quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Guiné 61/74 – P21341: Memórias de Gabú (José Saúde) (96): A fé na guerra (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Memórias de Gabu

Camaradas,
Deixo-vos mais um pequeno texto do meu último livro, nono, editado pela Editora Colibri – “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74”
Deus, virtualmente presente

A fé na guerra


Tempo de leitura
A inabalável fé que cada um de nós - cidadãos comuns de um cosmos desigual - suporta ao longo da vida, afigura-se como uma junção espiritual que nos transporta a um mundo virtual onde as barreiras do imaculado não ousam ferir princípios que catapultam o ser humano para uma bênção divina. O conceito de fé não deve de forma alguma ser suscetível de hediondas conceções que tornam o homem uma criatura mártir de preconceitos falsamente concebidos.
A guerra, melhor, viver no terreno as agruras que o conflito teimava em não dar tréguas a um soldado sem medo, tinha também uma outra vertente que conduzia o combatente a venerar algo oculto que permitisse sentir um melhor estado emocional. Afinal, ninguém foge às escarpas que a vida nos contempla. O destino dita o confronto com realidades que jamais ousámos desenhar. 
Assim, partindo do princípio que a fé, embora na conceção dos laicos a convicção seja irreal, remete-nos ao sentimento nobre de um persuadido que olvidou por completo o parecer do mundo pagão e assumiu convictamente penetrar num universo onde a fé sempre pernoitou.
Penso que cada um de nós perfilha uma ideologia religiosa, ou não, que nos transporta para infindáveis presenças espirituais que em momentos de extremas aflições nos conduz a evocar a palavra Deus. O ateu, que se afirma completamente adverso ao catolicismo, ou a uma outra religião, tem, a espaços, particulares momentos na vida que inadvertidamente o leva a momentos de reflexão, sendo comum vociferar o nome de Deus. Esta a minha conceção. Respeito, todavia, outras opiniões. Porém, existe em cada ser humano uma certeza: em ápices dolorosos lá vem a mítica frase “Deus me valha”.
A minha experiência no conflito da guerrilha na Guiné, teve como singularidade testar o meu mundo espiritual. Sabia que em casa dos meus pais, Aldeia Nova de São Bento, uma urbe situada num Alentejo sempre desperto, e astuto, a minha saudosa mãe convivia no dia a dia com uma promessa feita a partir do momento em que embarquei para a Guiné que a acomodava em manter as suas “santinhas” velinhas interruptamente acesas, deixando a sua jura antever que a fé superava um sofrimento superior com o qual o seu querido filho se deparava numa guerra que não dava folgas.
Com a distância do tempo a prevalecer, afirmo que essa candeia incandescente que a fé justamente ditou, elevou a minha autoestima, assumindo em momentos considerados chaves, de delicado apuro, atitudes que me catapultaram para latentes sinais de esperança.
Aliás, esta iniciativa da minha querida mãe expandia-se certamente por uma imensa diversidade de lares situados algures no mais discreto lar deste cantinho à beira-mar plantado. A família, no seu todo, convivia com a barbaridade que a guerra no Ultramar impunha ao mais modesto cidadão português. A fé incutia na família um estado de espírito que gerava díspares situações que conduziam as mães, em particular, a orar a Deus e depararem-se com pagamentos de promessas.
Naquela tarde o silêncio protelava-se com o avançar dos ponteiros do relógio. O calor apertava, era normal. Não havia ordens de saída, nem tão-pouco conhecimento de eventuais investidas ao mato. Prevalecia a serenidade. O pessoal dispersava-se no interior do arame farpado e passava o tempo a emborcar cervejas para contemplar os seus bebíveis desejos. Outros divertiam-se a jogar às cartas e havia também quem aproveitasse a ocasião para colocar a escrita em dia, enviando notícias para a metrópole, boas como era da praxe. Nada de insinuar potenciais desgraças entretanto conhecidas.
A policia do Estado – antiga PIDE – era uma organização que se mantinha sempre atenta. Uma pequena frase a denunciar o flagelo era fatídica. Nada de riscos. O cuidado atempado recomendava-se. Pintava-se a prosa em tons líricos. O sítio onde nos depositaram era esplêndido e tiros, ou desgraças, estavam completamente alheios ao nosso bem estar. Mortos? Estropiados? Nem pensar, estávamos no paraíso. A mãe, o pai, os familiares e os amigos rejubilavam com as boas notícias recebidas do combatente. 
As leituras de livros em tempos de pausa, favoreciam os nossos laboriosos espíritos. Com uma pequena foto da namorada sobre a mesa de cabeceira, estiraçado numa cama onde os ferros apresentavam resquícios de uma ferrugem atroz que se sobrepunha a uma ténue cor de café com leite, e uma ventoinha que me deliciava o corpo, lia atentamente um livro intitulado “UM DEUS NA PALMA DA MÃO”. Um Deus, algures em alguma parte de um universo imaginado, que copiosamente teimava proteger a minha aureola humana e adornava os meus intuitos de uma luta constante pela sobrevivência.
A briga, não titânica, travava-se, agora, entre as quatro paredes do meu afrodisíaco quarto. Esquecia-me, por momentos, do horrível som emitido pelas armas, dos rebentamentos das minas nas picadas, dos famigerados ataques noturnos aos quartéis, da imprevisibilidade do trilho no mato, ou da ansiedade extrema que a guerra impunha.
Ao lado, um camarada entretinha-se numa leitura sobre os heróis da banda desenhada. O ator principal era, no final, o vencedor. A personagem, obviamente mítica, ultrapassava barreiras inimagináveis. Vencia obstáculos. Nada temia. Era virtualmente o autêntico vencedor do chamado conto de fadas. Nós, recatados ao infinito do conflito, mergulhávamos num universo onde a prudência ditava ordens.
Neste eloquente vaguear pelo mundo do ilusório, nós, jovens forçados a integrar esquadrões enviados para os campos de batalha, concluíamos: a guerra é um cosmos devastado por múltiplos interesses e assumidos por gentes que jamais conheceram os contornos de uma peleja onde a dignidade humana acaba por resvalar para conflitos incontornáveis!
Revia-me, como uma pequena peça que integrava a plenitude de um xadrez onde um simples peão se limitava a evocar a palavra de Deus. Avocava, fielmente, uma fé literalmente inacabada. Lembrava-me das orações da minha saudosa mãe; as suas idas constantes à igreja; às missas domingueiras; as suas devoções e da sua entrega ao Pai Todo Poderoso.
Crenças que se estendiam aos ilustres soldados enviados para o Ultramar a fim de combaterem um inimigo com rosto e de ideais seguros. Homens joviais que deixavam no seu torrão sagrado um vínculo real para o seu chamamento a terras de além-mar. “Carne para canhão”, falava-se nas velhinhas ruas de uma recôndita urbe portuguesa, ou em redor de um balcão de uma velha taberna. “Deus o proteja”, asseverava uma venturosa senhora que conhecia a preceito o rapaz, agora feito militar, numa das lojas da aldeia.
Restava a inequívoca verdade que a fé na guerra do ex-ultramar prevaleceu entre os homens que combateram no terreno com o IN. Por outro lado, ficará a inquestionável dúvida: será que a Pátria agradeceu a nossa entrega? Será que os nossos companheiros que fazem parte do rol dos falecidos, desaparecidos, estropiados bem como todos aqueles que ainda hoje se deparam com exequíveis sequelas de uma guerra que teimam em persegui-nos, são reconhecidos? O que resta de uma guerra atroz que implicou no rumo das nossas vidas? Responda quem de direito.
Nós, piamente esperamos, como sempre. Que Deus os oiça e que ilumine as suas mentes.
Um abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Guiné 61/74 - P21340: Historiografia da presença portuguesa em África (230): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Há que reconhecer que João Augusto Martins não andou só na Guiné para delimitar fronteiras, observou infraestruturas, modos de vida, higiene e saneamento, imaginou-se antropólogo, denunciou preconceitos sociais de modo veemente, caso dos médicos formados na Índia e discriminados pela administração colonial portuguesa e pela classe médica oriunda de Lisboa e de Coimbra, diz sem hesitação que estes médicos "sofrem desconsiderações pessoais que vexam e desconsiderações oficiais que depravam. Se aparece uma população assolada, um lazareto infeccionado, um destacamento trabalhoso e mal pago, então são utilizados, são médicos, servem!".
E, veremos mais adiante, as conclusões que nos deixa põem em causa, da base ao topo, o modelo colonial português.

Um abraço do
Mário


Impressões de viagem quando a Guiné já era província, com fronteiras definidas (2)

Mário Beja Santos

O livro de viagens intitula-se "Madeira, Cabo Verde e Guiné", o seu autor é João Augusto Martins, veremos mais adiante que foi alguém influente na definição das fronteiras da colónia, a edição foi da Livraria de António Maria Pereira, 1891. Chegou a Bissau, andou por Bolama, encantou-se com a beleza de uma jovem Fula, e vai agora dissertar, mesmo como antropólogo amador, sobre a condição feminina em África:
“Na África, a mulher não conhece o coquetismo, mas tem por natureza a sensualidade.
Como selvagem, obedece aos seus instintos e ao seu temperamento, e quando fita um homem, quando o afaga, quando o impregna das suas volúpias, não é com o fim de o tornar escravo, mas sim o instinto de se sentir feliz. Não pensa nunca em ser desejada, preocupa-se somente em satisfazer os seus desejos; e enquanto a mulher civilizada calcula artifícios para garantir o seu prestígio, a selvagem entrega-se sem condições nem vantagens, realizando no gozo a mais alta e a única aspiração do amor.
Dessa índole essencialmente naturalista, resultam para a sua vida social como para a sua vida religiosa, os estranhos e originalíssimos cambiantes que tão cómicos e ridículos se apresentam à primeira vista, mas que tão logicamente se relacionam com as condições étnicas e com os princípios da sua filosofia natural”.

Seguidamente, discreteia sobre cerimónias de casamentos e de funerais, e temos a seguir uma descrição de Bissau, que nos parece da maior utilidade reproduzir:
“A vila de Bissau, sede de concelho, compreende o presídio de Geba, Fá, S. Belchior e Geba; Bissau é uma pequena cidadela de população limitadíssima cercada a N. E. e W. por um fosso já semi-atulhado que acompanha paralelamente da banda de fora uma muralha de quatro metros de altura, a qual se liga ao centro à antiga Fortaleza de S. José e termina nos flancos por pequenos torreões de estilo gótico que fazem sentinela permanente ao rio.
Essa fortaleza, ampla, arejada e altiva de toda a imponência dos poilões gigantes que lhe marcam os ângulos, protegendo-a com as sombras benéficas da sua ramagem tufada, é guarnecida por peças velhíssimas de ferro, montadas sobre reparos do mesmo metal, que apenas servem hoje de armamento histórico e de espantalho aos gentios, não só porque a sua danificação é completa mas porque à pequena força militar aí destacada seria impossível manejar, sequer, monstruosidades daquele calibre.
A vila, pequena, acanhada, de construções raquíticas e vulgares, somada a todas as inalações do lodo, da catinga e do azeite de palma, adubada pelo paludismo, dizimada pelas febres, constitui ainda assim o último reduto da vitalidade da província, o centro mais importante do comércio da Senegâmbia Portuguesa.
Uma parte dos munícipes, baseados nas informações médicas, quer que se faça o arrasamento da muralha, que, segundo eles, obsta à ventilação da vila, e contribui para a densidade exagerada da população, constituindo o factor principal da insalubridade; outra parte, apaixonada pelas tradições, e pelo que é velho, receosa de tudo e mais do que tudo dos ataques do gentio, pondera os múltiplos factores perniciosos da higiene local, de que ninguém cuida, e guerreia esse projecto cuja importância merece um estudo consciencioso”.

Pronuncia-se seguidamente sobre a população colonial, os erros e equívocos em que está a viver a Guiné, é nu e cru, saem-lhe as verdades como punhais:
“Esta província tida e mantida na nossa elaboração nacional como um depósito para onde despreocupadamente se esvazia desde muito o lodo e as imundícies colhidas nas dragagens da nossa rotina legislativa, sob a forma militar de incorrigíveis e de devassos deportados civis, não sabemos se com o fim de lhe adubar a selvajaria, se com o fim de lhe administrar fermentos enérgicos à dissolução; a Guiné, constituindo-se em província independente, plagiou desde logo a toilette pretensiosa da sua vizinha (Cabo Verde), enfeitando-se de todas as complicações burocráticas possíveis e fazendo construir na sua capital por um risco único, destituído de toda a elegância e qualquer vislumbre artístico, desde a igreja onde exibe o seu Deus ao som dos clarins e das músicas marciais, até ao hospital onde agasalha os seus doentes à luz de uma parca economia, tíbia de conforto e de consolações. E sem pensar sequer nos preceitos mais rudimentares das construções dos climas quentes; sem se preocupar um instante das exigências mais banais para estabelecimentos daquela ordem, edificou a ferro e tijolo um edifício pesado, desprotegido de sombras, sem quartos de banhos, sem casa de autópsias, sem casa mortuária, sem meios de esgoto, nem canalização de águas, e continuou a sustentar ao mesmo título esse pardieiro a derrocar-se, onde se agasalham em Bissau os desgraçados doentes que preferem morrer à sombra, mesmo em risco de desabamentos prováveis.
É nesses depósitos que ela acumula promiscuamente os seus doentes! E é ali, nesse pavilhão e nesse estábulo da patologia, que se acotovelam indistintamente à temperatura média de 30º os exemplares mais curiosos do paludismo, da tísica, do alcoolismo, as chagas mais asquerosas, a doença do sono, a elefantíase, as ulcerações do pulex, as dermatoses mais exóticas e tantas outras variedades privativas dos climas quentes, que têm merecido aos demais países coloniais as preocupações legislativas mais sérias e os estudos científicos mais preciosos e que em toda a parte são sequestrados rigorosamente pelas prevenções do contágio e pelos preceitos da epidemiologia.
Para todo esse avultado número de atacados, que nada deixam à clínica por serem indigentes, militares ou empregados públicos, para todo esse serviço, agravado pelo expediente da secretaria e pelos destacamentos frequentes a Buba, a Cacheu, a Farim e a qualquer dos mais distanciados pontos da província onde a suspeita de uma epidemia ou o pretexto de uma batalha determina a nomeação de um ou mais facultativos, existem na Guiné, tão mal pagos que ninguém lhes inveja os lucros nem lhes disputa as vantagens, um chefe de serviço de saúde, distinto filho da escola de Lisboa, e mais três médicos da Índia, que na Guiné, como em toda a parte, arrastam desprestígio da sua maternidade, sofrendo as injustiças e as mil ingratidões com que os governos do Ultramar ultrajam a cada passo esses filhos espúrios da nossa instrução pública, coartando-lhes despoticamente os privilégios que lhes são conferidos pelo seu diploma e pela lei, e fazendo desses homens, que têm servido sempre de instrumento aos poderes públicos para sofismar as distinções revoltantes estabelecidas entre a dignidade dos povos da metrópole e das populações ultramarinas, fazendo deles um motivo de irrisão, que repercutindo-se sobre uma classe inteira, desperta em todo o médico digno o sentimento da protecção e a necessidade imperiosa do protesto”.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21315: Historiografia da presença portuguesa em África (229): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21339: Notas de leitura (1304): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte I (Luís Graça): voltar a ouvir a máquina "Singer" da mamã nas matas e bolanas de Quínara,,,


Capa do livro de Gonçalo Inocentes (Matheos), "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65" (Vila Franca de Xira, ModoCromia, 2020, 126 pp, ilustrado).


1. Já aqui apresentámos, ainda recentemente, o autor, o Gonçalo Inocentes (Matheos), membro nº 810 da nossa Tabanca Grande (*): foi fur mil, CCAÇ 423 e CCAV 488 / BCAV 490, de rendição individual (1964/65), tendo passado por Bissau, Bolama, S.João, Jabadá e Jumbembem...


Regressou depois a Angola, onde nascera,  em 1940,  em Nova Lisboa (hoje, Huambo), para exercer a profissão de Regente Agrícola na  Sociedade Agrícola do Cassequel, tão profundamente ligada à colonização de Angola ... "Quatro anos depois fiz a agulha e passei-me para a aviação. O meu primeiro trabalho foi voar para os quarteis do norte para fazer reabastecimentos. Acabei na linha aérea (TAAG) e, com a descolonização, acabei na TAP onde permaneci até ser apanhado por um enfarte cardíaco o que me levou para a reforma"... E no "estaleiro" descobriu a sua vocação de escritor...  Vive atualmente em Faro.

O livro que acaba de editar tem um título, "O Cãntico das Costureiras", que o autor justifica, recorrendo à sua "memória auditiva": no seu ouvido ficou para sempre a máquina Singer da sua mãe, esposa do secretário da Câmara Municipal de Nova Lisboa, "a cozer dezenas de bandeiras para as festas de recepção a um qualquer figurão" de visita à cidade e à região...ou a fazer os vestidinhos das manas (pp. 15-16)... 

Vinte anos mais tarde, "nas matas e bolanhas da Guiné", em 1964/65, irá ouvir outra música, outras "costureiras", as PPSH-41 Shpagin, a famigerada pistola-metralhadora russa, a irritante "costureirinha" que ficará, para sempre, nos ouvidos da maior parte dos  combatentes da guerra colonial.

Julgo que a alcunha por que era mais conhecida a PPSH-41, pelas NT, no CTIG, era "costureirinha", e talvez o título  do livro ficasse melhor, ou mais intelegível,  com a subtil alteração para "O Cântico das Costureirinhas"... 


Guiné > PAIGC > Novembro de 1970 > Um guerrilheiro empunhando uma PPSH (a irritante costureirinha, uma arma temível sobretudo em emboscadas a curta distância)...

Segundo o nosso especialista de armamento, o Luís Dias, "a pistola-metralhadora PPSH-41, concebida por Georgii Shpagin, conhecida pelas nossas forças como a Costureirinha, e pelo PAIGC como a Pachanga, foi uma das pistolas metralhadoras mais fabricadas no mundo (mais 6 milhões de exemplares), e largamente utilizada pelo exército soviético na II Guerra Mundial. No pós-guerra foi usada nos países satélites, na China, Vietname e nos movimentos de libertação africanos".


Fonte: © Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)



O autor define o seu livro  como "um conjunto de crónicas contando um história": com 126 páginas, é profusamente ilustrado (mais de 140 fotos, em formato pequeno ou médio), com textos em prosa e em verso. O autor segue uma ordem mais ou menos cronológica, desde a tropa, a mobilização para a Guiné, a comissão de serviço e o regresso a Lisboa. Partiu, de avião, num DC6, em 8 de abril de 1964. E voltou no T/T Niassa em 14 de agosto de 1965. Dois anos de tropa, 16 meses de Guiné. Foram quase três anos e meio de uma "vida adiada".  (**)

O autor viveu três guerras (e isso quer dizer três perdas), a da sua terra, Angola (1961-1974), a da Guiné (1964/65) e depois  a  guerra civil que deflagrou, de novo em Angola, com o 25 de Abril, na sequência da luta pelo poder entre os três movimentos nacionalistas. 

"As cheias do rio Catumbela" é um dos livros que escreveu com as suas marcantes experiências de Angola, mas que ainda não lemos (Lisboa, Chiado Books,  2015, 258 pp.).

O livro agora em apreço,  e de que o autor nos mandou pelo correio um exemplar, com dedicatória ("Como um reconhecimento pelo teu notável trabalho. 27-08-20", querendo por certo referir-se ao nosso trabalho como fundador e editor do blogue coletivo, Luís Graça & Camaradas da Guiné), é também fruto da pandemia de Covid-19, ou seja, é também ele marcado pela memória do confinamento e do "arame farpado" da guerra da Guiné.

Para além de Nova Lisboa (e possivelmente Luanda), há outra terra que o terá marcado, Santarém, em cuja Escola Agrícola estudou e onde também fez a tropa,  a recruta e o CSM, na Escola Prática de Cavalaria (EPC) (pp. 17-19). 

"Em Santarém conheci ali homens extraordinários como o tenente miliciano Joaquim Peixinho, formado em direito, mas que fez um período militar prolongado e que foi o meu primeiro comandante de pelotão. Aceitou com entusiasmo que o meu colega Carlos Alcântara e eu introduzíssemos cânticos da tropa indígena de Angola nas marchas do pelotão. Era uma alegria" (p. 19).

Conheceu ali também "o alferes da academia Duarte M. Rocha Pamplona" com quem trabalhou como instrutor na recruta: "um militar de corpo inteiro", que no TO da Moçambique irá perder, em combate,  as duas pernas, sendo agraciado com a Torre e Espada. (p. 19). Já a meio da comissão, em 1 de maio de 1975, o Gonçalo Inocentes irá parar à CCAV 488, comandada por outro militar do seu tempo de Santarém, o capitão Lourenço Fernandes Tomaz (p.  106). 

O Ribatejo e a sua idiossincrasia igualmente afloram nas páginas deste livrinho:

"Eu tive uma cruz muito especial. A Potenteia [termo da heráldica: cruz vazada, cujas hastes são rematadas por figura quadrilonga]. (. ..). Em bronze martelado. Antes de embarcar para a Guiné fui à Chamusca despedir-me dos amigos e Maria Helena Fragoso, uma senhora da família Núncio, colocou-ma no pescoço com um cordão de cabedal. Deu-me dois beijos e disse_ leva-a que ela te trás de volta" (p. 122).  

Esta senhora, já falecida em 1987,  foi a primeira madrinha do Grupo de Forcados de Santarém, conforme foto que o autor publica (p. 123).

A verdade é que a cruz foi e voltou e foi devolvido, como talimã, à Maria Helena Fragoso: quando o nosso camarada desembarcou do T/T Niassa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, foi ela a primeira pessoa que ele foi visitar antes de ser desmobilizado. 

Outra cidade do seu imaginário é a Lisboa da noite e do fado: durante um mês, aboleadi no Quartel Geral de Adidos, na Calçada Ajuda, aguardou ali o transporte aéreo que o levaria até Bissalanca (pp. 10-15). Pelo que ele nos conta tinha "via verde" para sair e entrar, tendo apenas que se apresentar no quartel, em determinados dias...

O fado, as fadistas Beatriz Ferreira, Gina Guerra (Lisboa, 1938 - Lisboa, 2008) e Beatriz da Conceição (Porto, 1939 - Lisboa, 2015), a mítica casa de fados "Viela", na rua das Taipas,  fazem parte das suas da sua "inesquecíveis mão cheia de boas recordações" desse tempo de espera (p. 16). Também há uma referência, menos elegante, ao Carlos do Carmo, que ele conheceu, com a namorada, num noitada. Na sua despedida, na Portela de Sacavém, teve a presença das fadistas que trabalhavam na "Viela", além do seu cunhado, Rui Barroso. E ficou para sempre grato  ao fado: 

"Tinha lá andado um mês a despedir-me da vida. Todas as noites. Viela, onde encontrei todo o amor que precisava" (p. 15).

Enfim, sem ser um poeta maior, deixa escrito uma homenagem à Beatriz Ferreira (, artista hoje injustamente esquecida), que poderia ter origem a um fado, a figurar no nosso Cancioneiro de Gerra: 

"Os fados que me cantaste, /Cartas de amor ao ouvido. / Os fados que me cantaste, mensagens ao coração,/ que levei no meu bornal, / onde pousei a cabeça, / naqueles matos distantes, / em noites intermináveis, / em noites tão escaldantes. / Foste a minha travesseira, / Foste a minha companheira." (p. 13).

(Continua)


Guiné 61/74 - P21338: Parabéns a você (1865): Filomena Sampaio, Amiga Grã-Tabanqueira de Guimarães e Raul Manuel Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 2.ª C/BART 6522 (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21335: Parabéns a você (1864): Alberto Grácio, ex-Alf Mil Op Especiais do BCAÇ 4615/73 (Guiné, 1973/74) e Carlos Alberto Fraga, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 4612/72 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21337: Manuscrito(s) (Luís Graça) (190): Há festa na Tabanca de Candoz: Parabéns, mano Zé Carneiro!... "Querido Zé, mesmo à distância social, / Que outra Senhora, a má Covid, nos impõe, / Aceita o nosso abraço fraternal./ Nas vindimas juntos haveremos de estar, / E, na nossa Candoz onde tudo se compõe, / Logo os parabéns te prometemos cantar."


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 21 de outubro de 2012 > O Zé Ferreira Carneiro, apanhador de  sentieiros (cogumelos).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Angola > 1969/71 > CCAÇ 313 / BCAÇ 13  (1969/71) > Camabatela > José Ferreira Carneiro, 1º cabo, operador de transmissões, de rendição indvidual,  andou a guardar os cafezais do norte de Angola...  A BCAÇ 13 pertencia à Região Militar de Angola, esteve operacional entre agosto de 1967 e abril de 1974. 

Foto: © José Ferreira Carneiro  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O José Ferreira Carneiro faz hoje anos 72 anos. Nasceu no dia da festa de Nossa Senhora da Natividade do Castelinho, a 8 de setembro de 1948. O mais novo de 7 irmãos, 3 rapazes e 4 raparigas (das quais uma morreu, ainda criança), da Casa de Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses-

Como todos os rapazes da sua geração, foi chamado a servir o país, durante a guerra do ultramar. Ele e o irmão mais velho, o António. Esteve em Angola. Foi 1º Cabo Transmissões de Infantaria, de rendição individual, numa companhia que guardava os cafezais lá região, no norte de Angola, perto de Negage e de Quitexe. Hoje, Camabatela, sede do município de Ambaca, pertence à província de Quanza Norte. 

Esteve na CCAÇ 313, do BCAÇ 13, sedeado em Vila Salazar. (A CCAÇ 312 estava Belongongo e CCAÇ 311 em Mussungo.)

O Zé, o nosso "mano mais novo".   nunca teve grandes saudades do seu tempo de tropa e de guerra. Recebia e escrevia muitas cartas e aerogramas, isso sim. Das que recebeu (dos manos, pais, cunhados, amigos, amigas ...) guardou-as todas, e arquivou-as, uma a uma, por autor e data... Só da irmã, Alice Carneiro, a "Chita", tem mais de 100, no seu arquivo. 

Essa coleção é já um hoje um fonte de informação interessante não só para a história da família mas também sobre o quotidiano da guerra em África, e das necessidades e preocupações que os nossos militares deixavam transparecer. As saudades da terra eram sempre mais do que muitas, as referências às festas anuais, à matança do porco, às vindimas, ao Natal, etc., eram frequentes. Era isso que fazia lembrar a pátria distante... Nos dois anos que lá esteve, nunca veio a casa, que as viagens eram caríssimas. Já aqui e no blogue A Nossa Quinta de Candoz publicamos uma seleção dessas cartas

Mas hoje vamos mandar-me um "so(r)neto" de parabéns. O abraço, ao vivo, em carne e osso, fica para as vindimas que já estão marcadas para o dia 19 do corrente.

 

Um so(r)neto de parabéns para o mano Zé

Já fez ontem o mano Zé setenta e um

Aninhos, ele qu’ era de todos o mais novo,

Dessa família respeitada, que, p´ró povo,

Carneiro só há um, o de Candoz mais nenhum.

 

Hoje faz mais um, e merece um miminho,

Mesmo que estejamos em plena pandemia,

Qu’ ele nasceu noutro tempo de festa e romaria,

A da Senhora da Natividade do Castelinho.

 

Querido Zé, mesmo à distância social,

Que outra Senhora, a má Covid, nos impõe,

Aceita o nosso abraço fraternal.

 

Nas vindimas juntos haveremos de estar,

E, na nossa Candoz onde tudo se compõe,

Logo os parabéns te prometemos  cantar.


Alice e Alice, Tabanca da Lourinhã, 8/9/2020

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Nota do editor:

Último poste da série >  18 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21265: Manuscrito(s) (Luís Graça) (189): A Alice Carneiro, Rainha do Dia e Por um Dia...

Guiné 61/74 - P21336: Agenda cultural (756): "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", de Adriano Miranda Lima: o livro pode ser adquirido a 12 € por exemplar, incluindo portes de correio.



Capa do livro do nosso camarada Adriano Miranda Lima, "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial" (edição de autor, impressão e acabamento, Tipografia S. Vicente Lda, Alto São Nicolau, Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde, 2020, 241 pp.).  O livro pode ser adquirido diretamente ao autor: preço de capa incluindo portes de correio: 12 €.






Adriano Miranda Lima: tem uma profunda ligação a Tomar e ao RI 15. Cor inf ref, fez duas comissões de serviço na guerra de África (1961/75), uma em Angola e outra em Moçambique. Tem também uma forte ligação à sua terra natal, Mindelo, e é um membro proativo da diáspora cabo-verdiana. É autor de várias obras e artigos. Colabora regulamente no blogue, de Joaquim Saial, Praia de Bote

Publicou também recentemente  o livro "Dr. José Baptista de Sousa: o homem, o médico e o militar: no portal da memória" (edição de autor, impressão e acabamento, Tipografia S. Vicente Lda, Alto São Nicolau, Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde, 2019, 136 pp.), de que faremos, oportunamente, a devida recensão. (Este  livro também pode ser adquirido diretamente ao autor: preço de capa incluindo portes de correio: 12 €.)



1. O livro em referência, "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial",  foi lançado no Mindelo, no passado dia 7 de fevereiro, conforme aqui noticiado na altura.  O autor foi representado pelo seu primo José Carlos Soulé (*). 

A obra, de 241 páginas,  é profusamentre ilustrada, com cerca de 120 fotos de diversos arquivos, incluindo o do nosso blogue. 

Ainda não há data nem local para a sua apresentação em Portugal.

O livro tem um dedicatória, tocante, reveladora da morabeza do autor, mindelense, mas também da sua sensibilidade socioantropológica, digna de um oficial superior das nossas Forças Armadas:

 "À memória dos 24.463 cabo-verdianos mortos por fome em Cabo Verde, nos anos de 1941, 1942 e 1943; à memória dos 68 militares das Forças Expedicionárias que morreram por doença e acidente durante a sua missão em Cabo Verde, no período da II Guerra Mundial".


2. Justamente do nosso camarada Adriano Lima [, membro da nossa Tabanca Grande, cor inf ref do Exército Português, natural do Mindelo, Cabo Verde. onde nasceu em 1943, a viver em Tomar, e do qual temos mais de dezena e meia de referências no nosso blogue], recebemos a seguinte mensagem:

Data: segunda, 24/08/2020, 23:19


Caro Luís Graça;

Comovido, li esta bela evocação da memória do teu pai, Sr. Luís Henrique, por ocasião da passagem do seu 100.º aniversário natalício (**). Como sabes, ele é uma das figuras que humanamente se destacam no livro que escrevi e se intitula "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", e por isso sinto-me associado a essa sentida homenagem.

Além disso, o teu blogue foi um importante contributo para o livro, merecendo por si uma menção muito especial nos Agradecimentos.

Para editar o livro,  consegui uma ajuda do Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas de Cabo Verde, que, não cobrindo nem de longe as despesas da impressão, estimulou-me a avançar com o projecto. O chefe militar de Cabo Verde reconheceu o interesse do livro para a própria historiografia militar do seu país e por isso não hesitou em colaborar.

Se as despesas da impressão do livro não estivessem em larga medida por minha conta, confesso que teria todo o gosto em oferecer o livro aos familiares de todos os antigos expedicionários que o desejassem. Como tal não é possível, apenas o faço em relação a ti e ao José Martins.

O José Martins já me tinha enviado o seu endereço postal, mas sucede que uma avaria irremediável no meu computador exigiu a aquisição de um novo equipamento e perdi alguns dados, incluindo o registo daquele endereço. Por isso, peço aos dois que me enviem os vossos endereços postais por esta via.

Quanto a outros eventuais interessados, poderei enviar o livro por correio ao preço de 12 euros, preço que inclui os respectivos portes. Assim, estarei pronto a receber os endereços dos interessados, pedindo-vos que façam a respectiva divulgação. O pagamento será feito por transferência bancária para esta minha conta da CGD:


IBAN PT50 0035 0813 00010554900 36 

Endereço de email: limadri64@gmail.com 

Um abraço amigo a todos.

Adriano Lima


3. Comentário do editor LG:

Já li o livro, numa 1ª leitura... Mas gostava que fosse o José Martins, nosso colaborador permanente e estudioso também deste periódo da nossa história militar, a dar o pontapé de saída, em termos de "notas de leitura"... Ele tem mais distanciamento (afetivo) do que eu,  que sou  editor do  blogue e filho de Luís Henriques (1920-2012)... e do que  qualquer outro dos filhos de expedicionários, pertencentes ao nosso blogue: o Hélder Sousa, o Luís Dias, o Augusto Silva Santos, o Nelson Herbert...

Tenho a agradecer ao Adriano o exemplar, autografaado ("Ao Luís Graça, com apreço e amizade, agosto de 2020, Adriano Lima"), que me acaba de enviar pelo correio: foi muito gentil e generoso comigo, com a memória do meu pai e dos demais expedicionários, bem com o nosso blogue que lhe merece referências altamente elogiosas.

Na verdade, esta geração, já desaparecida, dos "nossos pais, nossos velhos, nossos camaradas", estes homens que defenderam as ilhas atlânticas, Madeira, Açores e Cabo Verde,  durante a II Guerra Mundial, deveriam ser honrados e lembrados pela Pátria.

Na realidade, fora o nosso blogue e o Adriano Lima, o nosso país parece tê-los esquecido... Cabe-nos a nós, filhos e netos, a obrigação de os resgatar da "vala comum do esquecimento". (***)

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Notas do editor:



Guiné 61/74 - P21335: Parabéns a você (1864): Alberto Grácio, ex-Alf Mil Op Especiais do BCAÇ 4615/73 (Guiné, 1973/74) e Carlos Alberto Fraga, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 4612/72 (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21326: Parabéns a você (1863): José Marcelino Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Guiné 671/74 - P21334: Notas de leitura (1303): “Escravos em Portugal, Das origens ao século XIX”, por Arlindo Manuel Caldeira; A Esfera dos Livros, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2017:

Queridos amigos,

“Escravos em Portugal, Das origens ao século XIX”, do historiador Arlindo Manuel Caldeira, é um livro importantíssimo, uma leitura irrecusável para quem queira conhecer as histórias dos escravos em Portugal. Estima-se que dos séculos XV a XVIII tenha havido, no continente e ilhas, um milhão de pessoas sujeitas a cativeiro. O autor explica a essência do seu trabalho: "Não é uma história da escravatura em Portugal, mas uma história de escravos".

Os protagonistas involuntários de um regime social injusto, excluídos entre os excluídos são, enquanto pessoas, os protagonistas deste livro. Como era feita a compra e venda de escravos, qual era a relação entre o senhor e o escravo, como era utilizada a mão-de-obra cativa? E depois da abolição legal, como se transformou a vida destas pessoas? Obviamente que aqui se centram as observações na Guiné e guineenses.

Um abraço do
Mário


Histórias de escravos guineenses em Portugal

Beja Santos

“Escravos em Portugal, Das origens ao século XIX”, por Arlindo Manuel Caldeira, A Esfera dos Livros, 2017, é um documento notável, uma investigação de altíssima qualidade que em sequência cronológica e graças a uma comunicação arrebatadora que prende o leitor do princípio ao fim nos dá um retrato rigoroso e fiel do que foi a escravatura antes do século XV, a proveniência dos escravos a partir da Expansão, onde e de que modo se processava a compra e venda de escravos, a geografia da sua presença no continente e ilhas, o que faziam, qual a relação entre o senhor e o escravo, mentalidades, família, sexualidade e final de vida em escravidão e, por fim, as etapas que levaram à liberdade e todo o processo sinuoso e contraditório do depois da abolição legal da escravatura.

Confinam-se as notas seguintes ao que o autor refere sobre escravos provenientes dessa costa africana que dava pelo nome de Senegâmbia. Partindo da exploração da costa africana, menciona o contrato celebrado por Fernão Gomes com o rei D. Afonso V que se traduziu no arrendamento do monopólio do comércio da Guiné, com exceção de Arguim e do litoral fronteiro ao arquipélago de Cabo Verde, que estava reservado ao resgate dos moradores. 

Detém-se sobre a feitoria de Arguim e lança um olhar às ilhas de Cabo Verde. D. João II planeou a instalação, em 1488, de uma feitoria-fortaleza na embocadura do rio Senegal, da mesma forma que, anos antes, mandara levantar a fortaleza da mina. Este projeto da feitoria da Senegâmbia falhou rotundamente. O povoamento das dez ilhas do arquipélago de Cabo Verde irá contar maciçamente com escravos oriundos do vasto litoral africano. 

Como forma de atrair povoadores, D. Afonso V concedeu aos moradores de Santiago vários privilégios, entre os quais o livre comércio com a costa da Guiné (com exceção de Arguim), prerrogativa que foi, alguns anos depois, definida com maior rigor e restringida à região entre o rio Senegal e a Serra Leoa. 

Importa dizer que entre os pontos onde o resgate se tornou mais intenso destacava-se a que é hoje a baía de Dakar, as bacias dos rios Gâmbia, Casamansa, S. Domingos, Geba e rio Grande de Buba (o rio Grande das crónicas seiscentistas), além do arquipélago dos Bijagós. Já mais ao Sul, traficava-se na embocadura do rio de Nuno (ou Nunes) e em vários pequenos portos junto da Serra Leoa. Trata-se de uma extensão de mais de mil quilómetros, que corresponde hoje à fachada atlântica de cinco países: Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné Conacri e Serra Leoa, essa ampla facha era designada pelos portugueses pelo nome de rios de Guiné ou rios de Guiné do Cabo Verde.

Falando do transporte dos escravos, o historiador refere que desconhecemos as condições em que, por exemplo, navios ingleses traziam escravos para Lisboa; mas sabe-se que as embarcações portuguesas saídas de Cacheu ou de Cabo Verde, pelo menos uma parte dos cativos acompanhavam os seus proprietários, funcionários de regresso à metrópole ou moradores de Cabo Verde ou da Guiné em trânsito para Portugal.

Para entender a compra e venda de escravos é preciso falar da Casa da Guiné. O autor pormenoriza a localização da Casa da Guiné ou Casa da Mina e Tratos da Guiné que se irá começar a diluir na Casa da Índia, a partir dos fins do século XVI. 

Quando começaram as chegar as primeiras levas de “negros da Guiné”, os procuradores do povo às cortes de Coimbra / Évora requeriam ao rei que não permitisse a exportação de escravos. Entendia-se que o reino se estava a despovoar e que era preciso aumentar a mão-de-obra e conter com a escravatura os salários dos jornaleiros. 

São inúmeras as histórias que Arlindo Caldeira nos conta acerca das peripécias dos escravos. Vejamos a de José Menezes que nasceu na Guiné em meados do século XVII, ainda na sua terra passou a servir um senhor português, batizaram-no quando tinha 10 ou 11 anos, veio com 14 ou 15 anos para Lisboa, o navio em que viajava foi capturado por corsários argelinos, acabou escravo na cidade de Argel. Foi persuadido a que se fizesse mouro e deixasse a fé católica, passou a ser tido e havido por mouro. Depois de estar cativo em Argel há 9 ou 10 anos, falando um dia com católicos que lá estavam, contou-lhes que era cristão. 

O que interessa é que em 1682, andando no mar no navio do seu senhor, a embarcação foi capturada pelos ingleses e trouxeram-no para Lisboa onde o puseram à venda. Teve sorte, pois foi parar “ao serviço de Sua Majestade”. A Inquisição quis saber pormenores do seu passado, fez abjuração de leve suspeito na fé e absolvido na excomunhão em que podia ter incorrido. Enfim, um final feliz. A língua da Guiné atraiu escritores, caso de Gil Vicente que a refere em Frágua do Amor, 1524.

Referência importante quanto a práticas mágicas, envolvendo guineenses é dada quando se fala de bolsas de Mandinga, amuleto protetor. Escreve a tal título o autor:  

“Bolsas de Mandinga, também chamadas no Brasil patuás, pequenas bolsas de pano ou couro, contendo orações a santos e uma série de outros componentes, destinadas a ser penduradas ao pescoço, ou cozidas na roupa, era suposto impedirem os ferimentos provocados por arma branca e tornaram o portador insensível às pauladas. A origem das bolsas de Mandinga parece ser o território Mandinga da Alta Guiné, islamizada no século XVIII. A islamização, com a consequente valorização da palavra escrita, está na origem da introdução de pequenos textos de carácter sagrado escritos em árabe, num tipo de bolsa já antes utilizado como talismã pelas populações locais”. 

O autor conta histórias sugestivas acerca de alguns mandingueiros.

Para quem pretenda conhecer uma narrativa erudita redigida numa comunicação muito acessível, este livro do historiador Armindo Manuel Caldeira está na primeira linha, pela quantidade de investigação e pela qualidade da análise, o leitor depois de poder apreciar o que foi a vida dos escravos acompanhará as peripécias do que foram as promessas da liberdade e as dificuldades em fazer cumprir a abolição legal. 

Importa não esquecer que a escravatura continua a existir, foram os escravos um dos pilares da civilização portuguesa, basta ler o que escreveu Mouzinho da Silveira, um dos vultos incontornáveis do liberalismo português: 

“Os Portugueses se atormentam, se perseguem e se matam uns aos outros por não terem entendido que o Reino, tendo feito grandes conquistas, viveu por mais de três séculos do trabalho dos escravos e que, perdidos os escravos, era preciso criar uma nova maneira de existência, multiplicando os valores pelo trabalho próprio”.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de setembro de 2020 > Guiné 671/74 - P21314: Notas de leitura (1302): entrevista de José Matos ao "Diário de Aveiro", de 1 do corrente, sobre o seu último livro “O Estado Novo e a África do Sul na Defesa da Guiné - Nos meandros da guerra"

Guiné 61/74 - P21333: Agenda cultural (755): "Os Velhotes: contos eróticos", de António José Pereira da Costa... na Feira do Livro de Lisboa, 6/9/2020 (Carlos Silva)

Lisboa > Feira do Livro > 6 de Setembro de 2020 > António José Pereira da Costa


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem, 1969/71) com data de 6 de Setembro de 2020:

Amigos
Estive presente na Feira do Livro em Lisboa na apresentação e lançamento do livro "Os Velhotes" do nosso camarada Cor Ref António José Pereira da Costa, como tal a nossa Tabanca esteve representada por mim, porque apesar de estar presente alguma assistência em tarde de calor abrasador, os únicos Tabanqueiros creio que presentes fui eu e o autor.

Aqui vão as fotos que testemunham o acto e a sessão de autógrafos.

Abraço
Carlos Silva




O livro: "Os Velhotes: contos eróticos" (Lisboa, Editora Alfarroba, 2020, 184 pp) . [ ISBN: 978‑989‑8888‑78‑9 | Formato: 14 x 21 cm |  Encadernação: Capa mole |1.ª Edição: 07‑2020) | Preço de capa: 11,25 €]



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Notas do editor

Vd. poste de 1 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21311: Agenda cultural (752): "Os Velhotes: contos eróticos", de António José Pereira da Costa... Feira do Livro: Lisboa, 6/9/2020, 14h30; Porto, 12/9/2020, 15h00

Último poste da série de 4 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21322: Agenda cultural (754): convite da Catarina Gomes para a sessão de lançamento do seu livro, «Coisas de Loucos: O que eles deixaram no manicómio": Feira do LIvro de Lisboa, Tinta da China, domingo, dia 6, às 17h00

Guiné 61/74 - P21332: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (4): A cabrinha Inha...


Guiné > Região de Bolama > Nova Sintra > 1972 > Entrada do quartel dos Duros de Nova Sintra, a CART 2711, 1970/72... É possível que este pórtico, "Rancho dos Duros", tenha sido inspirado pelos vizinhos, mais antigos, do "Rancho da Ponderosa", destacamento de Ualada, subsetor de Empada, ao tempo da CCAÇ 1587 (1966/68).

Foto (e legenda): © Herlander Simões (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagen complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Gabu > Piche > Foto nº 112/199 do álbum do João Martins > 1968 > Uma mulher fula amamentando, com o leite do seu próprio peito, a "sua" cabrinha (ou cabritinho ?), provavelmente um dos bens mais preciosos do seu escasso património familiar... Uma ternura de foto do álbum do nosso camarada João Martins, já célebre nas redes sociais.... Era mais fácil aos fulas vender-nos uma vaca do que um cabrito...

Foto: © João José Alves Martins (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Carlos Barros, Esposende


1. Mais um pequena história do Carlos Barros, um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974:


A cabrinha Inha

por Carlos Barros (*)
 

Os militares da 2ª Companhia de Nova Sintra, com reforços de pelotões de Jabadá (1ª C/BART 6520/72) e Fulacunda (3ª C/BART 6520/72) estiveram envolvidos na abertura da estrada Nova-Sintra –Fulacunda, em 1973.

Ao rasgar essa estrada, por entre mato denso, iriamos ter problemas com o inimigo , o que se veio a verificar já que fomos emboscados algumas vezes, tentando obstruir a nossa progressão porque esse acesso a Fulacunda não interessava militarmente ao PAIGC.

O furriel Barros estava com o seu grupo de combate na segurança da estrada, com outro grupo, e estavam homens e mulheres africanas envolvidas na descapinagem do estradão.

Verifiquei, por mero acaso, que uma indígena tinha apanhado uma cabrinha à mão que se tinha perdido da mãe e perguntei-lhe o que iria fazer com o animal. Prontamente me respondeu, dizendo que a ia matar e depois comê-la!

Abeirei-me dela e pedi que ma vendesse por 50 pesos , o que concordou perante a minha alegria, vendo que o animal não seria morto. (**)

No regresso ao destacamento, trouxe a cabrinha para o quartel, arranjei e adaptei um biberão e comprava leite na cantina e assim a Inha era alimentada por mim com todo o carinho e protecção.

Foi crescendo, dormia debaixo da minha cama na caserna e na parada do destacamento seguia-me para todo o lado.

O Capitão Cirne queria comprar a Inha mas confesso que não a vendia por dinheiro nenhum porque gostava muito do animal. A cabrinha era acarinhada pelos soldados do meu grupo, sendo a coqueluche da companhia e passeava por todo o lado, sem ninguém a molestar.

Tinha chegado a hora do jantar e, quando começávamos a comer o arroz com salsichas, vieram os soldados Cruz , Barros e Lurdes à messe e um deles disse-me:

- A Inha “adormeceu”…

Levantei-me a correr para a caserna e encontrei já morta a minha Inha, perante o meu desgosto…

O que aconteceu?

Um dos soldado deu-lhe cascas de manga e, provavelmente, teve uma congestão,  já que só se alimentava de leite e não vi outra razão…

Perdi a vontade de jantar e peguei n cabrinha, enterrei-a junto à caserna e depois coloquei uma cruz com uma lápide com os dizeres: “Aqui jaz a INHA”…

Foi um dia triste para mim e para os meus companheiros do pelotão e, nesse mesmo dia, morreu à mesma hora, uma gazela selvagem que tinha sido apanhada pelos militares e que se encontrava num galinheiro, “Gazeleiro,  improvisado….Triste coincidência…

Nunca mais desejei nenhum animal comigo, já que eles querem viver em liberdade, como todos nós seres humanos,  que, felizmente, só a conseguimos obtê-la no dia 25 de Abril de 1974.

Nova Sintra, maio de 1973,

Carlos Manuel de Lima Barros

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Notas do editor:

(*) Último postes da série > 4 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21325: Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (3): As ratazanas (e o PAIGC) ao ataque em Gampará


5 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21142: O nosso livro de visitas (206): Carlos Barros, natural de Esposende, ex-fur mil at art, 2ª CART / BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1973/74)

(**) Vd, poste de 9 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18393: Fotos à procura de... uma legenda (102): Uma mulher fula a amamentar a "sua" cabrinha!... Ainda em tempo, celebrando o Dia Internacional da Mulher (Foto de João Martins, Piche,1968)

Guiné 61/74 - P21331: A galeria dos meus heróis (37): Rosemarie e os seus dois maridos...IV (e última) Parte (Luís Graça)


Indochina > Dien Bien Phu > 1954 > Ao fim de um cerco de 55 dias, o exército francês, de 17 mil homens (quase dois terços dos quais  legionários), pede rendição, em 7 de maio,  às tropas do general Vo Nguyen Giap (1911 - 2013) . Foto, do domínio público, mostrando a marcha dos prisioneiros franceses.  

O luso-francês Antoine Ben Oliel, desta história,  teve a sorte de ter escapado a esta cena final, sendo gravemente ferido, logo no início da batalha, em 13 ou 14 de março de 1954.

Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons.


A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos... 
IV (e última) Parte (Luís Graça) *


(Continuação)


− Era violento, o Antoine ? – perguntei à Rosemarie, em 2018, o último ano em que nos vimos, estávamos os dois longe de imaginar que o mundo iria acabar em breve para um de nós, na sequência da pandemia de Covid-19.

− Sim, às vezes perdia as estribeiras… Em situações de surmenage… Entendes ?

− Stress, como nós dizemos aqui.

Ah!, oui… Nisso talvez saísse ao lado transmontano do pai…

− ... que a Rosemarie obviamente não conheceu.

− Claro que não, ele morreu em 1939, se não me engano, teria eu dois anitos.

O Antoine é que contava, à Rosemarie, algumas, poucas, histórias do pai. Ele também mal o conhecera. Tinha oito anos quando ele morreu, na véspera da II Guerra Mundial. Eram sobretudo histórias contadas pela mãe Ben Oliel. E eu recordei-lhe que os dois, pai e filho, tinham andado na guerra… O pai, na I Grande Guerra, o filho na Indochina e na Argélia… 

− Talvez isso ajude a explicar algumas coisas, Rosemarie... 

Peut-être!... Era capaz de andar à porrada com gente arruaceira, que bebia demais… Chegou a correr com alguns clientes, agarrando-os pelos colarinhos, e pondo-os fora do bistrot, fossem eles portugueses, franceses ou magrebinos…

− Mas também sobrava para si, não ?!...

Ah!, oui..., por vezes, eu também apanhava por tabela! – confidenciava-me ela. – Humilhava-me à frente de toda gente!

− Violência doméstica, está visto! – acrescentava eu.

− Era a minha sina!... Afinal, tive dois homens que me batiam.

Na verdade, o primeiro marido, o tocador de rabeca, era alcoólico, e batia-lhe, quando queria sexo e ela lho negava. O segundo tinha mau feitio e era ciumento. Sugeri à Rosemarie que talvez o Antoine sofresse de stress pós-traumático de guerra…

Qu'est-ce que ça veut dire ?

Referi o facto de ter participado em combates violentos ou assistido a ataques terroristas, na Indochina e na Argélia… Ela condescendeu que ele dormia mal, tinha mau humor, fumava e bebia muito, por vezes acordava com pesadelos, e com a idade começara a ser dado a depressões. Por outro lado, sabia-se, pela Rosemarie e amigos, que o Antoine sempre tivera une vie dérégulée, uma vida desregrada…  Mas, se havia uma palavra tabu para a Rosemarie, era... legionário. 

Na minha opinião,  a minha interlocutora nunca terá percebido a verdadeira razão da sua atração por figuras masculinas que tinham alguns traços da personalidade autoritária do pai.

− A minha mãe era uma santa – recorda ela.

− E o pai ?

− O meu pai era mau como as cobras, que Deus lhe perdoe. Era mau, sobretudo quando se zangava. Não me esqueço das tareias com o cinto de couro e a fivela de cobre!... Batia-nos, poucas vezes, é verdade, mas nessas ocasiões transfigurava-se, parecia o diabo à solta.

− E a mãe, consentia ?!...

− A nossa pobre mãe punha-se de permeio, para nos proteger, e ela, coitada, é que apanhava as vergastadas. 

Mas, “tirando isso” (sic), o pai da Rosemarie era descrito, por ela,  como um homem alegre, popular, folgazão, pronto para a paródia, amigo do seu amigo, e que gostava de receber, mesmo sendo “pobre... mas sempre honrado”.

− Ah!, e tocava cavaquinho! – acrescentava ela – e era um garanhão!... Pauvre maman!

Em boa verdade, do pai não guardava as melhores recordações. Segundo ela, era fraco com os fortes, e bruto com as mulheres e a canalha lá em casa….

E pormenorizava:

− Desbarretava-se todo com os fidalgos… Ficava nervoso pelo São Miguel, com medo de não poder pagar a totalidade das rendas e ser despedido pelos senhorios… Ele amanhava duas quintas, mas em boa verdade só conheceu um patrão digno desse nome.

− Tratava-o bem, ao menos, esse patrão  ? – perguntei eu.

− O meu pai achava que já pertencia à família, ó Manel isto, ó Manel aquilo!... Era pau para toda a obra... O homem de confiança...Acabou por ser um escravo daquela família toda a vida!

E acrescentava:

− Nunca teve nada de seu, nem um palheiro onde pudesse cair morto.

Em suma, era um rendeiro típico do Norte, analfabeto, filho de rendeiros, analfabetos, sujeitando-se sempre à vontade dos patrões, quer em Celorico de Basto quer em Resende… Vá lá, na velhice arranjaram-lhe, por caridade, um lugar no lar da Misericórdia. Mas sobretudo foram os filhos que lhe valeram, quando começou a fraquejar com a idade.

−Os meus manos foram muito amigos dele!

Todavia, a  Rosemarie não veio ao funeral do pai, desculpando-se com a doença (grave) do Antoine. A relação com os irmãos e cunhados também se deteriorara ao longo do tempo, sobretudo desde que ela se juntara com o Antoine, em França. Só o irmão que esteve na Guiné e que depois emigrou para a Alemanha, é que a visitava mas até desse o Antoine não gostava.

Jalousie, ciúmes! – achava ela.

O pai da Rosemarie nunca abençoou, em vida, a relação da filha com o “Francês”. Homem rígido e conservador, em matéria de costumes, o pai terá dito à família e a amigos mais chegados, que, “para ele, ela já tinha morrido há muito” (sic). E de facto, ele já não era vivo quando, tardiamente, ela se casou, em 1997, de papel passado na "mairie", com o Antoine. 

Este, por sua vez, vai tornar-se ciumento com a idade. A par disso, as suas frequentes ausências de casa também não ajudavam a melhorar as relação do casal. Ele não estava certo do amor dela, apesar de toda a sua dedicação, comprovada nos momentos mais críticos da sua vida,  a dois. E muito menos tinha a certeza da sua fidelidade.

Talvez por pudor, ou até por alguma má consciência, ela nunca se abrira muito comigo sobre a sua alegada vida amorosa extra-conjugal, muito menos em relação ao tempo em que vivera com o Antoine…

− Durante mais de trinta anos!... – precisava ela.– Fui um anjo para aquele gajo!

Dizia "gajo" quando queria atingir a memória do homem que amava e odiava ao mesmo tempo. Também é verdade que nunca tiveram filhos.

Heuresement, felizmente! − exclamava.

Nunca soube nem quis saber “de quem era a culpa”. Todavia tinha um subtil, se bem que indisfarçável, sentimento de culpa "por não ter dado filhos ao Antoine". Talvez fosse “estéril, como a Sara da Bíblia, a mulher de Abraão”. (De vez em quando, no meio da conversa, vinha ao de cima a sua formação católica: na juventude, fora catequista, “mesmo com poucas letras”.)

Em resumo, admito que ela terá tido os seus “casos” com outros homens, nomeadamente franceses. Deu-me a entender que nunca quis arranjar problemas no seio da “pequena comunidade portuguesa” onde havia “alguns gajos, solteiros, que lhe faziam olhinhos”. E, depois, o Antoine era uma pessoa muito conhecida na região.

Afinal, era uma mulher atraente, com um bonita voz, cantarolava tanto a Amália como a Edit Piaf, mas era estrangeira, falando francês com certa desenvoltura embora com accent, imigrante, só tardiamente naturalizada…

Era, portanto, uma "mulher vulnerável" naquela época... Não me escondeu, de resto,  que, no local de trabalho, chegou a ser vítima de harcèlement sexuel, de assédio sexual, disfarçado da vieille galenterie française, o machismo gaulês…

Era sensível às carícias, ao discurso sedutor, de alguns dos seus “admiradores” contrastando com a frieza e a rudeza do Antoine que lhe dava proteção mas pouca ternura. Deixara, por outro lado, de cantar com regularidade, a partir  de 1974... E dizia isto com grande desgosto: chegara a sonhar, pauvre Rosemarie!,  com uma carreira artística como fadista em França!...

Havia, por outro lado, algumas outras coisas que ela detestava no Antoine. Por exemplo, os seus copains, antigos camaradas de armas do tempo da Indochina e da Argélia, legionários, gendarmes, polícias e outros, que se reuniam de tempos a tempos no bistrot, "O Cantinho da Saudade", fechando-se na sala reservada. 

Em geral, era ao domingo, o dia de descanso do pessoal. Eram só homens e ela limitava-se, nos primeiros anos da sua vida em França, a cozinhar para eles. Tudo acabava em cantorias, depois de um almoço bem regado. E aqui não entrava o fado, que a maior parte não apreciava, até porque não entendia as letras. E a música do fado era triste para os antigos camaradas de armas...

− Et la musique du fado était trop triste pour des ancients combattants! − resumia ela.

Outra paixão do Antoine era a caça grossa, la chasse aux gros gibiers (o veado, o javali, a cabra…), na Sologne e noutras partes, em França, em Espanha e até em Portugal. Era uma “amante cara”, a caça, que terá ajudado a delapidar o seu património… 

Foi ela, a Rosemarie,  quem na altura em que ele estava a ficar mais fragilizado, começou a pôr travão a alguns dos seus luxos… Era doido por bons queijos, fumeiro e vinhos, tinha uma boa garrafeira, era, em suma, um bon vivant, um bom copo, um bom garfo.

Nesse aspeto revelou-se "uma verdadeira mulher portuguesa do Norte". Lembrava-se amiúde do bom exemplo da mãe, que era a “formiguinha” da casa, enquanto o pai representava a figura da “cigarrra” da fábula de La Fontaine.

Felizmente que a sua empresa de limpezas (primeiro, domésticas e depois industriais) crescera e transformara-se até num caso de sucesso a nível  da região, dando emprego a várias mulheres, todas de origem portuguesa.

Sentindo a sua saúde piorar, o Antoine ainda teve a lucidez (e a sorte) de trespassar o bistrot no bom tempo, depois de já ter comprado o immeuble, de rés de chão e 1º andar, bem situado na cidade. Alienou também a licença de táxi, vendida a um dos seus antigos “passadores”. Dejá malade, conseguiu reformar-se, aos 60 anos, com a contagem do tempo em que servira na Legião Estrangeira.

Em 1997, com a Rosemarie a fazer 60 anos, e ele 66, foi magnânimo: a sua prenda de anos foi o pedido de casamento. Casaram-se na mairie, numa cerimónia singela, mas “emocionante” para a Rosemarie. Cortou-se o bolo e bebeu-se champagne.  Convidou dois ou três sobrinhos que vieram de Portugal e da Alemanha.

Três anos depois, sem chegar a fazer os 70 anos, o Antoine Ben Oliel morreu de cancro no pâncreas. Em menos de seis meses.

No funeral tinha poucos amigos portugueses. Daqueles, muitos,  que ele tinha ajudado a instalar-se em França, nem um lá pôs os pés no velório ou no cemitério.

− Gente ingrata, des gens de merdre! –arrematou ela.

Os dois últimos anos de vida do Antoine tinham sido dolorosos. Ele sofria de gota, depois vieram complicações do foro músculo-esquelético, que o obrigaram a andar de canadianas, um  ameaço de AVC e, como se não bastasse tudo isto, o fatal cancro do pâncreas!...  

−Apagava-se a olhos vistos, todos os dias! – contou-me a Rosemarie, que nunca o abandonou, honra lhe seja feita!

Antes de morrer, ele falou-lhe de um filho que teria tido fora do casamento, e que que deveria ter uns trinta e tal anos. Mal o conhecia, ou já não o conheceria, se o encontrasse na rua. Sentia-se mal por nunca o ter acompanhado quando novo, nem sequer o ter perfilhado. Era filho de uma pied-noire, uma argelina de origem francesa, um relacionamento que já vinha dos tempos de Argel. Mãe e filho acabaram por fixar-se em Marrocos, e abrir em Marraquexe um pequeno hotel de charme.

Rosemarie suspeitava que o Antoine os terá ajudado financeiramente, na fase inicial das suas vidas em Marrocos. Eu, pelo meu lado, estava mais interessado em saber algo mais sobre o obscuro passado do Antoine como legionário, e as circunstâncias em que fora gravemente ferido na batalha de Dien Bien Phu.  Embora com relutância, ela prometeu-me trazer, pour la prochaine fois, alguns dos papéis da tropa, poucos, que ainda restavam lá em casa, em França. Estava esperançado que ela me arranjasse alguma fotografia do Antoine quando jovem.

Infelizmente a Rosemarie não pôde cumprir a sua relutante promessa. Em 2019 não veio a Portugal. E há menos de seis meses morreu, vítima de Covid-19, tendo sido cremada.
Só vim a saber da triste notícia através dos amigos da casa da Lagoa de Óbidos. Confesso que fiquei desolado...

Com a morte da Rosemarie, inesperada (e chocante para os seus amigos, como eu), apagaram-se também os últimos segredos dos dois homens que com ela partilharam o pior e o melhor da sua vida, debaixo do mesmo tecto... 

Da última vez que a vi, no verão de 2018, parecia-me uma mulher finalmente feliz, reconciliada com ela e com a vida, liberta das sombras negras do seu passado. Era uma mulher sem rancores, que quis toda a vida amar e ser amada: despediu-se de mim, a cantarolar a Edith Piaff, "Non! Rien de rien, / Non! Je ne regrette rien. / Ni le bien, qu'on m'a fait, / Ni le mal, tout ça m'est bien égal!"...

Sorriu quando lhe prometi esperar, "até aos seus cem anos", para então lhe publicar a sua "histoire de vie".

Estava determinado (e condenado) a respeitar a sua vontade: agora que ela partiu, ao quilómetro 82 da sua "estrada da vida" (aliás, mais 'picada' do que autoestrada...), deixo aqui a sua história. A sua "petite histoire"... Caberá aos leitores ajuizar se ela fica bem, ou não, na "galeria dos meus heróis".

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)

(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)


16 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21258: A galeria dos meus heróis (35): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte II (Luís Graça)

(...) O Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia (...) a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá foram massacrados. (...)

Em finais de 1953 está na Indochina, para logo, passados poucos meses, em 13 ou 14 de março de 1954, no início da batalha de Dien Bien Phi,   ser ferido gravemente por um estilhaço de obus, que lhe desfigurou o rosto. Teve a sorte de ainda poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses depois, em maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressaram do doloroso cativeiro. (...)



25 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21292: A galeria dos meus heróis (36): Rosemarie e os seus dois maridos... Parte III (Luís Graça)


(...) Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica.

Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, talvez no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1967, quando partiu para França “a salto”. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos. (...)