sábado, 10 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19180: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte L: Viagens pelo rio Cacheu em sintex: abril de 1968 e janeiro de 1969


Foto nº 55 > Viagem de sintex, no rio Cacheu, janeiro de 1969 > O piloto, e à esquerda o Alferes Gatinho, da CART 1744 que estava em São Domingos.


Foto nº 53 > O barco deixando um rasto para trás de água remexida, o nosso Cabo Piloto (não sei o nome dele, mesmo viajando várias vezes com ele).  


Foto nº 54 > Fomos Rio Cacheu abaixo até à sua Foz.


Foto nº 52 > Eu, Virgílio Teixeira, bebendo uma cerveja Sagres, possivelmente bem quente.


Foto nº 51 A > Vista parcial da cidade de Cacheu


Foto nº 51 B > Vista parcial da cidade de Cacheu


Foto nº 51 C > Vista parcial da cidade de Cacheu


Foto nº 51 > Vistas do Cacheu na saída da cidade, é visível que já tem algumas infra-estruturas, como o cais acostável para barcos de pequeno e médio porte, equipado com guindastes e armazéns.


Foto nº 4 > Continuando a viagem e numa posição de eventual fogo...Viagem de sintex de São Domingos - Cacheu, abril de 1968.


Foto nº 6 > Outra perspectiva do rio mais largo, mas ao fundo vai afunilar.


Foto nº 5 > Uma vista do rio que vai entrar numa faixa muito estreita.


Foto nº 2 > O piloto do sintex a descobrir as passagens dos rios. Eu, em primeiro plano, fumando um cigarro.


Foto nº 1 > O sintex  a caminho do Cacheu. Eu, no meio, entre dois soldados operacionais.


Foto nº 3 > Eu, sentado na beira do barco, já de calções de banho.


Foto nº 7 > Aproximação cais da cidade do Cacheu

Foto nº 7A > Aproximação cais da cidade do Cacheu


Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) (*)


CTIG - Guiné 1967/69 - Álbum de Temas:

VIAGENS PELO RIO NOS PEQUENOS BARCOS SINTEX

T803 – DE SÃO DOMINGOS AO CACHEU NO SINTEX



ADVERTÊNCIA:

Foi editado neste Blogue, em Janeiro de 2018, um tema controverso, e também dúbio para mim, sob a designação: “Perdidos no Rio”. (**)

Havia algo que não batia certo, comparando as fotos, umas a preto e branco e outras que eram slides a cores, bem como as pessoas envolvidas, as datas, pelo que procurei nas minhas escrituras o que se passava, falei com outros camaradas, e a estória estava mal contada, com uma grande baralhada.

Por isso chamo a atenção que algumas das fotos aqui presentes, podem já ter sido editadas no Poste original, por isso as minhas desculpas pela repetição, mas agora o Tema já está organizado.

Fiz um trabalho de reorganização de todas as fotos e slides, pois afinal tinha fotos de viagens ao Cacheu, uma viagem a Varela e outra viagem a Susana, que foi nesta última que nos perdemos dois dias nos rios, braços de rios, e aldeias perdidas no cú de judas.

Vou reproduzir neste Tema – Viagens pelo rio, nos pequenos barcos Sintex - duas de várias viagens efectuadas ao “Aquartelamento” do Cacheu, sendo uma em Abril de 68 e outra em Janeiro de 1969.

O conjunto total dos 3 Temas é:

T801 – De São Domingos a Varela no Sintex

T802 – De São Domingos a Susana no Sintex

T803 – De São Domingos ao Quartel do Cacheu no Sintex


I - Anotações e Introdução ao tema:

Estas viagens eram autorizadas sempre pelo 1º Comandante do Batalhão, quando a iniciativa partia da minha parte, para tratar de assuntos relativos à minha especialidade.

Outras vezes, era nomeado pelo Comando, para comandar a operação, muitas vezes era apenas levantar mantimentos aos outros aquartelamentos, que nos faltavam devido às chuvas, ou ao atraso sistemático dos barcos de reabastecimentos. Era sempre uma operação de ‘Potencial’ risco, e tinha de levar sempre um graduado – normalmente um alferes miliciano.

O barco-banheira, fornecido pela Engenharia denominado Sintex, era em fibra, talvez de vidro, nunca soube, em forma de uma banheira doméstica, em ponto grande, 4 a 5 vezes maior. Era equipada com 2 motores fora de borda, de 50 cavalos cada, funcionando a gasolina.

Não tendo quase equipamentos nenhuns, era de um grande desconforto, tinha umas tábuas de lado a lado para o pessoal se sentar, e que raramente era usado, pois os utentes ou se sentavam na borda do barco, ou deitavam-se no fundo do mesmo, do casco interior, em cima de nada, e dormitando quando era possível. O responsável pelo barco era um Piloto, 1º Cabo de Engenharia, e penso que existiam à volta de 3 a 4 elementos desta especialidade, apesar e só haver um único barco Sintex, que eu me lembre.

Depois tinha de se levar, além de todo o equipamento individual e normal de uma operação, as armas, G3 e carregadores, bem como algumas coisas pessoais, pois podia levar 1,2 e 3 dias ou mais. Fazia parte da guarnição um soldado ou cabo atirador de infantaria, que carregava normalmente uma arma de carregamento de fita, uma MG 60 por exemplo, mais um outro operacional, soldado ou cabo, no total era normalmente uma expedição com 4 homens. Por norma nunca vi qualquer meio de comunicação ou de transmissões, o que era uma chatice quando o piloto se perdia, o que aconteceu pelo menos uma vez comigo.

Os ocupantes levavam a respectiva ração de combate, como era usual nas saídas.

Depois ficava o resto do espaço livre do barco, para carregar os mantimentos e afins, nos regressos da expedição.

Os rios e braços de rio eram muitos, altamente perigosos por natureza, não só devido à Fauna existente nos seus leitos, mas também pelos circuitos de braços de rio facilmente de perder de vista, além do normal perigo de aparecimento de elementos do Inimigo, as suas margens muitas vezes ao alcance de uma granada de mão, e em caso de necessidade de encostar o barco, não era possível, o ‘tarrafo’ das margens não davam possibilidade para desembarcar, só mesmo nos locais já abertos e preparados para esse efeito.

Eram momentos fantásticos, de paisagens e vistas de perder o fôlego, em particular o inesquecível ‘estuário do Rio Cacheu’ ao entrar dentro do Oceano Atlântico. Muito mais largo e imponente do que o existente, o estuário do Tejo em Lisboa.


II – Legendagem das fotos:

A – Viagem feita em Abril de 1968, não tendo possibilidades de saber o dia certo. Este conjunto de fotos foi feito no mesmo dia “Em Abril de 1968, sem data precisa”.

Era uma missão que me agradava imenso, pois ia mudar de ares, conhecer mais e melhor os rios e terreno, os aquartelamentos, os camaradas, as condições de vida da nossa tropa, era um dia entre muitos, diferente dos restantes.

Muitas vezes regressava já de noite, pois às 18 horas era noite cerrada.

As fotos F01 a F07, dizem respeito a uma, de várias vezes, que fiz viagens ao aquartelamento do Cacheu, sendo necessárias julgo que duas horas, para cada sentido.

F01 – Depois de preparado, o barco já está a caminho do Cacheu. Estou no meio de dois homens, soldados operacionais, e todos descontraídos.

F02 – O piloto do barco a descobrir as passagens dos rios. Com algum tempo de viagem, já dá para deitar e fumar um cigarro.

F03 – Sentado na beira do barco, já de calções de banho. Esta era uma situação recorrente, para apanhar sol no corpo todo, fazia-se esta asneira, pois o sol queimava a pele, que o diga o Furriel Pinto, que lhe saiu a pele toda do corpo, porque era muito sensível, com pele muito branca.

F04 – Continuando a viagem e numa posição de eventual fogo. Isto são fotos só para guardar de recordação, pois nenhum perigo se avistava.

F05 – Uma vista do rio que vai entrar numa faixa muito estreita. Pode ver-se nitidamente que vamos entrar em zona já de algum perigo eventual.

F06 – Outra perspectiva de um rio mais largo, mas ao fundo vai afunilar. As imagens são praticamente iguais, mas sempre diferentes a cada curva do rio.

F07 – Finalmente o barco chega ao cais da cidade do Cacheu. É uma cidade do interior já de algum luxo e conforto, comparada com outras bem piores. A cidade do Cacheu é uma das mais importantes da Guiné, tem uma fortificação com alguns canhões apenas para decoração, já não funcionam. Aqui era a sede de agrupamento.

B – Viagem feita em finais de Janeiro de 1969, não tendo possibilidades de saber o dia certo.

Este conjunto de fotos foi feito no mesmo dia “Em finais de Janeiro de 1969, sem data precisa”.

As fotos F51 a F55 respeitam a uma das minhas últimas viagens ao Cacheu, pelo meu ainda algum conhecimento, é a viagem já de regresso, de Cacheu para São Domingos.

F51 – Vistas do Cacheu na saída da cidade, é visível que já tem algumas infra-estruturas, como o cais acostável para barcos de pequeno e médio porte, equipado com guindastes e armazéns.

F52 – O autor, Virgílio Teixeira, bebendo uma cerveja Sagres, possivelmente bem quente.

F53 – O barco deixando um rasto para trás de água remexida, o nosso Cabo Piloto (não sei o nome dele, mesmo viajando várias vezes com ele).

A paisagem é um misto de ‘beleza e o desconhecido’ nunca se sabe quando pode aparecer fogo de um lado ou outro, ou ser levantado por um enorme Hipopótamo ou levar uma pancada da cauda de um enorme crocodilo.

F54 – Fomos Rio Cacheu abaixo até à sua Foz, foi o melhor cruzeiro da minha vida, pois por um lado já apanhávamos o ‘clima’ Atlântico, e depois um enorme Estuário que não foi possível ‘meter’ nesta foto, ver as suas margens de um lado ao outro, inesquecível e impressionante.

O Piloto deve ter tirado a foto, e quem vai a conduzir o barco é outro elemento da guarnição. O estuário já está para trás, já demos a volta e vamos a caminho de São Domingos.

F55 – A última foto da viagem, está o Piloto a pilotar, e o Alferes Gatinho, da CART 1744 que estava em São Domingos. Acabou de dormir uma sesta, e agora apareceu. Fiz algumas viagens com ele, segundo se consta, era o menino bonito do nosso Comandante Saraiva, que nesta data já não estava connosco. Jogavam muito à Lerpa à noite.

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano do SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BCAÇ1933 / RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SET67 a 04AGO69».

NOTA FINAL DO AUTOR:

# As legendas das fotos em cada um dos Temas dos meus álbuns, não são factos cientificamente históricos, por isso podem conter inexactidões, omissões e erros, até grosseiros. Podem ocorrer datas não coincidentes com cada foto, motivos descritos não exactos, locais indicados diferentes do real, acontecimentos e factos não totalmente certos, e outros lapsos não premeditados. Os relatos estão a ser feitos, 50 anos depois dos acontecimentos, com material esquecido no baú das memórias passadas, e o autor baseia-se essencialmente na sua ainda razoável capacidade de memória, em especial a memória visual, mas também com recurso a outras ajudas como a História da Unidade do seu Batalhão, e demais documentos escritos em seu poder. Estas fotos são legendadas de acordo com aquilo que sei, ou julgo que sei, daquilo que presenciei com os meus olhos, e as minhas opiniões, longe de serem ‘Juízos de Valor’ são o meu olhar sobre os acontecimentos, e a forma peculiar de me exprimir. Nada mais. #

Acabadas de legendar, hoje,

Em, 2018-11-06
Virgílio Teixeira
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Notas do editor:



6 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18180: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte VII: Perdidos no rio Cacheu, em maio de 1968 (2)

Guiné 61/74 - P19179: Parabéns a você (1522): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2790 (Guiné, 1970/72) e Jorge Araújo, ex-Fur Mil Op Esp da CART 3494 (Guiné, 1971/74), e nosso coeditor


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Nota do editor

Último poste da série >  9 de novembro de  2018 > Guiné 61/74 - P19176: Parabéns a você (1521): António da Costa Maria, ex-Fur Mil Cav do Esq Rec Fox 2640 (Guiné, 1969/71); António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAÇ 4942/72 (Guiné, 1973/74); Ernesto Ribeiro, ex-1.º Cabo At Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69) e João José Alves Martins, ex-Alf Mil Art do BAC 1 (Guiné, 1967/69)

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19178: Notas de leitura (1119): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (59) (Mário Beja Santos)

Fachada principal do Cineteatro de Bolama

Fotografia de Francisco Nogueira, constante do seu website, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2018:

Queridos amigos,
A partir de 1959, o panorama político da envolvente geográfica alterou-se profundamente, Sekou Touré entrou em fratura com a França, o Senegal caminha a passos largos para a independência, o gerente de Bissau lança o alarme, há já ondas concêntricas de contestação, ainda em surdina. O Governo do BNU em Lisboa quer saber tudo do que se passa, vai uma terminação especial, tudo é para comunicar. E em 5 de agosto de 1959 surge um documento de caráter histórico, é um dos raros testemunhos do que se passou no Pidjiquiti. Agiu a polícia, o Exército apareceu quando a contenda serenara, não há qualquer referência à PIDE, criara-se um ano antes uma minúscula delegação, a partir de agora vai encorpar. Depois daquele banho de sangue, os salários foram aumentados em cerca de 40%. E em 1960 surgem novos focos de agitação, há panfletos lançados pela calada, enviados pelo correio, de várias proveniências. A atmosfera de agitação é indisfarçável. Nada voltará a ser como dantes.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (59)

Beja Santos

Estamos a chegar ao fim da década de 1950, a África Ocidental Francesa circunvizinha está a ganhar independência, as repercussões internas já não se podem disfarçar. Embora modestamente, em 1958 já apareceu uma delegação da PIDE.
O gerente da Filial de Bissau sente-se no dever de enviar informações sobre o que se passa à volta, envia em 13 de julho de 1959 a seguinte carta:
“A situação política dos territórios vizinhos desta Província sofreu grandes modificações. O Senegal, como república autónoma, formou com outras ex-colónias francesas a Federação Mali, ingressando na Comunidade Franco-Africana; a ex-Guiné Francesa tornou-se independente, sendo hoje a República da Guiné e tendo à testa do seu Governo Sekou Touré, que dizem ser um marxista ortodoxo preconizador da União dos Estados Independentes da África.
No Senegal já se deu a africanização dos quadros públicos e fala-se com insistência na sua independência para 1960, embora os chefes políticos mais consagrados, tais como Lamine Guey e Leopold Senghor, considerem isso prematuro.
Na República da Guiné os responsáveis pelo seu futuro mostram-se empenhados em incutir, por todos os meios, no espírito da população, o valor que para eles representa a independência, tendo como principal slogan a exortação ao trabalho, cujo benefício – dizem – reverterá agora para o preto e não para o branco. Entretanto têm chegado a Conacri, capital da Guiné, delegações de vários países da Cortina de Ferro, constando que a Checoslováquia lhe forneceu armamentos.
Este país, que pela sua política e situação geográfica mais nos interessa, pois abrange grande parte da nossa fronteira, vem fazendo através da sua Emissora Nacional, todos os domingos, propaganda subversiva contra a nossa soberania nesta Província. Essas emissões têm sido feitas em crioulo e fula e vêm despertando muito interesse na nossa população indígena que para as escutar tem adquirido apreciável quantidade de receptores, em especial de pilhas secas. A Emissora desta Província passou, ultimamente, também a dar, uma vez por semana, noticiários nas línguas fula e mandinga.
Conacri, nas suas radiodifusões, dizendo que a divisão de raças existente na nossa Guiné foi provocada pelos portugueses apenas com o intuito da exploração económica, aconselha a união das mesmas, incitando-as à revolta colectiva a fim de mais facilmente correrem com os brancos até 1963, prazo que consideram como máximo para a libertação da nossa Guiné. Entre os comentários que têm feito à nossa acção colonizadora, sempre depreciativos e sediciosos, como é óbvio, destacam-se pela insistência com que são repetidos os que se relacionam com o ensino e com o trabalho, tendo até numa das últimas emissões atacado o nosso Banco por não admitir ao seu serviço naturais desta Província, o que é falso e foi prontamente desmentido pela nossa Emissora”.

Logo a 15 de julho, o administrador do BNU ligado aos assuntos da Guiné envia a seguinte mensagem confidencial para Bissau:
“Vem-se verificando que nem sempre os senhores gerentes têm o cuidado de informar o governo do Banco das ocorrências de certa monta que se dão na área da sua Dependência.
Queremos acreditar que em muito isso é devido à convicção de que o ocorrido não é de maior interesse.
Estamos atravessando uma época de evolução satisfatória mas também de convolução perturbadora pelo que temos de acompanhar muito de perto tudo quanto se passa nas nossas províncias ultramarinas. Nestes termos, ainda que a um senhor gerente pareça que determinado facto não deve interessar-nos, convém dar-nos dele imediato conhecimento mais ou menos detalhado, enfim, consoante a importância que o ocorrido lhe possa mostrar.
Chamamos para o assunto a especial atenção dessa gerência”.

E aquela gerência, mal sabia, iria participar com um dos poucos relatos sobre o massacre do Pidjiquiti, logo em 5 de junho, com o título “Informações – Acontecimentos Anormais":

“Levamos ao conhecimento de V. Exas. que anteontem, pelas 15 horas, no cais do Pidjiquiti desta cidade, cerca de 100 marinheiros indígenas – na maioria Manjacos – dos transportes fluviais de algumas empresas, exigindo aumento de salário recusaram-se a trabalhar e impediram os que estavam na disposição de fazê-lo.
Pedida a intervenção das autoridades, segundo consta pela firma António Silva Gouveia, Lda., compareceram no local alguns elementos da Polícia de Segurança Pública e, pouco depois, o Administrador deste Concelho. Enquanto este procurava convencê-los a trabalhar, um dos graduados da polícia, apercebendo-se que um dos marinheiros estava armado de um ferro, tentou tirar-lho usando de meios violentos ante a resistência oferecida. Isto foi o suficiente para que grande parte dos marinheiros se amotinasse e agredisse com remos, pedras e outros objectos contundentes não só o referido graduado, que entretanto empunhara a pistola, como também um seu colega e alguns guardas, ferindo-os e a um com muita gravidade, muito embora a polícia tivesse recuado e fugido mesmo em presença desta primeira reacção inesperada. É de anotar o facto de não terem sequer esboçado qualquer agressão contra o Administrador do Concelho.
Estabeleceu-se então grande confusão, apareceram mais polícias e, sem que saibamos ainda por ordem de quem, estes desataram aos tiros contra os grevistas, encurralados no já referido cais do Pidjiquiti. Esta situação manteve-se durante cerca de uma hora, devido à insubordinação dos trabalhadores indígenas, resultando deste inesperado e desagradável acontecimento a morte de 12 trabalhadores, 15 feridos e a prisão de muitos, poucos sendo os que conseguiram fugir.
Por volta das 16,30 horas, já com a rebelião praticamente dominada, apareceram algumas forças motorizadas do Exército, que se limitaram, com a sua presença, a sossegar o ambiente.
Aparentemente afigura-se-nos que houve precipitação por parte das autoridades em resolver este caso com tamanha violência, pois embora as manifestações raciais comecem em regra por falta do cumprimento dos deveres cívicos, este acontecimento teve origem, julgamos, apenas na reivindicação de aumento de salários.
Até este momento os marinheiros de todas as empresas continuam em greve e os que chegam de viajem abandonam também o trabalho, sendo todavia de destacar que os indígenas da mesma raça, exercendo outras ocupações, inclusive os serviçais domésticos, não se solidarizaram.
A vida da cidade voltou à normalidade, muito embora se sinta que continua alguma intranquilidade por parte da população civilizada.
Traremos V. Exas. ao corrente do que se for passando”.

Em 20 de agosto, o gerente de Bissau volta ao assunto:
“Depois de convencidos pelas autoridades competentes, que usaram de meios pacíficos e suasórios, retomaram o trabalho em 11 do corrente, sem que tenha sido satisfeita qualquer das suas reivindicações, todos os marinheiros indígenas que se encontravam em greve desde o passado dia 3.
Passado todo este desagradável acontecimento e sossegado o ambiente após alguns dias de perturbação e intranquilidade, o Governo da Província fez publicar o seguinte comunicado oficioso:
‘Serenados os espíritos e clarificado o ambiente de natural nervosismo dos primeiros dias deste mês, entende o Governo da Província ser oportuno trazer a público uma palavra de esclarecimento sobre os acontecimentos ocorridos:

1.º – Desde o dia 11 ficou normalizada a situação em Bissau, que havia sido alterada em 3 do corrente, quando os marítimos Manjacos que tripulam as lanchas comerciais resolveram abandonar o trabalho, sob pretexto de exigirem aumento de salários.
Trata-se de um incidente localizado que se circunscreveu apenas aquela tribo, não tendo o movimento alastrado aos empregados dos restantes sectores comerciais e industriais da cidade, nem mesmo aos estivadores, na sua maioria Manjacos, que prestam serviço na Administração do Porto.
Há a deplorar o número de vítimas resultantes da repressão prontamente efectuada na medida adequada à intensidade da investida dos amotinados e lamenta-se que estes tenham recorrido à greve como meio de revelar as suas reivindicações, numa ocasião em que o Governo da Província, por intermédio da Secção Permanente do Conselho do Governo, estava de há tempos procedendo ao estudo do ajustamento dos salários dos trabalhadores indígenas.

2.º – Verifica-se com satisfação que a vida no cais retomou o seu ritmo normal e que cessou a perturbação provocada na economia da Província pela suspensão da actividade comercial portuária, durante uma semana.
Não houve transigências, pois as tripulações regressaram ao trabalho sem quaisquer condições e os responsáveis são punidos nos termos das disposições legais.
A população da cidade, civilizada e indígena, ciente de que em caso de alteração da ordem lhe é garantida a integridade de pessoas e bens, mostrou perfeita confiança nos poderes públicos e na actuação das forças de segurança e militares, cuja missão é manter a paz social interna e defender a nossa soberania contra influências exteriores.
Constitui firme propósito do Governo reprimir todos e quaisquer actos ou atitudes que venham comprometer a tranquilidade das populações’.
Segundo resolução recente das entidades patronais a que pertencem os marinheiros, serão imediatamente aumentados em cerca de 40% os que auferem menor salário, até que sejam reajustados os salários de todos os trabalhadores indígenas, a cujo estudo o Governo da Província está procedendo conforme é dito naquele comunicado”.

Os acontecimentos começam a precipitar-se, doravante uma resma de ofícios confidenciais vai seguir para o BNU em Lisboa com o título “Informações – Acontecimentos Anormais”, logo em fevereiro e março de 1960 o aparecimento de panfletos cujos textos vão ser enviados para Lisboa.
A 21 de fevereiro de 1960, o gerente escreve:  
“Não há dúvida que, ao presente, se vive na Guiné numa atmosfera de preocupações e crê-se que, subterraneamente, se está desenvolvendo junto da massa indígena uma nefasta propaganda contra a nossa presença. Sua Ex.ª o Governador vem de há muito seguindo – e impondo a todos os serviços uma política de paternal tolerância para com os indígenas e procura elevar-lhes um nível de vida e de cultura. Entre essas medidas avulta a de não obrigação de trabalhar. Claro que, mal preparados para compreender o fundo humano e patriótico dessas concessões, o indígena interpreta-as como fraqueza do branco e permite-se atitudes de arrogância e de resistência a toda a espécie de colaboração que noutra Província nunca verificámos.”

(Continua)



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Notas do editor

Poste anterior de 2 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19161: Notas de leitura (1116): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (58) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19177: Notas de leitura (1118): O último livro do nosso camarada António Graça de Abreu, um viajante compulsivo e um escritor multifacetado: "Notícias (extravagantes) de uma volta ao mundo em 98 dias" (Lisboa, Nova Vega, 2018, 126 pp.) (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19177: Notas de leitura (1118): O último livro do nosso camarada António Graça de Abreu, um viajante compulsivo e um escritor multifacetado: "Notícias (extravagantes) de uma volta ao mundo em 98 dias" (Lisboa, Nova Vega, 2018, 126 pp.) (Luís Graça)



Capa e contracapa do último livro do nosso camarada e grã-tabanqueiro António Graça de Abreu, "Notícias (extravagantes) de uma volta ao mundo em 98 dias" (Lisboa: Nova Vega, 2018, 126 pp, il.)



Dedicatória do autor, com admiração e amizade,  à Alice e Luís, "meus bons e velhos amigos desde as viagens estranhas pela Guiné e pelo nosso mundo"... Datado de Estoril, out 2018.






Índice da obra



Um dos cerca de meia centenas de poemas (bizarros) dedicados aos topónimos por onde passou este cruzeiro da volta ao mundo. Neste caso, a Goa, na Índia (pp.122/123)


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O nosso  prezado camarada António Graça de Abreu não precisa de apresentação... Mas relembre-se  aqui alguns tópicos da sua história de vida:

(i) nasceu no Porto, em 1947; escritor, poeta, sinólogo,  com mais de duas dezenas de livros publicados, professor universitário; licenciou-se em Filologia Germânica e é Mestre em História pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa;

(ii) foi alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74);  e da sua experiência militar escreveu um pessoalíssimo e original Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra e Paz, Editores, 2007), de que já publicámos inúmeros
excertos no nosso blogue;

(iii) entre 1977 e 1983 leccionou Língua e Cultura Portuguesa nas Universidades de Pequim e Shanghai;

(iv)  é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro;

(v) é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 220 referências;

(vi) vive no Estoril, concelho de Cascais, Portugal, quando... não está em viagem, de lazer ou de trabalho.

Dele se pode dizer que é um viajante "compulsivo", como ele proprio o reconhece: "Com sete décadas de complexa vida, tive a sorte de viver quase nove anos fora de Portugal, derramando-me por quatro continentes. Sou dono de coisa nenhuma, mas o mundo não me é estranho." (*)...

Mas é também um escritor, um grande escritor, de múltiplos talentos e géneros, e de férrea disciplina, atento ao passado, ao presente e ao futuro dos lugares por onde viaja ou onde vive(u) e das gentes com quem interage (ou interagiu).

2. Reuniu agora em livro o seu diário da volta ao mundo...em 98 dias. Tivemos o privilégio de publicar, em primeira mão, o seu "manuscrito", incluindo muitas das fotos que foi tirando. Para o livro, ele selecionou 60, parte das quais podem ser apreciadas no nosso blogue, na série "Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu)".

Publicámos 40 postes da série num espaço de mais de ano e meio, entre fevereiro de 2017 (*) e outubro de 2018 (**).

Recorde-se que, neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016. Durante três meses e 8 dias [, o que,  nas nossas contas, perfaz 100 dias e não 98], a casa do casal vai ser o gigantesco  navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento e mais de 90 mil toneladas.

Oficialmente o cruzeiro foi  de 98 dias, contados a partir de 2 de setembro de 2016 (partida do porto de Savona, Itália) até 9 de dezembro desse ano, com a chegada  ao ponto de partida.  O António e a esposa ficaram, no dia anterior, em Civitavecchia, que é o porto de Roma, e aqui  apanharam o avião para Lisboa.

(...) Amanhã [, 9 de dezembro de 2016,] o Costa conclui a jornada de volta ao mundo, segue de Civitavecchia para Savona, pedaços de mar Mediterrâneo que conhece de cór. Depois, um avião para Lisboa e regressaremos a casa, ao dulcíssimo lar. Foram três meses e oito dias de viagem por oceanos infindos, terras de todos os assombros e magias. Começo a ter saudades da ditosa pátria, do conforto da minha casa, de respirar Portugal. (...)

De qualquer modo, tomámos a iniciativa de arredondar o nº de dias para 100. Adoramos os números redondos, e 100 é muito mais fascinante do que 98... E 1001 mais sugestivo do que 1000... Em euros, esta vaigem de uma vida deve ter ficado, para o casal, em mais de 30 mil. Recorde-se que um camarote, exterior, com varanda, custava mais 5 mil euros.  Convenhamos que não era um cruzeiro para todas as bolsas...

Curiosamente, no seu diário, o autor não usa datas... Nem no livro, com pena nossa, há um gráfcio com a rota do navio e as diversas escalas, com as respetivas datas.. Tivemos que recuperar as datas a partir fotos inseridas no "manuscrito" (que nos chegou às mãos em formato pdf) bem como das referências, nas crónicas, relativamente à duração, em dias, das viagens, entre uma escala e outra, num total de 34 escalas.

Foi-nos possível assim saber que, ao fim de três semanas , depois de cruzar do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, o navio já estava no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017). O "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017); no dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano; navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo.

Um mês e meio do início do cruzeiro, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016; seguem-se depois as ilhas Tonga; visita a Auckland, Nova Zelândia, em 20/10/2016; volta pela Austrália: Sidney, a capital, e as Montanhas Azuis (24-26 de outubro de 2016).

O navio  chega, pela manhã de 29/10/2016, à cidade de Melbourne, Austrália; visita à Austrália Ocidental, enquanto o navio segue depois para Singapura; o Graça de Abreu e a esposa alugam um carro e percorrem grande parte da costa seguindo depois em 8 de novembro, de avião para Singapura, e voltando a "apanhar" o seu barco do amor...

De 8 a 10 de novembro, o casal está de visita a Singapura, seguindo depois o cruzeiro para Kuala Lumpur, Malásia (11 de novembro); Phuket, Tailândia (12-13 de novembro); Colombo, capital do Sri Lanka ou Ceilão ou Trapobana (segundo os "Lusíadas", de Luís de Camões. I, 1), em 15-16 de novembro. de 2016;

Na última parte da viagem, Graça de Abreu e a esposa estão, a 17 de novembro de 2016, em Cochim, na Índia, e descobrem a cada passo vestígios da presença portuguesa; a 18, visitam  Goa, seguindo depois para Bombaím (20 e 21 de novembro de 2016).

Com 2 meses e 20 dias, depois da Índia, os nossos viajantes estão no Dubai, Emiratos Árabes Unidos, passando por Muscat, e Salah, dois sultanatos de Omã, em datas que já não podemos precisar (, as fotos deixam de ter data e hora...), de qualquer modo já estamos em finais de novembro /  princípios de dezembro de 2016. É tempo ainda para visitar Petra, na Jordânia, e atravessar os 170 km do canal do Suez (Egito), antes de o "Costa Luminosa" entrar no Mediterrâneo, com a viagem a terminar em Civitavecchia, porto de Roma, para o casal Abreu, e em Savona, para os restantes passageiros...  (Por lapso, no último poste indicámos o final de dezembro de 2016 como terminus da viagem; hoje sabemos que o cruzeiro de volta ao mundo terminou em Savona, no dia 9 de dezembro). (**)

O livro, de 126 pp. (fora as inumeradas, com um total de 60 fotos), é enriquecido, na última parte, com um conjunto de pequenos poemas ("bizarros", chama-lhes o autor), relativos aos principais lugares visitados nesta algo insólita viagem de volta ao mundo: ver, acima, um excerto com um belíssimo poema dedicado a Goa. Da página de citações,  a seguir ao índice (ver acima), destaco duas de que gostei muito especialmente:

(i) O bom viajante não sabe para onde vai, o viajante perfeito não sabe de onde vem (Lin Yutang, 1883-1976);

(ii) Sou o descendente infeliz de uma raça heróica e absurda, que senhoreou o mundo, e anda agora por ele a cabo a matar saudades (Miguel Torga, 1907-1995).

O nosso editor agradece a gentileza do envio, pelo correio, de um  exemplar autografado. (***)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 25 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17082: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - Parte I: "O bom viajante não sabe para onde vai, o viajante perfeito não sabe de onde vem" (Lin Yutang 1895-1976)

(**) Vd. poste de  20 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19121: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - XL (e última) Parte: Canal do Suez, Roma e regresso ... "A vida é o que fazemos dela, / As viagens são os viajantes. / O que vemos não é o que vemos / Senão o que somos" (Bernardo Soares / Fernando Pessoa)

(***) Último poste da série > 5 de novembro de  2018   Guiné 61/74 - P19169: Notas de leitura (1117): “Racismo em português, o lado esquecido do colonialismo”, por Joana Gorjão Henriques; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19176: Parabéns a você (1521): António da Costa Maria, ex-Fur Mil Cav do Esq Rec Fox 2640 (Guiné, 1969/71); António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAÇ 4942/72 (Guiné, 1973/74); Ernesto Ribeiro, ex-1.º Cabo At Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69) e João José Alves Martins, ex-Alf Mil Art do BAC 1 (Guiné, 1967/69)




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Nota do editor

Último poste da série de 6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19170: Parabéns a você (1520): Jorge Cabral, ex-Alf Mil Art, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1979/71)

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19175: A galeria dos meus heróis (13): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte III Luís Graça)


Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > 22 de outubro de 1969 > Embarque do pessoal da CCAV 2639...  Menos de cinco anos depois, logo a seguir ao 25 de Abril, há manifestações contra o embarque de tropas para o ultramar... As palavras de ordem dos grupos marxistas-leninistas  são: "Nem mais um soldado para as colónias!...Regresso imediato dos soldados!... Independência total e incondicional para os irmãos das colónias!... Morte ao colonialismo e ao capitalismo!"...

Foto (e legenda): © Victor Garcia (2009) . Todos os direitos reservados  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Luís Graça, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12,
junho de 1969
A Galeria dos Meus Heróis (13): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte III (Luís Graça)(*)


[Continuação... 

Sinopse das Partes I e II:

Belmiro Mateus, advogado, que não fez o serviço militar obrigatório, e António Mota, ex-seminarista, professor de história, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, numa das companhias da "nova força africana" do Spínola, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, numa LFG, entre 1973 e 1974. A conversa prossegue num bar a 500 metros do cemitério, incidindo nomeamente sobre o passado dos três amigos e condiscípulos, a infância, a terra, a tropa, a guerra colonial,  o 25 de Abril, mas também o fado, a morte, Deus, a fé...]





E, prosseguindo a sua linha de pensamento sobre o seu passado, quando estudante, justificou-se o Belmiro:

− Aos vinte anos, somos todos revolucionários quando há que fazer revoluções… No passado, direita e à esquerda, os revolucionários chamavam-se fascistas, comunistas, anarquistas, porque era preciso destruir a burguesia e o Estado capitalista, na Europa nos anos 20 e 30 do séc. XX. Hoje não temos a mesma urgência em mudar as coisas, tal como acontecia em Portugal em 1973, o ano em que nada podia continuar a ser como dantes: tínhamos a escalada da guerra colonial, a ditadura em banho maria, a crise petrolífera, o esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento, a emigração em massa, a democratização do ensino… Andávamos em agitação permanente, pelo menos na universidade, em Lisboa, Porto e Coimbra, achávamos que tínhamos que começar a mudar as coisas pela veemência e a urgência da palavra…

− Ou pela violência das armas ?! O poder está na ponta das espingardas!, era a vossa palavra de ordem maoista… Pobres diabos, putos imberbes, que ainda não tínham dado um tiro nem sabiam manusear uma arma.

− Eu, felizmente, não fiz a guerra como tu. Nem sequer fiz o serviço militar, por um bambúrrio da sorte. A guerra acabou antes.

− Tiveste mais sorte do que eu… e do que o nosso pobre Zé. Mas, tu, Belmiro, terias dado um grande heróis do 10 de junho. Infelizmente, hoje serias um herói morto, com direito a nome gravado numa chapa metálica, no monumento aos mortos da guerra do ultramar... Como aquele mamarracho que foi erguido no jardim central da nossa vila... Ainda bem que estás vivo...

− E quem te disse, Tony, que eu não poderia ser hoje um herói vivo ?! Um Torre e Espada, que muito honraria a nossa terra ?!

− Os heróis também se fabricam, em função dos interesses dos regimes... Vê o caso do soldado Milhões, que salvou a honra da República e do CEP, o Corpo Expedicionário Português, na I Grande Guerra...

O António aproveitou então para enfatizar as qualidades de liderança do amigo que tinha tudo para ser um bravo soldado,  digno dos nossos maiores:

− Belmiro, a mim que não tinha jeito nenhum para a tropa, fizeram-me alferes...Tu, sim, sempre foste um líder, mais do que um chefe, desde os tempos do escutismo. Não tenho dúvidas que terias chegado a general, se tivesses ido para a Academia Militar, como chegaste a sonhar. Estou grato ao teu pai por te cortado a crista de galo…

− Meu sacana!... Tinha alinhado no 25 de Abril, disso podes estar ciente. Mas nos meus 15, 16 anos ainda cheguei a sonhar com a carreira das armas…

− Em contraciclo!... A Academia Militar estava às moscas, homem!… Depois, o militarismo era, para mim, o lado mau do escutismo. Deixaste-te seduzir pelo espírito de corpo, a unidade comando-controlo, a disciplina, o garbo, a ordem, a farda, os galões, os estandartes, a parada, a música marcial…

− Não, estás enganado. O que me seduzia, na tropa, era a arte e a ciência de mandar, ou comandar!... Para servir os outros, a comunidade, o país, a pátria... O escutismo foi também uma das minhas grandes escolas, estou grato ao Baden-Powell e, já agora, à Mocidade Portuguesa… E, tu, não te esqueças que também lá andaste… Se eu fosse para a tropa, não tenhas dúvidas que queria ser o primeiro, o melhor, do pelotão…

Fez-se um silêncio, algo embaraçoso. O Tony nunca contava a ninguém que também andara na "bufa"… e depois no seminário. Desviou a conversa:


− Então, o nosso querido Zé também foi parar ao ultramar, estás-me a dar uma novidade.

− Falávamos pouco da tropa… Só sei que andou pelo Índico, a patrulhar a costa moçambicana. Deve ter comido muito camarão moçambicano que era (e é) o melhor do mundo…

− Nada mau, viver numa corveta, sempre era melhor do que andar no mato, como a "tropa-macaca".


− O que é isso de "tropa-macaca" ?

− A que andava a penantes, no mato...

Na realidade, o Zé tivera mais sorte do que o António. O Belmiro ainda se lembrava dele, aos fins de semana, fardado de branco, impecável, oficial e cavalheiro, um "príncipe encantado" para as garotas da terra.

− O melhor da Marinha era a farda e o bar dos navios − acrescentava, irónico, o Tony.

− O Zé falava muito pouco ou nada desses tempos da guerra do ultramar. Andou por lá, nunca deu um tiro, a não ser nos exercícios navais.


E mais acrescentou o Belmiro:

− Sei que, quando cá veio de férias, ainda em 1973, trouxe uma cassete com as famosas canções do Niassa, que estavam proibidas…

− Nessa altura, como sabes, estava eu na Guiné, só ouvi as canções do Niassa uns anos depois. Mas também havia um cancioneiro da Guiné...

− Eh!, pá, da nossa geração poucos escaparam, tirando a malta que andava na universidade e foi adiando o serviço militar, como eu… De exame em exame, lá fomos dobrando o cabo da Boa Esperança…

Naquele tempo, poucos foram os condiscípulos do Belmiro que continuaram a estudar para além da 4ª classe ou do 5º ano do liceu.

− Ah!, e não te esqueças da malta que deu o salto – disse o Belmiro, que se lembrava ainda de uma leva de jovens do concelho que fora numa carrinha de um passador e que teve um acidente grave já a caminho de Bordéus…

− Não estava cá quando isso foi… França, Alemanha, Suécia, Canadá, América, Brasil (antes da ditadura militar de 1964)… eu sei lá para onde a rapaziada foi parar!... Muitos à procura de melhor vida, não tinham qualquer consciência política, mas a verdade é que mandaram o  país à merda, e os gajos que cá mandavam...

− Desertor, que me lembre, não conheci nenhum. Mas faltosos e refratários foram bastantes. E olha que não eram filhos de agrários. O tipo do stand de tratores e máquinas agrícolas, um comerciante que veio de fora e que enriqueceu depressa, esse, tratou logo, na devida altura, de pôr o filho mais velho a bom recato na Suécia ou na Alemanha. Lembras-te dele ? Ficou por lá, casou com uma loura, da Europa  do Norte... Não tenho mais notícias dele...

− Tu é que nunca pensaste em dar o salto!... Eu, também não, porque estava no seminário…

− Acredita que não, foi coisa que nunca me passou pela cabeça!... Se a Pátria precisasse de mim, como soldado, eu lá estaria na primeira fila... Não sou menos patriota do que tu, lá por não ter feito a tropa e a guerra do ultramar. O meu querido paizinho, esse, sim, ainda pôs a hipótese de me pôr na fronteira se as coisas corressem para o torto. Era o plano B, mais para tranquilizar a minha mamã do que para valer… 


Felizmente, para o Belmiro (e a família), funcionou o plano A: ele foi um menino bem comportado, pelo menos o q.b., não se deixou apanhar pela ramona, muito menos pela PIDE/DGS,  nunca chumbou, e depois… veio o plano C, que não estava previsto pelo pai dele e os seus amigos da situação: o 25 de Abril…

− Grande sortudo!− exclamou o Tony − A sorte protege os escuteiros… E é caso para dizer, uma vez escuteiro, escuteiro para sempre…


E aqui convém esclarecer o leitor que o pai do Belmiro não era um tipo qualquer. Era um conceituado advogado, mais tarde autarca e dirigente da ANP, a Ação Nacional Popular, a nível local. Tinha sido o próprio Marcelo Caetano, seu antigo professor, a integrá-lo nas hostes da União Nacional nos anos 40, quando era ministro das colónias.  


Como o pai do Belmiro não era ribatejano, mas lisboeta, só passou a dirigir os destinos da autarquia local em 1969. O presidente da câmara municipal até então tinha sido um médico veterinário, da linha dura do regime. Pertencera, dizia-se,  à Legião Portuguesa e havia combatido, quando jovem, na guerra civil de Espanha, ao lado dos franquistas.

− O meu pai era o típico advogado de província, que vem de fora, como os médicos, que precisa de todos, não se quer incompatibilizar com ninguém, a começar pelos senhores da terra…  Casou cá, com uma menina prendada, herdeira de umas boas terras, que não fez mais nada na vida do que ser boa esposa e melhor mãe... Eu fiquei com o escritório do meu pai e com alguns clientes, os piores, os caloteiros...

− Belmiro, não levas a mal se eu te disser que foste, apesar de tudo,  um privilegiado!

− Não tenho culpa de ter nascido numa família de classe média alta, politicamente de direita, se bem que republicana e liberal… Mas, atenção, o meu pai era, em termos de peso político, um segunda ou terceira linha…

− Sem querer ofender a memória do teu pai, que Deus já lá tem, dizia-se no meu tempo que havia quem lhe metesse cunhas… E ele gostava de mostrar que tinha prestígio e poder, ou pelo menos que se movia com relativa facilidade nos círculos de poder: os governadores civis, os deputados da Nação, a Praça do Comércio, o Palácio de São Bento...

− Sim, sei que lhe fazia bem ao ego. Mas ele não mandava nada ou muito pouco.  Era um homem bom, afável, tolerante, prestável, generoso, mais depressa capaz de ajudar os de fora do que os da casa… Cunhas para livrar alguém do ultramar, isso, não, posso garantir-te, juro mesmo pela alma dele… Agora que as havia, havia, as cunhas... É uma instituição, é coisa que existe em todas as guerras e em todos os regimes...

− Fiz três anos de tropa e de guerra, por isso sei do que falas. Não direi que me impressionou ou intrigou, já estava à espera…mas nos sítios por onde passei, a começar por Mafra (ou Máfrica, a fábrica de oficiais para a guerra de África, como a gente lhe chamava) nunca encontrei nomes sonantes, filhos-família... 
Nem sequer afilhados. Não sei se os filhos da elite da época foram à guerra, mas se foram não foi como "tropa-macaca", como eu. Teriam eventualmente boas especialidades, tinham a força aérea e a marinha, a reserva naval, como alternativa ao exército… De facto, não éramos todos iguais, Belmiro, se é isso que querias saber.

− Tony, repara, o que já lá vai, lá vai... Éramos todos putos quando rebentou a guerra em Angola… Tu e eu cantámos, em muitos acampamentos, o hino "Angola é nossa!", para além do "Lá vamos cantando e rindo"... Ainda te lembras da letra ?

− Mas a guerra não sobrou para ti, por exemplo, sobrou para a mim, para o Zé… e outros, da nossa terra, da nossa geração, que não tiveram a tua sorte. E muitos por lá ficaram… Só do nosso concelho foram uns trinta e tal.

− Reconheço, Tony, que o país tem uma dívida de gratidão, muito grande, para com vocês, os ex-combatentes.

− Dívida de gratidão ? É uma figura de retórica, desculpa lá. Em todas as épocas, em todas as guerras, essa dívida fica por saldar. Revolta-me o cinismo com que hoje se fala dos coitadinhos dos ex-combatentes… Vamos todos parar à vala comum do esquecimento, mais dia menos dia… O resto é o folclore do 10 de junho onde nem sequer há desfiles de ex-combatentes, porque são todos uns velhadas, malta do "caga & tosse", que já não podem, coitados, com o rabo entre as pernas!


− Desculpa lá, tens razão, embora estejas a ser cruel, muito cruel, para com os teus ex-camaradas… E, para mais, foram vocês os coveiros do Império. Foi um ciclo de quinhentos anos que se fechou… A história vai lembrar os heróis, os marinheiros aventureiros que foram os primeiros na terra e no mar, os descobridores, os fundadores do Império, os vice-reis das Índias, os Gamas, os Albuquerques, não os coveiros...

− Sem honra nem glória, Belmiro! Pelo menos é o que dizem os revisionistas da história, bem como os saudosistas do Império…


− Tony, se for preciso, eu assino por baixo…Mas já que estás aqui, deixa-me confessar-te a minha, nossa, estupidez juvenil… Eu fui dos que, logo a seguir ao 25 de Abril, ainda gritei, no cais da Rocha Conde Óbidos, a palavra de ordem do meu movimento: “Nem mais um soldado para as colónias!”… Mas acho que era preciso alguém gritar contra a guerra, a favor da paz!

− Eu regressei só em setembro de 1974 e sei o mal que isso nos fez, ao moral da tropa que lá ficou a aguentar as pontas... Mesmo assim as coisas correram, aparentemente, melhor do que em Angola e em Moçambique. Não havia colonos na Guiné, o único problema eram os homens de lá que combateram ao nosso lado, os nossos camaradas guineenses. Os meus fulas, por exemplo, de que o Amílcar Cabral não gostava nada. Infelizmente, eles escolheram o cavalo errado… Chamavam-lhe os "cães do colonialiso"...

− Tony, era inevitável… Há sempre excessos, contradições, efeitos perversos... É próprio da ação humana, é uma lição da história… Vê as perversões do cristianismo, que era uma ideologia libertadora…

− Era ou é ?

− Passo em frente, não discuto religião contigo... Mas, historicamente, tu sabes bem que foi.

− OK, são as nossas regras, não falemos de religião... Mas, já que estamos em maré de confidências, deixa-me dizer-te das mágoas que trouxe da guerra... Uma delas nunca  a contarei aos meus filhos, conto-a a ti que és meu "mano"...

O António pediu então mais uma taça de branco, que bebeu de um trago, e contou:

− Numa das nossas incursões a sul do Morés, que era uma região que a propaganda do PAIGC considerava como "área libertada", fizemos um "golpe de mão" a uma tabanca, de população predominantemente balanta ... Como sabes, os balantas eram os homens do mato, e foram a "carne para canhão" da guerrilha do Amílcar Cabral... O meu grupo de combate foi o primeiro a entrar na povoação, onde o alvoroço já era grande, com porcos, galinhas, cães, crianças, mulheres e velhos a fugir em debandada ... Por detrás de um bagabaga (um morro de terra, feito pelas formigas), vejo um atirador isolado, com uma Simonov, uma espingarda russa, semiautomática, que em geral equipava as milícias do PAIGC... A arma encravou-se-lhe ou então o atirador entrara em pânico, desiquilibra-se, o corpo fica parcialmente a descoberto, justamente na altura em que lhe acerto com curta rajada certeira no peito e no ombro. 

Aqui o Tony fez uma pausa, para retomar o fôlego:

 Continuei a correr com os meus homens... Fizemos de imediato um balanço dos "estragos" provocados: para além dos mortos e prisioneiros, tudo população civil, capturámos armas, arroz, documentos; não tivemos uma única baixa...Deparei-me então, junto do bagabaga, com o puto da Simonov, caído por terra: era um "blufo", balanta, adolescente, que não teria mais do que 17 anos, a idade do meu irmão mais novo que, infelizmente, já faleceu, com uma neoplasia, penso que não o terás chegado a conhecer... Esvaía-se em sangue, sem um ai nem um ui... Eu tinha acabado de matar um homem, o primeiro pelo menos a quem via a cara... Senti-me terrivelmente angustiado. Não tive coragem de lhe dar o tiro de misericórdia. Pedi ao meu guarda-costas, o Sori Jau... 

E o António concluiu, quase em surdina:

− Às vezes ainda hoje tenho pesadelos, e a cara do puto da Simonov, impassível, entra pelo ecrã dentro da minha televisão... E, por detrás dele, a espreitar por cima do ombro, o fantasma do meu irmão...

(Continua)




Espingarda semiautomática Simonov SKS-45, calibre 7,62 x 39mm M43, 1945 (Origem: ex-URSS).

Foto (e legenda): © Luís Dias  (2010) . Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:


6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19171. A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19174: A galeria dos meus heróis (12): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte II Luís Graça)


Capa do livro de Luís  Moita (1894-1967): O Fado, canção de vencidos: oito palestras na Emissora Nacional. Lisboa:  [s.n.] [Lisboa, Oficinas Gráficas da Empresa do Annuário Comercial], 1936, 357 páginas. Ilustrações de Bernardo Marques (1898-1962).



Luís Graça, Contuboel, 
CCAÇ 2590/ CCAÇ 12,
Junho de 1969
A Galeria dos Meus Heróis (12): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte II (Luís Graça)(*)

[Continuação]





Sinopse da I Parte: 

Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades" dos bons velhos tempos].


− O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos... As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam. Os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seu moço ajudante. Enfim, encontravam-se na missa, ao domingo. Na igreja, lá éramos todos iguais, irmãos em Cristo. Cá fora, bom dia e boa tarde, entre dentes. Uma vez por outra era preciso ir à quinta fazer uns trabalhinhos de soldadura, arranjar as cercas e os portões… Ah!, e havia o futebol, chegaram a jogar juntos, quando novos, cá no clube da terra… E, julgo eu, foram condiscípulos, andaram na mesma escola, na mesma turma. De resto, tudo os separava. Só depois do 25 de Abril, é que se atenuaram algumas diferenças sociais entre os ribatejanos do burgo...

O Belmiro não quis pegar neste assunto das diferenças de classe das famílias de uns e outros, e chamou a atenção do amigo para o que se passara na missa de corpo presente:


− Repara, António, que até o padre estava embatocado… Não é costume ele mostrar as suas emoções nestas cerimónias fúnebres… Sei que ele era muito amigo do Zé!...

− Meu caro dr. Belmiro Mateus, ilustre advogado da nossa praça, parece-me que Deus tem andado ultimamente distraído... Bolas, a morte tem levado alguns dos melhores filhos da nossa terra… Para mais, católicos, apostólicos, romanos...

− Não vais sem resposta, António Mota, Deus não precisa de advogado de defesa, e muito menos dos serviços de um pobre advogado como eu... Mas também é verdade que Deus tem as costas largas.

O António Mota, ex-seminarista, professor de história do ensino secundário, reformado, que se refugiara no seu monte alentejano, em plena terra de mouros, não quis ser indelicado para com o seu amigo, mas pensou, com os seus botões, como dava jeito ter uma bode expiatório para todos os males da humanidade... Na cultura judaico-cristã, era o maldito pecado original. 

− Sim, Deus tem as costas largas... Mas, já agora, acrescenta a crise, se me permites... Tanto à esquerda como à direita, a crise tem sido usada, "ad nauseam", para explicar tudo e mais um par de botas... Dá jeito, como o fetichismo dos números redondos, das estatísticas, dos gráficos, das folhas de excel… para os nossos demagogos parlamentares e para os nossos jornalistas incultos… Mente-se com números, temos uma grave problema de inumeracia…

− O quê ?...

− Iliteracia numérica, incapacidade para ler e interpretar números… Vejo o que se passa com as redes sociais: as pessoas "emprenham", já não é só pelos ouvidos, é também pelos olhos, pelo que leem, veem e ouvem...

− Tony, a minha racionalidade não chega a tanto, ou melhor, acaba aqui, não sou um homem de ciência, há coisas que não sei compreender e muito menos explicar (e no íntimo não quero saber)... Vou ter que viver com o absurdo do mal, a matança dos inocentes, etc... Sei que já não és crente e estás-me a avaliar como aos teus alunos de liceu...

−... e às alunas, de alto a baixo!

− Não sejas ordinário, Tony, não te conheço essa faceta!... De resto, sempre fomos o cão e o gato, na escola, no recreio , nos acampamentos de escuteiros… Era a competição e eu conhecia o teu ponto fraco, os teus limites… Sabia até onde podia provocar-te, sem te agredir. Por isso sempre fomos bons  
amigos... Até hoje! É verdade ?

− Eu sei, e estou-te grato, Belmiro. Mas, respondendo agora à tua observação, devo dizer-te que a minha fé, de menino e moço, não resistiu à dura prova da realidade, à medida que me fui tornando homem e conhecendo o mundo… A descoberta, tardia, aos 16 anos, da minha vocação sacerdotal, o "chamamento de Deus", o "calling", como dizem os ingleses, se calhar não foi mais do que uma forma de fugir desta terra, que se tornara para mim claustrofóbica…

− Pois, eu também já tive as minhas crises de
fé, os meus altos e baixos… Para mim, a última coisa a perder não é a fé, mas a esperança. Também estive fora, como tu, mas sempre determinado a voltar na melhor ocasião. Ainda passei uns anos pelos Açores, onde fui notário e onde casei, antes me de fixar, de vez, na minha, nossa, bela terra… É aqui que eu tenho o meu doce lar, os parentes, os amigos, o horizonte largo da lezíria…

− Fico feliz por ti e pela terra que se calhar não te merece… Mas, olha-me à volta, para cá caminhamos, para este lugar sombrio, mesmo que o sol lhe bata todas as tardes, como hoje… Há-de ser a nossa última morada, também…

− Já cá estão os nossos pais, tios, avós, bisavós... E agora a rapaziada do nosso tempo.

− Por mim, ainda não sei onde vou deixar os meus ossos ou cinzas. Já pedi para ser cremado, espero que os meus filhos e netos respeitem a minha última vontade!

− Tony, olha que não é bem assim… Se tiveres o azar de ir parar à morgue, à medicina legal, estás tramado, só com ordem de um juiz é que podes ser cremado!

− Não acredito!... Mas também já me disseram isso. Afinal, um homem não é dono do seu corpo.

− Ah!, pois não, Tony, nem homem nem mulher… Como católico, sou contra a cremação, mas como jurista tenho que aceitar e respeitar as leis da República.

− Belmiro, no dia do Juízo Final, queres estar de corpo inteiro, na fila dos justos e dos eleitos…

− Não sou capaz de imaginar tal cena, mas acredito que esse dia, o fim do mundo, há-de chegar!

− Espera, meu irmão, a morte é a derradeira prova de fogo de um homem!... Por mim, não quero ir para a "cova funda",  para usar uma poderosa imagem poética do Bocage… Como um cão!... Quero lutar com ela, a senhora morte, até ao fim!... Como lutei na guerra, em África!

− Mas que raio de conversa, Tony!... Para o que nos devia de dar, dois velhos colegas de escola, dois meninos de coro,  dois briosos escuteiros, falando do passado e da morte…

−... colegas de escola e dos escuteiros, sim!...

− … a falar do dia em que lá teremos que devolver a alma ao criador…

− A alma ?

− Sim, a máscara que nos foi emprestada!... Tenho uma teoria, a de que nada nos foi dado, muito menos a vida, é tudo emprestado, e vamos ter que prestar contas a alguém...

− Essa é uma metáfora, já os antigos egípcios acreditavam nisso… E se fôssemos beber um copo, antes de eu me meter à estrada, que ainda tenho uns quilómetros valentes para fazer ?!… Mas fico em Lisboa, esta noite… Falar da morte, e para mais num cemitério, faz-me securas na garganta. Mas, nos cemitérios, num raio de 500 metros, há sempre um tasco com o letreiro "À volta cá te espero"… Vamos dar de beber à dor, companheiro!

− Alinho, Tony, vamos lá!... Já perdi o dia todo, e não tenho cabeça para passar pelo escritório. Temos um tasco, aqui mesmo, a dois passos, nas traseiras da igreja da Misericórdia.

O sítio não podia ser mais inspirador com larga vista sobre o casario, o a vasta lezíria, e o rio, agora com muito menos água do que no tempo da infância dos nossos dois interlocutores... "Carpe diem", dizia a tabuleta, em latinório, aproveita o dia, goza a vida, o dia-a-dia… Pediram duas taças de branco, enquanto o Belmiro foi relembrando a história de vida do Zé Nuno…

Além das touradas, o Zé tinha uma paixão, que era a guitarra… Aqui seguia as peugadas de um tio materno cuja coroa de glória era ter acompanhado a Amália num já longínquo programa da Emissora Nacional ou do Rádio Clube Português, numa substituição de última hora. Tocou nas primeiras casas de fado, que floresceram com a guerra, em Lisboa, entre 1941 e 1943, na altura em que fazia o serviço militar obrigatório. Ainda chegou a estar mobilizado para os Açores, o que não aconteceu, talvez devido à guitarra e "à cunha certa metida à pessoa certa no momento certo"…

O Zé Nuno, por sua vez, ani
mava algumas noites de fado no célebre Solar do Marquês de Marialva. Fora em tempos em clube seleto da vila ribatejana. Havia entrado em decadência, talvez no início dos anos cinquenta, depois de algumas senhoras da elite local terem tido a ousadia de denunciar ao Salazar, em pessoa, o sítio como "um antro de jogo ilegal, casa de passe e templo de perdição"… Uma delas, mulher de um médico da terra, era amiga, do tempo de Coimbra, da comissária nacional da Mocidade Portuguesa Feminina, a célebre Guardiola…

− E creio que também amiga ou conhecida da Van Zeller, que era a nº 2 da Mocidade Portuguesa Feminina, e que há-de ser, nos anos 60, a diretora-geral de saúde, a primeira mulher a desempenhar esse cargo – acrescenta o Belmiro.

− Ah!, sim, a médica e deputada Maria Luísa Van Zeller…

− Eram as duas mulheres mais poderosas do regime.

− Depois da Dona Maria...,  não te esqueças, Belmiro… E acrescenta a Supico Pinto, a famosa Cilinha, mais tarde, com o início da guerra.

Até então o Solar era frequentado pelas senhoras da terra, mas apenas durante o dia: tomava-se o chá das cinco, fazia-se tricô, jogava-se à canasta, bisbilhotava-se… Uma vez por outra, aos fins-de-semana, havia récitas, espetáculos musicais, verbenas, chás de caridade… A noite era reservada aos cavaleiros... Faziam-se aqui negócios, arranjavam-se casamentos, trocavam-se as amantes... Apesar das tradições republicanas, a segregação de género agravara-se com a Ditadura Militar e o Estado Novo. Nas horas mortas, durante a semana, também aparecia, de tempos a tempos, gente da boémia da capital, com destaque para as coristas do Parque Mayer, em digressão pela província… A relativa proximidade da vila em relação à capital tinha as suas vantagens e desvantagens, uma delas a de ser uma extensão da "Babel do pecado"…

O Belmiro e o António eram putos nesse tempo, não se lembram de nada,  mas mais tarde irão conhecer o ambiente já decrépito do clube onde, aos sábados, na época marcelista, depois do “fado boémio e reaça” (si), ainda havia uma ala juvenil que gostava de cantarolar e tocar uns fados e baladas de Coimbra, a meia voz, e onde se revelavam novos talentos da terra, acarinhados pelo Zé Nuno e pelo seu tio…

Curiosamente, já ninguém se lembrava, trinta e três anos antes, em 1936, das exortações, aos microfones da Emissora Nacional, de ideólogos do regime, como o Luís Moita, para que a mocidade portuguesa deixasse de cantar o fado, essa “canção de vencidos" (**)...

O tio do Zé Nuno era um bocado a "ovelha ranhosa" da família, por ser considerado do "reviralho"… Em 1958, apoiara publicamente a candidatura do general Humberto Delgado à presidência da república, o que lhe trouxe alguns dissabores em casa e no emprego.

Com o novo presidente da Câmara Municipal, e dirigente local da Ação Nacional Popular (que sucedera à União Nacional), o pai do Belmiro, marcelista, mais liberal que o anterior, que era um ferrenho salazarista, o ambiente na vila ribatejana desanuviara-se um pouco no final dos anos 60.

− Continuando a nossa conversa…, vejo que estás com bom ar, Belmiro… Mas,  quem vê caras, não vê corações.

− Bem, parafraseando o provérbio, "muita saúde", vou tendo ainda, mas não sei se "pouca vida"…, porque afinal "Deus não dá tudo"… Acho que era esse o provérbio que dizia o meu avô materno, que morreu cedo, segundo a minha mãe. Vendia saúde às carradas, mas tinha o pressentimento que iria morrer ainda jovem. Costumava também dizer: "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"… A verdade é que não chegou a conhecer os netos…

− Em suma, morria-se cedo, cheio de saúde…

− São provérbios ao teu gosto hipocrático, Tony… Tu é que publicaste em tempos uma antologia de provérbios populares ligados à saúde, não foi ?!

− Sim, num suplemento de uma revista de história da medicina… O povo lá sabe, ou sabia, tenho muito respeito pela sabedoria popular.

− Tretas…, desculpa lá, Tony… De popular têm muito pouco os nossos provérbios.

E, subindo o tom de voz, o Belmiro sentenciou:

− E, se queres um conselho, da minha experiência de vida, que já é alguma, não te fies no povo, na populaça… O povo é vilão, é mouro, é saloio, é conservador, se não mesmo reacionário, manhoso, desleal, ingrato… O povo é um caçador oportunístico, tanto come na gamela do pobre como apanha as sobras da mesa do rei… Eu vi pelo meu pai, que passou de bestial a besta, com o 25 de Abril...Cuida mas é da tua vida, cuida de ti, cuida dos teus!

− “Ao vilão dá-lhe o dedo, toma-te a mão” – ironizou o António Mota. – Seja, mas poupa-me os teus sarcasmos, o teu humor à laia do Bordalo Pinheiro. Estás a sugerir que o nosso Zé Povinho é gentalha, feia, porca e má... Como os ciganos, os pretos, os imigras... Vocês, juristas, são tramados… Mas também quero dizer-te que gostei da nossa conversa.

− Dantes ainda nos encontrávamos nos casamentos e batizados… Agora é só nos funerais – lamentou-se o Belmiro.

− Sim, uma conversa à porta do cemitério, não direi mórbida, talvez mais nostálgica do que filosófica.

− Então, à nossa, Tony!... Aos bons velhos tempos!.. Tchim, tchim! 

E ergueram as taças de vinho branco.

− Vejo que estás mais cético, Belmiro, mais crente em Deus, menos confiante nos homens, ou seja, no povo de Deus. Afinal, quem o diria, um ex-maoista, como tu, quando jovem, para quem a Bíblia, na faculdade de direito, era o famigerado "livrinho vermelho"…

− Sem dúvida, um "best seller", como a Bíblia. Foi um dos primeiros grandes negócios que a China fez em Portugal… Mas, eh!, nada de ressentimentos nem de remoques políticos…

− De modo nenhum, nessa altura, já não convivíamos,ou muito pouco, estava cada um para seu lado.


− Assumo esse passado, embora hoje me ria de mim próprio. Sabes como era: jovens imberbes, chegados à capital, más companhias, paixões juvenis, a descoberta do sexo, a revolta contra o pai, a incultura geral, leituras apressadas, na diagonal, dos gurus do marxismo-leninismo, pensamento de grupo, o exotismo da revolução cultural chinesa, a cabeça na ponta da mão, a vontade (irresistível) de mudar o mundo e a vida… Fomos como o frango de aviário: em mês e meio ficávamos doutores em ciência política, frequentando os cafés das Avenidas Novas, em Lisboa, ou as repúblicas coimbrãs.


− Sei do que falas: as hormonas em convulsão aos 20 anos… Não é por acaso que é a idade em que te mandam para a tropa e para a guerra!... A idade perfeita para se matar e para se morrer!

− Mas fica sabendo que foi uma grande escola, a maoista…

− Sim, pelo que vejo por aí com os teus ex-correligionários… Um caso de sucesso de promoção da literacia política e, nalguns casos, públicos e notórios, de meteórica ascensão na hierarquia dos partidos do poder e nas grandes empresas.

Os dois amigos davam agora conta de que há muitos anos não bebiam um copo juntos… Mas que este tchim, tchim, este tilintar de copos, também tinha algo de premonitório. Como eram os dois supersticiosos, tiveram um estranho pressentimento... o de que não voltariam mais a encontrar-se.

− Cruzes, canhoto, afasta de mim esse cálice, irmão! – galhofou o Belmiro, para disfarçar o calafrio que sentiu pela espinha acima.


(Continua)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19171. A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)

(**)  No ano da graça de 1936, o germanófilo  Luís Moita apelava aos microfones da Emissora Nacional: "Rapazes, não cantem o fado!". Os rapazes eram a "Mocidade Portuguesa" (MP) que acabava de ser criada, no âmbito das reformas da "educação nacional", decretadas pelo ministro A. F. Carneiro Pacheco (1887-1957).

Organização de tipo miliciano, a MP visava o enquadramento político-ideológico da juventude, era de inscrição obrigatória para todos os estudantes do ensino primário e secundário, e potencialmente mobilizava todas as actividades circum-escolares: a educação cívica, o lazer, os cuidados de saúde, a preparação física, a formação política e militar, etc.

"Canção de vencidos", "cocaína de Portugal", o fado era então visto por certas personalidades da direita integralista e nacionalista (incluindo escritores e musicólogos) como um "herança maldita vinda do ultramar" (referência ao lundum, "avô do fado", que nos terá chegado do Brasil, com o regresso da corte de D. João VI), subproduto de uma "raça abastardada" e que entre nós se havia expandido justamente "nos bairros onde, há trinta anos ainda, se albergavam o vício, o crime e a vadiagem" (sic!), em contraste com as "canções alemãs, fulgurantes e alegres" das cervejarias de Munique e dos Wandervogel (Moita, 1936, pp. 217-218). [Os Wandervogel integravam-se naquilo a que se poderia chmar os Grupos de Juventude do Nacionalismo Alemão, surgidos no princípio do séc. XX. Não comfundir com a Juventude Alemã hitleriana].

Guiné 61/74 - P19173: Historiografia da presença portuguesa em África (136): Dois mapas da Guiné, 1948, 1951: quantas dúvidas, quantas interrogações (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Nunca debatemos aqui a fundo as cartas geográficas da Guiné, antes e durante a guerra e após a independência. As cartas concebidas com a ajuda soviética nos anos posteriores à independência foram um desastre eloquente, estão postas de parte, tal o volume de erros, com distâncias inconcebíveis.
As cartas com que combatemos andavam próximo da realidade, com a natural exceção de que com a passagem dos anos as antigas localidades iam desaparecendo, tomadas pela natureza.
O exemplo de que hoje me socorro são duas cartas, uma com a data de 1948 e outra publicada em 1951, não têm nada uma a ver com a outra, a não ser o nome das principais localidades e o rigor das linhas fronteiriças. O resto é um acervo de dúvidas, hoje irresolúveis, o que levou aqueles geógrafos a referirem povoações inexistentes e posicionamento de etnias totalmente fora da realidade? Isto só para dizer que os historiadores não podem na sua atividade excluir mais este escolho: quem ali vivia e efetivamente ali vivia.

Um abraço do
Mário


Dois mapas da Guiné, 1948, 1951: quantas dúvidas, quantas interrogações

Beja Santos


 (Clicar nos mapas para ampliar)

Quando consultamos as cartas geográficas anteriores àquelas que utilizámos na nossa atividade operacional, elaboradas pelos Serviços Cartográficos do Exército e que contaram com os trabalhos da Missão Geoidrográfica da Guiné, encontramos disparidades de monta. Sugiro, como exercício, que tomemos como referência estas duas cartas geográficas. A primeira foi impressa no Instituto Geográfico e Cadastral, em 1948. Encontramos nela bastante precisão. No trabalho que levo em curso sobre a história do BNU na Guiné, encontrei inúmera informação sobre o início da luta armada. O gerente do BNU em Bissau possuía muito boa informação confidencial e tinha acesso à documentação produzida pela gerência da Sociedade Comercial Ultramarina. Ficamos a saber, por essa documentação, como iam evoluindo as infiltrações do PAIGC, veja-se a região Sul, em meses Xugué, Salancaur, Caboxanque, Cadique, Cafine, Cacoca e Campeame foram sistematicamente sujeitos à pressão do PAIGC, as populações do Sul, ao longo de 1963 foram-se concentrando em Cacine, Cabedu, Catió, Bedanda e Empada. Podemos olhar para a carta e perceber a quase ausência populacional na chamada região do Gabu, as povoações contam-se pelos dedos.

Tive acesso a este esboço da colónia da Guiné através de uma carta adquirida na Feira da Ladra. A segunda carta vem publicada num livro em que muitos de nós estudámos, intitulado “Novo Atlas Escolar Português”, por João Soares, Sá da Costa, 1951. A carta, teoricamente mais recente que a anterior, exclui a generalidade dos nomes que vêm referidos na de 1948, e que se traduziram nos ataques do PAIGC na região Sul e que levaram à concentração populacional em lugares como Gadamael, Cacine, Catió, Cufar, Bedanda e Empada. Refere populações predominantes que não tinham nada a ver com a realidade: nem a região Leste e Centro era esmagadoramente constituída por Fulas, nem a região Sul por Beafadas, não há uma só referência a Mandingas ou mesmo Felupes, destacam-se os Nalus, que já naquele tempo eram uma perfeita minoria. Igualmente o nome das povoações deixa muito a desejar: falando de um território que palmilhei, do outro lado de Bambadinca, refere-se Sambel Nhanta, que há muito não existia, nem mesmo Caranque Cunda e muito menos Checibá de que nunca encontrei qualquer referência. Nunca encontrei qualquer estudo, tirando o trabalho sobre a antroponímia de Teixeira da Mota, que permita pôr luz sobre a verdadeira posição das localidades, em diferentes períodos temporais, e um efetivo posicionamento de etnias, pelo menos no período correspondente à chamada ocupação efetiva, depois de 1915.

Tudo isto para dizer que esta complexidade de fixação de etnias e de designação de povoações dificulta qualquer trabalho historiográfico, subtraindo-lhe rigor e autenticidade. É este um dos empecilhos quase irresolúveis, dado o progressivo desaparecimento dos mais velhos, que poderiam contribuir para dar uma certa ordem e clarificação aos nomes do passado e a sua relação com os nomes do presente.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19152: Historiografia da presença portuguesa em África (134): Relatório anual da Circunscrição Civil dos Bijagós, 1932 (Mário Beja Santos)