sexta-feira, 20 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20753: Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia do COVID 19, tentando regressar a casa (Constantino Ferreira) (1): Sul da Austrália: Sidney e Melbourne





MSC - Magnífica > Cruzeiro de Volta ao Mundo > Austrália > Sidney > 16 de março de 2020 > Cortesia da página do faceboook de Constantino Ferreira. Fotos reeditadas pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.





MSC - Magnífica > Cruzeiro de Volta ao Mundo > Austrália > Melbiourne > 19 de março de 2020 > Cortesia da página do faceboook de Constantino Ferreira. Fotos reeditadas pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

[, Constantino Ferreira d'Alva foi fur mil art da CART 2521 (Aldeia Formosa, Nhala e Mampatá, 1969/71); trabalhou 30 anos na TAP, como tripulante de cabine; é nosso grã-tabanqueiro desde 16 de fevereiro de 2016.]



1. Os nossos camaradas Constantino Ferreira e António Graça de Abreu  estão a fazer, desde o início do ano de 2020, um cruzeiro de volta ao mundo, a bordo do MSC - Magnifica (*).

A primeira parte correu,como programado. Com o novo coronavírus COVID-19 a alastrar por todo o o mundo, as autoridades da Nova Zelândia e da Austrália, na Oceania, interditaram os seus portos aos navios de cruzeiro. O MSC -. Magnífica tenta agora chegar à Europa, via canal do Suez, quando ainda faltava mês e meio para completar a viagem de volta do mundo. O navio partiu com um total  3 mil passageiros  (e mil tripulantes):  já regressaram a casa, por via aérea, três centenas de passageiros.

Com o acordo (tácito) do nosso camarada Constantino Ferreira, que continua a bordo com a sua esposa, Elsa, vamos a partir de hoje acompanhar o seu regresso a casa, a partir de excertos e fotos que ele vai publicando diariamente na sua página do Facebook. 

Esperamos que os amigos e camaradas da Guiné, nomeadamente os que vivem em Portugal, também eles em "quarentena", na sequência da declaração do "estado de emergência", em vigor de 19 de março a 2 de abril de 2020, lhes mandem, a ele, à Elsa  e ao António Graça de Abreu, uma saudação amiga e solidária. Felizmente que não há até hoje nenhum caso de infeção pelo COVID-19, a bordo.


2. Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia do COVID 19, tentando regressar a casa (Constantino Ferreira) (1): Sul da Austrália: Sidney e Melbourne 

[Os locais e datas são os que constam da página do Facebook do Constantino Ferreira... Com a devida vénia, reproduzimos alguns excertos e fotos, reeditadas]


Sidney, quinta-feira, 19 de março de 2020, 7h12

Dois dias na Baía de Sidney!

Depois de entrarmos na barra, cada minuto conta, para aumentar a beleza da cidade, que se aproxima cada vez mais aos nossos olhos!

 (...) O primeiro dia, ficamos fundeados no meio desta enorme e bela baía, frente a uma das mais bonitas cidades do mundo. No segundo, atracamos no Cais dos Cruzeiros, mas só autorizados até ao fim da tarde.

Foi a saída que mais me fascinou!... A Ópera Hause mesmo ali a uns metros do convés. A ponte ali mesmo ao lado, era um fascínio para tirar fotografias sem parar! Tirei dúzias de fotografias a esta cidade, mesmo sem poder sair a terra.

Mas estes dois icones de Sidney, a Ópera e a ponte, não me cansaram o olhar e, o meu “Ifone” não se cansou de registar esse meu olhar, como que lamentando também, não ter saído a terra, para fotografar esta cidade, de dentro para fora.

Fiquei em escrever o que me faltava dizer, sobre a saída de Sidney. Pois a saída desta cidade, foi como que “forçada”! Saíram apenas cerca de 100 pessoas, do navio para o aeroporto, já com bilhetes de saída de voo marcados.

Quando saímos a barra de Sidney, era apenas para dar lugar a outros navios na baía, nós íamos para o alto mar, para que a companhia;MSC-Cruzeiros, com o nosso comandante, pudesse decidir o destino a dar-nos !

Pois durante a noite, sempre a navegar com rumo a Sul, tivemos apenas conhecimento pelo Diário de Bordo, colocado no camarote, que o nosso próximo destino seria; Melbourne!

Dois dias de navegação, rumo a Sul, entrámos hoje de madrugada, nesta Baía, onde tivemos lugar para atracar, mesmo aqui ao lado de um dos mais modernos navios de cruzeiros, o “Princess of the Seas”! Que não deixarei de publicar na crónica de amanhã, procurando descrever a nossa tristeza e, alegria também, por andarmos “quase” que como à deriva, por estes mares da Tasmânia e Sul da Austrália. (...)

 Melbourne, sexta-feira, 20 de março de 2020, 1h26


Melbourne foi uma escala imprevista, nestas andanças para conseguirmos chegar ao Mediterrâneo! Não sabemos quanto tempo iremos levar para lá chegar, mas a prevenção sanitária a bordo é absolutamente cumprida. Se lá chegarmos sem nenhum caso de Coronavírus, ganharemos esta “batalha” contra este vírus “amarelo”!

Aqui estamos nesta baía de Melbourne para reabastecimento, com o objetivo de se conseguir ir avançando umas boas milhas, de porto em porto, para reabastecimento, mas sem autorização para desembarque dos passageiros, enquanto esta situação se mantiver, de propagação do Coronavirus !

Aqui a bordo, não temos nenhum caso de Coronovirus! No entanto, nenhum porto nos permitiu o desembarque. Desde Hobart na Tasmânia que não nos é permitido sair a terra.

Depois de Hobart já estivemos em Sidney e agora aqui em Melbourne também não nos é permitido sair a terra. Foi uma determinação do governo da Austrália, como medida de prevenção e contenção da propagação desse vírus, que apareceu na China e, agora já se propagou pelos quatro cantos do mundo !

 (...) Ao entrarmos na baía de Melbourne, até esquecemos que estamos prisioneiros desta “nave” magnífica, que depois de fazer “meia” Volta ao Mundo espectacular, agora se encontra nesta situação, neste outro lado do mundo, a navegar de porto em porto, para se abastecer e, seguir para um outro porto até chegarmos ao Dubai ou, ao Mediterrâneo se for possível, os necessários e indispensáveis reabastecimentos, de combustível e alimentos, para cerca 2.700 pessoas a bordo, pois já saíram pelos aeroportos de Hobart, Sidney e hoje; Melbourne, cerca de trezentos passageiros.

Passámos este dia de 19 de Março, (dia do Pai !), aqui em Melbourne no Cais dos cruzeiros, todos a bordo, apenas saíram cerca de 200 pessoas diretamente para o aeroporto, com bilhetes com reservas para vários destinos na Europa, USA, Canadá e Brasil !

Depois do reabastecimento, pelas 18 horas, ouviram-se os tradicionais três apitos, mais parecidos com roncos profundos, saídos do alto do nave.

Mas a habitual música de saída, de André Bocelli, não foi lançada para nossa alegria. Tivemos sim muitos lenços brancos, dos passageiro do Golden Princess, que estava do outro lado do Cais, um dos mais modernos navios de cruzeiro do mundo. Mas, infelizmente, com a bandeira vermelha içada, aqui retido em Melbourne, em quarentena e higienização.

Largamos do cais, sem música e sem a alegria habitual, mas o fascínio das largadas e saídas manteve-se, com a habitual tomada de milhares de fotos, que no meu caso, já aqui estou a publicar, para vosso “regalo” de olhar esta linda baía e imponente cidade, com seus prédios modernos altíssimos, que lhe dão um perfil inconfundível, a esta que é a maior e mais bonita cidade, mais a Sul do Hemisfério Sul.

Navegamos agora rumo West, com destino a Fremantle-Perth, onde esperamos chegar dentro de cinco dias, a 24 deste mês Março, que está a marcar e a modificar todas as nossas expectativas, para esta volta ao mundo, tão bem programada e, agora alterada, por esta luta contra o Coronavirus, que está a levar o mundo inteiro, para uma luta “desigual”, mas da qual irá sair “vencedor”, mas com muitos mortos e, traumas também para muitos, dos milhões que iremos sobreviver.

A vida vai continuar, mas esta provação vai ser dramática. Nós, aqui a bordo ainda com cerca de 2.700 pessoas, sem nenhum caso de Coronovirus, temos que chegar ao Mediterrâneo, para isso termos que ter alguns reabastecimentos, pelo que esperamos que nem todos os portos nos fechem as “portas”!

Habitualmente, nesta “meia” volta ao mundo, tenho escrito apenas dos portos visitados, mas a partir de agora não sei como vai ser.

Mas quando chegar a Fremantle-Perth, já talvez tenha a rota decidida, pela Companhia MSC-Cruzeiros e, pelo nosso Comandante Roberto Leotta. Esperamos que o destino seja o Mediterrâneo e não o Dubai ou qualquer outro porto dos Emirados, ou por aquela região.

Vamos manter a esperança, que iremos chegar sãos e salvos !


[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

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Nota do editor:

(*) Vd. postes de 


16 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20739: O que é feito de ti, camarada ? (10): António Graça de Abreu e Constantino Ferreira d' Alva, a bordo do MSC Magnifica... Estão impedidos de desembarcar, em Hobart, capital da Tasmânia, e nos restantes portos da Austrália, devido à pandemia do Coronavírus COVID 19... Estão a um mês e meio de regressar a casa.

16 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20738: O que é feito de ti, camarada ? (8): António Graça de Abreu e Constantino Ferreira D'Alva, andam a fazer a volta ao mundo num cruzeiro, no MSC Magnifica... E ainda falta metade do percurso, com o cenário da pandemia do coronavírus COVID 19 na linha do horizonte mais próximo... Boa continuação da viagem e melhor regresso a casa!

Guiné 61/74 - P20752: Notas de leitura (1274): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (50) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Estamos no penúltimo movimento da grande ode que o bardo dedicou ao BCAV 490. Ele agradece comovidamente as venturas maternais, e aqui me ocorreu alancear a recordação até às mães que perderam os seus filhos, e daí a memória à mãe do meu mais querido amigo da juventude, Carlos José Paulo Sampaio, falecido em combate, em Mocímboa da Praia, norte de Moçambique, houve que violentar o pudor para recordar o que foi visitar, mal chegado a Lisboa, aquela mãe com as dores em carne viva e entregar-lhe a última carta que aquele filho escrevera, coisa tão misteriosa, para mim tão vaticinadora de promessas para a vida fora, uma carta que trombeteava sobre o nosso futuro, os sonhos a realizar, findas as nossas guerras. E nesse encontro foi-me dado perceber, de viva voz, porque é que aquela mãe detalhava, esmiuçava ao segundo, os últimos instantes da vida do filho, de acordo com a versão que apurara. Enquanto a ouvia, percebia então perfeitamente porque é que um pai, insistentemente, me pedira para lhe contar os últimos instantes de vida do seu filho, soldado em Missirá, mas que morreu na explosão de uma mina anticarro, a meio caminho entre Finete e Missirá, num local que dá pelo nome de Canturé, ao anoitecer de 16 de outubro de 1969.
São narrativas que nos aliviam, de antemão sabemos que a dor profunda é incurável.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (50)

Beja Santos

“Trouxe-me no colo deitado
minha mãe do coração.
Hoje sou um homem criado,
não me esqueço do passado,
devo-lhe essa obrigação.

Mãezinha, p’ra me criar
andei nos braços seus.
Meu pai sempre a trabalhar,
quando a velhice apertar,
deitar-se-á então nos meus.

Há quem dê pouco valor
a quem à luz nos lançou.
Pois não há outra flor
que nos tenha tanto amor
como a mãe que nos criou.

Deve o fado compreender
quem tenha visão na vida.
Pois é bom de perceber
no mundo não pode haver
quem iguale a nossa mãe querida.”

********************

Quando li a veneração do bardo pela sua mãe logo me ocorreu uma canção largamente difundida na Guiné pelo Conjunto Oliveira Muge, vi gente rendida àquela voz suave, bem soletrada e plangente que irradiava das ondas hertzianas:

“Mãe, tu estás tão longe de mim
Mãe, sinto que estás a chorar
Não chores a minha ausência
Eu hei de voltar
Não chores e pensa agora
Que o tempo passa depressa
Pede a Deus que te tire esse tormento
Que te abrande o sofrimento
Desse teu formoso rosto.
Mamãe, não chores
Eu volto, Mãe.”


Havia as tatuagens de “Amor de Mãe”, os iletrados tanto pediam que se escrevesse ao pai ou à mãe, mas era sobre esta que recaía a adjetivação mais emocionante. E as recordações volteiam para aquelas lágrimas locais, à partida para destino incerto. E a cogitar na alegria do bardo, ternamente agradecido, ciente do sofrimento que a minha mãe passou, dirigi a lembrança para as mães que não voltaram a ver os seus filhos, aliás o bardo a elas dedicou versos de comiseração e agora acompanho-o, lembrando a mãe daquele que foi o meu maior amigo da adolescência, Carlos Sampaio.

Carlos José Paulo Sampaio, falecido em Moçambique, 2/2/1970.

Remexo nos escassos papéis que restam. O que ele escreveu e que levei nos meus haveres para a Guiné, extinguiu-se o essencial numa flagelação, em 19 de março de 1969. O resto guardei, era lido com profundo afeto. Antes de partir para a Guiné, vi-o chegar a Mafra, fui tendo sempre notícia do seu percurso até partir para o Planalto dos Macondes, também em 1969. Era uma amizade de colégio, de faculdade, de serões diários, eu ia até à Praça Pasteur, n.º 9, carregava na campainha do 2.º andar, ele ou uma das irmãs ou a própria mãe me recebiam sempre com um grande sorriso. Uma casa repleta da pintura de Fausto Sampaio, já falecido. No seu quarto, o retrato que o pai lhe fizera, o Carlos ainda muito jovem. Quando chegava o correio ao Cuor ou a Bambadinca era prontamente identificado o que ele me escrevia pela cor da tinta, verde. E aconteceu que a sua última carta me foi destinada, tem a data de 30 de janeiro de 1970, é uma carta voltada para o futuro, ele projetava trabalhar como livreiro e contava comigo. Longa missiva, com letra miudinha, muito regular, tudo decifrável, despede-se, está a ser organizada uma coluna até Mocímboa da Praia, suspira pelo fim da sua comissão, está fisicamente abalado. Saberei mais tarde que nas férias que passou na Anadia destruíra todas as suas pinturas, que eu conhecia, uma a uma. A notícia da sua morte, quando abri uma carta e dela saltou aquela notícia da necrologia que bem conhecíamos, encimada por uma fotografia e pelo Crucifixo, foi tiro que me derrubou, desatei aos urros, tudo se passou no quarto, estava lá um outro camarada, o meu amigo Abel Rodrigues, ficou especado com aquela gritaria alucinante, procurou acalmar-me, que lhe contasse o que se estava a passar, eu tartamudeava, entre baba e ranho. Lavei a cara, aliviei as feições congestionadas, havia muito que fazer depois de almoço, assim se foi atamancando o sofrimento.

Fausto Sampaio, “Autorretrato”.

“Pescadores – Costa Nova”, Fausto Sampaio, 1940, uma pintura a óleo que estava na sala de jantar da Praça Pasteur.

E quando regressei, em agosto desse ano, telefonei à sua mãe, pedindo-lhe para a visitar, com caráter de urgência, entreguei-lhe o espólio das minhas recordações, o único quadro que sobreviveu à destruição, pois ficara em minha casa, em cima de um móvel do meu quarto, entreguei a correspondência, assim se carpiram lembranças, e enquanto aquela mãe, tão magoada, me repetia os últimos momentos de vida do filho, o único filho que tinha, numa picada onde pisara minas antipessoal, os depoimentos que ela pudera colher, não me saía da cabeça a carta que um senhor chamado Jesuíno Jorge, de Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique, me enviara, em resposta à carta que eu lhe dirigira comunicando-lhe o falecimento do filho, ele pedia-me insistentemente que descrevesse o mais pormenorizadamente possível o que se passara nos últimos instantes de vida. Coisa terrível, saber que certos pormenores substituem a visualização de um corpo, e eu sentia-me incapaz de explicar àquele pai e seguramente aos restantes membros da família, que Manuel Guerreiro Jorge tinha o corpo desarticulado, os membros inferiores desfeitos, que no meio de um pandemónio de viatura com o focinho demolido, de cuja caixa saltaram bidons, sacos e caixas, que felizmente amorteceram os ferimentos de muita gente, sobressaíam os gritos lancinantes de alguém que cedeu ao estado de choque e daí ao estado moribundo, partiu da vida numa morança em Finete, com o médico do batalhão de Bambadinca a seu lado. E de forma atropelada tudo isto foi contado a um pai, procurando passar uma esponja pelos termos, eliminando todos aqueles que pudessem fazer supor ossos à mostra ou restos de membros junto dos pedais, por exemplo. E eu assim ia ouvindo o que se teria passado naquela picada que levava a Mocímboa da Praia, um ritual de corpo presente, confirmava que o mesmo tem poder taumatúrgico, aplaca dores, é um alívio temporário mas obrigatório. E depois visitamos o quarto do Carlos, lá estavam as cadeiras em que conversávamos. E horas volvidas, enxutos os olhos, a mãe do Carlos surpreendeu-me à despedida oferecendo-me uma samarra que pertencera a Fausto Sampaio, usei-a anos a fio, era aconchegadora, uma bonita gola de pele, uma lã de corte perfeito, e Deus sabe que para além daquele aconchego dos dias álgidos era como se o Carlos me desse presença, continuasse a sonhar o futuro tal como ele o escrevinhara em letra verde, na sua derradeira carta.

Que o bardo me perdoe eu não endereçar o meu pensamento à madre fundadora, foquei-me em todas aquelas que à partida já vestiam de luto e de luto ficaram, por muito tempo. Há muita literatura da guerra que fala das mulheres, das noivas, das namoradas, das irmãs, mas não será certamente por acaso que as mães têm um papel primordial. Em “sairòmeM”, Gustavo Pimenta diz algo de muito belo: “O beijo de minha mãe durava uma eternidade”. Quando regressei a Lisboa, fui conhecer o meu novo lar. Nessa mesma tarde bati à porta de minha mãe e lindo foi o reencontro. Insistia em mostrar-me o que havia de diferente, imagine-se, os cortinados, as sanefas da sala. Em cima da mesa da sala de jantar estavam as joias que tinham saído da casa de penhores, ali tinham ficado para se arranjar dinheiro para os tratamentos do cobalto, com que atrofiara um tumor de origem maligna na hipófise. Deu-me a mão e levou-me ao meu quarto, tudo intocado, como eu esperava irrepreensivelmente limpo, o chão luzidio, ela gostava muito de ver o madeirame bem encerado. Tê-la-ei surpreendido agradecendo-lhe a educação que me dera, fora tónica permanente nos meus aerogramas, todo aquele ensino precoce de autonomia, de cooperação a uma avó inválida, a sapiência de viver com o dinheiro contado ao tostão e de saber diferir a satisfação de necessidades para um momento mais azado. Um processo educativo que tanto me ajudara a ultrapassar as rusticidades, as carências e as faltas absolutas que são as tónicas constantes de viver numa guerra. E agora curvo-me respeitosamente diante do bardo, “Pois não há outra flor/ que nos tenha tanto amor/ como a mãe que nos criou”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 13 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20729: Notas de leitura (1272): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (49) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 16 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20740: Notas de leitura (1273): “A Engenharia Militar na Guiné, O Batalhão de Engenharia”, Exército, Direção de Infraestruturas, Julho de 2014 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 19 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20751: Meu pai, meu velho, meu camarada (60): Homenagem a todos os nossos pais, no Dia do Pai... (e 1º dia do estado de emergência, decretada na sequência da pandemia do COVID-19)


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001), pai do nosso camarada Hélder Sousa, natural de Vale da Pinta, Cartaxo, ex-1º Cabo n.º 816/42/5,  da 4ª Companhia do 1º Batalhão de Infantaria do RI. 23... Tem a data de 18 de Outubro de 1943 e na legenda refere ser 'recordação de S. Vicente'.

Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Cabo Verde > Ilha do Sal > Pedra de Lume > 1º Batalhão Expedicionário do RI 11 > 1ª Companhia > 1942. 1º cabo Feliciano Delfim Santos (1922-1989), pai do nosso camarada Augusto Silva Santos.

Foto (e legenda): © Augusto Silva Santos  (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas daGuiné]



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1942 > "No dia em que fiz 22 anos, em S. Vicente, C. Verde. 19/8/1942. Luís Henriques " [, 1º cabo inf, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5, Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 1941/43, entretanto integrado no RI 23]. Nasceu (1920) e morreu (2012) na Lourinhã.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas daGuiné]




Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > RI 23 >  c. 1941/44 > RI 23 >  O sold aux enf, Porfírio Dias (1919-1988), 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, que partiu para Cabo Verde no T/T Mouzinho em 18/7/1941, juntamente com o Luís Henriques (ambos eram do mesmo regimento e batalhão). Esteve lá dois anos anos e dez meses.

Foto (e legenda): © Luís Dias (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.Excerto de carta do Luís Dias ao seu pai, já falecido, António Porfírio Dias (1918-1988), alfacinha de gema, publicada aqui há 11 anos atrás (*). 

Através das suas palavras homenageamos, no Dia do Pai,  todos "os nossos pais, nossos velhos, nossos camaradas" (**)...

Pelo menos, cinco dos membros da Tabanca Grande tiveram o seu pai, em Cabo Verde, durante a II Guerra Mundial, integrados nas forças expedicionárias (mas  também locais, como é o caso do Armando Lopes, de que infelizmente não temos nenhuma foto como militar).  que defenderam as ilhas: Augusto Silva Santos, Hélder Sousa, Luís Dias Luís Graça e Nelson Herbert.

É impossível não violar umas das nossas regras editoriais do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné", ou seja, não falar da "atualidade"... Portugal, a Europa, o Mundo... enfrentam a pandemia do novo coronavírus COVID-19, uma série ameaça a todos nós... Foi hoje declarado, em Portugal, pela primeira vez, no atual quadro constitucional (desde 1976), o "estado de emergência", que estará em vigor até ao dia 2 de abril...

Quando a segurança, a saúde e a vida estão em causa, temos que "re-hierarquizar" as nossas necessidades, prioridades e interesses... Como diz o nosso povo, vão-se os anéis ficam os dedos...Isolados em casa, estamos a recorrer mais aos fantásticos recursos da Internet. As vídeochamadas estão a crescer exponencialmente. A Net está mais lenta, Mas é preciso estar atento também aos riscos que as redes sociais representam para a segurança informática... Por favor, caros amigos e camaradas, não nos mandem... "merdas de cornovírus digitais"...

Ajudem também o nosso blogue e a nossa página do Facebook a sair, "com saúde e em segurança", da longa quarentena em que vamos estar mergulhados... Que os bons irãs, lá no alto do poilão da nossa Tabanca Grande, nos protejam a todos/as!

Bom dia, no Dia do Pai (!), para aqueles que são pais, avós e bisavós, e também para aqueles, dos nossos camaradas, que ainda têm os pais vivos... São "fósseis" vivos, mas são os nossos heróis!... O meu, Luís Henriques (1920-2012), se fosse vivo, faria hoje 100 anos. Também passou 26 meses de "quarentena", na ilha de São Vicente, Cabo Verde, entre julho de 1941 e setembro de 1943...

Ele e tantos outros, camaradas anónimos,  são heróis esquecidos do nosso passado recente, em que cerca de 180 mil militares foram mobilizados para defender Portugal e os seus territórios de "além-mar", nomeadamemte do Atlântico Norte: Madeira, Açores, Cabo Verde... ,(Onze navios da nossa marinha mercante e da frota pesqueira foram afundados entre 1940 e 1943!... Pouca gente sabe isto... O meu pai, e o pai do Hélder Sousa e o pai do Augusto Silva Santos, e o pai do Luís Dias e os outros expedicionários em São Vicente, Santo Antão e Sal, só tinham "vapor" de dois em dois meses, com o correio e a bianda...).

Por favor, protejam-se e protejam os outros: não se esqueçam que o maldito "cornovírus" é mais "gerontófilo" do que pedófilo", gosta mais dos "velhos" do que das "crianças"...

Camarada, toma o teu lugar na trincheira deste combate. O COVID -19 não passará!... LG


Querido pai,

Hoje é dia 19 de Março...

(...) Neste dia queria lembrar que também tu foste mobilizado e enviado para Cabo Verde, no tempo da 2ª Guerra Mundial, que cumpriste também um dever que te foi imposto pelo teu/nosso país. 


Sei que a tua comissão não teve os riscos de combate, de guerra, como eu tive na Guiné, embora se falasse da possibilidade de um ataque alemão ou mesmo inglês, conforme o governo de Salazar se fosse inclinando para um lado ou para o outro, mas houve outros perigos: muita fome, doenças e as desgraças que assististe por força da tua especialidade.

Foste também vítima da habitual falta de material para cumprir com o necessário cuidado as tarefas de que eras incumbido, como Soldado Auxiliar de Enfermagem. E foi por teres utilizado umas luvas já deterioradas numa intervenção cirúrgica, em que apoiavas o médico, que depois,  ao tocares com os dedos num dos teus olhos, arranjaste o problema que te obrigou a usar óculos desde então.

Aqueles tempos de 18/7/1941 a 7/5/1944 (2 anos e 10 meses!!!), em terras de Cabo Verde, não terão sido pera doce e lembro-me da história que tu contaste do submarino alemão que atracou e que, depois de instado a sair de águas portuguesas, os alemães mantiveram-se calmamente no local e só se foram embora quando lhes apeteceu. 





Luís Dias, alf mil, CCAÇ 3491,
Dulombi, 1971/74
Mas também das mornas que tu ficaste a adorar, como adoravas o fado. E a porrada que apanhaste e que está na tua caderneta, por estares no refeitório a atirar bolinhas de pão aos teus camaradas. É mesmo para rir…!!! Não havia mais nada para os teus superiores se entreterem? E um dos louvores por teres agarrado o cavalo do comandante que tinha tomado o freio nos dentes…. e que tu dizias que só o agarraste porque não sabias que o cavalo estava enlouquecido...porque se soubesses deixava-lo fugir! Ah!AhAh!

Lembro-me da alegria que tiveste quando fui promovido a Aspirante a Oficial Miliciano e, se a mãe chorava, quase diariamente, como tu me contaste, quando eu estava na Guiné, ela também me contou das tuas lágrimas quando aos fins-de-semana me ajudavas a levar a mala até às camionetas, que me levavam a Mafra e depois a Abrantes de regresso ao quartel.

Sempre te fizeste de forte, mas eu sei o quanto também sofreste, enquanto eu por África andava. Imaginavas os horrores que devíamos estar a enfrentar, pensando no que tu também passaras. (...)

 A nossa Lisboa continua linda e o Tejo, com o qual tanto conviveste, em virtude da tua profissão (Conferente Marítimo), está hoje mais perto da cidade, numa aliança muito importante para os lisboetas.

(...) Pai, estou a invocar-te aqui no blogue da minha companhia, porque tu também foste um mobilizado para África. Um, entre os muitos milhares que a Pátria foi lançando para as terras bravas e quentes daquele Continente. Foste um soldado português, como nós fomos. 


O país, como aos combatentes da 1ª Grande Guerra, onde o meu avô também esteve, aos do teu tempo, aos da Índia e a nós combatentes da guerra colonial, nunca nos agradeceu, porque é ingrato ou, se calhar, também não mereceu tanta brava gente.

Um abraço saudoso de teu filho. Um dia, quando Deus quiser, iremos voltar a abraçar-nos.

Luís Dias
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9657: Meu pai, meu velho, meu camarada (26): Porfírio Dias (1919-1988), ex-sold aux enf, Cabo Verde, São Vicente, Mindelo (de 18 de julho de 1941 a 7 de maio de 1944) (Luís Dias)

(**) Último poste da sére > 9 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20328: Meu pai, meu velho, meu camarada (59): "Maria Bárbara, canta mais uma morna... / S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más... Uma morna imortal, numa homenagem à Morna, em vias de ser oficialmente consagrada como "património cultural imaterial da humanidade"

Guiné 61/74 - P20750: (Ex)citações (364): Os Romanos, uns colonialistas, gananciosos e exploradores, vieram encontrar os pré-portugueses do território de Penafiel a habitar em "bandos" (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil CAV)

1. Comentário do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) publicado no P20744 de 18 de Março de 2020:

Correspondo ao alto evento cultural, útil e proveitoso (das feijoadas, bacalhau, tripas, rojões, cabrito, cabra velha, sável, lampreia e enguias), promoção "em bando" pelos camaradas "bandalhos", culminada com a romaria ao Castro de Mozinho, e à sua viral provocação ao "corno-vírus" (nuance fonética popular), enriquecendo-a com apontamento referido à sua pré-história.

Os Romanos, uns colonialistas, gananciosos e exploradores, vieram encontrar os pré-portugueses do território de Penafiel a habitar em "bandos" os cumes dos montes, em "tabancas" amuralhadas, para melhor vigilância e defesa do IN, homem ou bicho mau, classificaram esses "bandalhos" de bárbaros e o sua urbanização de castrum (castro).

Eles adoravam o sol, viviam da caça e da pesca e ocupavam o seu longo tempo no jogo da malha, em folguedos ou no ócio, o trabalho excluído. E assentaram arraial, a nomadizar nele.

Roma carecia de minérios e de cereais, o homem e o burro só valem se trabalharem, caíram na asneira de forçar os "bandalhos" à sua organização e ao trabalho (as "bárbaras" tinham outras valências...) e eles viraram "terroristas", em pequenos bandos e os romanos a "lerpar" por tudo o que era montanha.

Os militares romanos pertenciam todos ao QP, não havia milicianos (o posto de Cabo Miliciano foi criatividade do Exército Português, para nos exigir serviço de sargento e de oficial ao custo do pré de praças), nem sabiam nem estavam dispostos a combater na montanha, a "ir para o mato".

E os Romanos demoraram quase dois séculos a empurrar os pré-portugueses das montanhas para os vales, para os conseguir controlar e fazer deles mineiros e "servos da gleba" - estratégia que recriaremos na Guiné, com os "aldeamentos". (Prosperaremos no negócio da escravatura africana, por termos descoberto e expandido o seu "mercado" mas, sobretudo, por termos sido escravos muito antes deles...).

Sei o nome do fundador deste "bando", o camarada Jorge Portojo In Memoriam, quiçá inspirado na "loiça" das Caldas, sei o nome do fundador do "bando" LG&C da Guiné, inspirado nos dinossauros ou na aguardente da Lourinhã?) e espero que aqueles bandalhos me ensinem o nome do comandante romano, não foi o que os levou em bando à taina da lampreiada e sável, mas foi que os levou em em bando a Mozinho. O que andou pela minha terra era general e patrício, descendente do deus Juno, o Senado de Roma atribuiu-lhe o título de O Galaico, chamava-se Decimus Junius Brutus e o dicionário adoptou este sobrenome para este qualificar certos indivíduos e suas atitudes.

Da da vossa parte, não o merecerei nem como indivíduo nem por este escrito.

Estimados camaradas, na esteira do fundador do bando LG&C, rezo para que o "corno-vírus" (nuance fonética popular) não tenha correspondido à vossa provocação, alojando-se no vosso bando, na esperança de não a rezar, por causa e consequências dele.

Manuel Luís Lomba
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20651: (Ex)citações (363); em dia de namorados, qual é a morna mais romântica de todos os tempos ? Segundo o "Expresso das Ilhas", é "A Força de Cretceu", a força do amor, poema do grande poeta da Brava, Eugénio Tavares, que nasceu (1867) e morreu (1930) em Nova Sintra

Guiné 61/74 - P20749: (In)citações (145): Guerra e Vírus (Paulo Salgado, ex-Alf Mil Op Esp)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado, [ex-Alf Mil Op Esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro (, o mais recente,) "Milando ou Andanças por África" (Torre de Moncorvo: Lema d'Origem, 2019); africanista no sentido nobre do termo; Administrador Hospitalar reformado, com um vasto currículo, que inclui a Guiné-Bissau e Angola

Caros Amigos e Editores do nosso blogue,
A vossa saúde.
Que todos sejamos cumpridores.

Um abraço e um texto, abaixo.
Paulo Salgado

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Camaradas do Blogue:

A guerra… o que é a guerra? O que fazem homens e mulheres durante a guerra? Quem é o inimigo?
Se fizermos uma retrospectiva histórica, desde a Antiguidade até aos nosso dias, que guerras foram travadas? E por quem foram travadas?

A lista é incomensurável. Se os camaradas se derem ao trabalho de ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_guerras, verificarão quão brutal é o homem!

Desde a Suméria até aos nossos dias… quantas guerras… Ou acreditamos que os homens são naturalmente bons, como defendiam Thomas Morus e Rousseau, por exemplo, e acharem que o homem nasce livre e bom… ou é naturalmente mau. Homo lupus homini [, o homem, lobo do homem].

Eu gostaria de acreditar na primeira premissa, mas as circunstâncias tornam-no, ao homem, invejoso, ganancioso, imoral, como contrapôs Voltaire; na verdade, a humanidade não funciona como um relógio certinho… a que Deus não está, infelizmente, atento, como defendia Spinoza. E Aldous Huxley afirmava o seguinte: que os homens não aprendem com a História e que esta é a mais importante de todas as lições que a História tem para ensinar…

Apesar de tudo, nas guerras sabia-se, (quando havia confronto directo), ou imaginava-se saber (quando havia guerrilha) onde estava o inimigo. Agora, onde está o inimigo do homem? O inimigo de todos os homens em todos os quadrantes? Ele é invisível, e pode estar ao nosso lado.

Agora os homens estão do mesmo lado. Vamos combatê-lo com as armas que temos na mão: comportamentos saudáveis, normas que nos são referidas e/ou impostas.

Eis – penso – uma guerra que  se ganhará sem lanças, sem morteiros, sem canhões, sem fiats, sem napalm…

Assim, almejaremos a vitória contra o COVID-19.

Um abraço, companheiros.
Paulo Salgado

[Para saber mais, vejam o sítio da Direcção Geral de Saúde]
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20734: (In)citações (145): "Gosto da Guiné - Bissau e Tenho Orgulho de o Dizer": vídeo do Zeca Romão, de Vila Real de Stº António, Fur Mil At Inf, CCAÇ 3461 / BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto) e CCAÇ 16 (Bachile, 1971/73)

Guiné 61/74 - P20748: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (117): A COVID-19 não passará!... Pois, cantemos a vida, a alegria, o amor... "Aimons le vin"... Amemos o vinho, o amor e as mulheres: canção tradicional, Normandia, França, interpretada pelo Coro Municipal da Lourinhã (maestro: Carlos Pedro Alves)



Vídeo (2' 42'') > Alojado no You Tube > Luís Graça


Lourinhã > GEAL - Museu da Lourinhã > 8 de março de 2020, 15h > Atuação do Coro Municipal da Lourinhã (maestro: Carlos Pedro Alves), no âmbito da Exposição Temporária Descentralizada "Arte Sacra Local". Canção "Aimons le vin", cancioneiro popular francês, Normandia. Vídeo: Luís Graça (2020)


Aimons le vin 

(Música tradicional popular, 
Normandia, França)

C’est en passant de Paris, la Rochelle (bis)
J’ai rencontré trois jolies demoiselles.
Aimons le vin...

Aimons le vin et l’amour et les filles.
Aimons le vin...

J’ai rencontré trois jolies demoiselles (bis)
J’ai pas choisi, mais j’ai pris la plus belle.
Aimons le vin...

Je l’ai monté derrière moi sur ma selle.
Je lui demande: Êtes vous mariée ?
Mariée ou pas, ce n’est pas votre affaire.


J’ai trois enfants, ils ont chacun leur père.
Le premier du curée, le second du vicaire
Et le troisième, c’est du clerc de notaire...

Fonte: Partitions de chansons: Aimons le vin...
(com a devida vénia)


Amemos o vinho...

(cancioneiro popular francês, Normandia)

Trad. do fr. / adaptação livre: LG

Vindo de Paris, em La Rochelle (bis),
Eu encontrei três belas raparigas.
Amemos o vinho...

Refrão:

Amemos o vinho, o amor e as mulheres.
Amemos o vinho.

Eu encontrei  três belas raparigas (bis)
Não escolhi, mas peguei na mais bela.
Amemos o vinho...

Pu-la, atrás de mim, na minha sela.
Perguntei-lhe: És casada ?
Casada ou não, não é da tua conta.

Tenho três filhos, cada um de seu pai:
O primeiro é do abade, o segundo, do vigário.
E o terceiro, do ajudante de notário.

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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20743: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (114): A COVID-19 não passará!... Até maio ou junho, camaradas! (Constantino Ferreira, MSC - World Cruise, Austrália, Sidney, 16/3/2020)

quarta-feira, 18 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20747: Memória dos lugares (406): Visita ao Campo do Tarrafal na Ilha de Santiago, Cabo Verde, em 2018 (Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de hoje, 15 de Março de 2020:

Caros amigos

Os artigos sobre Cabo Verde e o Campo do Tarrafal[1], posteriormente também hipocritamente chamado de “Chão Bom”, tiveram algum efeito nas minhas emoções.

De tal modo que pensei em escrever alguma coisa sobre isso mas não me atrevi a fazê-lo sem antes proporcionar algum distanciamento.

Ora bem, já será conhecido por aqui no Blogue que o meu pai [, Ângelo de Sousa Ferreira, 1921-2001 ,ex -1º Cabo n.º 816/42/5 da 4ª Companhia do 1º Batalhão de Infantaria do R.I. 23, São Vicente, Cabo Verde, 1943/44, foto à esquerda] fez parte das forças expedicionárias que procuraram afirmar a soberania em Cabo Verde aquando do conflito designado por II Grande Guerra Mundial, nos inícios dos anos 40 do século passado.

Dessa permanência lá, na Ilha de São Vicente, chegavam-me por vezes alguns relatos, algumas referências, algumas recordações dele, quando se dispunha a falar sobre isso ou quando se viam as fotos. E as “fomes”, e as doenças e as alusões ao “Campo da Morte Lenta”, apareceram de forma natural e acabaram por ficar gravadas na minha memória. Relacionamento meu com Cabo Verde só por os aviões que utilizei nas férias tocarem o solo da Ilha do Sal nas suas idas para a Guiné.

No entanto, em finais de Julho de 2018, integrado numa delegação da minha Ordem profissional, participei em eventos ocorridos na Ilha de Santiago (aquela, onde, segundo uma canção, “tem corpinho de algodão, saia de chita com cordão…”.

O evento correu bem, a estadia também, gostei muito de lá ter estado, ainda experimentei a temperatura da água do mar, mas como não estava de férias não tive muito tempo para fazer visitas.

Apesar disso ainda fui pela “primeira vez” à Ribeira Grande e, como não podia deixar de ser e para cumprir os versos da conhecida canção da Cesária Évora, “um passeio sabe, fui dentro dum reservado” (já que fui, com outros, numa carrinha “reservada”). Visita interessante à primeira capital do arquipélago com algumas histórias/informações curiosas, de que ressalto a placa comemorativa e evocativa da passagem do Padre António Vieira pelo local (foto 1), mas não é dela que quero dar conta.

Foto 1

Estando lá, em Cabo Verde, na Ilha de Santiago, não me sentiria bem se não conseguisse visitar o Campo do Tarrafal (“Chão Bom”…) e prestar a minha silenciosa homenagem aos que por lá pereceram e sofreram. E assim foi.

Uma viagem relativamente longa e difícil dada a orografia do terreno, por boas estradas, com toda a aparência de construção recente, fruto de, salvo erro, apoios da União Europeia, com passagem por Somada (ou Assomada, terra do pai de Amílcar Cabral, segundo disseram) (Foto 2), onde foi feita uma paragem e se aproveitou para visitar o mercado local e comprar mangos e outras coisas.

Foto 2

Visitar o mercado local e comprar mangos e outras coisas (Foto 3).

Foto 3

Antes de se ir visitar o Campo da ignomínia fomos almoçar em local sobranceiro à praia. Areia fina, limpa, mar calmo (Foto 4).

Foto 4

Na visita ao Campo o primeiro impacto é logo a entrada do mesmo. Não é uma imagem estranha. Construção concebida segundo a “moda da época” e por isso faz lembrar o que será muito conhecido na entrada de Auschwitz, sem a famosa frase e à dimensão portuguesa, mas com o torreão e uma linha ferroviária que atravessa, prossegue depois sobre o fosso que separa a vedação externa e a mais interior e entra depois então no espaço do Campo (Fotos 5, 6 e 7).

 Foto 5

 Foto 6

Foto 7

Lá dentro sente-se (senti) o peso do passado, com as “barracas” para os presos (com a configuração da utilização mais “recente”, com construções para utilizadores distintos: angolanos, guineenses e outros (Foto 8).

Foto 8

Vi, como como não poderia deixar de ser, o que disseram ser a ”entrada” para a tristemente célebre “frigideira”, vi a sua versão mais “moderna”, a “holandinha” (Fotos 9, 10 e 11) e impressionou-me particularmente a leitura de algumas frases bem ilustrativas do modo de vida, do dia-a-dia naqueles espaços (Fotos 12, 13, 14 e 15).

 Foto 9

 Foto 10

 Foto 11

Foto 12

Foto 13

Foto 14

Foto 15

No regresso à Cidade da Praia passámos por um conjunto de instalações de envergadura (residências para estudantes, complexo hoteleiro e outras realizações) em construção pela “solidariedade chinesa” e deparei com uma estátua de Amílcar Cabral (Foto 16) que ilustra o contraste da atitude que existe em Cabo Verde para com o “pai da Pátria” com o que se houve dizer que se passa (ou passava) na Guiné.

Foto 16

Em resumo, a visita a Cabo Verde, mais propriamente à capital Praia, foi muito interessante e gratificante. Seja lá o dinheiro de quem for a verdade é que estão a fazer coisas acertadas e úteis. A visita ao Tarrafal deixa sempre, pelo menos a quem não for insensível aos dramas de outros, uma tristeza interior somente compensada pela certeza de que apesar desses miseráveis comportamentos o género humano afinal foi capaz de derrotar a barbárie.

Abraços
Hélder S.
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Notas do editor

[1] - Vd. postes de:

7 de março de 2020 Guiné 61/74 - P20708: (D)o outro lado do combate (58): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte V (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

5 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20705: (D)o outro lado do combate (57): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte IV (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

3 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

Último poste da série de 17 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20742: Memória dos lugares (405): Cacela, a fadista Lucinda Cordeiro e o grupo "Cantar de Amigos", num vídeo do Zeca Romão (ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 3461 / BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, e CCAÇ 16, Bachile, 1971/73)

Guiné 61/74 - P20746: Antropologia (38): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Não é de mais recordar que o cónego Marcelino Marques de Barros pode ser encarado como uma primeira glória científica da Guiné: por ser guineense de origem, por ter exercido o múnus de Vigário-Geral, pela sua aturada pesquisa no campo da etnografia, da etnolinguística, da antropologia, por ter deixado uma miniatura de dicionário português-crioulo. Nas últimas décadas, incluindo mesmo o período colonial, procedeu-se a um levantamento de lendas, provérbios, canções, mas curiosamente quem foi o pioneiro desse levantamento tem o nome de Marcelino Marques de Barros.
Muito beneficiaria a cultura luso-guineense da edição integral de todo o seu trabalho, ele não foi um cabouqueiro amador, acresce que tinha uma escrita culta e uma clara devoção à terra que o viu nascer.

Um abraço do
Mário


Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes… (2)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 3.ª Série – Nº 12, 1882, publicou um artigo do Vigário-Geral da Guiné, Marcelino Marques de Barros, porventura o primeiro grande intelectual guineense, com o título “Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes, línguas e origens dos seus povos”. Marcelino Marques de Barros tem sido alvo de alguns ensaios, deplora-se que o conjunto da sua obra não tenha tido a republicação que se justifica, ele foi etnolinguístico e explorou, com os seus conhecimentos, a dimensão antropológica, como um verdadeiro pioneiro.

O Cónego Marcelino não seria certamente detentor de informações exatas quanto à topografia guineense, o seu trabalho data de quatro anos antes da Convenção Luso-Francesa mas o que refere é inteiramente impossível, quanto a números. Ele escreve: “O domínio português nesta parte ocidental de África estende-se a 62 mil quilómetros quadrados, isto é, acha-se reduzido a pouco mais da quinta parte da antiga Senegâmbia Portuguesa. A sua população deve ser muito mais de 2,5 milhões, isto é, a quinta parte da população da Senegâmbia, que é seguramente de 14 milhões. Os rios mais importantes que retalham o continente são: Casamansa, S. Domingos ou Farim, Geba, Rio Grande, Tambalé ou Nalú e o Rio Nuno. E junto à embocadura destes rios temos o arquipélago dos Bijagós todo inteiro”. Bem curiosa a sua observação sobre a extensão da Senegâmbia, parece desconhecer que a presença portuguesa era quase epidémica, circunscrita a zonas do litoral, neste tempo o posto mais avançado era Geba, não distante de Bafatá.

Refere-se à topografia e depois faz um inventário de alguns dados etnográficos a que já se fez referência, como seja a saudação, os pactos e juramentos, a hospitalidade, o roubo, as correrias e abordou-se a epigamia, poligamia e poliandria. Há aqui dados curiosos que ele evoca: “Entre Bijagós, a mulher faz casa por suas mãos e recolhe o homem da sua preferência. Uma Balanta pode ter mil amantes, e querendo passar uma temporada previne o marido, dizendo: “Vou a uma entrevista”, e sem mais cerimónias abandona-o por muitos dias; mas ao regressar a casa é mal recebida, e pode mesmo ser castigada pelo marido se se apresenta com as mãos vazias. É de estilo trazer sempre alguma coisa: um balaio de arroz, uma cabra ou uma cabaça de leite”.

Falando do aborto e infanticídio, refere que os gémeos, os albinos e os partos monstruosos são, em geral, expostos nas florestas à voracidade das feras e das aves de rapina. Os Felupes, principalmente, constituem uma exceção, quanto aos gémeos, que consideram como um prodígio de fecundidade, com que os pais muito se engrandecem. Acerca da aleitação, observa: “As mães exageram tanto o dever de aleitar os seus filhos que não é raro encontrar rapazes de três a quatro anos que para toda a parte vão, tudo comem e tudo sabem, divertirem-se com os seios da mãe, como se ainda andassem ao colo”.

Não menos curioso é o que ele escreve sobre a circuncisão: “Em toda a Senegâmbia, é opinião minha, ninguém considera a circuncisão debaixo de um aspecto religioso; um Balanta pode ser circuncisado sem que por isso se considere islamita ou judeu; um Grumete pode ser circuncisado sem que para esse facto se considere pagão ou renegado. A circuncisão, pois, não é mais do que um manto sagrado, que envolve uma sociedade secreta, universal, terrível e admiravelmente constituída, com os seus sinais e com os seus símbolos, e aonde as raças, as cores, as religiões e as hierarquias desaparecem completamente. As festas da circuncisão são as mais aparatosas que se conhecem, e nelas se notam certos usos estranhos e singulares. Não há nada, enfim, mais interessante e mais curioso no estudo dos usos e costumes africanos do que essa cerimónia a que chamam fanado, insignificante na aparência, e que, contudo, é a origem das feições políticas das nações e a fonte dos heroísmos, de grande virtude e de atentados enormes. Ali se aprendem línguas para sempre desconhecidas do vulgo; ali se cortam as excrescências físicas e morais do homem; é ainda ali onde se entra no conhecimento de um nome semelhante ao Jeová dos hebreus, para não ser pronunciado senão uma ou duas vezes na vida. Eu provarei, em outro escrito mais desenvolvido, tudo o que venho de expor neste e noutros capítulos. Os Bijagós são os únicos que se não circuncisam”.

Falando de costumes, ele escolhe os agrícolas e os guerreiros, sobre os agrícolas diz o seguinte: “Enquanto que toda a terra é insuficiente para as ambições de um Balanta e de um Felupe, o Beafada, pelo temor de ser tido na conta de feiticeiro, não cultiva as suas terras mais do que o limitado no quadrado da distância em que tombou a sua enxadinha, arremessada com toda a força. Enquanto entre Bijagós os homens passam o tempo a fisgar peixe à beira-mar ou nos bosques a beber vinho de palmeira, as mulheres lavram as terras, semeiam e recolhem o mantimento para sustentar o marido e os filhos. E enquanto, finalmente, os Felupes e Fulas engordam os seus animais com arroz e milho, de que estão cheias as suas tulhas, os Cassangas, e não poucas vezes tribos Beafadas morrem de fome aos centos por ano".

Quanto aos costumes guerreiros, é esta a sua leitura: “As declarações de guerra são sempre feitas pelas tribos que reconhecem a sua superioridade numérica: uns, como os Futa-Fulas, só combatem com o fim de acharem nos despojos das povoações destruídas ou sujeitas, os meios de subsistência. Alguns combatem sempre em campo aberto, tais como os Felupes e os Futa-Fulas; os Papéis só ocultos por trás das árvores ou espalhados pelas moitas fazem uso das suas armas. O Balanta afronta as balas com uma espada em punho, e os Futa-Fulas disparam um chuveiro de flechas envenenadas nas grandes batalhas. E a cabeça do inimigo, separada do tronco, é o maior troféu que um guerreiro pode alcançar nos combates”. Estima que a antropofagia está radicada da Guiné quando escreve: “Os Felupes de Bote e Sélek são os últimos povos que há vinte anos perderam o hábito de devorar os seus semelhantes”. E procede a uma síntese do que são as doenças da região: “Algumas enfermidades há, muito vulgares na Europa, tais como a gota e a hidrofobia, que são desconhecidas nestes países; e algumas, ao contrário, são muito vulgares, como a elefantíase, a oftalmia, a hemicrania (tipo de cefaleia), a alienação mental e a misteriosa pedra escrófula, como lhe chamam vulgarmente, mal do sono”.

O Cónego Marcelino, percebe-se facilmente, sente-se fascinado com um conjunto de aspetos religiosos, e desenvolve o tema a partir das cerimónias fúnebres. Os tais selvagens de que fala só morrem em resultado de feitiços de um pobre diabo, sendo o cadáver metido numa tumba negra e levado aos ombros de quatro hércules, ao som de umas ladainhas. Como as cerimónias do enterramento podem demorar vários dias, para que a corrupção não incomode os vivos alimentam uma fumarada por baixo da barraca sobre a qual assentam o pobre morto. “E a minha pena recusa descrever os nauseabundos processos a quem sujeitam o cadáver. Por toda a parte se encontram sítios destinados para os enterramentos; porém, tribos há que enterram dentro de casa e por debaixo da cama dos vivos: é o costume dos Bijagós e Nalus. De duas maneiras, geralmente, cavam os gentios as suas sepulturas: horizontal e vertical. Uns sepultam os seus mortos como nós sepultamos os nossos, os Papéis e os Mandingas, por exemplo, outros no fundo da galeria horizontal, tais como os Felupes e os Beafadas. Quase todos os gentios envolvem os seus finados em panos e esteiras, e os mouros colocam os seus mortos sobre o lado direito com o rosto para o Oriente”.

OBS: - Recomenda-se vivamente a consulta dos seus elementos biográficos no site:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4878/1/LS_S2_04_JoaoDVicente.pdf

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 11 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20723: Antropologia (37): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20745: Ser solidário (229): Projecto Kassumai e homenagem ao cap Luís Rei Vilar (1941-1970), em Susana, 50 anos depois da sua morte (Duarte, Manuel e Miguel Rei Vilar)






Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Susana > 18 de fevereiro de 2020 > Os irmãos  Rei Vilar, com a população local, em dia de homenagem ao  cap cav Luís Rei Vilar (1941-1970), ex-comandante da CCAV 2538 (Susana, 1969/71), morto em combate em 18/2/1970, no decurso da Op Selva Viva-

Fotos (e legenda): © Duarte Vilar (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem que nos chega, do Duarte Vilar, amigo e condiscípulo do nosso editor Luís Graça, irmão do saudoso cap cav Luís Rei Vilar (


Data: 17 mar 2020 11h45

Assunto: Viagem a Suzana, fevereiro de 2020

Meu caro Luís

A teu pedido e com muito prazer envio texto e algumas fotos para o blogue.

A nossa viagem foi muito boa e a tempo de nos safarmos dos últimos e nefastos acontecimentos na Guiné-Bissau. Eu saí a 26 e os meus irmão a 28 de Fevereiro.

Um abraço grande e com muita amizade

Duarte Vilar



2. FAZER A MEMÓRIA ÚTIL  > Homenagem ao nosso irmão, Capitão Luis Filipe Rei Vilar 


por Duarte, Manuel e Miguel Rei Vilar

Há cerca de 3 anos e meio, um de nós recebeu um email. Um email de um enfermeiro que andava em terras felupes – em Suzana na Guiné Bissau - fazendo um estudo sobre questões de saúde.

Não nos conhecia nem nunca tinha ouvido falar de nós ou do nosso irmão Luís. Mas ao entrevistar os “homens grandes” de Suzana ouviu várias referências sobre um tal “capitão Vilar” de quem os felupes falavam, com uma boa recordação.

O enfermeiro Luís Costa teve curiosidade em conhecer o personagem referido, ”googlou” e através deste blogue,  “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, chegou até nós, dizendo que tínhamos um património em comum com os felupes de Suzana: as memórias boas de um homem bom – o capitão Vilar – caído no contexto de uma operação militar perto de Suzana.

De facto, já conhecíamos os felupes há 47 anos porque o nosso irmão Luís nos tinha falado deles com entusiasmo, quando passou uns dias de férias antes de partir de vez.

Falou da sua famosa saudação kassumai e da resposta kassumai keb. Falou das tradições guerreiras dos felupes e da luta felupe. Trouxe consigo para nossa casa e para a nossa mesa um felupe – António Blata – um dos guias da companhia de cavalaria que comandava. Mostrou-nos as fotos de Suzana e dos felupes de Suzana que, quando o nosso irmão morreu, mesmo sem os conhecer, ficaram, para sempre, nas nossas memórias.

Por isso, depois do email, em Janeiro de 2017 fizemos as malas e fomos, os 3 irmãos, visitar os felupes de Suzana e as memórias que guardavam do capitão Vilar.

À chegada, fomos recebidos pelas crianças e pelos professores das escolas de Suzana. Abraçámos os filhos do Blata e reunimos com os homens grandes. E ouvimos então muitas histórias da boca dos felupes confirmando que, para além das preocupações militares, o nosso irmão se preocupava genuinamente com a vida dos felupes de Suzana. Soubemos que as crianças eram todos os dias recolhidas e levadas de volta às tabancas para ir à escola, que comiam sopa no aquartelamento e, por isso, eram chamados de “sopitos”.

Vimos também que a escola que tinha sido construída durante o tempo de comando do nosso irmão, apesar de estar em mau estado, continuava a funcionar como jardim de infância.

Decidimos então iniciar um projeto de apadrinhamento das crianças de Suzana, até porque os felupes de Suzana não se fizeram rogados e nos pediram apoio porque, como todos sabemos, não faltam problemas nem necessidades na Guiné Bissau. E assim nasceu o Projeto Kassumai, uma associação que reúne amigos e familiares nossos que contribuem mensalmente para a escolinha de Suzana.

Desde essa altura foram realizados, com o apoio do Projeto Kassumai, diversos melhoramentos. Mudou-se o telhado e o chão. Construíram-se sanitários e fossa séptica respetiva, pintou-se a escola, colocaram-se portas novas, fez-se uma vedação e telheiros, compraram-se carteiras e algum material escolar. Iremos apoiar agora, juntamente com a comunidade, o pagamento das educadoras da escola.

Em 18 de Fevereiro de 2020 passaram-se exatamente 50 anos sobre a morte do nosso irmão Luís nas areias do Cassuh e, nesse contexto, 12 padrinhos e madrinhas do Projeto Kassumai fomos a Suzana.

Fomos de novo recebidos com danças e cantares. Reencontrámo-nos com os “homens grandes “e as “mulheres grandes “de Suzana e novas ideias surgiram dando continuidade ao trabalho iniciado há 3 anos. E, em reconhecimento á memória do nosso irmão, as autoridades decidiram dar o seu nome à escola renovada – Escola Capitão Luis Filipe Rei Vilar.

Foi uma cerimónia emotiva e, antes de descerrar a placa com o novo nome da escola, as crianças felupes de Suzana cantaram uma canção de homenagem aos combatentes caídos na guerra de libertação, recordando assim os dois lados na guerra.

Da  esquerda para a direita, Manuel, Miguel
 e Duarte Rei Vilar

Tudo acontece por acaso, ou nada acontece por acaso.

O Luís Graça recordou uma vez que, para além das leituras históricas e políticas da guerra colonial, existem as inúmeras histórias pessoais de quem combateu, de quem esteve lá, de quem não esteve lá, de quem viu gente morrer de perto, e de quem perdeu familiares seus.

Esta história faz parte do segundo tipo de leituras.

O certo é que os felupes de Suzana, e a família Rei Vilar partilham mesmo a memória do nosso irmão Luís, Capitão Vilar para os felupes de Suzana.

E desta partilha nasceu um pequeno exemplo de como, a memória de alguém que partiu há 50 anos, pode ser transformada utilmente em amizade e solidariedade entre os povos.

18 de Fevereiro de 2020

Duarte Rei Vilar
Manuel Rei Vilar
Miguel Rei Vilar
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20719: Ser solidário (228): Consignação de 0,5% do IRS à Associação "Afectos com Letras"...levando mais esperança e educação às meninas guineenses