros e canalizadores e os barbeiros e os funcionários da estrutura administrativa e os donos de lojas e de barcos de pesca e de roças de café e, até, os cauteleiros e os donos das tascas nos musseques.

De facto, os locais que abandonámos, para além de pequenas tarefas como meter cana no engenho, nada sabiam fazer porque nada lhe ensinávamos.
A caminho de Lisboa os que sabiam produzir, Angola ficou sem ninguém para trabalhar de verdade, aceitando-se o conceito de que trabalho é a actividade que se destina a utilizar e multiplicar os recursos da natureza.
Assisti, porque transportei milhares de portugueses na ponte aérea que se estabeleceu então, vivi os seus dramas, olhei-os nos olhos. Grande é a minha dificuldade ainda hoje para, por palavras, descrever o tamanho e a profundidade da desilusão e da revolta que lhes vi.

Algumas vezes aterrámos na antiga Nova Lisboa com chamas na pista, combates na zona do aeroporto, dificuldades de peso para descolar, convivendo com portugueses analfabetos que trabalhavam em Angola como o faziam antes nas suas aldeias, olhando o pessoal de bordo como se fossemos seres de outro mundo.
Portugal, que durante séculos foi incapaz de desenvolver e aproveitar a sério das riquezas daquele território, ao contrário, portanto, da eficácia fria, desumanizada e rapaz, de verdadeiros colonialista que outros foram noutros locais de África, sacando até ao quase esgotamento da mina, Portugal que nem a metrópole era capaz de desenvolver, que poder tinha para comandar bem a descolonização em três frentes, tão importantes e longínquas?

E se não fomos verdadeiros colonizadores, como poderíamos ser verdadeiros descolonizadores?

Não serei eu a desculpar erros que dirigentes de então cometeram na pressa de "abandonar" e lavar as mãos.
Sei é que não vi por lá formas de evitar a maior parte da tragédia de que falas, perdidos e embrulhados no jogo das grandes potências por posições estratégicas globais.
E posso garantir-te que vi e vivi por dentro dessa realidade muito mais do que tu poderás imaginar.
Aliás, se tiver anos de vida e disponibilidade intelectual e da vontade, talvez que venha a escrever um dia qualquer coisa sobre isso, apesar de me parecer ainda hoje muito complicado fazê-lo.

Peguemos, por exemplo, nos militares profissionais de então, capitães, majores, tenentes coronéis.
Quantas comissões tinha já somado de mato, de tiros, de desilusões, de anos fora das famílias, vendo os filhos de dois em dois anos?
Que vontade tinha essa gente de prolongar estadias e responsabilidades após o destapar da panela de pressão?

Não falarei de milicianos, oficiais e sargentos, nem de soldados porque a esses estava ainda mais longínqua a capacidade de determinar formas e modos.

Nos hotéis onde ficavam as tripulações da TAP, convivíamos de muito perto com toda a fauna de indivíduos de língua inglesa, francesa, russa, castelhana, e com gente armada que se guerreava dentro do próprio hotel.

Tivemos culpas?
Claro que tivemos e muitas, ainda assim.
Luanda foi sempre uma cidade turbulenta, mesmo nos anos anteriores a setenta e quatro.
Não havia noite de estadia em que não ouvisse tiros e batalhas entre gang's do "feijão verde" e da noite marginal.

Muito antes do ano de Abril, já taxistas incendiavam musseques e lutavam com Pára-quedistas, Fuzileiros e Comandos.

Naquela situação de caos, com três movimentos no seu interior da cidade, cada qual com sua origem e realidades, odiando-se como só sabem odiar-se aqueles povos na ressaca de sociedades tribais vindas da subsistência recente, todos interessados em correr com brancos, o caldo estava temperado que bastasse.
De tão clara esta verdade, nem vale nem aproveita a pena negar que dos altos responsáveis militares e políticos portugueses, a simpatia ia maioritariamente para um dos movimentos, embora este se apresentasse à data profundamente dividido, fragilizado e quase desarmado.

Concordo contigo, também, com a leitura que fazes da passagem dos militares de uma cultura castrense para a pretensão de liderar a revolução "bolchevique", e concordando, acho que está aí, também, um dos factos que mais pesou na decisão política desencontrada que se ia tomando em Lisboa para aplicar numa Luanda que provavelmente não tinham entendido nunca na sua profundidade social e que agora se queriam afastar a todo o custo e rapidamente.

Nas minhas obrigações profissionais, pude conviver também com a sociedade portuguesa de Joanesburgo.
Com amizades femininas no mundo da moda e da beleza local, nos ambientes das discotecas e bares, pude observar com alguma profundidade as misturas que por lá se faziam com a "intelegentzia" do Estado sul-africano da época, os jornais portugueses e as suas ligações, etc.

Posso garantir-te sem qualquer dúvida que muitas mentiras foram aí forjadas, muitas manobras, muitos documentos e correspondência falsa, muitas acusações infundadas e tendenciosas em ralação a responsáveis portugueses.
Evidentemente, não tenho qualquer vontade de te convencer, seja do que for, nem aos camaradas que connosco convivem na Tabanca Grande e que têm um visão diferente da minha, umas vezes, outras vezes da tua, algumas outras diferentes da minha e da tua.
Aliás, nem tenho a certeza se não é a mim próprio que tento convencer de certezas que podem não ser assim tão certas.

A minha única vontade real que tenho é dizer-te que estou contigo na grande abordagem à tragédia que representou a descolonização portuguesa, quer para Portugal, quer para Angola, quer para os portugueses, quer para angolanos, e, também contigo, denunciar a rapina profunda de que Angola foi vítima por parte de insuspeitos amigos de Peniche, em terra e nos mares e o racismo e ódio aos negros que vi daqueles de quem eu esperava a solidariedade.

Não estou de acordo e penso que também tu não estás, é acerca das dúvidas sobre a madrugada de Abril. Tão bem ou melhor que eu, sabes da inevitabilidade das perdas quando acontecem mudanças sociais e políticas como as que aconteceram então, agravadas ainda pelo prolongamento da situação anterior, muito para além do que era esperável e necessário.

Um grande abraço
José Brás
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Notas de CV:

(*) José Brás foi Fur Mil na CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68. É autor do romance "Vindimas no Capim", Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.

(**) José Belo foi Alf Mil Inf na CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente é Cap Inf Ref e vive na Suécia.

(***) Vd. poste de 16 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5660: Da Suécia com saudade (16): Algumas considerações sobre a descolonização (José Belo)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5042: (Ex)citações (49): Réplica ao camarada José Belo (António Matos)

Guiné 63/74 - P5664: Banco do Afecto contra a Solidão (9): Humberto Duarte, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER, BCAÇ 4514/72, 1973/74, trava o seu último combate (2) (Ana Duarte)



1. Recebi hoje, com pedido de publicação, da Ana Duarte, esposa do nosso Camarada Humberto Duarte, ex-Furriel Miliciano do BCAÇ 4514/72, 1973/74, a seguinte mensagem:



Coragem e Dignidade

Magalhães,

A ti só tenho que agradecer, conseguistes uma coisa que vários militares, ainda no activo me diziam ser impossível, honras militares feitas por Op Esp.

Agradeço também ao Pedro Neves e a outros Amigos que souberam do que se está a passar por telefone e ou vieram cá a casa ou telefonaram. O Filipe O.E., que fez o curso em Mafra com o Humberto, está nos Açores e já falaram, e choraram ao telefone, comigo a fazer de ponte. Alguns ex-combatentes que não nos conhecem, enviaram e-mails de solidariedade, houve até quem me telefonasse e alguém que enviou uma música linda!

A todos esses o nosso muito Obrigado. Mas revolta-me ver o Humberto perguntar por este ou aquele, não menciono nomes, e depois ficar magoado porque até agora nada disseram. A maioria são Op Esp e lembro-me sempre de eu dizer tenho mais consideração por qualquer ex-combatente que esteve lá fora fosse qual fosse a sua arma, até o cozinheiro do que tenho por meninos que tiraram o curso de O.E. pós-25 de Abril 74 e só por isso se acham muito importantes.

As pessoa valem pelo que fazem e não pelo que são ou dizem. Percebo que uma pessoa prefira recordar um Amigo como ele era e não quando o físico se está a degradar dia para dia, até consigo aceitar que custe falar directamente com a pessoa, mas nem enviar uma palavra amiga?!

O Humberto tem defeitos como todos, eu mesma tive problemas com ele por causa do seu stress mas tem uma Dignidade e uma Coragem que muitos nunca vão ter.

Peço que todos os que não tiveram coragem de dizer sequer uma palavra por e-mail, que na despedida não venham com palavrinhas mansas para mim e muito menos no dia 10 de Junho.

Não sou uma ex-combatente, nunca fui nem queria ser militar, sou uma entornada de Moçambique com muito mais coragem e dignidade que muitos.

Se quiseres podes publicar este desabafo no teu site e mais onde quiseres, porque o que eu digo, faço-o na cara das pessoas e não por trás.

Um abraço grande de Ana e Humberto.

P.S: Eu tinha escrito "gostava que publicasses isto no teu site" mas o Humberto pediu para pôr "se quiseres". Um pedido dele é uma ordem para mim.



2. Às 13h15, respondi assim à Ana e ao Humberto Duarte:



Coragem e Dignidade - RESPOSTA

Bom dia Amiga Aninhas e Amigo e Camarada Humberto,

Não só vou colocar nos blogues, como vou enviar este e-mail àquele pessoal de quem tenho contactos.

Também tenho um bloguesito dedicado aos RANGERS na net:


Basta clicares duas vezes sobre o endereço indicado e vais lá directamente.

Da vossa coragem conjunta não tenho palavras para definir.

Peço-vos que mandeis os nomes do pessoal com quem o Humberto gostava de falar, pois de muitos não tenho qualquer contacto, mas vou tentar arranjar.

É bem provável que muita malta ainda não saiba da situação de saúde do Duarte.

Um beijo para ti Aninhas e um abração Amigão para o RANGER Humberto.

P.S. - Amanhã ligo-vos ok!



3. Às 13h37, tive que complementar o meu anterior e-mail, para repor uma verdade inequívoca:



Coragem e Dignidade - RESPOSTA

Mais uma vez Bom dia, Amiga Aninhas e Amigo e Camarada Humberto Duarte,

Peço desculpa mas, nas pressas de ir colocar a vossa mensagem nos blogues, deixei por esclarecer um facto fundamental.

O seu a seu dono deve pertencer!

Por favor não digas que fui eu que consegui as cerimónias militares de Op Esp, mas sim pelo menos a 3 pessoas, com maior ou menor grau de responsabilidade na imediata e inequívoca decisão desta prestação.

Um foi o nosso bom amigo comum, o Sr. Coronel António Feijó, que sei, logo que soube do estado de saúde do HD, se apressou a enviar um reforço solidário do vosso pedido ao Exmo. Sr. Comandante do CTOE.

Depois a resposta imediata e afirmativa, do Exmo. Sr. 2º Comandante do CTOE, TCOR Valdemar Lima, que tenho a certeza absoluta, em pleno acordo e anuência com o Exmo. Sr. Comandante do CTOE.

Deixo aqui um grande abraço AMIGO para estes três HOMENS.

Por motivos óbvios, envio este e-mail com conhecimento a todos os meus contactos a quem havia enviado o anterior e-mail.

Para vós, mais um beijo para ti Aninhas e outro abração Amigão para o RANGER Humberto



Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.

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Notas de M.R.:

Guiné 63/74 - P5663: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (4): Os últimos preparativos (Pepito)













Fotos: ©  Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2009). Direitos reservados




1. Mensagem de hoje, do nosso amigo Pepito:

Luís


Seguem as ultimas fotos dos preparativos para a inauguração do Museu de Guiledje.

A – CAPELA:

Já está concluída a sua construção. Será inaugurada no dia 20 de Janeiro de 2010 pela esposa do Capitão José Neto, Srª Júlia Neto [ue parte hoje para Bissau]. Recordamos que foi o Capitão Neto que teve a iniciativa e promoveu a construção da Capela, aquando da sua estadia em Guiledje [, na altura a exercer funções de 1º Sargento da CART 1613, 1967/68]. O Bispo de Bafatá, D. Pedro Zili, estará presente e dirá missa nessa ocasião.

B - MUSEU:

Com a importante colaboração da Fundação Mário Soares, o Museu está ganhando forma podendo-se ver o painel que ficará no fundo do diorama, dois computadores com toda a História existente de Guiledje (Honório Correia e Domingos Fonseca trabalhando na sua configuração como apoio do Victor Santos,  da Fundação Mário Soares) e um dos vários painéis que serão fixados nas paredes.

C – SINALIZAÇÃO:

Na parte exterior do Museu, vários motivos de visita estão devidamente assinalados: a capela, a mesquita, o obus e a pista de helicópteros.(*)

abraço

pepito
 
2. Mensagem do Pepito de 12 do corrente:
 
Luis


Obrigado pelas fotos formidaveis do Luis Guerreiro.

Não te preocupes com a representação do nosso Blogue. Ou Xico [Allen] se cá estiver, ou a mulher do Capitão Neto, estarão presentes.

Quanto ao discurso já não há espaço (como te disse desta vez não é uma iniciativa só da AD mas inclui o Governo e os oradores já estão definidos por eles, porque se trata de uma cerimónia oficial. Já não podemos alterar). Competirá à Julia Neto fazer a inauguração da Capela em nome do marido e do Blogue que teve um papel determinante.

abraços

pepito
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Nota de L. G.:
 
(*) Vd. último poste da série > 17 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5662: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (3): Algumas fotos do João Graça

Guiné 63/74 - P5662: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (3): Algumas fotos do João Graça













Guimé-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 10 de Dezembro de 2009 > c. 17h30/18h00 >  Fotos do médico João Graça, no regresso a Bissau, depois de seis dias em Iemberém...Guileje, a 18 km de Faro Sadjuma e a 36 de Iemberém,  é agora  uma terra de paz, onde os miúdos jogam à bola e onde está instalado um núcleo museológico que vai ser, a 20 de Janeiro de 2010 - Dia de Amílcar Cabral - ser oficialmente inaugurado, com a presença do Governo guineense... A antiga população de Guileje, da época da retirada em 22 de Maio de 1973, vive hoje em Mejo, a noroeste. Mas há já um pequeno núcleo habitacional em Guileje. Toda a região do Cantanhez pode vir a tornar-se um polo de desenvolvimento, a partir do ecoturismo.

Devido à hora tardia (o João levou 10 horas a chegar a Bissau, devido a avaria mecânica no jipe da AD, conduzido pelo Antero), já não houve tempo para visitas à Capela e ao Núcleo Museológico.  No exterior (vd. fotos acima) há equipamento militar usado tanto pelo PAIGC (anti-aérea quádrupla) como pelas NT (o famoso burrinho, o Unimog 411). (*) (LG)

Fotos: © João Graça (2010). Direitos reservados

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Nota de L.G.:

(*) 12 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5633: Núcleo museológico Memória de Guiledje (2): Inauguração no próximo dia 20 de Janeiro, com a Júlia Neto a representar o nosso blogue

sábado, 16 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5661: FAP (44): Aerocross (Miguel Pessoa, Cor Pilav Ref)


1. Mensagem do nosso Camarada Miguel Pessoa, Cor Pilav Ref (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74), com data de 12 de Janeiro:

Camaradas,

Fui encontrar no meu "baú dos tesourinhos deprimentes", esta pérola que escrevi há já uns meses e que ponho agora à vossa disposição. Ando a dosear bastante o envio dos meus "escritos", pois já não tenho muitos...

E faltando-me a memória para relembrar factos ocorridos há tanto tempo, também já não tenho imaginação para tentar reconstruir outros, que pudessem aproximar-se razoavelmente da realidade... Por isso, para já, terão que se contentar com esta estória, como agora se diz.

AEROCROSS

De vez em quando os aviadores da BA12 eram solicitados para missões que, por fugirem à rotina da actividade diária, eram sempre bem recebidas. Apareceu um dia um pedido de transporte de jornalistas estrangeiros para uma visita a Varela, no âmbito das "operações de charme" que o regime organizava periodicamente.

Um dos problemas apresentados era o de que a pista de Varela estava há bastante tempo desactivada - talvez porque se encontrava localizada a uma certa distância do aquartelamento e isso implicasse um empenhamento exagerado das nossas tropas na protecção aos aviões, quando ali se deslocavam.

Mas, dado o interesse em avançar com esta deslocação, foi considerado importante reabrir a pista, pelo menos para permitir a execução daquela missão. Sabia-se pouca coisa das condições do aeródromo naquele momento, pelo que o piloto teria que fazer uma prospecção cuidadosa da área de aterragem, antes de ali pousar.

Dado o número de jornalistas envolvidos, houve necessidade de se programar a ida de dois DO-27, tendo sido designados dois pilotos para esse fim - um Furriel já batido no território e um tenente ainda em princípio de comissão - eu... Já não me lembro como me calhou ir nesta missão, mas desconfio. Sucede que era eu quem indicava os pilotos da Esquadra para as missões que estavam programadas e certamente aproveitei para me nomear a mim mesmo para este trabalho, na perspectiva de aprender mais qualquer coisa e ganhar experiência.

A esta distância, parece-me que ultrapassei os limites do razoável ao meter-me nesta cena, pois não se sabia o que iríamos encontrar no terreno. A tal prospecção cuidadosa da área de aterragem era pouco praticável dado que o capim elevado não deixava ver o chão e não sabíamos se haveria obstáculos no terreno, como paus ou pedras, ou irregularidades que pudessem provocar um desequilíbrio repentino do avião durante a sua progressão, ou até o seu capotamento. E desconheço se o pessoal do aquartelamento terá analisado o local.

Tem-se por norma que no transporte de altas entidades ou de pessoal estranho à Força Aérea (que nos importa tratar bem) as regras de segurança são ainda mais rígidas que o normal. Não sei bem os antecedentes desta missão, mas não me parece que tenha sido este o caso, porque à descolagem ainda não sabíamos bem o que iríamos encontrar.

Sei que, à chegada ao local, depois de termos solicitado ao aquartelamento que montasse a segurança aos aviões junto à pista, ficou assente que um dos pilotos faria uma aterragem cuidadosa e só depois aterraria o outro avião.

Foi decidido (?) então que eu faria essa aproximação inicial. Parece-me que terá havido aqui uma passagem da batata quente feita de modo perfeito pelo outro piloto e o periquito viu-se com o menino (ou os jornalistas) nos braços e avançou destemidamente. Destemidamente é uma maneira de dizer. O facto é que arrisquei mais do que devia pois, para além dos eventuais obstáculos, que já referi, nem sabíamos se teriam colocado alguma mina naquela zona.

Pese embora os meus receios, a aterragem até foi perfeita e o capim ajudou mesmo o avião a travar a corrida de aterragem. Vendo o êxito da manobra o outro piloto avançou e aterrou a seguir, estacionando o avião ao lado do meu.A missão não tem muito mais a referir, pois o regresso decorreu sem problemas de maior, com uma descolagem normal de Varela, na tarde do mesmo dia (depois de termos verificado melhor as condições do terreno...).

Não pretendo aqui questionar as decisões tomadas a nível superior, porque não tinha conhecimento à data, nem tive depois, dos factores que foram tomados em linha de conta. Por outro lado, há muitos aspectos desta missão que começam a ficar esbatidos na minha memória. Porém, penso que no meu caso pessoal deveria ter tomado maiores precauções (claro! - mas quais?...).

Suponho que, afinal, muitos passaram por situações semelhantes. Quantas vezes nos encontrámos nós em situações em que sentíamos dificuldade em questionar as decisões tomadas a nível superior, quando já estávamos metidos numa engrenagem que nos arrastava e levava a situações para as quais muitas vezes já não tínhamos fuga possível e apenas nos restava avançar?

Um abraço,
Miguel Pessoa
Cor Pilav Ref

Foto: © Wikipédia, Enciclopédia livre - Exemplar em exposição no Museu do Ar (Polo de Sintra). Direitos reservados.

Emblema da BA12: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.

Emblemas do Esquadrão 121 Tigres Fiat G91 e GO1201: © Miguel Pessoa (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P5660: Da Suécia com saudade (18): Algumas considerações sobre a descolonização (José Belo)


1. Texto de José Belo (**), ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia, com data de 30 de Dezembro de 2009:


Algumas considerações sobre a descolonização

Caros Amigos e Camaradas,

Com as nostalgias de "fim do Ano" dediquei algumas horas à leitura de postes antigos da Tabanca Grande. Verifiquei que alguns assuntos serviram para muito interessantes contribuições e debates, com elevado número de comentários.

São exemplos: (i) A sorte reservada a muitos dos guinéus que lutaram ao nosso lado; ii) a guerra colonial, militarmente perdida, ou não; (iii) declarações menos correctas, e mesmo ofensivas, por parte de um senhor jornalista, e de um senhor general; (iv) afirmações menos verdadeiras feitas por um dos escritores mais importantes da literatura contemporânea portuguesa; (v) a forma como a descolonização foi efectuada por aqueles que, então, tinham responsabilidades de governo, tanto a nível civil como militar.

Pelas dramáticas consequências, não só para Portugal nos milhares de refugiados, como para os novos países que, de imediato, se viram envolvidos em sangrentos conflitos internos, será, numa perspectiva de análise histórica futura, a descolonização, na sua forma e resultados, assunto de muito, e aprofundado, estudo. Talvez com menos "compreensão" para com alguns dos responsáveis.

Duvidar da necessidade da descolonização no novo Portugal democrático? De modo algum. Mas daí a exibir vangloriado orgulho na "descolonização exemplar"... “Exemplar" para quem? "Exemplar" em quê? Dos políticos que a dirigiram? Dirigiram? De alguns militares bem dignos de um exército castrado pela realidade salazarista?

Seria a única possível, perante todos os entraves e sabotagens de forças reaccionárias? Da conjuntura internacional? De generais neo-colonialistas? Talvez!

Foi verdadeira coroa de glória final da política africana do Estado Novo. Os que vieram das "Franças", dos exílios, nos primeiros "comboios de Abril", regressavam de outras "lutas", de outras realidades, e, porque não dizê-lo, agora que os anos vão passando… retirando as máscaras (?!) de outros... interesses!

Não menosprezo essas lutas do exílio. Foram bem duras... para alguns. Mas nós, nós, os que mexemos na merda com ambas as mãos, os que com ela bochechámos nas bolanhas, picadas e matas. Nós, os que literalmente CARREGÁMOS OS NOSSOS MORTOS... nós devíamos ter exigido mais.

Em respeito!
Em remorso!
Em dignidade!

E hoje? Hoje, nas estatísticas da guerra, nos números dos computadores, nas tiradas brilhantes de políticos em análises de ataque (ou defesa), nos filmes... já tão "antigos", nos estropiados que evitamos olhar nos olhos... tudo se vai tornando mancha uniforme, esbatida, muito convenientemente esbatida.

Aqueles heróis de vinte anos que, geração após geração, foram LEVADOS para as colónias em verdadeira oferta de sacrifício a interesses que em nada eram os seus, cumpriam o melhor que sabiam às ordens dos senhores oficiais, que, por sua vez, as recebiam dos senhores políticos. Mas não andariam alguns destes "Senhores" mais preocupados com questões de pruridos profissionais, quanto a purezas de educação académica e a honrarias de promoções?

Pergunta menos conveniente e muito esquecida, pela simples razão de que a incrível pressão popular no próprio 25 de Abril e semanas sucessivas, terem TRANSFORMADO as realidades subjacentes às verdadeiras origens, e razões do "pronunciamento militar" obrigando a muitos a acertar a passada... imposta pela vontade popular.

Deveríamos ter, há muito, saído (MILITARMENTE) de África. E qualquer leitura apressada da História o demonstrava. Mas, e apesar de dezenas de anos de criminosa e estúpida política fascista, não teria sido Abril a oportunidade de sairmos de cabeça levantada, terminando com dignidade e assumindo as nossas responsabilidades históricas?

Mas muitos dos senhores responsáveis de então, estavam demasiadamente ocupados nos seus "golpes de rins", para uma nova... opção de classe (como soía dizer-se!), e em leituras muito atrasadas de educação política avançada. Não houve mesmo alguns militares que pretendiam "criar" o partido da classe operária... o "verdadeiro"?!

Toda esta ocupação libertadora (com a condição absoluta de serem eles os libertadores), acabou por levar ao esquecimento de alguns conceitos (burgueses?) de honra e respeito pelos seus mortos. Terá sido profundo sentimento de culpa (de má consciência por parte de alguns), que terá levado a extremos de procedimento, vis-a-vis ex-inimigos, de outro modo inexplicáveis?

Com o passar das décadas tantas perguntas vão surgindo. Muitas delas, já de tal modo fora dos contextos, que se tornam, mais e mais, subjectivas. Será que, em vez de agradecermos a madrugada de Abril, vamos "freudianamente" acabar por... matá-la?

Estocolmo, 30/Dez/09
José Belo

Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 – P5659: Estórias do Tomás Carneiro (1): De Binta a Jugudul


1. Mensagem de Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745/73 - Águias de Binta, (Binta, Cumeré e Farim – 1973/74), nosso Camarada que vive nos Açores, com data de 13 de Janeiro:

Olá saudosos Amigos e Camaradas,

Oxalá estejam todos bem é o que eu espero. Por cá vou-me safando, a ler alguma coisa da nossa passagem pela guerra na Guine.

Hoje vou escrever uma estoriazinha sobre o que por lá passei.


De Binta a Jugudul


Fiz parte da CCaç 4745, que esteve sediada em Binta, desde 21de Agosto a 27 de Outubro de 1973. Naqueles 3 meses passamos algumas situações de risco.

Eu como condutor só as passei pelo perigo nas “auto-estradas”, mas os meus camaradas “de mato”, podem contar muitas outras bem mais terríveis, que eu, felizmente, não passei.

A CCaç 4745 fez algumas colunas Binta/Farim/Binta, para efectuar reabastecimentos e fomos, várias vezes, ao encontro de colunas que vinham de Guidage, também para reabastecer.

Estas operações eram bastante problemáticas, porque para conduzir no meio da lama toda, atolados aqui, atolados acolá, obrigando-nos a passar os guinchos de uns carros para os outros para nos safarmos, além de moroso, era extremamente exaustivo.

Lembro-me que da 1ª vez que fomos fazer um reabastecimento a Guidage e passámos no Cufeu, eu fiquei doido com o que lá vi, nomeadamente a terra esburacada, a vegetação queimada e o estranho cheiro correspondente entre vários destroços de viaturas emboscadas por fogo IN.

Eu não sabia o que se tinha ali passado antes de chegarmos a Binta, mas jamais esquecerei que, no momento, pensei: ”Esta merda é mesmo guerra!”

Depois de passado este local, ficámos a aguardar a chegada dos nossos Camaradas de Guidage, fazendo segurança à “auto-estrada” Binta/Guidage e, passado algum tempo, apareceu-nos o Alf Mil Ávila (que penso ser natural de S. Jorge).

Quando ele chegou eu estava junto de um atirador e junto dele, no chão, estava uma granada de morteiro 60 mm.
Pergunta-me o alferes: - Oh Sousa quem é que deixou esta p... aqui no chão?

Respondi-lhe: - Não fui eu, porque nem sei isso o que é (brinquei com ele).
Disse-me ele novamente: “Isso é serio.”

Depois chegou-se a uma conclusão que era uma granada não deflagrada, do célebre ataque a Guidage em Maio de 1973.

Uma parte do que queria escrever sobre a estadia em Binta, já o fiz em anteriores postes, logo a seguir ao formidável encontro da Tabanca Grande, em Junho de 2009 na Ortigosa.

No poste P5490, está a foto do meu inesquecível e grande Amigo, o 1º Cabo Condutor Jacinto Custódio falecido devido a ferimentos causados por uma mina A/C, no dia 24 de Setembro quando seguíamos de Binta para Farim e que jamais esquecerei.

Em fins de Outubro, princípios de Novembro de 1973, fomos transferidos para um quartel novo, que se situava entre o Jugudul e Porto Gole, numa altura em que estava a ser construída uma estrada entre Jugudul e Bambadinca e a cujas obras fizemos segurança. Nesta mudança, esperámos por alguém que nos viria acompanhar e quem devia ser esse algiuém? Nada mais, nada menos, do que os-meus companheiros e amigos “Os Gringos do Guileje”.

Foi uma alegria tão grande encontrá-los 3 meses depois de partimos de Binta. Eles, os Gringos, diziam que a estrada entre o K3 e Mansoa, era bastante perigosa, submetida a inúmeras emboscadas e golpes de mão sobre as NT, que tinham sofrido várias baixas e algumas perdas de militares (apanhados pelo IN “à mão”).

A partir daí viajamos sempre com o credo na boca, não fosse o diabo tecê-las, mas, felizmente, nada de anormal ocorreu durante aquela mudança e chegamos a Jugudul ao fim da tarde, sem qualquer problema.

Passamos a primeira noite dentro do quartel, mas tivemos que preparar os nossos aposentos recorrendo ao habitual “desenrascanço” individual. Nós, os da “ferrugem”, safámo-nos da melhor maneira possível com as cobertas das viaturas e deu certo.

Por hoje é tudo. Brevemente, contarei mais algumas estórias, mas tenho que vasculhar o meu “disco rígido”.

Um Abraço desde o meio do Atlântico,
Tomás Carneiro
1º Cabo Cond CCAÇ 4745

Foto: © Tomás Carneiro (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Este é o primeiro poste desta série.

Guiné 63/74 - P5658: O Nosso Livro de Visitas (81): António Marquês, ex-Fur Mil da CCAÇ 4810 (Moçambique), comenta o nosso Blogue e dá-nos conta dos seus contactos com pessoas ligadas à Guiné-Bissau


1. Mensagem de António Marquês, ex-Fur Mil da CCAÇ 4810 (Moçambique, 197274), com data de 15 de Janeiro de 2010:

Carlos Vinhal,

Sou o António Marquês do "post" 5199 do "Luis Graça & Camaradas..."*, que te está a escrever para vos dar, mais uma vez, os parabéns pelo Blog. Apesar de ter estado, como vos tinha dito, em Moçambique, quase diariamente vou espreitar para o vosso blog, mas esta semana abusei.
 
Estive a ler todo o "dossié" sobre Guileje, e, por mais que não fosse, só por isto o "Luis Graça ..." é fundamental na "blogosfera".
 
Já tinha lido um pouco sobre o tema aqui há uns anos atrás, mas com todos os contributos postados no v/ blog fiquei elucidado, porque foram os próprios actores a dizerem de sua justiça. Por isso nunca é demais todos os obrigados que vos sejam dirigidos.

Agora duas curiosidades: acabei há minutos de falar ao telefone com o governador da região de Tombali, onde se situa, como saberás melhor que eu, Guileje, o meu amigo e ex-Furriel Atirador do mesmo Batalhão (mas de uma Companhia operacional) Adriano Gomes Ferreira, mais conhecido por "Atchutchi".
 
Quando vem a Portugal (o que aconteceu muitas vezes quando foi o director dos estaleiros da Guinave e vinha duas ou três vezes por ano aqui à Lisnave) vem quase sempre aqui ao Seixal, apesar de há cerca de 2 meses, no regresso de Roma onde foi ao Vaticano receber um prémio, ter falhado. Falámos apenas ao telefone.
Claro que há pouco me falou do Museu de Guileje e da sua inauguração no dia 20. Diz que o Pepito é extraordinário e falou-me também desse "rapaz", o Luis Graça.
A título de curiosidade, digo-te que ele desertou para a FRELIMO em Janeiro de 1974, tendo feito os últimos meses da guerra do outro lado.
A outra curiosidade é que ontem fui almoçar com o João Tunes, o homem do "Água Lisa" e membro das hostes da Guiné. Somos aqui vizinhos e ontem lá nos conhecemos pessoalmente. Foi um dia porreiro.

Vou ficar por aqui. Recebe um abraço do
António Marquês, com votos de um bom ano e muita saúde para continuarem com essa tarefa meritória que é o v/blog.


2. Mensagem de resposta enviada ao António Marquês:

Caro Marquês

É sempre com uma pontinha de vaidade que sabemos ser lidos por camaradas de outros TOs.
Se o Blogue trata em exclusividade da história da guerra colonial na Guiné e aos seus ex-combatentes é dedicado, não somos insensíveis às críticas e opiniões nos nossos camaradas de Angola e Moçambique.
Nada nos diferencia a não ser as características próprias dos territórios e dos grupos de libertação. Somos ex-combatentes da mesma guerra e vítimas do mesmo regime.

Muito obrigado pelas tuas informações curiosas que se não te importas vou publicar.
Se não te importares também, vou anexar-te à nossa lista de amigos.

Recebe um abraço do teu camarada
Carlos Vinhal


3. Ainda uma mensagem de hoje de António Marquês:

Carlos Vinhal,

Claro que não me importo, antes pelo contrário é com muita satisfação, de fazer parte dessa lista de camaradas agregados à volta da Tabanca. Muito obrigado.
É como tu dizes, fomos todos vítimas do mesmo regime.
Também a título de curiosidade, e no caso de necessitarem de algum contacto com o Adriano, para alguma urgência relacionada com o Museu, e sem lhe pedir autorização (porque não será preciso), aqui vai o telefone: (...).

Mais uma vez um abraço fraterno, com votos de um bom ano, do
António Marquês
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5199: O Nosso Livro de Visitas (69): António Marquês, ex-Fur Mil da CCAÇ 4810 (Moçambique, 1972/74)

Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5629: O Nosso Livro de Visitas (80): Aluna do 2º ano do curso de jornalismo procura ex-combatentes para entrevistar (Cátia Bruno)

Guiné 63/74 - P5657: Notas de leitura (55): No Regresso Vinham Todos, de Vasco Lourenço (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai a recensão do livro organizado pelo Vasco Lourenço.
Agora vou começar a ler as obras do Armor Pires da Mota, tenho uma grande tarefa pela frente.

Consola-me a surpresa que nos vai trazer este combatente escritor.

Um abraço do
Mário



Antes suar que verter sangue
(ou o desejo permanente de um feliz regresso)

por Beja Santos


No Regresso Vinham Todos é o relato da CCAÇ n.º 2549 contado pelo seu Comandante, Vasco Lourenço, um dos Capitães de Abril, um acervo de memórias de oficiais e sargentos que nos falam singelamente das suas emoções, medos, desenrascanços, tiroteios, descobertas culturais, ausências de toda a espécie. É um testemunho encadeado de estados de alma a várias vozes. 

A maior alegria que perpassa por todo o texto é que regressaram todos, a despeito de todas as contrariedades, sofrimentos e inquietações. Sobretudo em Cuntima, bem ao pé do Senegal, o pessoal da CCAÇ n.º 2549 combateu, construiu, ensinou a ler e a escrever que lá ficou.

Chegaram à Guiné em 25 de Julho de 1969, dias depois partiram de Brá em LDG para Farim e depois Cuntima. Foram praxados, periquito sofre. Segue-se o baptismo de fogo, gente meio estremunhada salta para os abrigos sem saber muito bem como foguear, dando vazão à corda dos nervos. Muitas mais flagelações vieram. Depois atacam-se objectivos, o inimigo bate em retirada, destroem-se casas de mato e apreende-se algum material. Fazem-se emboscadas bem perto da fronteira ou nos corredores por onde o inimigo se infiltra, a caminho dos santuários. Por vezes há equívocos, os pelotões andam às voltas à procura da boa direcção. Aprende-se o que a guerra tem para nos ensinar: os ataques de formigas, a sede, a saudade de uma sopa bem-feita, a nostalgia da noite da Consoada, as piadas carnavalescas, as aflições das emboscadas, a fazer hortas de onde não saem legumes mas onde se pode enterrar garrafas que estão frescas à hora das refeições. 

Alguns dos contadores são imaginativos. Um deles decide contar uma história aos netos, do género: “Pois já que tanto insistis, hoje vou contar-vos uma passagem que vivi na Guiné. O que ides ouvir é o pouco que recordo com saudades do muito que vive e sofri. Quando estava em Cuntima, povoação fronteiriça do Norte da província, habitei durante dez meses no Tosco. Ora, o que era o tosco?, perguntais vós. Era um abrigo aí com as dimensões da vossa salita de estar, um cubículo onde vivia o vosso avô com mais quatro camaradas. O abrigo era feito de grandes troncos de árvore, daquelas árvores gigantescas e muito rijas que há em toda a África. Eram troncos dos lados e troncos por cima. Estava cavado no solo a uns metros de profundidade e interiormente forrado com panos de tenda, ponches e esteiras de palha feitas pelos nativos... o abrigo enchia-se sempre que havia ataque, pois a messe de sargentos e cantina do soldado eram ali próximo. Ao primeiro rebentamento, todos tentavam alcançar o abrigo o mais rápido possível...”

A CCAÇ n.º 2549 teve muito orgulho em ver crescer a nova tabanca de Cuntima: ”Durante todo o mês de Maio e meados de Junho de 1970, todas as casas estavam construídas, primeira fase uma obra que se seguiria com o reboco exterior e interior das paredes e varandas com cimento e caiação... Quando saímos de Cuntima em coluna, olhámos para trás e vimos os raios solares reflectidos no zinco das casas da nova tabanca, como um espelho, como símbolo da nossa acção em terras da Guiné”.

Depois partiram para Nema, a comissão caminha para o fim, fala-se de amores com nativas, há muita inquietação pela vida que se vai retomar. Há também estórias soltas daquele soldado que se dizia filho único, esquecia-se de incluir o irmão vagabundo e a irmã surda-muda, o soldado Ribeiro considerava-se o amparo dos seus pais. 

E Vasco Lourenço despede-se deste singelo relato assim: “Regressou-se. Fizeram-se variadíssimos roncos, quer em baixas infligidas, instalações destruídas, meios de vida destruídos e inimigo material capturados. Mas para nós o ronco mais desejado fora atingido. No regresso vinham todos os que tinham partido e sem qualquer desaire a lamentar.”

Estamos em crer que não deve haver alegria maior do que todas estas vidas preservadas.



Vasco Lourenço, alguns dos seus alferes e outros oficiais a caminho da Guiné. Um bonito apontamento da viagem da partida de onde regressaram todos: fardas imaculadas, tecido ainda por lavar, sorrisos despreocupados

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5650: Notas de leitura (54): Guiné 1968 e 1973 Soldados uma vez, sempre soldados!, de Nuno Mira Vaz (Beja Santos)