segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21482: Notas de leitura (1317): “Para o bem da Nação: usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa (1949-1961)”, um artigo de Victor Andrade de Melo na Revista Análise Social de 2017 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a uma curta viagem sobre a prática desportiva na Guiné-Bissau, com um apontamento da importância que o PAIGC conferia, no período da luta armada, à ginástica e ao desporto em geral. A guerra, a descolonização e o isolamento do colonialismo português alteraram em profundidade a política de desporto ancorada por Sarmento Rodrigues, um crente no luso-tropicalismo e um impulsionador do bom relacionamento com os territórios limítrofes. A chegada de contingentes militares metropolitanos aumentou o número de técnicos desportivos mas os grupos guineenses decaíram devido à gradual instabilidade política. É esse histórico que aqui fica registado.

Um abraço do
Mário


Usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa e no PAIGC (2)

Beja Santos

Em texto anterior, retirado da revista Análise Social n.º 225, de 2017, sumularam-se as apreciações do investigador Victor Andrade de Melo sobre as manifestações desportivas na Guiné Portuguesa desde a era de Sarmento Rodrigues até 1961, o ano que precede o início das ações subversivas do PAIGC. No artigo do mesmo autor intitulado “A nação em jogo: esporte e guerra colonial na Guiné Portuguesa (1961-1974)”, publicado na revista Antíteses, da Universidade Estadual de Londrina, Brasil, aflora-se o impacto da guerrilha do PAIGC, mas é importante dar atenção ao prelúdio desses acontecimentos. Os clubes mantiveram a sua atividade até ao início da guerra, enfrentado os mesmíssimos problemas que se tinham registado nos anos 1950, com relevo para as dificuldades financeiras e deficiências organizativas graves. Isto para dizer que a política do desporto na Guiné tinha uma dependência crucial no incentivo estatal. Um cronista observou que o Liceu Honório Barreto inaugurado em 1957 não possuía um espaço adequado para a prática do desporto, isto em 1961. A Mocidade Portuguesa tentava a implantação na Guiné, fazia uma inserção que ia desde a apresentação de danças indígenas até à educação física.
Entrada dos elementos da Mocidade Portuguesa no campo de futebol do Piche, 1971

A guerra trouxe modificações de montra e uma delas foi a participação de militares em diferentes modalidades desportivas. Equipas das Forças Armadas passaram a participar nos eventos desportivos. Em 1967, o Torneio da Páscoa contou com a presença da seleção nacional de militares, que um cronista saudou como uma forma de exaltação do império: “Foi este o último elo que ligou os desportistas da Guiné e a Mãe Pátria, nesta magnífica jornada que jamais se poderá apagar da mente deste povo modesto. Bem hajam, valentes soldados de Portugal, que a este cantinho trouxeram um pouco da recordação do nosso verdadeiro Lar". Os militares também passaram a ocupar funções de direção, caso do Capitão António Rodrigues Rebelo de Carvalho que em 1963 assumiu o Conselho Provincial de Educação Física, empossado diretamente pelo Governador da Guiné.

Em 1964, um dos mais tradicionais campeonatos disputados na Guiné, o Torneio Internacional da Páscoa, pela primeira vez não contou com equipas de fora da província. Escreveu-se em O Arauto: “Os tempos mudaram. O momento atual não permite que continuemos a manter relações desportivas com esses vizinhos”.

No ano seguinte, como já se escreveu no texto anterior, veio a Académica de Coimbra, que retornava à Guiné com o mesmo sucesso que obtivera nos anos 1950. Em Abril de 1962, desembarcaram em Bissau, para realizar jogos em várias cidades, as seleções portuguesas de vólei e andebol. O Arauto voltou a embandeirar em arco: “Em Bissau ou em Bafatá, em Farim ou em Bula, em Teixeira Pinto ou em Bissorã, irmanados do mesmo desejo e no mesmo brio – portugueses, pretos, mestiços e brancos – entregaram-se ao desenvolvimento desportivo local, alheios às contrariedades". Uma delegação do Sporting Clube de Portugal veio à Guiné em 1966, trouxe um presente da Câmara Municipal de Lisboa, livros para serem distribuídos por escolas e bibliotecas, houve jogos de futebol, andebol, futsal e basquetebol.

Para apurar qual das equipas participaria na Taça de Portugal, jogaram a UDIB e a Académica de Mindelo, ganhou a UDIB que veio a disputar a fase seguinte com o Olhanense, foi eliminada.

Spínola não descurou o fenómeno desportivo, e na entrega da Taça da Guiné de 1969 referiu que o seu intuito era atingir a “grande massa do povo guineense que pretendemos valorizar física, intelectual e moralmente no quadro da consecução de uma vida melhor”.
Mas os conflitos e o estado de sobressalto permanente tinham posto as coletividades a viver com inúmeras dificuldades. Em 1968, o Torneio de Páscoa, que já não era internacional, foi cancelado, no ano seguinte quem veio jogar na Taça de Portugal com o Sporting foi a UDIB. A despeito dos sobressaltos, ainda se fez um rali Bissau-Mansoa. Mas os dias do desporto colonial tinham os dias contados.
Victor Andrade de Melo dedica depois a sua atenção ao desporto nas zonas de conflito. Na escola-piloto de Conacri a educação física era uma matéria obrigatória. Os dias de aula iniciavam-se com sessões de ginástica e prática desportiva. Para os líderes do PAIGC, tratava-se de garantir o que consideravam um direito: os cuidados com a saúde e a higiene, bem como o acesso a uma faceta da cultura. A ginástica era ministrada no Lar dos Combatentes que acolhia os que deixavam a Guiné e iam para Conacri preparar-se para participar na luta armada. O Programa para a Preparação de Soldados das FARP lançado, em 1968, pela Escola de Formação de Combatentes, que tinha como um dos seus objetivos “preparar os nossos combatentes fisicamente, de forma a que possam levar a cabo as ações militares e as marchas com êxito […] Para conseguir este objetivo deve treinar-se o pessoal em ginástica, campos de obstáculos e em combates de corpo a corpo". Há mesmo uma carta de Nino Vieira para Luís Cabral a pedir materiais para a prática desportiva, pede explicitamente uma bola de futebol. Na Fundação Mário Soares guardam-se diferentes documentos de líderes revolucionários pedindo equipamentos desportivos, nessa mesma fundação encontram-se fotos de jogos de futebol disputados entre prisioneiros portugueses e membros do PAIGC. Em jeito de conclusão, o autor refere que “é possível inferir que os dois grupos, Forças Armadas de Portugal e do PAIGC lograram algum sucesso na mobilização pelo desporto. De um lado, era uma forma de ajudar a suportar a dura vida da guerra, uma diversão quotidiana com a qual se envolvia mais intensamente os que já a apreciaram. Do outro lado, juntamente com a ginástica, era concebido como ferramenta para a preparação do combate, para desenvolver espírito de grupo, aptidão física, controlo e disciplina."
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Notas do editor

Poste anterior de 19 de outubro de 2020 > Guiné 671/74 - P21465: Notas de leitura (1315): “Para o bem da Nação: usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa (1949-1961)”, um artigo de Victor Andrade de Melo na Revista Análise Social de 2017 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21469: Notas de leitura (1316): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - V (e última) parte (Luís Graça): Em Brá, no final da comissão, tem como companheiro de quarto o furriel mil 'comando' Vassalo Miranda, uma 'figura ímpar', grande autor de banda desenhada da nossa guerra

Guiné 61/74 - P21481: Casos: a verdade sobre... (13): a "Montanha Cabral", como chama a população local, de maioria fula, à colina Dongol Dandum (cota 171), a sul de Madina do Boé


Foto nº 1 > Guiné > Região de Gabu > Setor de Boé > Colinas do Boé > s/d>  Detalhe de imagem reproduzida, com a devida vénia, da página do Facebook de Catarina Marcelino) > Marco com a inscrição "1958"... Local: colina Dongol Dandum (cota 1971), também  conhecida pela população local como "Montanha Cabral" 


Foto nº 2  >  Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Chão Felupe > Estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete > Marco com a inscrição "1951"...


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Chão Felupe > Estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete > Marco com a inscrição "MGHG" (sigla de Missão Geo-Hidrológica da Guiné", e não MCOG, como  regista a antropóloga Lúcia Bayan


Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Chão Felupe > Estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete >  Marco com a incrição "LN 2 0” e “R”.


Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Chão Felupe > Estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete >  Marco, sem inscrições.

Fotos (e legendas) (2, 3, 4 e 5): © Lúcia Bayan (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Caros/as leitores/as:

Parece-nos ter "descoberto" o mistério do "marco", atribuído a Amílcar Cabral e à sua passagem pela colina, que hoje teria o seu nome, "Montanha Cabral" [, Foto nº 1]. A "tradição" ou a  "crença popular local" fpi aproveitada pela ONGD Afectos com Letras, para ali erigir, a pedido da população local, de maioria fula,  um pequeno memorial da luta pela independência,... 

Recorde-se o que diz a página do Facebook da Catarina  Marcelino, deputada à Assembleia da República Portuguesa  (*):

(...) "A Associação Afetos com Letras está a construir um pequeno espaço de memória na Montanha Cabral, junto ao marco ali colocado por Amílcar Cabral em 1958 e que mais tarde se torna o local de encontro com os seus homens e onde muita da estratégia militar era definida". (...)

Há tempos publicámos aqui um poste com fotos de marcos semelhantes ao da Foto nº 1,  para os quais a antropóloga Lúcia Bayan procurava uma explicação, agradecendo a eventual a ajuda.


2. Escreveu a antropóloga Lúcia Bayan [Vd. aqui o poste P20584 (**)]

(...) Que marcos são estes? [Fotos nºs 2, 3, 4 e 5]

Na ponta noroeste da Guiné Bissau, em pleno chão Felupe, existe uma estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete, onde a população, para as suas idas ao Senegal, em especial Kabrousse, apanha a canoa para atravessar o rio com o mesmo nome. 

Esta é uma estrada de terra, por vezes plana e lisa, outras vezes irregular e “com dois andares”, que atravessa floresta, campos agrícolas, bolanhas secas ou com água, de acordo com a época do ano, e também as tabancas Caroai, Basseor, Tenhate e Sucujaque.[Vd. carta de Varela.]

Entre as tabancas Sucujaque e Tenhate (...) , a estrada, com uma extensão de cerca de 2,5 Km, é muito bonita, ladeada de floresta, como se de um parque ou jardim se tratasse (...).

Nesta estrada existem dois marcos de pedra que não sei identificar. Serão marcos geodésicos? Delimitações da administração colonial? Militares? Propriedade de terrenos?

Um dos marcos, que nomeei Marco 1, está situado junto à estrada, a 12° 20’ 48,27’’ N e 16° 38’ 32,01’’W (valores recolhidos por mim no local), e tem inscrições em três dos seus lados. Na face virada para a estrada está inscrito “M C O G” [,. Foto nº 3], na face traseira “1951” [, Foto nº 2 ], numa das faces laterais encontra-se inscrito “L N 2 0” e “R” e nada na outra (...)

O Marco 2, situado a 12° 20’ 48,56’’ N e 16° 38’ 11,09’’ W, está também muito perto da estrada, mas escondido no mato e, apesar de idêntico ao primeiro, não tem qualquer inscrição (...) , provavelmente devido ao desgaste do tempo. [Foto nº 4]. (...)

[Nota do editor LG: na foto nº 3. a sigla não é MCOG, mas sim MGHG leia-se: Missão Geo-Hidrográfica da Guiné:  Vd. Decreto-lei n.º 33609 de 14 de Abril de 1944: em 1944, o Ministério das Colónias organiza e envia à Guiné uma missão geo-hidrográfica encarregada de proceder ao levantamento geodésico e cartográfico da colónia, e seguidamente ao seu levantamento hidrográfico.]

3. Só o nosso "mais velho" António Rosinha  respondeu,  na altura,  ao repto da antropóloga,  Lúcia Bayan, fazendo uso da sua grande sabedoria, experiência, africanismo e inteligência emocional... Afinal, os nossos "mais velhos" veem sempre muito mais longe, mesmo quando estão sentados na base do poilão, do que os "djubis", os putos, dependurados lá no cocuruto da árvore sagrada!...

O Rosinha, com o seu apurado "olhar clínico", não teve dúvidas: "não, minha senhora, esses marcos não podem ser marcos geodésicos"... Afinal, ele foi um experiente topógrafo em Angola e depois na Guiné-Bissau (,aqui ao serviço da famosa TECNIL).

Foi ele que nos deu uma "pista preciosa" que,  juntando à informação da antropóloga. nos levou à MGHG - Missão Geo-Hidrográfica da Guiné... ("E não MCOG, senhora doutora!... Veja com mais atenção as fostos dos marcos que tirou no chão felupe"...).

Escreveu o nosso querido amigo e camarada, o "cólon" António Rosinha:

(...) Um vértice (ou Marco) geodésico é um sinal que indica uma posição cartográfica exacta e que forma parte de uma rede de triângulos com outros vértices ..

Aqui na "Metrópole" os marcos geodésicos são normalmente troncos de cone e em Angola, eram troncos de pirâmide em geral.

Normalmente todos com alturas de mais de metro e meio em locais altos e se possível intervisíveis com outros vértices directamente, caso contrário usando torres metálicas centradas sobre esses marcos.

Também nas minhas andanças guineenses, junto de um canal, (que já não me consigo recordar onde) encontrei um marco de cimento igual aos das fotos.

Não é possível que esses marcos da foto e o tal que eu também encontrei há mais de 25 anos, pertencessem a uma rede geodésica principal.

Para mim, foram marcos coordenados por oficiais da marinha, em levantamentos geográficos parciais, para posterior ligação a uma futura rede geodésica.

Nem compreendo para que outra coisa serviria construir uns marcos com fundações tão frágeis.

Era muito caro e muito custoso fazer cartografia na Guiné, havia a MGA, Missão Geográfica de Angola, mas aí, terra muito rica, eram enormes marcos para toda a vida.

Guiné, cuitada!

23 de janeiro de 2020 às 18:38


4. Comentário do nosso editor LG:

O Patrício Ribeiro, lá da sua "ponta do Vouga", acaba de nos mandar um texto, documentado com  fotos, sobre as diversas viagens que já fez à região do Boé. Não se esqueçam que ele está há manga de luas a viver e a trabalhar na Pátria de Cabral.

Sobre a "Montanha Cabral", diz-nos que nunca ouviu falar desse lugar, ou dessa designação. Falou, de resto, com  com "dois  investigadores portugueses,  que tu conheces, o Geólogo, Paulo Aves,  e o Biólogo, Luís Catarino, que também fizeram trabalhos no Boé":  mas também eles não conhecem essa "Montanha Cabral",

 E depois acrecenta: "Parabéns à Joana Benzinho e sua equipa, que com muito sacrifício, andam a levar a língua Portuguesa a locais de difícil acesso. Depois da AMI nos anos 80  com a sua equipa médica, chega mais alguém a falar Português ao Boé, esta língua é pouco falada naquela zona."

Em resumo,  nenhum de nós, nem o Cherno Baldé, nunca tinha ouvido falar da tal mágica e sagrada "Montanha Cabral"... E se o Cherno Baldé não conhece, poucos guineenses conhecerão...

Mas também, e como escrevemos ao Cherno, é importante associar o território à memória das gentes... Também nós, portugueses, temos as nossas "lendas e narrativas", desde Ourique a Alcácer Quibir, passando por Aljubarrota e os Montes Hermínios... Afinal, um povo que as não tenha, as tais "lendas e narrativas", é um povo morto ou moribundo...

 A ONGD Afectos com Letras está no seu direito de ir ao encontro das necessidades expressas ou sentidas pela população local,  com esta iniciativa de erguer, nas colinas do Boé,  um pequeno memorial ao papel histórico do Amílcar Cabral como líder de um movimento nacionalista que levou o território à independência. 

Que a população local, de maioria fula, chame "Montanha Cabral" à colina Dongol Dandum, está no seu legítimo e pleníssimo direito. 

No tempo da guerra colonial, essa designação não existia. Sobre isso, acaba-nos de falar ao telefone o ten gen ref José Nico que teve protagonismo na "guerra de Madina do Boé", travada em meados de 1968 (***). 

Para ele, só pode tratar-se da colina Dongol Dandum, base de fogos do PAIGC nos ataques e flagelações contra o quartel de Madina do Boé. E onde se posicionavam também os "snippers", os temíveis franco-atiradores, diz o Manuel Coelho, ex-fur mil trms, da CCAÇ 1589, que ia lerpando,,,

Afinal, estamos aqui, numa boa, não para "fazer história", que é uma coisa chata e enfadonha, que deixamos aos senhores historiadores diplomados, mas tão simplesmente  para partilhar memórias... E, já agora, também para nos divertirmos e cuidar da nossa boa saúde mental... 

De facto, mal de nós, antigos combatentes, quando um dia viermos aqui reconhecer em público: "Eh!, malta, já não me lembro do que me esqueci!"... 

Quem nunca conheceu a "Montanha Cabral", não pode lembrar nem esquecer... Infelizmente foi palco de alguns sangrentos combates onde morreram ou ficaram feridos portugueses, guineenses, cabo-verdianos e cubanos (***)... Esta é que foi a verdade, nua e crua, a de uma guerra que nunca deveria ter acontecido  (****)

 Mantenhas. Cuidemo.nos!

PS1 - Nunca é de mais reiterar, publicamente, a nossa homenagem aos valorosos cartógrafos militares portugueses. A cartas do chão felupe / região do Cacheun(Varela, Susana, São Domingos, etc.) da Guiné resultam do levantamento efectuado em 1953 pela Missão Geo-Hidrográfica da Guiné – Comandante e oficiais do Mandovi, daí a razão de ser dos marcos assinalados pela Lúcia Bayan. O mesmo se passa com as cartas de Madina do Boé (1958), Béli (1959), Jabiá (1959)...

PS2 - Em 1958 Amílcar Cabarl já não estava na Guiné. Em 1953, foi contratado como engenheiro agrónomo pela Repartição Prvincial dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa e, nessa qualidade, foi o rsponsável pelo planeamento e execução do Recenseamento Agrícola da Guiné. Teve então ocasião, em 1953, de percorrer quase toda a Guiné, incluindo a região do Boé. Em 1956/60 foi colaborador eztraordinário da Junta de Investigações do Ultramar, bem como da Direção Geral dos Serviços Agricolas (1958/60), ambas com sede em Lisboa. 


Excerto do "curriculum vitae" profissional do engº Amílcar Cabral, redigido em francês, s/d.
 

Citação:
(s.d.), "Curriculum Vitae - Amílcar Lopes Cabral", Fundação Mário Soares / Arquivo Mário Pinto de Andrade, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_84145 (2020-10-26)


(***) Vd. poste de 30 de abril de  2018 > Guiné 61/74 - P18585: FAP (103): Pedaços das nossas vidas (3): Madina do Boé, "O Algarve na Guiné", por TGeneral PilAv José Nico (José Nico / Mário Santos)

(****)  Último poste da série > 1 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21406: Casos: a verdade sobre... (12): O mistério das ruínas de Ponta Varela e Mato Cão... Afinal, tratava-se de estações liminigráficas instaladas pela Brigada dos Estudos Hidráulicos da Guiné (1956-1965)

domingo, 25 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21480: Blogpoesia (702): "Pesadelos da guerra", "Administrador dos passos" e "As mãos do artista", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


Pesadelos da guerra

Sofri pesadelos, acordado, na guerra.
Atravessei o adamastor e o cabo da boa esperança.
Regressei intacto.
Esfacelado por dentro.
Esperava a gratidão de quem cá ficou.
A primeira de muitas grandes ilusões.
A humanidade é imprevisível.
Em vez da união entre os regressados,
Campeou o desenfianço.
Cada um, por seu gosto e paladar.
Uma grande maioria atravessou as fronteiras.
Na ilusão de enriquecer.
À procura da árvore das patacas.
Foram servir de moleques
Nas obras dos outros.
Esmigalhou-se a família lusitana.
Vão ser precisas várias gerações
Para curar as feridas...


Berlim, 19 de Outubro de 2020
15h3m
Jlmg


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Administrador dos passos

Não sou senhor dos meus passos.
Os administro como melhor sei e parece.
Nele eu vou, se possível, em tranquilidade.
Sem pressas. Para não tropeçar.
As quedas atrasam ou comprometem a marcha.
E, se quero atingir meu porto,
Não posso desperdiçar o tempo.
Minha bússola é a paciência e a contenção.
Tenho de cuidar bem meu corpo.
Fazer suas revisões à hora.
Parar para descansar, de vez em quando.
Às vezes, a subida é íngreme e espinhosa.
Nunca desligar o motor nas descidas.
Podem faltar os travôes.
O precipício surge quando menos se espera.
Os barrancos estão cheios de carcaças velhas.


Berlim, 22 de Outubro de 2020
9h55m
Jlmg


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As mãos do artista

Ligadas à sua mente por liames insondáveis,
Traduzem sobre a tela suas mensagens.
Seu mundo é a beleza.
Seu mar é o oceano onde navegam.
Sua cor é das flores.
Seu brilho é das estrelas.
Fazem de cor e bem tudo o que sabem.
Não têm segredo os seus caminhos.
Vivem sós seu privilégio.
Usuários.
Revelam seu olhar pelos olhos de sua alma.
Têm o dom que lhes deu a Natureza.
Não é seu.
É para dar a quem vai pelo seu caminho.


Berlim, 23 de Outubro de 2020
15h37m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21461: Blogpoesia (701): "A força do sangue", "Ruela estreitinha" e "Coincidência ou acaso", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 24 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21479: Memória dos lugares (414): Região de Gabu, setor de Boé, Colinas do Boé: Montanha Cabral... Alguém sabe onde fica, exatamente, essa "montanha" (fello, em fula), que faz parte das "lendas e narrativas" do PAIGC ?


Guiné > Região de Gabu > Setor de Boé > Colinas do Boé > s/d> Catarina Marcelino, com o "homem grande" de Dandum (?), na "Montanha Cabral", junto a marco de cimento que ostenta uma data gravada: 1958.  (Reproduzido, com a devida vénia, da página do Facebook de Catarina Marcelino)



Guiné-Bissau > Região de Gabu > Setor de Boé > 30 de junho de 2018 > Dandum (?) > "Montanha Cabral" : memorial > Foto reproduzida, com a devida vénia, da página do Facebook da ONGD Afectos com Letras


1. Na página do Facebook da ONGD Afectos com Letras, que tem sede em Pombal, criada em 2009 e  liderada pela Joana Benzinho, pode ler-se em poste de 19 de maio último:

(...) Apesar da pandemia, a vontade de fazer acontecer não esmorece. E os nossos projetos vão avançando na medida do possível.

Na montanha Cabral, em Boé, está praticamente terminado o bangaló que vai acolher um pouco da história da luta pela independência da Guiné-Bissau, relatada por quem a viveu. 

Assim que possível iremos ali instalar um painel informativo, forrar o telhado com palha e um painel solar que irá permitir ter som e imagem a recordar os tempos em que esta montanha marcou a história da luta de libertação. (...)
 


2. Pergunta o nosso editor LG:

Onde fica essa "Montanha Cabral" ?...Só pode ser nas "Colinas do Boé" onde, na realidade, não há "montanhas" [ que, segundo o dicionário, são montes elevados e de cumes extensos], mas tão só algumas elevações de terreno que atingem cotas entre os 100 e os 300 metros, no máximo (, em português, colinas, outeiros, cabeços...).

Parece que o ponto mais alto, nas Colinas do Boé, situa-se a 361 metros acima do nível do mar... Ainda não descobrimos onde fica exatamente... O setor do Boé terá hoje mais de 12 mil pessoas, de maioria fula,  distribuidas por mais de 8 dezenas de tabancas... Era uma zona desertificada no tempo da guerra.  

A  paisagem das Colinas de Boé, que domina o setor, é uma  extensão do maciço de Futa Jalom,  situado na Guiné-Conacri, a sudeste.  Por aqui correm os  rios Corubal, Fefine e Mael Bane. No setor situa-se o Parque Nacional do Boé, com mais de 1300 km2. É uma zona sensível, do ponto de vista ecológico, rica em fauna e flora. Ver aqui um vídeo do Daribó, o projeto de conservação, de base comunitária, do chimpanzé.

Já agora que acrescente-se que o ponto mais alto do Futa Jalom, na Guiné-Conacri,  é o Monte Loura [, Fello Loura, em fula], com mais de 1.500 m. A altitde média, no maciço do Futa Jalom, são os 900 metros..

Um dos "tags" (marcadores) usados no poste acima  é Dandum, uma tabanca fronteiriça, já visitada em 2018 pelo nosso amigo e camarada Patrício Ribeiro (*). A "Montanha de Cabral", que faz parte das "lendas e narrativas" do PAIGC, está, pois, associada a este topónimo.

Ora Dandum, atualmemte, deve ficar a sul de Madina do Boé, próximo da frinteira, a sul [vd. infografia].

Esta é uma região pouco ou nada conhecida pela maior parte de nós e que, devido aos maus acessos, também é pouco ou nada procurada pelos ex-combatentes portugueses,   "turistas de saudade"... De Madina do Boé, de Beli, de Cheche, do rio Corubal,,, também não ficaram boas recordações, bem pelo contrário... 

Daí termo-nos lembrado de reconstituir e documentar o percurso do Patrício Ribeiro, nesse início da estação das chuvas de 2018. Publicamos, em próximo poste,  alguns excertos das  crónicas dessa viagem,  com  algumas das fotos, reeditadas e renumeradas (*).


Carta da Província da Guiné (1961) > Escala 1/500 mil > Detalhe: a região do Boé
Posições relativas de Canjadude, Ché-Ché (ou Cheche), Madina do Boé, Diquel, Dandum, Lugajole e Vendu Leid


Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)

3. Na página do Facebook da conhecida ativista e deputada à Assembleia da República, Catarina Marcelino, com data de 26 de fevereiro de 2020, encontramos mais informação sobre a tal "Montanha Cabral":

(...) Nasce um projeto de reconhecimento histórico nas colinas do Boé. A Associação Afetos com Letras está a construir um pequeno espaço de memória na Montanha Cabral, junto ao marco ali colocado por Amílcar Cabral em 1958 e que mais tarde se torna o local de encontro com os seus homens e onde muita da estratégia militar era definida. 

Para lá chegarmos fomos até Gabu {, antiga Nova Lamego], depois para Tchetche onde atravessámos o rio Corubal, rio que guarda a memória da morte de muitos portugueses na retirada da Madina do Boe [, em 6 de fevereiro de 1969], e por fim fizemos uma picada dificil com muitas pedras até ao local onde nos encontrámos com o Homem Grande da Tabanca que nos falou desses tempos passados, mas também do presente e do futuro. (...)

De qualquer modo, vamos perguntar ao Patrício Ribeiro (, que está agora no "Puto", na sua "ponta", em Águeda, junto ao rio Vouga, a resguardar-se das investidas do SARS-Cov-2), se, nas últinas andanças lá pelas Colinas do Boé, em 30 de junho e 1 de julho de 2018 (*), ele deu com a tal "Montanha Cabral" (**)...
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Notas do editor:

21 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18861: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (7): Os meus passeios pelo Boé - Parte I: 30 de junho de 2018: a travessia do Rio Corubal, de jangada, em Ché Ché

(**) Último poste da série > 28 de setembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21401: Memória dos lugares (413): O meu Seiko 5 (five), comprado na Casa Costa Pinheiro, parou ao fim se 50 anos... (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op Mensagens)

Guiné 61/74 - P21478: Os nossos seres, saberes e lazeres (418): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (12) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Não há bem que não acabe, aqui fica o relatório do último dia em Ponte de Lima, já pairam no ar notícias inquietantes de um vírus, nos noticiários relevam-se termos como pandemia, confinamento, quarentena, é suposto que em breve seja anunciado um estado de emergência. Por aqui deambulo sem palpitações ou receios de me infetar, mas à cautela já nem a mão estendemos a amigos e conhecidos. Foi uma viagem surpreendente, como repetidamente se veio a afirmar, era um dever de amizade e a confirmação de tudo quanto se lia sobre estes pontos do Alto Minho que tanto emocionavam um amigo cego, que vibrava com a história de Ponte de Lima e Viana do Castelo, sobretudo, nestes locais viveu até à adolescência, e muitas vezes regressou, marcado pela paternidade minhota. Há um travo amargo, o que ficou por ver, os arrabaldes, a passagem por Viana do Castelo foi visita de médico, nunca se conseguiu entrar na Igreja da Misericórdia, nem se visitou o esplêndido barroco da Correlhã, mas outros exemplos podiam ser dados. Isto para acentuar que foi uma viagem memorável e que Deus permita que se possa repetir.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (12)

Mário Beja Santos

Esta inolvidável peregrinação caminha para o seu termo, hoje é dia reservado a Ponte de Lima, as notícias sobre o coronavírus são cada vez mais alarmantes, vêm aí restrições severas, fala-se em confinamento, logo de manhã, no próximo dia, ruma-se a Lisboa, há uma certa suspeita de que vale a pena passar por Pedrógão Pequeno e encher uma mala com livros, nos noticiários de rádio fala-se em quarentena, ao menos que haja leituras e boa música, o resto virá por acréscimo. Contempla-se este magnífico painel de azulejos, o tema é a Restauração, a aclamação de D. João IV, bate certo neste templo religioso que vem dos confins da Idade Média.
É uma deambulação sem itinerário, voltou-se a visitar alguns parques, estátuas, percorreu-se cuidadosamente a Rua do Arrabalde de S. João de Fora e também a Rua Lima Bezerra, não se esqueceu a Casa de Nossa Senhora de Aurora que se visitou com tanto gosto, com o seu jardim aprimorado, acolhimento de estalo da anfitriã que zela aquele património seja mantido com desvelo, uma casa destas exige restauro permanente, conservação permanente.
E os jardins? Sai-se deste ponto da Ribeira Lima assegurando ao leitor que se cumpriu à risca o guia turístico e o que confere a Ponte de Lima a Rota das Camélias: o passeio ribeirinho, o parque temático do Arnado, com os seus diversificados jardins, o jardim Sebastião Sanhudo, a inevitável Avenida dos Plátanos, o jardim dos Terceiros, e mesmo junto ao edifício da autarquia, o jardim Dr. Adelino Sampaio. Já se anda com os pés a escaldar, mas o dia está magnífico, e o maravilhamento é intenso.
Havia um encontro aprazado com um limiano que é personalidade conhecida da terra pelo denodo com que se bate para que seja respeitada a memória dos combatentes, carteamo-nos regularmente, ele reservara-me surpresa, visitar Ponte de Lima do alto. E que grande surpresa. Começou por me levar a uma elevação onde se desfruta do vale do rio Trovela, as águas que por ali correm vêm dos montes da Boalhosa, passando por Fornelas e pela Feitosa. O que é que há de especial nesta floresta? Uma floresta antiga, ali pontificam amieiros, carvalhos, castanheiros, sobreiros, salgueiros, ainda não entrou a praga do eucalipto, e não constam pinheiros. Antes porém, houve subida ao Monte da Madalena, na freguesia de Fornelos, estamos a 240 metros de altitude, há por ali até um parque em espaço arborizado e aprazível, e está aberto um restaurante, aqui se pode desfrutar uma panorâmica sobre o populoso concelho.
O Mário Leitão insistiu que fôssemos às Lagoas de Bertiandos e S. Pedro d’Arcos, ele foi um pioneiro para que ali houvesse uma reserva natural, expliquei-lhe que tentara por ali cirandar, quase impossível, os caminhos estavam praticamente alagados, só de galochas, que eu não trouxera. E tranquilizei-o, haverá regresso, iremos os dois a esse paraíso da biodiversidade. Insistiu numa fotografia a dois, e eu fiz questão de mostrar o livro das Lagoas de Bertiandos, um dos motivos do próximo regresso.
Lagoas de Bertiandos e S. Pedro d’Arcos
No caminho de regresso encontrou-se este espigueiro em bom estado, tão importante património como as casas, pontes, jardins e lagos que me encheram os olhos. Há um lugar icónico, que é o Soajo, em que estes armazéns de cereais assentam na robustez da pedra, o que produz um efeito de ponto fortificado, que não é, terá sido impressão minha, depois de ter palmilhado aquele magnífico Castelo de Lindoso, de perpétua memória.
Procuro uma síntese de tudo quanto me foi dado observar, tanto em património natural como construído: o bucolismo genuíno da Ribeira Lima, as belas veigas e gândaras dos pequenos vales, o rio longo e plácido, aquela ponte histórica, nó viário fulcral desde tempos antigos e também da alvorada da nossa nacionalidade; a vila cuidada, o seu casario que assinala um passado dinâmico; as visitas a Ponte da Barca, Arcos de Valdevez e Viana do Castelo, por haver reporte, a diferentes níveis sentimentais com a pessoa que aqui se veio homenagear, uma vida que se extinguiu em janeiro de 2020, 90 anos há pouco feitos, e que continua a deixar-me inconsolável. Daí as imagens que se seguem, de tempos imemoriais, até uma lápide para mim indecifrável, mas que tanto me comoveu. São imagens de saudade, valem pelo que valem.
Os estudantes coimbrões falam da hora da despedida nas suas baladas, vai anoitecendo, daqui a pouco não me vou poupar ao meu último caldo verde, porque aqui a comida tem fama e proveito, primeiro o dia tem aquela luz ofuscante que anuncia a escuridão repleta; era inevitável que a última imagem fixasse um troço da Ribeira Lima, que associo sempre a todos aqueles jornais que lia regularmente a um cego ávido de informações da terra-mãe. Cumpri o meu voto, espero dobrá-lo e redobrá-lo, por definição toda a viagem é inacabada.
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Notas do editor:

Poste anterior de 17 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21458: Os nossos seres, saberes e lazeres (416): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (11) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21476: Os nossos seres, saberes e lazeres (417): O que é que isto tem a ver connosco e com a nossa 'guerra'?

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21477: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (24): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Estamos agora em plena sala de espelhos, é uma organização de romance com recurso a um expediente muito antigo, põe-se na boca de outro o que vai na nossa mente, o expediente utilizado é que aquele antigo combatente envia, numa certa sequência cronológica, acontecimentos que ele recorda da sua comissão na Guiné, envia-lhe textos, até cópias de documentos militares, fotografias da época e outras mais recentes, ela comprometeu-se a arquivar com método, mas o inesperado aconteceu, amam-se, ela passou a vibrar com esta recolha de memórias, memórias que ela averba à admiração que tem pelo seu amado.
É uma banalidade dizer-se que todo e qualquer romance fala de nós, é esse o fulgor da leitura, conseguir encenar a realidade no manto da ficção, pôr na carpintaria elementos do passado, coisas tremendamente incómodas para o presente, aquela guerra já caiu nas brumas da memória, é ressuscitada num ardor afetivo de dois cinquentões, o que ele guarda é que foi naquele teatro bélico que se fez homem, se moldou na pessoa que ainda é, o que ela capta são coisas que há um ano atrás eram impensáveis, amar um homem de um outro país numa historieta que começara exatamente por ele lhe pedir que ela fizesse parte de um romance. O estranho disto tudo é que Paulo Guilherme já disse a Annette Cantinaux que o título é definitivo, consagra o nome da rua onde ambos descobriram que queriam pugnar pelo seu futuro comum.
E se assim é, continuemos.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (24): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureux, não te escondo a excitação da partida, só faltam três dias, mexo e remexo na mala, procuro no guarda-fato um casaco compatível com o vosso inverno, estão alinhadas em cima da mesa da sala de jantar as surpresas que levo para Lisboa, fizeste bem em referir-me os gostos e preferências dos teus filhos, encontrei os CDs do Jacques Brel, no frigorífico já pus os queijos malcheirosos de que gostas, sempre que não venho derreada das reuniões, arrumada a loiça e as panelas, faço uma tisana de maçã e canela e alinho toda a documentação que me envias durante a semana, ficarás seguramente bem impressionado com a quantidade de documentação organizada, desde que chegaste à Guiné, e estamos agora em finais de fevereiro de 1969. Não te posso esconder que li grande parte dos apontamentos que me enviaste em grande sofrimento.

Olho a imagem do Paulo Ribeiro Semedo e por muitas voltas que dê à imaginação não consigo supor o destroço em que ele ficou, depois daquele acidente de Chicri que tu contaste com tanto detalhe. Tenho esta fotografia e a anterior, a outra, é evidente, já ele teria feito muita cirurgia plástica, retirado todos aqueles estilhaços que em condições normais o teriam vitimado mortalmente. Gostei muito das fotografias desse tal fotógrafo José Henriques de Mello que acompanhou 60 anos antes de tu chegares à Guiné a operação do Cuor para sustar a rebelião de Infali Soncó. Li na carta que escreveste a propósito que ele foi deposto e mais tarde reintegrado, o tal herói de Teixeira Pinto, Abdulai Indjai, teria cometido tantas e tais torpezas que foi também deposto de régulo do Oio e do Cuor. E as imagens que tu mandas são de uma inefável beleza, não fosse o clima tão atroz e eu sugeriria que viajássemos os dois até lá, não só pelas belezas naturais que tu me mostras mas para sentir as amizades que tu ali deixaste e, estou segura, que acompanharão até ao resto dos teus dias.

Arrumei todo o dossier de janeiro e fevereiro. O que tu escreveste sobre a operação Anda Cá é uma imensa tragédia. Ser chamado em particular a um major do comando de Bambadinca e informado que irão 300 homens em duas colunas separadas, uma em direção a Madina, a outra em direção a Belel, com uma prevista mas sempre aleatória sincronização, tu concordaste, seguirias com os teus homens da coluna para Belel, um grupo escolhido por ti tendo Bacari Soncó e Fodé Dahaba à frente da coluna para Madina, com o reforço de soldados experimentados. Ficas a saber no decurso dessa conversa, que a 21 de fevereiro estarão reunidos os dois contingentes e que partirão separados. De repente, tudo se alterou. És de novo chamado ao major de Bambadinca que te dá a saber que afinal os dois destacamentos não têm condições para irem separados, nenhuma justificação te é dada. Atormentado com tal conversa, pedes no maior sigilo uma entrevista ao comandante e explicas-lhe todas as desvantagens por 300 homens uns atrás dos outros no pico da época seca, mesmo que se levassem carregadores a transportar água e munições, havia que contar com todos os imprevistos da floresta-galeria, além de que nunca se põem 300 homens a atacar um objetivo, seria importante fazerem fletir metade daquele contingente, a tempo e horas, para Madina, e outro para Belel, utilizando sempre os teus homens, conhecedores do interior do Cuor, que depois de alcançar os objetivos retirariam a corta-mato para evitar possíveis emboscadas. O comandante entendeu que não devia contrariar o major, os dados estavam lançados.

Enviaste-me o relatório da operação, comentando, e pressinto que com muita amargura, que ele não espelha a verdade dos factos. Uma das companhias, sabe-se lá porquê, chegou tarde e a más horas, atravessaram a bolanha de Finete aos tombos, já no lusco-fusco, isto na vazante do Geba, traziam as botas e as pernas carregadas de lama, chegaram a Missirá exaustos. A outra companhia veio um pouco melhor, puderam viajar naquele barco de fibra que tu chamas o Sintex, fizeram poucos quilómetros a pé desde Gã Gémeos a Missirá. Querias que partissem ainda sem a luz do dia, foi recusado, os militares precisavam de se retemperar. E os capitães nem aceitaram discutir a divisão de objetivos, ia tudo ao molhe e fé em Deus. Como supuseras, a marcha foi um verdadeiro inferno, no pino do calor, muita gente a rasgar as fardas na floresta-galeria. O resultado foi chegarem noite escura a escassos quilómetros de Madina. Tu não consegues dormir, apreensivo com aquele contingente onde vai tanta gente em mau estado. E de madrugada informam-te que fugiu o prisioneiro de Quebá Jilã, com os primeiros alvores vocês põem-se em marcha, e posso sentir, meu adorado Paulo, como tu viveste a catástrofe que se seguiu. Seguem ao lado de uma velha picada, Fodé Dahaba deteta um fornilho, tu dás-lhe instruções para ele ficar ali e ordenar que todos passem ao largo. Lanças-te em direção a Madina, já ouves a vozearia e os pilões a trabalhar, pões os teus homens em linha, chamas os dois homens que trabalham com bazucas e nisto ouve-se o fragor de uma explosão, um silêncio de trevas e sobe aos céus os gritos, sabe-se lá de quem. Com a morte na alma, aproximas-te do local da tragédia, irás apurar que um dos soldados se recusou a obedecer Fodé Dahaba, pisou o fornilho, grita desesperadamente pela parte do corpo que perdeu, dentro de um buracão vês pedaços de carne, um tronco chamuscado, a cara é a máscara do desespero; ali ao lado jaz Fodé Dahaba, parte de dedos de uma mão estão presos por um fio de pele, desapareceu-lhe um pedaço de perna, tu consegues ver uma bota ensanguentada.

Pedes instruções a quem manda, a ordem é recuar para evacuar os feridos, tu sugeres a retirada de um contingente e que o outro te acompanhe imediatamente até Madina, não, vamos retirar todos, e tu rapidamente sentes que aquela operação caiu na água, toda a retirada até Missirá será um martírio, não faltarão ataques de abelhas, o calor é implacável, não muito longe de Missirá desce um helicóptero com o comandante de Bambadinca, ele traz ordens categóricas de recomeçar a operação, mas não fica insensível ao estado deplorável em que estão aquelas centenas de homens. Na tua descrição, Missirá está em estado de sítio, aquelas centenas de homens espojam-se, gemem, pedem água, esgotam todos os mantimentos guardados no depósito, não ficará uma garrafa de água ou de cerveja, um enlatado de fruta ou chocolate, são bocas ávidas que tudo consomem.

Partem ao amanhecer, aos tombos, duas viaturas transportam os mais combalidos. Tu regressas às picadas da véspera para resgatar armamento que se largara nos ataques de abelhas, estás inconsolável, tens uma estima fraternal por Fodé Dahaba, trata-lo por irmão onde quer que seja, fora completamente desmotivadora a sequência de peripécias, tudo redundara em fracasso e sofrimento humano, não devia ter acontecido assim, mas tu não passavas de um mero operacional e estavas ali para obedecer.

Fiquemos por aqui, mon amoureux, estou a ceder ao sono, vou fechar esta carta, espero que ela chegue antes de mim, e por isso te beijo e te consolo, e te afago com a maior ternura, o que aqui contas sei que perfeitamente nunca mais vais esquecer, é também por isso que quero passar o resto da minha vida a teu lado, onde quer que seja que se venha a pôr a hipótese de vivermos, em Bruxelas ou Lisboa. Deste-me uma boa notícia a tempo, tens a tal reunião a 5 de janeiro, pedi mais um dia de férias, mais um dia junto de ti, a ver a cintilação dos teus olhos. Bien à toi, Annette.

(continua)
Nesta morança ao fundo, a minha casa entre agosto de 1968 e março de 1969, viveu algumas décadas antes o Eng. Armando Zuzarte Cortesão, um dos maiores cartógrafos mundiais, trabalhou num projeto de palmeirais para a Sociedade Agrícola do Gambiel. Quando vi os palmeirais de Gambiel senti-me ofuscado por tanta beleza, era o paraíso terreal
Paulo Ribeiro Semedo, o mártir de Chicri
Luís Casanova, meu braço direito em Missirá, fotografia de Luís Casanova
Fotografia de José Henriques de Mello tirada em 1908, durante a ofensiva das tropas portuguesas para sufocar a rebelião do régulo Infali Soncó, no Cuor
Arriba de Varela, extraída da Carta Geológica da Guiné-Bissau: de 1982 a 2011, de Paulo H. Alves e Vera Figueiredo, com a devida vénia
Rio Geba na maré baixa, perto do Enxalé, extraída da Carta Geológica da Guiné-Bissau: de 1982 a 2011, de Paulo H. Alves e Vera Figueiredo, com a devida vénia
Afloramentos de dolerito no rio Corubal, perto de Béli, extraída da Carta Geológica da Guiné-Bissau: de 1982 a 2011, de Paulo H. Alves e Vera Figueiredo, com a devida vénia
A majestade dos poilões guineenses
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21455: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (23): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21476: Os nossos seres, saberes e lazeres (417): O que é que isto tem a ver connosco e com a nossa 'guerra'?


É uma "casa sami", com certeza, uma mix dos nossos espigueiros do Alto Minho  e das "lojas com a sua salgadeira e o lagar de fazer o vinho verde tinto" do Vale do Tâmega, situadas na cave das casas de granito...  Imagem cedida pelo José Belo (2020).


1. Falámos há dias de coisas, seres, saberes, sabores, técnicas de conservação dos alimentos e também de formas de sociabilidade, que remontam ao tempo das nossas infâncias... 

Tudo isto a pretexto das memórias de Brunhoso, Mogadouro, de há 50 anos, tão bem reconstituídas pelo nosso Francisco Baptista, autor do livro, de que falaremos, em breve, através de uma mais detalhada recensão: "Brunhoso, era o tempo das segadas. Na Guiné o capim ardia" (edição de autor, s/l, 2019, 385 pp.).

Num poste recente (*) ele descreva uma típica "adega-despensa" do nordeste transmontano, uma região, de resto,  mal conhecida dos portugueses (que deviam fazar mais "turismo cá dentro"=  e que é extremamente rica do ponto de vista geomorfológico, biológico, gastronómico, cultural e até linguístico": é aqui se que se fala por exemplo, o mirandês...

Em comentários ao poste do Francisco Baptista, fala-se também da "salgadeira" e da "loja" e do "lagar de fazer o vinho verde tinto",  no vale do Tâmega, e nomeadamente no Marco de Canaveses e Baião... E o José Belo, luso-lapão, régulo da Tabanca da Lapónia, não quis deixar de meter a sua colherada, falando de "exotismos lapões", que lhe são são caros... 

Afinal, como diz o nosso povo, “cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso ... 


Mas, pergunta o nosso leitor:  mas que  raio é que isto tem a ver com a Guiné, o "core business" deste blogue ? 

A resposta é mais ou menos  intuitiva: aquela guerra, a de 1961/74, foi feita, de um lado e do outro, por "camponeses", na sua maioria. Np nosso caso, por camponeses, ou  filhos de camponeses, lavradores, rendeiros, ganhões, cabaneiros, campinos, pescadores,  gente dos campos e do mar, mas também gente das cidades (que na altura contavam-se pelos dedos, dispostas no eixo atlântico litoral, de Setúbal a Braga=,  operários e filhos de operários, artesãos, comerciantes, empregados, mangas de alpaca, arraia-miúda das vilórias e pequenas cidades do Portugal dos anos 60... 

Não há estudos rigorosos sobre a sociodemografia dos combatentes portugueses na Guiné, dessa época, mas a realidade rural estava lá bem presente, do princípio ao fim daquela guerra, na composição do exército português, desde a construção dos aquartelamentos (, verdadeiros "bidonvilles")  aos "reordenamentos", passando pelo relacionamento com a população civil, mas também pelo cuktivo da "horta do quartel", sem esquecer a nossa extraordinária resiliência face às duras condições de vida no TO da Guiné. 

Quem é que aceitaria hoje as duras condições de "quartéis do mato" como Madina do Boé, Gadamael, Gandembel, Guileje, Guidaje, Mansambo, Ponte Caium, Ponte Udunduma, Ponta do Inglês, Banjara e tantos outros "bu...rakos"? 

Parafraseando o título do livro do Francisco Baptista [, foto da capa, à esquerda], "em Brunhoso era o tempo das segadas, das ceifas, enquanto na Guiné ardia o capim"...

Do ponto de vista socioantropólico, estava ainda lá muito de um certo Portugal antigo, que vai desaparecer na voragem / viragem das profundas mudanças ocorridas a partir a década de 60: gente que se alimentava mal, com um naco de broa  de milho e um malga de sopa e um copo de vinho tinto... 

Uma geração, a de 1961, por exemplo, que não sabia ainda o que era o leite de vaca pasteurizado, a manteiga ou o iogurte, ainda não se vacinava contra as doenças transmissíveis, andava descalça (sobretudo nas aldeias) e em que nem sempre se ia à escola para aprender a ler, escrever e contar... Uma geração cujos pais e avós só chamavam o médico para passar o estado de óbito. A geração do "bidonville", do "bairro da lata",  da "ilha", em Paris, Lisboa, Porto... A geração que nasceu no campo e foi viver (ou sobreviver) na cidade... Uma geração extraordinária, atenção, a nossa!... (Nada de miserabilismos, mas também não de saudosismo decadentistas!).

Essas são também  as nossas raízes telúricas e que nos dão identidade, carácter, modelando a nossA idiossinca«racia, mesmo que alguns de nós tenham dificukdade em falar desses tempos de pobreza dita "envergonhada", tão bem retratada neste poema irónico, escrito em Lourenço Marques, por Reinaldo Ferreira (que morreria, cedo, de csncro nos pulmões,  aos 37 anos, em 1958, na cidade que é hoje Maputo):

(...) Numa casa portuguesa fica bem
Pão e vinho sobre a mesa,
E, se à porta humildemente bate alguém,
Senta-se à mesa co'a gente.
Fica bem esta franqueza, fica bem,
Que o povo nunca desmente,
A alegria da pobreza
Está nesta grande riqueza
De dar, e ficar contente. (...)

Poema que, de resto, a nossa grande, e única, mítica,  Amália, imortalizou!.. Tenhamos orgulho nessas raízes, ou pelo menos no nosso melhor... Infelizmente, muitos dos nossos filhos, netos e bisnetos, já não as (re)conhecerão, se não formos nós a recordá-las... E recordar é viver duas vezes... 

Em suma, há um Portugal do séc. XX ainda desconhecido, mesmo para aqueles de nós que nasceram na década de 1940, antes, durante ou após a II Guerra Mundial, e que fizeram a guerra do ultramar / guerra colonial... Coisas tão elementares como a eletricidade, a água potável, os esgostos, o frigorífico, a rádio e a televisão... chegaram tarde às nossas casas... e às nossas vidas. 

Não, não são "exotismos lusitanos"... Ainda me lembro de se desmantelar a "salgadeira", um imenso caixão de pinho onde cabiam dois porcos, na Quinta de Candoz, depois de ter provocado os AVC, com todas as  suas terríveis sequelas,  nos patriarcas da família... na década de 1990!... A luz e o frigorífico só chegaram depois do 25 de Abril, por volta de 1977/78... E a barragem do Carrapatelo ali mesmo ao lado,  com os cabos de alta tensão  levando o milagre da luz (e as suas miragens) para as cidades do litoral!... (***)

O que é que isto tem a ver a Guiné ?... Já não sei, já me perdi... LG 

2. Mensagem do José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia:
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Data - 15 out 2020, 12h30
Assunto - Exotismos lapões

Aqui segue um típico frigorífico da Lapónia antiga que ainda hoje é usado.

Aqui se guardam carnes, peixes, fumados, salgados,etc. 

Tendo em conta a vasta fauna selvagem,  tem que ser alto e só acessível com uma escada.

As temperaturas interiores de um frigorífico moderno säo à volta dos 8 graus positivos. Uma boa arca frigorífica poderá ir aos 20 a 30 negativos.

As noites dos invernos locais têm temperaturas à volta dos 40 negativos!

Há que pensar-se duas vezes quanto ao que se coloca nestes congeladores tradicionais.

Abraço, J. Belo.
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P21475: Bombolom XXVII (Paulo Salgado): Drogas na Guerra Colonial - Um comentário e uma história

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 18 de Outubro de 2020:


BOMBOLOM DO PAULO SALGADO

DROGAS NA GUERRA COLONIAL – UM COMENTÁRIO E UMA HISTÓRIA

Ainda a propósito do livro “Drogas em Combate. A Guerra Colonial”, de Vasco Gil Calado, Editora Lua Eléctrica, Junho de 2020, sobre o qual não tomo uma posição acabada e crítica, mas permito-me a liberdade de fazer um comentário e transcrever uma lenda.

1.º Comentário

Tem a ver com a minha experiência na Guiné.

Pertenci a uma companhia independente – a CCAV 2721 (1970-1972) – que esteve aquartelada no Olossato, bem perto do Morés, fazendo um triângulo com Mansabá e Farim. Segundo o modelo de combate de quadrícula, ali estávamos, no fim da picada que ia de Bissorã (a partir dali estava minada…), a mesma picada que outrora continuava até Farim, e que eu, acompanhado pela minha mulher e Moura Marques percorremos na totalidade, com uma sensação de alívio em 2006…).

Se é certo que outras zonas eram muito mais perigosas, não deixámos de sofrer nas emboscadas, nos patrulhamentos, nas flagelações – com feridos (vários) e mortos (2).

Ora, se o ambiente era de guerra, se dentro do arame farpado viviam cerca de cento e cinquenta homens, jovens éramos, tal poderia levar ao consumo de bebidas alcoólicas. E havia momentos de mais bebida, sim. No bar se bebiam à farta cervejas e whiskey, mas nunca antes de uma operação. Como evitar o cansaço, o isolamento, a pequena disputa na caserna, a ausência de notícias, em especial das mulheres dos militares já casados? No entanto, drogas, não havia. E eu estava particularmente atento, porque em Coimbra, quando estudante, passando alguns momentos na Clepsidra, sabia que estava na fase da experiência o consumo de drogas entre os estudantes, embora pouquíssimos – tanto quanto me apercebi.

Ah, mas havia a cola, um fruto, bonito fruto. As populações chupavam a cola – o fruto das plantas malvaceae, e que existem na África Ocidental e no Sudeste Asiático. Existem muitas espécies de cola. Possui um gosto amargo e detém grande quantidade de cafeína. Por terem propriedades estimulantes e até excitantes do sistema nervoso e muscular, podem ser “mascadas”, “chupadas”. Isto era utilizado pelas populações e pelas nossas milícias. Aliás, nas “banquinhas”, lá estão as diversas espécies de colas – o que apreciei melhor aquando das minhas sucessivas idas à Guiné-Bissau como cooperante.

Uma nota: os escravos mascavam colas para suportar trabalhos penosos.

Nos patrulhamentos, quando passávamos junto de uma árvore da cola houve oportunidade de a provar.

Noz de cola - Foto retirada da Wikipedia

2.º Lenda

Acerca deste fruto, a cola, transcrevo um belo texto acerca dos costumes dos povos da Guiné. É narrada pelo historiador e antropólogo que escreveu muito sobre os costumes de África, em particular da Guiné, Manuel Belchior. Se é certo que este antropólogo serviu os desígnios da nossa presença em África, também é correcto afirmar que deixou textos muito interessantes que a mim me seduzem pelo detalhe, pela descrição e pela profundidade, o que foi meritório.

Faço aqui um parêntesis para afirmar o seguinte: na Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo, a minha terra, e onde a minha mulher e eu agora estamos mais tempo, um fundo bibliográfico de notável importância do Prof. Santos Júnior (1901-1990), eminente médico, antropólogo, ornitologista que calcorreou Portugal, Angola e Moçambique. Tal fundo já foi visitado por investigadores angolanos e moçambicanos, o que vale por dizer, desapaixonadamente, que a História tem de ser contada no que tem de belo e medonho.

Pois bem, eis lenda. Escreveu Manuel Belchior:

«A um futa-fula ouvi há anos no Forreá, uma lenda a respeito da cola, o fruto cujo valor místico e simbólico não conhece par junto dos povos islamizados da Guiné. Conta essa lenda que no momento em que Ádama (Adão) e Aua (Eva) foram expulsos do Paraíso por culpa da nossa primeira mãe, ela, arrependida, chorou copiosamente. E onde essas lágrimas tombaram nasceu a primeira árvore de cola. É esse o motivo por que os frutos têm o sabor amargo e salgado das lágrimas.»

In Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Volume XXII, N.os 87-88. Julho-Outubro de 1967, p. 305.

Paulo Salgado
18.10.2020
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21270: Bombolom XXVI (Paulo Salgado): Jornal "O Tabanca" da CCAV 2721 no Olossato

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21474: In Memoriam (372): Soldado At Art João Fernandes Caridade (1946-1969), falecido em acidente de viação no dia 4 de Maio de 1969, em Buruntuma (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

IN MEMORIAM

JOÃO FERNANDES CARIDADE (1946-1969)
SOLDADO AT ART 02122667 DA CART 1742


1. Mensagem do nosso camarada Abel Santos, (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), com data de 19 de Outubro de 2020, enviando a biografia do seu camarada João Fernandes Caridade:

Camaradas e amigos da maior tabanca do País, envio um forte abraço de amizade castrense (e não só) a todos vós.


Biografia do meu camarada João Fernandes Caridade

Mais uma vez estou de regresso ao vosso convívio com uma narração sobre o meu camarada da CART 1742, João Fernandes Caridade, falecido a 04 de Maio de 1969 em Buruntuma.

O João Caridade era oriundo do lugar de Cabreira, Freguesia de Vitorino de Piães, Concelho de Ponte de Lima, onde nascera a 16/12/1946. A sua história militar foi partilhada por mais sete rapazes de Ponte de Lima, numa estranha coincidência que fez com que oito conterrâneos convivessem na mesma Companhia militar na Província da Guiné Portuguesa.

Assentou praça no RI 8 (Braga) em 09 de Janeiro de 1967, fez o Juramento de Bandeira no dia 14 de Março e concluiu a Especialidade de Atirador de Artilharia a 14 de Maio, no RAL 5 (Penafiel). A partir de 29 de Junho ficou em diligência individual no RI 6 (Porto), aguardando embarque para a Guiné, para onde havia sido mobilizado pelo RAL 5, integrado na CART 1742 (Panteras). Era uma Unidade independente, comandada pelo Capitão Miliciano de Infantaria Álvaro Lereno Cohen, seguiu para a Guiné Portuguesa no dia 22/07/1967, largando do Cais da Fundição no navio Timor, tendo desembarcado em Bissau no dia 30 e ficado aí adstrita ao BART 1904 cerca de dois meses, em substituição CART 1646, na segurança das instalações e população da área.

No dia 14 de Setembro partiu para Nova Lamego como Unidade de intervenção onde ficou integrada no BCav 1915, depois no BCAÇ 1933 e a seguir BCAÇ 2835. A partir de 18/04/68 foi para Buruntuma render a CCAÇ 1588, ficando integrada no BART 2857. Durante a sua comissão, a CART 1742 operou em Bissau, Nova Lamego e Buruntuma (cooperou com o BCAV 1915 na Operação Lareira), tendo realizado operações nas zonas de Ganguiró, Canjadude, Cabuca e Sinchã Jobel, e efectuado dezenas de escoltas a colunas para Béli, Cheche e Madina do Boé, Bajocunda e Canquelifá. Teve destacamentos em Ponte Caium e Camajabá, durante a sua missão foram-lhe adstritos o Pelotão de Milícias 151 (em Buruntuma) e o Pelotão de Milícias 154 (em Camajabá).

O João Caridade esteve sempre presente em toda actividade da CART 1742, e uma das mais violentas operações em que ele participou foi a “Operação Invisível”, destinada a desalojar o IN do regulado do Manso Mine, região que dominava a partir da sua base de Sinchã Jobel, comandada pelo Capitão Mil Art Carlos Manuel Ferreira, com forças da CART 1742 (2 grupos de combate) comandados pelo Alf Mil Elmano Cruz, e da CART 1690 (2 grupos de combate) reforçados com 1 pelotão de milícias, com comando do Alf Mil Art António Manuel Marques Lopes, operação na qual morreram, entre outros, o Soldado Manuel Fragata Francisco, o Soldado Vítor da Silva Gonçalves e o Alf Mil Fernando da Costa Fernandes e o 1.º Cabo Sousa, atirador da MG 42 da CART 1742.

A notícia da rendição da CART 1742 foi festejada no aquartelamento de Buruntuma em 04 de Maio de 1969, um domingo, data fatídica para o Soldado Caridade que morreu de acidente de viação na sua Unidade, ocorrido às 16:30 horas desse dia, quando D. Cecília Supico Pinto (Presidente do Movimento Nacional Feminino) se encontrava de visita, acompanhada do Comandante do COP 5.
A morte foi provocada pela queda aparatosa no chão, à entrada do quartel, durante o transporte em Unimog de 13 bidões de água para abastecimento da sua Companhia. Apesar da baixa velocidade (mais ou menos 10Km/h) um dos bidões deslocou-se devido a um pequeno ressalto, à passagem da porta de armas e provocou o desequilíbrio do Caridade que quase foi agarrado pelo seu camarada António Soares antes de cair. Foram-lhe de imediato prestados os primeiros socorros pelo Furriel Enfermeiro Manuel Gouveia Lopes, que perante o seu estado de gravidade, solicitou de imediato a sua evacuação para Bissau através do DO-27 em que tinham viajado a Senhora D. Supico Pinto e o Comandante do COP 5, no qual estes também fizeram a viagem de regresso.
Durante o voo, o enfermeiro aplicou pela segunda vez a medicação iniciada na enfermaria, e prestou respiração artificial contínua ao ferido. Por rádio, o piloto solicitou um helicóptero e uma equipa de reanimação junto à pista de Bissalanca, para que o transporte para o HM241 fosse mais rápido. De nada valeu porque o João Caridade faleceu antes de aterrar.

Entretanto em Buruntuma os seus camaradas choravam a sua morte e viam-se impotentes perante os vários adiamentos da retirada da CART 1742, que só chegaria a Bissau no dia 05 de Junho de 1969. Finalmente, a Companhia embarcou em Bissau no dia seguinte, o malogrado Caridade acompanhou-nos, tendo chegado a Lisboa a 13, dia de Santo António.

Fur Mil Art João Morgado Barbosa

Para o também limiano Fur Mil João Morgado Barbosa, a tropa só terminaria dois dias depois, porque foi nomeado Comandante da Guarda de Honra que prestou as últimas homenagens no funeral do malogrado Soldado Atirador 02122667 João Fernandes Caridade em Ponte de Lima

Descansa paz camarada.

OBS:- Biografia consultada: Heróis Limianos da Guerra do Ultramar, de Mário Leitão.

Abel Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21367: In Memoriam (371): Luís Rosa (1939-2020), ex-alf mil, CART 640 (Sangonhá, 1964/66), natural de Alcobaça... Passa a integrar a nossa Tabaca Grande, sob o n.º 718. Missa do 7.º dia, na Igreja de São de Deus, Pr. de Londres, Lisboa, amanhã, dia 18, às 19h00

Guiné 61/74 - P21473: Agenda cultural (759): Apresentação do livro “Nunca digas adeus às armas (Os primeiros anos da Guerra da Guiné)”, por António dos Santos Alberto Andrade e Mário Beja Santos, Edições Húmus, dia 26 de Novembro de 2020, pelas 18h00, no Salão Nobre do Palácio da Independência, Largo de S. Domingos, Lisboa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2020:

Queridos amigos, 

As Edições Húmus acabam de publicar "Nunca Digas Adeus às Armas (Os Primeiros Anos da Guerra da Guiné)" de que são autores António dos Santos Alberto Andrade e eu próprio. 

Anexa-se capa da obra e dois textos provavelmente elucidativos da substância do trabalho. Os autores tudo farão para que haja apresentação pública, mas estamos naturalmente atentos à aspereza deste ciclo da pandemia que recomenda as maiores cautelas em participações como seja a apresentação de um livro, haverá que cuidar da segurança de todos. 

Peço-vos a amabilidade de ajudarem os autores na divulgação da obra, tudo começa com um poema popular, a história em verso do Batalhão de Cavalaria n.º 490 de que um dos co-autores foi militar, o outro co-autor descobriu o poema e pôs muita gente na sala de conversa, deliciado, e procurou desvelar as estratégias militares utilizadas pelos Altos Comandos durante este frenético período de ofensiva da guerrilha. 

Tivemos a grata anuência do Sr. General Alípio Tomé Pinto para fazer apresentação da obra, vamos ver o que nos reserva a pandemia. 

Falta analisar em profundidade o período de 1966 a 1968, que se saiba não há trabalhos universitários neste domínio, restam os importantes documentos das campanhas de África da responsabilidade do Estado-Maior do Exército, que se revelam a única documentação rigorosa do lado português. Mas como tem sido insistentemente dito, o aclaramento da verdade sobre os acontecimentos iniciados em 1961 (e mesmo um pouco antes) carecem da consulta minuciosa dos arquivos dos ministérios da Defesa e do Ultramar, empreitada a que, tanto quanto se sabe, ninguém se afoitou.

Um abraço do
Mário

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Texto da badana da contracapa:

Um acaso feliz, ter chegado à "Missão Cumprida"[1]

Vasculhar em lugares de venda de livros usados é uma operação que requer curiosidade, paciência e determinação: amar os papéis, sejam livros, revistas ou folhetos, a ponto tal que a paixão não tem limites nem faz férias; saber que há horas de sorte e sair dos estabelecimentos ou das vendas ao ar livre sem nenhum amargo de boca se acaso não se encontrou naquele dia e naquela hora nada do que se procurava; e não ceder descaradamente às grandes tentações de exceder as compras fora do que se procura, sob pena de uma dispersão exaustiva.

Naquele dia e naquela hora, nos baixos do Palácio da Independência, despertou-me a atenção um livrinho de poesia que nem referia a Guiné na capa, houve mesmo que folhear até se perceber que ao autor tinham sido oferecidas grandes aventuras, incluindo a famosa Operação Tridente, em 1964, quando as forças portuguesas procuraram desalojar a guerrilha do PAIGC na Ilha do Como. Houve desalojamento, sol de pouca dura, faz parte das regras do jogo em guerrilha que se bate e foge, e muitas vezes foge-se para de novo bater.

Lido e relido à exaustão o testemunho do bardo, singelo, um rico veio de poesia popular, deu-se uma tormenta que inspirou pôr toda esta poesia numa ampla sala de conversa, Santos Andrade, sem se ter havido nem achado foi posto em confronto com inúmera gente que fez recruta e especialidade, que sofreu emboscadas e flagelações, que padeceu pelos seus mortos e feridos. 

Creio, sem vaidade nem lisonja, que o deixei feliz no produto final desta tormenta; e que o leitor, entusiasmado por estas peripécias que ocorreram entre 1963 e 1965, os primeiros anos da guerra da Guiné, saboreará com tanta gente a perorar numa imensa sala de espelhos, ouvir-se-ão tiros e suspiros de saudade até ao resgate final, quando se perceber que a missão fora cumprida, ainda não se sabendo que haveria, até ao último dia das suas vidas, memória daquela camaradagem, lembrança de naquelas terras todos ali se terem feito homens.

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Texto da contracapa:

Guerra da Guiné: não é falsificação, é danoso esquecimento

A historiografia da guerra da Guiné é geralmente omissa (ou estranhamente parcimoniosa) na resposta dada pelas forças portuguesas, na eclosão da guerrilha, logo no início de 1963. Estão identificadas as etapas do levantamento do nacionalismo guineense, os seus atores principais e secundários, a organização do PAIGC na clandestinidade e a metódica preparação que Amílcar Cabral imprimiu aos jovens responsáveis que mandou preparar na China e noutras paragens. Metódica e eficaz, tão avassaladora que deixou estupefactos os comandos militares, tanto na Guiné como em Lisboa. 

Em escassos meses, o PAIGC instalou-se na região Sul, infiltrou-se nas matas densas do Oio/Morés, atravessou o Corubal, de ano para ano passou do armamento incipiente para mais temível, a usar minas anticarro, bazucas e morteiros, não lhe foi indiferente a artilharia antiaérea. 

Era uma guerrilha de gente motivada, que não recuou a intimidar e a aterrorizar os guineenses hesitantes. Em 1964, dera-se uma clara separação das águas, mesmo ao nível das etnias guineenses. A historiografia apresenta por vezes os dois primeiros oficiais-generais (Louro de Sousa e Arnaldo Schulz) como maus condutores da resposta, líderes impreparados para aquela experiência de guerra de guerrilhas face a um inimigo que somava mais vitórias que derrotas. Falamos numa historiografia que reduz a escassos parágrafos o modo como combatemos entre 1963 e 1968, insinua-se mesmo que só se cometeram asneiras.

Os documentos ao nosso dispor revelam que é tudo falso, ou quase. Sabe-se que a mitologia em torno do oficial-general “salvador”, chegado em 1968, assentou numa clara reprovação da condução da guerra até então. Ninguém fala nos meios que foram oferecidos a Louro de Sousa e Arnaldo Schulz que, está historicamente comprovado, informaram rigorosamente Lisboa de tudo quanto se estava a fazer, que pediam muito mais condições para contrariar a avalanche intimidadora da guerrilha. 

De algum modo, aqui se procura, a pretexto de uma genuína poesia popular para contar a história do Batalhão de Cavalaria N.º 490, evidenciar a natureza da resposta e não é difícil concluir que houve sagacidade e lucidez na aplicação dos meios existentes, modestos, postos naquele teatro de operações. Ocupou-se território, ajudou-se as populações, houve um esforço desenvolvimentista dentro de uma economia caótica, nunca se escondeu que de ano para ano a guerra era cada vez mais difícil, e que naqueles primeiros anos se vinha muito impreparado, era tudo um mundo desconhecido, hostil, sem instalações, combatendo com armas antigas.