quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21603: Historiografia da presença portuguesa em África (241): Um olhar sobre a Guiné, estávamos em 1905, por Alfredo Loureiro da Fonseca, no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Alfredo Loureiro da Fonseca era tudo menos um arrivista, conhecia a poda, fez frequentes estadias na Guiné. Desde que me embrenhei na leitura dos artigos sobre a Guiné nos primeiros anos da vida do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (já cheguei a 1915) ganhei convicção de que são documentos obrigatórios para qualquer investigador. O entusiasmo dos autores é genuíno, não há para ali patranhas, ajustes de contas, prosápia de quem chegou, deu uma vista de olhos e agora fala de alto. O que Loureiro da Fonseca diz, em meados de 1905, é tremendo: andava-se a fingir que se intimavam populações revoltadas, gastavam-se rios de dinheiro para nada; na Guiné, com fronteiras definidas em 1886, apenas se exercia soberania efetiva em metade da colónia, sabe Deus com que organização administrativa; o comércio estava nas mãos dos estrangeiros e não havia uma política de incentivo para os pequenos proprietários.
Tem que se juntar esta peça ao vastíssimo puzzle que se inicia no século XIX com a abolição da escravatura, com as compras de territórios a régulos, até chegar à desafetação da Guiné de Cabo Verde; temos, felizmente, bastante documentação dos primeiros governadores, deplorando o abandono que lhes dá o Governo Central, sempre elogiando as possibilidades de desenvolvimento económico que a Guiné oferece. Mensagens que caiam em saco roto. Como terá caído em saco roto o diagnóstico feito por Alfredo Loureiro da Fonseca em plena Sociedade de Geografia de Lisboa, estávamos em 1905.

Um abraço do
Mário


Um olhar sobre a Guiné, estávamos em 1905

Mário Beja Santos

Alfredo Loureiro da Fonseca, Oficial da Fazenda da Armada Real, teve várias passagens pela Guiné. No Boletim da Sociedade de Geografia, com data de 1905, este sócio ordinário da Sociedade faz uma comunicação com a data de 5 de junho, reproduzida no Boletim. Vamos reproduzir alguns parágrafos que nos parecem eloquentes, não esquecer que o seu autor tem experiência da colónia:
“Pode afoitamente dizer-se que apenas exercemos soberania efectiva em cerca de metade da Guiné, achando-se ainda por completo insubmissas algumas das mais ricas regiões da Província, tais como o Oio, Bassarel, Costa de Baixo, Bijagós e Balantas.
Quase todos estes povos têm sido por vezes batidos pelas nossas forças, mas como às vitórias obtidas nunca se seguiu uma ocupação efectiva, o estado de rebeldia continua sempre a manter-se, sucedendo por vezes o mesmo, como ultimamente no Oio, que a guerra não serve senão para agravar o mal que já existia. Esta ocupação efectiva será, porém, sempre impossível enquanto a Guiné só dispensar de um soldado em média por cerca de duzentos quilómetros quadrados de superfície.

O gentio está longe de ignorar esta nossa miséria e compreende bem a impossibilidade em que o governo da Província se encontra de tirar o mais insignificante proveito de qualquer vitória; foi assim que as operações de Bissau em 1873-1894, as de Canhambaque, Jufunco e Oio, em 1901-1902 e a do Churo em 1903, apesar de largamente dispendiosas, foram em absoluto improdutivas.
Em 1903, o comércio estrangeiro representava acima de 83%. A Guiné é portanto mais uma colónia estrangeira que portuguesa, e isso é a triste consequência do retraimento habitual dos nossos capitais para tudo quanto se assemelhe a empresas no Ultramar, ao passo que os franceses e alemães não hesitam em arriscar algumas centenas de mil francos em operações de comércio sempre que nelas vêem uma possibilidade de lucro, é sabida a possibilidade de entre nós se encontrar uma meia dúzia de contos, quando desde o primeiro ano de uma operação se não possa logo garantir um juro remunerador”
.

Mais adiante, provando que é profundo conhecedor das realidades económicas, dá-nos um quadro sobre o estado de desenvolvimento das suas riquezas, recorde-se que ele um pouco atrás já falou no poderio do comércio estrangeiro na Guiné:
“Concorre bastante para a desnacionalização do comércio da Guiné o mau serviço da ‘Empresa Nacional’ que só de quarenta em quarenta dias ali faz tocar os seus paquetes e, mesmo assim, nem sempre com regularidade, tendo já sucedido por mais de uma vez, nos dois últimos anos, passarem-se mais de dois meses sem comunicações com a metrópole.
Exceptuando as casas das firmas Silva Gouveia, Monteiro de Macedo e Cabral Avelino, os outros negociantes portugueses ocupam-se quase exclusivamente do pequeno comércio de mercearia e não praticam a permuta de produções indígenas, podendo-se dizer que todo o comércio do interior se acha nas mãos das casas Rudolf Titzek & C.ta, Bernardo Soller, sucessores, Louis Rolff & C.ª, Otto Shachtt, Fleckenstein & Moulin, alemãs; Compagnie Française de l’Afrique Ocidentale, Compagnie Coloniale d’Exportation, Compagnie Française du Commerce Africain, francesas; e de numerosos pequenos comerciantes italianos. As duas empresas belgas que depois de 1889 se propuseram iniciar explorações agrícolas e comerciais na Guiné, não viram os seus esforços coroados de êxito, tendo uma delas, a Société Générale d’Échanges, liquidado ultimamente, e achando-se a Compagnie de la Guinée Portugaise talvez em vésperas de liquidação, apesar de ter sido, de todas as empresas comerciais que têm tido por objecto a Guiné, aquela que dispunha de melhores elementos materiais e de um capital mais do que suficiente. Sucessivos erros de administração a levaram em poucos anos ao estado em que actualmente se encontra, sem outro resultado senão o de vir lançar mais uma injustiça desconfiança sobre o emprego de capitais na Guiné.


Diz-se que um sindicato inglês está em ajustes com a Compagnie de la Guinée Portugaise, para adquirir os terrenos que esta ainda possui, destinando-os à cultura regular do algodão em larga escala; pena é que sejam ainda capitais estrangeiros os que compreendem o proveito que há a tirar dos recursos de uma colónia que é nossa.
É triste que assim seja, principalmente quando há quem, sendo português, conseguiu, em pouco mais de vinte anos, conquistar na Guiné a opulência.
Ninguém ignora o malogro de todas as tentativas feitas até hoje, no país, para se conseguir a organização de qualquer grande companhia para a exploração da Guiné e disso é ainda exemplo frisante a última grande concessão de terrenos feitas em 1903 nas ilhas Bijagós e que, até à data, ainda não começou sequer a ser aproveitada.
Só a quase absoluta ignorância que no país se professa pelo que diz respeito às colónias em geral pode talvez justificar, em parte, esse retraimento de capitais. Torna-se, portanto, indispensável uma propaganda activa e contínua que torne conhecidas as riquezas naturais do nosso Ultramar.

Na Guiné, é indispensável facilitar-se quanto possível a aquisição de terrenos quer para a exploração agrícola propriamente dita, quer para o estabelecimento de pequenas feitorias comerciais, vedetas da ocupação pacífica, que vão no interior da Província trocar os artigos da indústria europeia pelos produtos indígenas. É, principalmente, para as pequenas concessões que deve, em especial, voltar-se a atenção do legislador, porque essas não exigem grandes capitais de exploração e portanto mais facilmente encontrarão quem as aproveite. São os pequenos agricultores que mais merecem a protecção do Estado e, até hoje, os únicos que na Guiné têm feito alguma coisa em favor do desenvolvimento agrícola da Província. É obra patriótica ajudá-los a vencerem as múltiplas dificuldades com que lutam; e a completa falta de incentivos oficiais sugeriu-me a ideia de os reunir, fazendo-os constituir o primeiro sindicato agrícola das colónias. Lancei os lineamentos gerais desse projecto e a minha ideia foi na generalidade bem aceite por todos aqueles a que me dirigi. No meu próximo regresso à Guiné, tenciono prosseguir no meu intento, e se nada conseguir, o que não espero, terei ao menos a consolação de alguma coisa de útil ter tentado em favor do progresso da Província”
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Edifício das Finanças em construção, década de 1930, Bissau, Avenida da República
A Bolama da era colonial, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra Bijagós, Património Arquitetónico, Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia
O que resta do cinema de Bolama, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra Bijagós, Património Arquitetónico, Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21580: Historiografia da presença portuguesa em África (240): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21602: Da Suécia com Saudade (85): A base aérea de Beja e o apoio alemão ao esforço de guerra de Portugal em África (José Belo)



José Belo, ex-alf mil, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampaté e Empada, 
1968/70); cap inf ref, jurista,  autor da série "Da Suécia com Saudade;  vive na Suécia 
há mais de 4 décadas; régulo da Tabanca da Lapónia; tem 180 referências no nosso blogue: 


1. Mensagem de José Belo:

Date: terça, 10/11/2020 à(s) 01:39
Subject: A base aérea de Beja e o apoio alemão

A localizacão estratégica da planície alentejana, longe de um possível teatro de guerra, foi decisiva para a instalação de uma estrutura militar de grandes dimensões que deveria funcionar como plataforma entre a Europa e os Estados Unidos no caso de uma ofensiva militar soviética sobre a Alemanha.

A instalação desta base teve papel preponderante no auxílio alemão a Portugal, destacando-se o fornecimento de equipamentos militares,sem os quais seria muito difícil a Portugal enfrentar as guerras em África. "garantindo ao mesmo tempo o tratamento em hospitais alemães de militares portugueses gravemente feridos em combate!.

Quando foi conhecido o teor do acordo entre os dois países de imediato surgiram críticas por parte dos governos africanos, obrigando o governo alemäo a "prestar mais atençã à sua posicäo externa de solidariedade com os justos anseios dos povos africanos".

A partir de 1964 assistiu-se a um progressivo arrefecimento nas relacöes luso-alemãs,  designadamente no campo militar, com reflexos na utilização prevista para a base de Beja.

Dá-se ento uma alteraÇÃo no conceito estratégico de defesa da NATO.

A obtenção de paridade nuclear entre as duas superpotências em 1966 relegava para segundo plano a rede de apoio logístico na retaguarda que tinha sido concebido para Beja.  (Será detalhe interessante o facto de o governo espanhol só autorizar a passagem de aeronaves alemãs pelo seu espaco aéreo com destino a Beja desde que os pedidos fossem solicitados com uma semana de antecedência e "caso a caso").

Foi programado alojar em Beja 5.250 cidadãos da RFA [República Federal Allemã],entre militares,funcionários,e respectivas famílias.

Näo era possível antecipar do ponto de vista humano as consequências resultantes deste súbito acréscimo de população estrangeira com um "nível de vida e culturalmente superior ao da grande maioria dos residentes da cidade".

Esperavam-se profundas transformações na ordem sócio-económica local.

E, quase espelhando problemas com as bajudas-lavadeiras na Guiné..., uma das preocupações residia no relacionamento dos militares estrangeiros com as... mulheres de Beja!

A comissäo luso-alemã que presidia à instalação do projeto militar, reclamava um código de conduta que "deveria servir de guia aos forasteiros quanto aos costumes locais". Principalmente quanto às relações com as mulheres, pois "seriam mais susceptíveis de causar conflitos com a população masculina". (G'anda alentejanos!)

As famílias abastadas de Beja foram confrontadas com o alastramento do "fenómeno militar alemão".
Não estavam a conseguir garantir a continuidade do "pessoal para servicos domésticos do sexo feminino a que habitualmente se dá a designação de...criadas de servir". (E o ditador lá voltou a "meter água" junto dos seus amigos do latifúndio. )

Os alemães ofereciam um salário mensal de 1.500 escudos que contrastava com os 300 escudos pagos pelas famílias abastadas.[em 1965, equivaleriam, a preços de hoje a cerca de 590 euros, e 118 euros, respectivamente, ou seja, os alemãs pagavam cinco vezes mais].

Por outro lado as instalacöes destinadas ao pessoal alemäo "näo deveriam incluir instalações para as criadas de servir." Estas exigências locais, entre outras, foram recusadas.

Em 1966 chegou à Base o primeiro contingente militar alemäo. Ali se mantiveram até 1993.

A estrutura militar que os alemães ergueram em Beja estava preparada para receber aeronaves de grande porte.

A própria NASA selecionou a pista como alternativa de aterragem para o Space Shuttle. Foram pistas classificadas como as de maior extensão a nível europeu.

Com uma área de mais de 800 hectares, tem condições para receber aeronaves de grande porte para além de 60 aviões tipo C-130 e mais de 300 aviões F-16.

Esta capacidade de acolher grandes meios aéreos é de importäncia extrema como base de retaguarda.
Concluídas muitas décadas desde o arranque de um projecto dimensionado para fazer face a um determinado contexto geoestratégico, cresceram as dificuldades com a manutencäo desta estrutura de grande dimensão pelos elevados custos envolvidos.

As restrições orcamentais impostas pelo governo reduziram a actividade militar na FAP e vieram a reflectir-se na manutenção e funcionamento desta Base.

Mas, e à distância no tempo, talvez seja melhor concentrarmo-nos no sério problema então surgido com as...criadas de servir!

Adaptação / condensação: J. Belo

Fontes: "Folha de S. Paulo", jornal "Público", Ana Mónica Fonseca, historiadora ("Política Externa Portuguesa/Dez anos de relaçöes luso-alemäs 1958-1968").
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de novembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21524: Da Suécia com Saudade (84): Ainda as “anedotas” do outro lado da “Cortina de Ferro”: recordações da Deutsche Demokratische Republik (José Belo)

Guiné 61/74 - P21601: Parabéns a você (1901): Herlânder Simões, ex-Fur Mil Art da CART 2772 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21597: Parabéns a você (1900): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Guiné, 1969/71)

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21600: Blogpoesia (708): Prosema "Novembro neste ano de pandemia" (Paulo Salgado, ex-Alf Mil Inf Op Esp)

Vista de Torre de Moncorvo - Foto: Caravan Concierge / Google Maps, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 30 de Novembro de 2020, trazendo ao Blogue um "prosema":



PROSEMA – NOVEMBRO NESTE ANO DE PANDEMIA


Em Novembro correm as brisas nas serras mas não correm os homens cheios de vazios olhando o futuro sem futuro vazios de sonhos vazios de esperança.

Gritos para deuses desconhecidos sem gritar oh, deixai-nos lançar gritos, ao menos gritos que ajudem a viver.

E nem o vento liberta sons nem a chuva parece acertar nos telhados nem os gatos espreitam à nossa porta…

Terão medo, adivinharão a tristeza dos que lhes lançam a comida em pratinhos na rua, é assim na minha rua os gatos vivem nos quintais e vêm desconfiados comer à porta.

Vêm os homens vazios de memórias e atravessam a praça, descrentes.

Somos amigos e inimigos não navegamos nos sonhos das distâncias nem sonhamos com mares e montanhas…

Estamos vazios no recolhimento e na poesia que inventamos e nas garças que nos olham nos rios da nossa infância…

Estamos aqui sem olharmos os mortos nem saber os seus nomes só os números que nos lançam como bombardas.

Vens vazio, amigo, só trazes o teu carinho e as cerejas de Junho o vinho malvasia e as castanhas da serra que colheste neste último Outubro.

Vens vazio, amigo, só trazes o teu cuidado e pedaços de pressa ali à porta e um olhar metido nos meus olhos marejados.

Vens vazio, amigo, só trazes o amor... e não trazes a Vila contigo. Trazes a ânsia dos rostos e nem damos conta das crianças e mulheres e homens que estão na ilha grega de Lesbos…

Onde está o nosso tempo o tempo de passearmos pela nossa Vila?

E eu só posso dar-te alguma



Poesia do Jorge de Sena e da Sofia e do Rogério…
Paulo Cordeiro Salgado
Novembro de 2020

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21592: Blogpoesia (707): "Hecatombe de estrelas", "A Criação" e "A sobriedade dos gestos", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21599: Efemérides (345): Foi em 1 de Dezembro de 1640, há 380 anos, executada a "Operação da Restauração da Independência" (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 30 de Novembro de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66, autor do livro "Guerra da Guiné: a Batalha de Cufar Nalu"), enviou-nos este texto lembrando a Restauração da Independência de Portugal em 1 de Dezembro de 1640,  que hoje se comemora.


Há 380 anos, em 1640: duas mulheres, D. Luísa de Gusmão, duquesa de Bragança, e a moça Constância de Faria, noiva de 17 anos, provocaram os nossos camaradas conjurados à execução da “Operação da Restauração”…

Manuel Luís Lomba

Tornei-me recorrente na partilha com os Camaradas da minha hermenêutica (herética) dos compêndios de História.

Naquele tempo, os reinos eram enformados por dinastias, de jure pela “Graça de Deus”, a “via urinária” ou a “manu militare” a sua legitimação.

Rei Filipe II de Espanha
(1527-1598)

Em Abril de 1580, pela Graça de Deus e legitimação por “via urinária”, o rei Filipe II de Espanha, neto do nosso rei D. Manuel I, logrou que as Cortes realizadas no Convento de Cristo, Tomar, o aclamassem rei de Portugal, Filipe I, jurando-lhe um compromisso, à maneira de bom discípulo de Maquiavel: dinastia a mesma, mas independentes os reinos, os impérios separados e a obrigação de alçar o seu primogénito a rei de Portugal em exclusividade.

Nenhum dos primogénitos dos seus 4 casamentos sobreviveu, o filho e neto seus sucessores não só não se quiseram diminuir a rei de Portugal em exclusividade, como cuidaram de corromper o que restava da nossa traumatizada nobreza (dizimada em Alcácer-Quibir) e a nossa alta burguesia. Mas o povo ficou de fora dessa corrupção.



Estava o rei Filipe IV (e nosso III da dinastia filipina) a acudir à guerra dos Países Baixos, à Guerra dos Trinta Anos e o ex-Cónego Católico Gaspar de Gusmão, Duque de Olivares, seu potente Primeiro-Ministro, arranjou-lhe mais duas, ao convencê-lo a decretar a “castelhanização” dos reinos da Espanha - a Catalunha reagiu com a sublevação e fez chegar à Resistência portuguesa a informação do seu decreto secreto da anexação pura e simples de Portugal e do seu império à Espanha -, e ao decretar a mobilização das Forças Armadas Portuguesas para combater a Catalunha e a cometer essa missão ao então seu Chefe do Estado-Maior General (Governador de Armas de Portugal), o Duque de Barcelos e Bragança D. João I, que, por ser trineto de D. Manuel I, se perfilava como o candidato de maior potencial ao trono de Portugal.

Com esses decretos e seu proceder, inaugurava a contagem decrescente da nossa Restauração.
A Resistência portuguesa começou a organizar caçadas conspirativas nas herdades de Vila Viçosa com o futuro rei D. João IV, a Duquesa sua mulher (espanhola de naturalidade e grande portuguesa de coração) dispensou-lhes a melhor hospitalidade e apoio, a sua contra-informação despistou a “secreta” castelhana com a “revolta” popular encabeçada pelo Manuelzinho, um jovem deficiente, começada com o fogo posto às repartições públicas em Évora, ganhou escalada e passou a ir apedrejar as janelas e os telhados do palácio de Vila Viçosa, a vociferar que o Duque era pró-castelhano.

A eclosão da Restauração pertence a D. Luísa de Gusmão, ao animar o marido com a afirmação, solene, o que os conjurados já sabiam dela: “Prefiro ser rainha por uma hora que duquesa toda a vida!”

D. Antão Vaz de Almada, mentor da conjura aos 80 anos de idade, então Governador de Lisboa, convocara os 40 operacionais, dos cerca de 60 conjurados, para jantar, em 30 de Novembro, no seu Palácio de S. Domingos (actual Palácio da Restauração da Independência), reunião de concertação da “ordem das operações” previstas para o dia 9 de Dezembro, data simbólica, fazia 60 anos que Filipe I entrara em Portugal por Elvas, em armas, onde passara 2 meses a preparar a sua aclamação de nosso rei. António Telo, Capitão-Mor das Naus das Índias, o mais decidido e fogoso desses operacionais, falhou a janta, compareceu alta noite, a bufar e afogueado, declarou o seu juramento da eliminação às suas mãos e nesse mesmo dia, o valido do rei de Espanha e Primeiro-Ministro Miguel de Vasconcelos e Brito. Estava a chegar de livrar a sua noiva da tentativa de rapto pela sua guarda e à sua ordem.

António Telo estava noivo de Constância de Faria, moça de 17 anos, aparentada com D. Antão, órfã de pai, um herói da nossa História Trágico-Marítima, a residir com D. Joana de Faria, a viúva sua mãe, na sua quinta de Almada, e quisera o acaso de Miguel de Vasconcelos comprar a quinta confrontante. Entrado no alcoolismo, começara a assediar a mãe e a filha, o seu insucesso levou-o à anexação por expedientes ilícitos da quinta delas à dele e a fazer-lhes um ultimato: ou a Constância aceitava consolar-lhe a solidão decorrente do seu alto cargo, ou perdiam a quinta e eram postas na rua, por despejo.

Dado o seu comprometimento como conjurado, António Telo foi-se limitando à vigilância, e então o apelo da noiva falou mais alto – e “é pra hoje e não para o dia 9”!

A “ordem de operações” terá sido mais ou menos assim: o Paço do Governo (da Ribeira) e o Castelo de S. Jorge (comando das forças espanholas) os objectivos principais, o confinamento de personalidades espanholas ou pró, objectivos secundários.

Às 9H00 daquele 1 de Dezembro de 1640, o comando encabeçado por António Telo neutralizou com um golpe de mão a sua conhecida guarda desse Paço, a mesma que tentara o rapto da sua noiva, lançou-se na procura de Miguel de Vasconcelos, escapado para a outra ala, matou um criado tudesco por engano, enquanto outro grupo assaltava a ala de D. Margarida de Sabóia, viúva do Duque de Mântua e Vice-Rainha de Portugal. 

Encontraram o Miguel de Vasconcelos escondido num seu armário-arquivo, liquidaram-no com uma estocada, apresentaram-se como oficiais e cavalheiros ante a Vice-Rainha, esta assinou o auto de rendição da guarnição espanhola, como representante do rei de Espanha, António Telo ficou senhor do Paço, o cadáver do Miguel foi atirado pela janela, o peito vazado pela sua espada, em vingança da honra da sua noiva, o outro grupo foi executar outro golpe de mão, este incruento, ao Castelo de S. Jorge, e o general espanhol subordinou-se à rendição da sua superiora hierárquica.
Aclamação de D. João IV como rei de Portugal, pintado por Veloso Salgado 
(Museu Militar de Lisboa).


Restauração da Independência Nacional – em memória e celebração dos nossos camaradas de antanho, quase desconhecidos, que conjugaram na “Operação Restauração” o amor pátrio com o amor mátrio:

- D. Afonso de Meneses, Capitão-Mor de Monção
- D. Álvaro Abranches da Câmara, Governador Militar das Beiras e de Entre Douro e Minho
- D. Antão Vaz de Almada, Governador de Lisboa
- D. António de Alcáçova, Alcaide-Mor de Campo Maior e Ouguela
- D. António Luís de Meneses, General de Cavalaria
- D. António de Mascarenhas, Comendador da Ordem de Cristo
- António de Melo e Castro, Capitão de Sofala e da Índia
- António Teles da Silva, Capitão-Mor das Naus da Índia
- António Saldanha, Almirante
- D. António Telo, Capitão-Mor das Naus da Índia
- Aires de Saldanha, Comandante da Infantaria do Alentejo
- D. Carlos de Noronha, Presidente da Mesa de Consciência e Ordens
- Estevão da Cunha, Prior de S. Jorge, Lisboa
- D. Fernando Teles de Faro, Mordomo de D. Luísa de Gusmão
- D. Filipa de Vilhena, viúva de D. Luís de Ataíde, Capitão-Mor de Leiria
- D. Francisco de Vilhena, filho que ela armou Cavaleiro, para participar
- Francisco de Melo, Monteiro-Mor e o primeiro a angariar conjurados
- Francisco de Melo e Torres, Alcaide-Mor de Terena
- D. Francisco de Noronha, Coronel do Terço de Ordenanças
- Francisco de São Paio, Governador de Armas de Trás-os-Montes
- D. Francisco de Sousa, Governador de Armas de Setúbal
- Gaspar de Brito Freire, Morgado da Baía - Brasil
- D. Gastão Coutinho, General de Cavalaria
- Gonçalo Tavares de Távora, Capitão de Cavalos
- Gomes Freire de Andrade, Capitão de Cavalos
- D. Jerónimo de Ataíde, Capitão-General da Armada
- D. João da Costa, Alcaide-Mor de Castro Marim
- D. João Pereira, Prior de S. Nicolau
- João Pinto Ribeiro, Administrador da Casa de Bragança
- João Rodrigues de Sá, Capitão da Índia
- João Rodrigues de Sá e Meneses, Comendador da Ordem de Santiago
- João Saldanha da Gama, Capitão de Cavalos
- João Saldanha e Sousa, Tenente-General de Cavalaria
- Jorge de Melo, Almirante
- D. Luís de Almada, Cavaleiro e filho de D. Antão
- Luís Álvares da Cunha, Morgado dos Olivais
- Luís da Cunha, Cavaleiro
- Luís da Cunha de Ataíde, Presidente da Junta de Cavalaria
- Martim Afonso de Melo, Governador de Mascate – Índia
- D. Miguel de Almeida, Alcaide-Mor de Abrantes (94 anos de idade)
- Nuno da Cunha Ataíde, General de Artilharia
- D. Paulo da Gama, Cavaleiro e bisneto de Vasco da Gama
- Pedro Mendonça Furtado, Alcaide-Mor de Mourão
- D. Rodrigo da Cunha, Bispo de Lisboa e Inquisidor-Mor
- Rui Figueiredo de Alarcão, Comendador da Ordem de Cristo
- D. Rodrigo de Meneses, Governador da Relação do Porto
- Rodrigo de Resende Nogueira, Capitão-General de Angola
- Sancho Dias de Saldanha, Capitão de cavalos
- Tomé de Sousa, Comendador da Ordem de Avis
- D- Tristão da Cunha Ataíde, Comendador da Ordem de Cristo
- Tristão de Mendonça, Almirante

(Fontes: Casa Real Portuguesa e Wikipédia)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21508: Efemérides (344): No dia de Finados, lembro os meus camaradas Manuel Gaio Neto, Joaquim Pinto de Sousa, Gabriel Pereira Bagaço e João Fernandes Caridade (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Guiné 61/74 - P21598: (In)citações (173): Padre José Marques Henriques, com 44 anos de vida sacerdotal na Guiné-Bissau, sobretudo como missionário mas também como capelão militar (menos de 6 meses, a seguir ao 25 de Abril): convite para integrar a Tabanca Grande (João Crisóstomo, Nova Iorque)


João Crisóstomo (Nova Iorque)


José Marques Henriques (Faro)


1, Mensagem de João Crisóstomo (Nova Iorque), enviada ao Padre José Marques Henriques (Faro), com conhecimento ao editor LG (*)


 Data -  30 nov 20200 17:09  


Caríssimo P. José Marques,

(Mais um E mail comprido…oxalá arranjes pachorra para me ouvir…)

"Seja por caridade!"... Assim mesmo, à maneira franciscana!… Como "não é o hábito que faz o monje", desde que "tomei o hábito” em Varatojo, mesmo depois de ter oficialmente deixado os claustros , “franciscano" nunca deixei de ser, ou pelo menos tento tentado… neste mundo tão confuso e egoista,  que tantas vezes me leva a sentir asco do que vejo, felizmente que há alguns oasis de paz e serenidade que nos ajudam a sobreviver… 

Felizardos os que alguma vez deste oásis franciscano tomaram conhecimento. Até no Vaticano podemos ver isso!

A propósito , deixa-me dar-te um grande abraço, atrasado mas não menos sentido, pelo teu 50º aniversário, de 17 de maio passado. Só agora (graças a um blogue de que te vou falar a seguir) dele tive conhecimento. Mas vou chatear o teu irmão Luís Marques… embora eu não pudesse ter ido aí pessoalmente este ano, ele podia-mo ter dito. Puxa vida!...

Não sabia que tinhas estado tanto tempo na Guiné [, 44 anos,] e não só como capelão militar. Teria tido "pano para mangas" para falarmos quando estivemos juntos em Vila Real no 50º aniversário do P. Maciel.

A experiência na Guiné também me ficou bem vincada na minha vida. De vez em quando até chego a imaginar-me ir lá ver de novo os lugares por onde passei...

Mas se tal visita provavelmente não vai mais acontecer, gostava mesmo muito que te juntasses a este grupo de indivíduos que por lá passaram e que,  partilhando entre nós as nossas experiências,   nos ajudamos uns aos outros… 

Tu não precisarás talvez de ajudas, mas acredito que o teu testemunho e a tua experiência podem ajudar muitos de nós. Aliás, mesmo sem o saberes a tua experiência já foi bem beneficente, como tive ocasião de verificar. E acredito que quando tiveres algum tempo livre gostarás de ler algo do muito que sobre a Guiné se tem abordado neste blogue “Luis Graca & Camaradas da Guiné”.

"Convida o teu amigo e nosso camarada para se juntar aos 821 camaradas e amigos da Guiné (, entre vivos e mortos)",  assim me instruiu o meu “camarada” mais velho e a muitos outros títulos meu querido irmão Luís Graça. É que além do mais até somos vizinhos….

E ficas já convidado para um encontro muito especial que tenciono organizar em Varatojo tão cedo quanto seja racionalmente possível . Eu explico:

Eu tenho a mania de encontros e abraços ( o poder dar um abraço destes levou-me a ir a Portugal de propósito no 50º do P.Maciel!); e quando vou a Portugal, sempre que possível ( meia dúzia de vezes já ) junto as minhas famílias ( “Crisóstomos" por parte do meu pai e “Crispins" por parte de minha mãe”) para o que convido sempre alguns bons amigos que gostaria de visitar pessoalmente , mas a quem evidentemente não me é possível visitar individualmente . 

Tenho organizado estes encontros (com a presença dos meus primos P. António Sabino, P. Crispim, P. Melícias, P. Estevão Crisóstomo, etc.,  etc...) num clube perto da minha casa [, em Paradas, A-dos-Cunhados, Torres Vedras]. 

Para este ano preparava-me para o fazer no claustro de Varatojo ( e já tinha o OK dos meus irmãos franciscanos). Aliás os dois primeiros encontros (há quase 20 anos), bem simples , foram em Varatojo que tiveram lugar.

Quando o próximo encontro for possível,  espero que me dês a grande satisfação de vires com o Luís Marques. Além das minhas famílias,  tenciono convidar outros bons amigos, como em anos anteriores , onde estiveram também alguns antigos "colegas de seminário” , camaradas da Guiné e outros amigos de coração.

Mais uma vez Muito Obrigado pela tua muito apreciada resposta.

E espero que me (nos) dês uma resposta afirmativa ao convite para te juntares ao nosso blogue. Para bem de todos nós.  (**)

A propósito já estiveste por estes sítios? Se alguma vez vieres até cá… espero que aceites a simplicidade da minha casa: é modesta mas “acolhedora” , costumam dizer. 

Um grande abraço de Paz e Bem
João e Vilma
__________

Notas do editor:

(*) Vd.postes recentes:


30 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21594: Os nossos capelães (13): José Marques Henriques, ofm, esteve no CTIG, de 28/4/1974 a 9/10/74 (João Crisóstomo, Nova Iorque)

Guiné 61/74 - P21597: Parabéns a você (1900): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21581: Parabéns a você (1899): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Guiné, 1968/70) e Manuel Lima Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3476 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21596: Notas de leitura (1327): "A Caixa de Correio de Nossa Senhora", por António Marujo; Círculo de Leitores e Temas e Debates, Outubro de 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2020:

Queridos amigos, 

É uma incursão inédita sobre o culto a Nossa Senhora de Fátima na envolvente da guerra colonial, militares, familiares e amigos, todos envolvidos. António Marujo é um jornalista credenciado na temática religiosa, "enfrentou" a leitura de cerca de 50 mil mensagens entre as milhões existentes, privilegiou o período que vai de 1917 a 1974, consultou personalidades avisadas, os temas da paz e da guerra são dominantes nos pedidos à Mãe de Deus, sem detrimento de muitos outros que vão desde a conversão da Rússia a pedidos de saúde ou de emprego, amores proibidos e confessados, crimes escondidos, desilusões amorosas, angústias existenciais, até afloram situações de pedofilia, mas há muito mais. 

Um livro que nos permite ir conhecendo melhor o país através do analfabetismo, da pobreza e da falta de proteção social, uma obra que nos permite igualmente entender o papel desempenhado por Fátima na fé dos combatentes, seus pais, mulheres, noivas e namoradas, madrinhas de guerra e grandes amigos. Até hoje.

Um abraço do
Mário



Mãe, Senhora, ouve-me, que o meu filho venha são e salvo da guerra:
Uma assombrosa viagem pelo correio dirigido a Nossa Senhora de Fátima


Mário Beja Santos

A obra de investigação de que resultou esta reportagem jornalística intitula-se "A Caixa de Correio de Nossa Senhora", é seu autor António Marujo, um jornalista com largos créditos e pergaminhos na área da temática religiosa; afoitou-se à leitura de um bom número de dezenas de milhar de mensagens dirigidas a Nossa Senhora de Fátima, com os temas mais díspares (declarações, pedidos de saúde ou de emprego para o próprio ou para outras pessoas, amores proibidos e confessados, crimes escondidos, orações pela paz no mundo e pela conversão da Rússia, pedidos angustiantes para que filhos, maridos e familiares envolvidos nas guerras viessem sem beliscadura, obra editada pelo Círculo de Leitores e Temas e Debates, outubro de 2020. (*)

Investigação estimulante, o próprio autor observa que estas mensagens revelam muito do que era o país, há poucas décadas, marcado ainda pelo analfabetismo, pobreza e falta de proteção social.

Antes de nos centramos nas mensagens em tempo de guerra colonial, atenda-se às observações do autor. O país que estas mensagens revelam num acervo como não existe outro em Portugal, podemos ver quem era escolarizado ou não, saber que predominavam as mulheres, pois quem escrevia era quem ficava, não que os jovens que partiam não levassem a incumbência de rezar o terço ou ter no peito a medalhinha de Nossa Senhora ou contarem com ela as horas de aflição.

 Há depois a natureza da comunicação, mais a intimidade que a pura veneração, daí as invocações de Mãe, Mãezinha, Mãe Adorada, Querida Mãezinha do Céu, Minha Mãe Santíssima, Adorada Mãezinha do Céu, Minha Querida Nossa Senhora de Fátima, e muito mais. 

A mãe é protetora, é uma espiritualidade que se entrelaça com maternidade, envia-se mensagens a alguém que nos está próximo, pronto a ouvir, capaz de perceber que estes milhares de modos de escrever e falar, os pedidos são inúmeros, tem a ver com a saúde, com as fraquezas e traições, com as dúvidas de fé, pedidos de arrimo para os estudos, para se conseguir o amor dos pais, dos filhos ou do marido, pedidos para sair da pobreza, para curar a doença, pedido de amor quando se está em desespero. 

Há também nestas mensagens uma ligação estreita com a doutrina dos Papas, Paulo VI, surpreendentemente, em 13 de maio de 1967, centrou a sua mensagem na paz, Fátima nascera na I Guerra Mundial, houvera depois outra mais mortífera e o Papa tem conhecimento que Portugal vive numa guerra colonial, importa não esquecer que as primeiras questões postas por Lúcia tinham a ver com o fim da guerra.
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Nucleo Museológico Memória de Guiledje > Capela > 2010 > O Luís Branquinho Crespo e o António Camilo colocando a imagem na sua base.
Imagem de Nossa Senhora de Fátima, na capela do  Núcleo Museológico Memória de Guiledje.  Foi doada pelos nossos camaradas Luís Branquinho Crespo e António Camilo.  
Imagem do nosso blogue (**)


Consolidadas as mensagens de Fátima, e esta transformada em santuário com fama universal, desenvolveu-se cumulativamente a evocação anticomunista, falava-se na conversão da Rússia, não esquecer que se vivia em Guerra Fria e a imprensa portuguesa fazia o possível para revelar as perseguições da Igreja na Rússia. 

E António Marujo discorre sobre as cartas de mães aflitas a pedir que os filhos regressem salvos da guerra. É vasto o correio de Nossa Senhora quanto a testemunhos de angústia no tempo da guerra colonial, e logo desde 1961.
 
O autor escreve:

“As cartas que se referem à guerra dão conta da aflição ou da dúvida, do pedido genérico de paz ou da súplica dos mais próximos, da convicção ideológica alinhada pelo discurso oficial ou, mesmo se residualmente, da contestação ao regime e à guerra, de uma diversidade enorme: o soldado que envia a fotografia com uma mensagem escrita no verso, a mãe que pede pelo filho, a noiva que lembra o seu prometido, o soldado que quer regressar para ver os filhos, as madrinhas de guerra ou as crianças que nas escolas fazem trabalhos a pedir a paz no mundo e para Portugal. Neste último caso, há vários exemplos de mapas de Portugal e dos então territórios ultramarinos, desenhados em folhas de papel para as crianças colorirem ou preencherem com pequenas frases, junto a uma representação da Nossa Senhora de Fátima”.

Há também mensagens em que se pede para o filho não ir para a tropa ou não ir à guerra, há mensagens a pedir paz para todos os soldados que combatem nas frentes, há pedidos como este: “Salvai Portugal e os soldados que dão a vida pela Pátria”

Outro aspeto curioso que o autor regista são as mensagens referindo a guerra como um castigo pelos maus comportamentos da humanidade, há guerra porque os pecadores ainda não se converteram, há guerra porque é um castigo de Deus, porque ainda não se cumpriu a mensagem, perdoa Mãe Santíssima a estes filhos desavindos. E mais adiante:

  “Quando falam da guerra colonial, a esmagadora maioria das cartas são escritas por mães e irmãs, há depois as esposas, avós ou outras familiares aflitas, namoradas ou noivas esperançadas”.

Está hoje bem identificado que a mulher foi um grande apoio dos combatentes, procuravam dar estímulo e esperança no seu correio para o familiar na guerra, até conjuntamente se faziam promessas para ir agradecer a Nossa Senhora quando ele regressasse são e salvo.

Mais adiante, o autor fala dos jovens que regressaram são e salvos e que “reavivaram uma religiosidade de gratidão”. E veja-se um exemplo:

“A gratidão é o sentimento de Manuel Antunes, das Caldas da Rainha, hoje emigrante em Wasaga Beach (Canadá), onde casou. Todos os anos faz questão de estar no santuário português, acompanhado da esposa e do filho. Nos seus anos de guerra (Moçambique, 1967-69) rezava todos os dias a Senhora de Fátima. ‘Era a minha protetora, a minha fé foi fortificada na guerra e Nossa Senhora de Fátima fortificou a minha fé’, diz ele, durante a estadia em Portugal que o levaria ao santuário, em 10 de maio de 2019.

Consigo, Manuel transportava sempre um pequeno papel com os dados pessoais, para o caso de lhe acontecer alguma coisa. ‘Choro, lamento, mas amanhã irei para o mato. Mas irei: Nossa Senhora de Fátima me acompanha’, escreveu na pequena folha, hoje ainda legível. ‘Regressei, regressei, mas alguns ficaram lá…’, recorda, comovido. ‘Venho cá todos os anos e venho sempre a Fátima, rezo na Capelinha… Não vou pagar nada, só agradeço, tudo, tudo, agradeço por aquilo que me tem feito. É a minha fé”
.
Imagem do Santuário nos anos 1970

António Marujo também recorda episódios dolorosos como o de António Guerreiro Calvinho, antigo presidente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas  (ADFA), que não esqueceu Fátima na sua poesia. Sempre equacionando o papel da Mãe de Deus com a Mãe Natural, o autor recorda a importância da canção “Mãe” do Conjunto Oliveira Muge. Escrita por António Policarpo, a sonoridade da composição era semelhante a outras baladas pop de estrutura simples desses anos 1960. 

E há as madrinhas e namoros, envolvendo Nossa Senhora de Fátima. Há a história de Joaquim Gregório, taxista na Batalha, que embarcou nos primeiros contingentes enviados para Angola. Participou na tomada de Nambuangongo, todos os dias rezava o terço com vários camaradas, invocando a Senhora de Fátima. Ferido com gravidade, Gregório chega a ser dado como morto. Depois de regressar foi a Fátima várias vezes em agradecimento. E António Marujo lembra o poema “Nambuangongo, meu amor”, de Manuel Alegre, provavelmente o mais poderoso poema de toda a literatura da guerra colonial, que assim começa:

“Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.”


O autor discorre sobre a relação de Fátima com o tema da guerra e da paz logo encetado em 13 de maio de 1917, quanto à guerra colonial nem tudo era linear entre católicos, com o evoluir da guerra a chamada linha do catolicismo de vanguarda afrontou o regime, primeiro refletindo sobre o direito dos povos à autodeterminação e depois condenando a inflexibilidade em não se dialogar com quem queria ser livre.

Tratando-se de uma investigação inédita, julgo que também é inédito o alargado olhar sobre o papel de Fátima na guerra colonial. Uma leitura estimulante para entender a fé dos combatentes e dos seus familiares.
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Notas do editor

(* Último poste da série de 26 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21584: Notas de leitura (1326): família, casamento e sexualidade, comentário de Cherno Baldé a uma das "Estórias cabralianas" ["Cabral, salvador das bajudas desfloradas"], da autoria de Jorge Cabral (Lisboa, ed. José Almendra, 2020, pp. 93-94)

Guiné 61/74 - P21595: (De)Caras (166): Frei José Marques Henriques, da Ordem dos Frades Menores, 44 anos de vida sacerdotal na Guiné-Bissau, antes e depois da independência, como capelão militar e missionário


Frei José Marques Henriques (1970)


Frei José Marques Henriques (2020)

Fonte: Folha do Domingo, Faro, 18 de maio de 2020 (com a devida vénia...)


1. O frei José Marques Henriques,  da OFM -  Ordem dos Frades Menores (franciscanos), celebrou em 17 de maio de 2020,  em Faro, os  50 anos de vida sacerdotal, dos quais 44 foram vividos na Guiné-Bissau, antes e depois da independência, tendo sido também capelão militar, de 28 de abril a 9 de outubro de 1974. (*) 

Do jornal Folha do Domingo, Faro, edição de 18 de maio de 2020, retiramos alguns excertos e algumas partes do testemunho deste sacerdote português (e nosso camarada) sobre a sua experiência pessoal e religiosa na Guiné-Bissau. (**)


Os anos difíceis a seguir à independência


(...)  
Ordenado em Lisboa no dia 17 de maio de 1970, com mais quatro padres, pelo cardeal D. Manuel Cerejeira, seguiu para terra de missão. “A minha ideia é que seria melhor se me desse totalmente aos outros. E totalmente seria como missionário”, explicou o frei José Henriques ao Folha do Domingo, garantindo que os “primeiros anos da independência” “foram mais difíceis ainda” do que os já “difíceis” anos da guerra. 

“Não havia nada e era difícil até encontrar um fósforo. Durante muito tempo não tinha nada para comer de manhã. E ao almoço era só arroz. Se havia batatas, era uma ou duas para três ou quatro pessoas”, relata.

A guerra colonial: tiros das NT contra a missão franciscana 
[em Bula ] e intervenção de Spínola


(...) Antes, já tinha vivido a dura e traumatizante realidade de uma guerra colonial que ninguém compreendia. “Uma vez fomos atacados de noite e eu estava no internato com as crianças”, conta, lembrando os tiros nas portas “porque a 100 metros havia um quartel”.

 “Uma vez, os militares portugueses dispararam uns tiros para a nossa missão [em Bula ]. Então o Superior avisou o general Spínola de que estávamos a ser atacados pela nossa própria tropa e ele disse-lhes que nunca mais um tiro poderia cair naquela missão”, relata, explicando que os guerrilheiros do movimento de libertação da antiga colónia nunca atacaram a sede franciscana porque as crianças à sua guarda eram os seus próprios filhos. 

“O próprio Spínola é que os tinha posto lá”, conta, explicando tratar-se de crianças de povoações que tinham sido invadidas.


Pós-indepedência: prisões e fuzilamentos


Já no tempo da independência chegou a presenciar a prisão de dois jovens que estavam a preparar a festa de Santo Antão. Só a missiva que enviou ao então primeiro-ministro 'Nino' Vieira diz ter motivado a sua libertação. 

Na memória permanece-lhe ainda a ocorrência de um fuzilamento de cinco pessoas no campo de aviação da sua missão [Canchungo]. “Levaram as crianças das escolas para assistir, dizendo que iam assistir a um comício”, recorda com mágoa.


44 anos na Guiné: 10 anos em Bissau
 e os restantes no mato


(...) À pergunta se nunca pensou regressar nessa altura a Portugal, dá uma resposta perentória. “Nem nessa, nem nunca. Vim em 2014 porque vi que as forças já não davam mais”, assegurou.

Os primeiros três anos na Guiné passou-os como coadjutor da paróquia da catedral de Bissau e o ciclo da sua vida missionária naquela antiga colónia portuguesa em África completou-se com o regresso àquela comunidade para ser pároco nos últimos dois anos, antes de regressar a Portugal. 

No total esteve 10 anos em Bissau, tendo nos restantes cinco passado por mais duas paróquias que ajudou a desmembrar noutras. “Algumas, só na catequese tinham 3000 pessoas”, lembra, fazendo contas aos quilómetros percorridos por “acessos dificílimos”. 

Ao longo daqueles anos foi fundador de muitas comunidades perdidas no mato.


O regresso definitivo a Portugal, em 2014, 
apenas por razões de saúde


(...) Regressou a Portugal em 2013 e rumou ao Algarve por problemas de saúde e durante sete meses manteve-se por cá. Ainda voltou ao país africano, mas regressou à diocese algarvia definitivamente em 2014 para fazer parte da comunidade franciscana no Algarve e hoje é o guardião da Fraternidade Franciscana de Faro. 

Sobre o balanço deste meio século de ministério sacerdotal em que diz ter procurado “ser fiel”, entende que “só Deus é que poderá fazê-lo”. Assegura, no entanto, terem sido “anos de muita felicidade, mas também de sofrimento e muitas dores”. 

De entre os momentos positivos destaca ter testemunhado a cura de uma criança guineense com paludismo cerebral por quem rezou e que entregou aos cuidados médicos. (...)

Fonte: Excertos do jornal Folha do Domingo, (Faro) > 18 de maio de 2020 > Frei José Henriques celebrou 50 anos de sacerdócio, 44 na Guiné e os restantes no Algarve

[Adaptação, subtítulos, revisão, fixação de texto para efeitos de edição neste blogue. LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21594: Os nossos capelães (13): José Marques Henriques, ofm, esteve no CTIG, de 28/4/1974 a 9/10/74 (João Crisóstomo, Nova Iorque)

Guiné 61/74 - P21594: Os nossos capelães (13): José Marques Henriques, ofm, esteve no CTIG, de 28/4/1974 a 9/10/74 (João Crisóstomo, Nova Iorque)



José Marques Henriques, sacerdote
da Ordem dos Frades Menores (Franciscanos)ofm), 
vigário paroquial da Conceição de Faro e Pechão.
 

1. Do João Crisóstomo (Nova Iorque) recebemos a seguinte mensagem;

Date: domingo, 29/11/2020 à(s) 21:26
Subject: Resposta ao email sobre os capelães

Caro Luís Graça,

Ainda sobre os capelães na Guiné… acabo de receber algo:

A 24 de Outubro enviei um email ao P. José Marques [Henriques] que está no Algarve. Acredito que esse email nem chegou ou o computador dele considerou-o como "junk" e o meu amigo nem o chegou a ver. 

Há dias liguei para o irmão dele (que era do meu curso) e chegou mesmo a ser franciscano mas saiu e vive agora no Algarve. 

E através dele confirmei os contactos e,  depois de falar com ele ao telefone,    enviei novo email, ( de que te fiz conhecimento em Bcc). 

Aqui está a resposta que acabo de receber. A informação não é muita mas mas é mais uma "janela" , a meu ver interessante e elucidativa.

Um abraço de saudades de nós dois para vocês os dois...

João e Vilma

2. Mensagem de José Marques Henriques, enviada ao João Crisóstomo (e que este partilha com a Tabanca Grande);

Subject: Resposta ao email sobre os capelães

Date: November 29, 2020 at 2:15:54 PM EST

Amigo João Crisóstomo, aqui vão alguns dados sobre a minha vida de capelão militar:

Parti para a Guiné como capelão, num avião da força aérea, no dia 27 de abril de 1974 (apenas dois dias depois do 25 de abril). 

Fui colocado no batalhão de cavalaria, em Bula, mas assistindo mais outros dois batalhões, estacionados em Canchungo e Cacheu. 

O meu trabalho desenvolveu-se, portanto, no território dos mancanhas e manjacos. Regressei a Portugal em outubro deste mesmo ano de 1974, num paquete cujo nome não recordo perfeitamente neste momento, mas que julgo ser o Niassa.

Antes de partir para a Guiné como capelão, estive a trabalhar no quartel da Amadora, desde o início de fevereiro de 74, como ajudante do capelão que aí estava colocado. Não fui para a Guiné logo a seguir ao curso, como pretendia, e apesar de ter sido o único a disponibilizar-me para partir para lá, porque fui rejeitado. Colocaram-me na Amadora para me conhecerem melhor. 

Tinha vindo da Guiné para o curso de capelães e, como é natural, durante esse curso dei o meu testemunho sobre o que se estava lá passando, e sobre os reais motivos que estiveram na origem da guerra desencadeada pelo PAIGC contra o regime colonial, mas parece que esse testemunho não agradou a Marcelo Caetano nem aos oficiais superiores do regime, a célebre brigada do reumático

Esta a razão por que só me deixaram partir para a Guiné como capelão, depois do 25 de abril. Aí assisti ao arrear da nossa bandeira e ao içar da bandeira dos Libertadores. O comandante de Bula - o coronel César - não se conformava. Dizia mesmo que tinha vergonha de ser português. 

Perante esta atitude, os capitães de abril e majores, tenentes e alferes, que estavam no terreno, resolveram, através dum abaixo-assinado, proceder ao seu saneamento. O que aconteceu, com a minha anuência. Só pus uma condição: não ser o primeiro a assinar.

Um abraço bem apertado deste teu amigo José Henriques 

3. Comentário do editor LG:

Obrigado, João. Tu nunca "brincas em serviço",  levas as coisas até ao fim e a "carta a Garcia". Agora, e na volta do correio, convida o nosso capelão a juntart-se à Tabanca Grande: tenho um lugarzinho bom para ele, à sombra do nosso poilão, o nº 822.

Recolhemos, na Net, mais os seguinte dados sobre o teu amigo e colega e nosso camarada José Marques Henriques_

(i) é da colheita de 1944 (faz anos a 3 de agosto);

(ii) natural de Ourém;

(iii) foi ordenado padre em 17  de maio de 1970;

(iv) foi missionário na Guiné-Bissau durante 44 anos, antes e depois da independência;

(v) mora em Faro;

(v) é o vigário paroquial da Conceição de Faro e Pechão.

Fonte: Directório da Diocese do Algarve > Pe. José Marques Henriques

Fonte: Jornal Folha do Domingo, (Faro) > 18 de maio de 2020 > Frei José Henriques celebrou 50 anos de sacerdócio, 44 na Guiné e os restantes no Algarve

Tem página no Facebook onde se vê que continua a ser muito acarinhado pelos cristãos da Guiné-Bissau, e nomeadamente os do chão manjaco (, ele esteve como missionário no Canchungo até há uns anos atrás, voltando a Portugal por razões de saúde)... 

Veja-se aqui este testemunho de Rita Gomes, em 22 de maio de 2020:

(...) Pai Henrique, todo o mundo está a sentir a sua falta, o seu ensino, a nossa igreja em Canchungo,  Cacheu nunca mais vai ser a mesma, alguns de nós eram crianças, pre-adolescentes e adolescentes, que saudade,  estou emocionada,  a presença do Senhor naquela época deixou a marca no coração de cada um de nós, que Deus lhe abençoe e protega cada dia da sua vida o nosso Pai Henrique, Amén. (...)
_____________

Nota do editor:



17 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19023: Os nossos capelães militares (9): segundo os dados disponíveis, serviram no CTIG 113 capelães, 90% pertenciam ao Exército, e eram na sua grande maioria oriundos do clero secular ou diocesano. Houve ainda 7 franciscanos, 3 jesuitas, 2 salesianos e 1 dominicano.

domingo, 29 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21593: Manuscrito(s) (Luís Graça) (194 ): À laia de despedida de uma Garça gentil...




Lourinhã > Praia da Areia Branca > Foz do Rio Grande > Uma garça-real (Ardea cinerea)

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. Anteontem, de manhã, à maré-vazia, quando fui dar os "meus passos em  volta" , na foz do rio grande da minha infância, agarrado à minha canadiana, voltei a encontrar a minha Garça solitária (*)

Gosto dela, é resiliente e resistente, lutando contra ventos e marés, indiferente a quem passa pela ponte sobre o rio, desde que não lhe apontem a caçadeira do caçador...

Como eu ia apenas munido de uma pacífica máquina fotográfica (e auxiliado no andar por mais uma estranha perna...), ela não se assustou, não tugiu nem mugiu, lá continuou atenta ao peixe que nessa manhã ela se esforçava para que caísse no seu prato... 

Imagino que, como todas as criaturas de Deus, a minha Garça  tenha de comer todos os dias como eu que, nessa manhã, já levava a vantagem de ter comido o meu pequeno almoço: uma banana, uma pera rocha, um quivi, metade de um dióspiro,  pedaços de nozes e um iogurte natural, sem acúcar,,, Não descobri, claro,  qual foi o pequeno almoço da minha Garça... mas talvez alguma incauta taínha,

Digo "minha Garça" sem qualqer sentido possessivo: as aves do céu, da terra e do mar não têm, não devem ter dono... De qualquer modo, ela está aqui há anos, dizem, e é uma excelente pescadora. Não sei se ela tem o certificado de residência legal, nem sei se passou pelo controlo do SEF - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras... Mais: nem sei qual é a sua nacionalidade, sexo, idade... 

Gosto de a rever, de quando em vez, alegra-me encontrá-la, aparentemente saudável, nestes dias tristes em que a pandemia de Covid-19 nos obriga a andar mascarados. E sós. 

E eu tenho inveja dela, que é mais livre do que eu, não tem horas para trabalhar, comer, descansar, dormir, namorar, acasalar (, admitindo que, de vez em quando, lá encontre um macho ou uma fêmea da sua espécie, que eu por aqui só sei que há, entre os residentes,  uma galinhola e um quarteirão de patos reais, e de vez em quando uns maçaricos, enfim, tudo espécies diferentes, logo seres não compatíveis em termos de acasalamento e reprodução).

Sem pedir autorização a ninguém, batizei-a com o nome da minha neta: Clarinha. E espero um dia possibilitar um encontro entre as duas Clarinhas.

2. Mas também me lembrei (, que raio de memória,  a dos humanos!) de um poema que escrevi, em finais de julho de 2013, e que tinha justamente por título "À laia de despedida de uma Garça"...

Na altura, na organização onde eu trabalhava, iam cortar um posto de trabalho, por questões, imagino, de "racionalidade técnico-organizacional" ou em consequência de alguma "análise de custo-benefício"... 

Na época não havia pandemia nenhuma, mas estávamos estávamos a atravessae o mar das tormentas da tremenda crise económica e financeira de 2008, e, em 2013,  depois de conseguir vir ao de cima, bracejar, respirar e nadar, estávamos a tentar  não morrer na praia... Aliás, como agora.

E a propósitpo: Crises, crises, crises ?!... Por quantas não passámos já nós, a malta da nossa geração,  ao longo destes últimos 70 anos,  antes e depois da guerra que nos coube em sorte como combatentes ?!...

Abreviando a história: a minha Garça (Graça, de seu nome próprio, não tendo nenhum laço de parentesco comigo, que sou Graça de apelido...) foi vítima de uma decisão do gestor do departamento de informática (ou da empresa de "outsourcing" que trabalhavapara o departamento de informática, não interessa: foi despedida, ou melhor, "dispensada"...).

Na altura, no último dia de trabalho (era fim de julho e íamos todos de férias, e portanto era a melhor altura para despedir, ou melhor,  "dispensar",  alguém nas empresa...), escrevi este texto que partilhei com as pessoas da minha organização... 

Por razões óbvias, não indentifico nem pessoas nem lugares, nem isso agora e aqui é  relevante; e se fui respescar este texto, entretanto  revisto, é porque estas situações repetem-se, com demasiada frequência nas nossas sociedades, com ou sem pandemias... 

A razão mais imediata para ter ido, não sei como, desenterrar este texto,  é porque eu voltei a encontrar, há dias, a  minha Garça (, agora Garça Clarinha), que reside na foz do rio grande da minha infância...

Não sendo budista, não acredito na transmigração das almas... Mas há pessoas que, de uma maneira ou doutra, nos tocam, que interagem connosco, nos dizem alguma coisa, de quem perdemos o rasto, e de quem guardamos sempre uma pontinha de saudade...E que gostaríamos de rever um dia...

Esta Garça nem sequer era  minha amiga. era apenas conhecida, era colega de trabalho, e sobretudo era gentil... Era uma Garça gentil... E eu gosto da gentileza humana, que é um traço humano distintivo. Os deuses e os heróis não são (nem podem ser) gentis, os homens (e as mulheres) podem sê-lo.  

Onde quer que ela esteja, a viver e a trabalhar, a Garça gentil do meu texto poético, gostaria que ela me pudesse ler e reconhecer...


À laia de despedida de uma Garça gentil

por Luís Graça

Deixem-me dizer-vos, amigos, uma palavrinha antes que o dia acabe 
E passe o verão do nosso contentamento descontente… 

Segunda feira começa o agosto, o nosso querido mês de agosto, 
Seguramente o mês  em que os portugueses ficam mais próximos 
Do puro estado de felicidade… 
Os portugueses de dentro e os de fora… 

Pois, na próxima segunda feira, já seremos menos um nesta casa, 
Onde se estuda e se trabalha, qualquer que seja seja o piso.
Pelo menos, a nossa Garça já não estará cá em setembro, 
No piso tal, no departamento tal, no gabinete tal,,,

E já não trabalhará cá,  para, sempre solícita e gentil, 
Poder responder aos nossos SOS 
De utentes atrapalhados  com as partidas das máquinas 
De quem somos cada vez mais tecnicodependentes… 

Pois é, a nossa querida e gentil Garça vai-nos deixar 
Pela simples razão de que a empresa  
Que gere o nosso "back office" informático, 
Vai dispensá-la. (Ou, tanto faz,  a empresa de "outsourcing" 
A que ela pertencia.

Posso não entender, 
Mas também não discuto, as razões dos gestores 
Que são soberanos, 
E que todos os dias têm de decidir da vida das pessoas 
Que trabalham nas suas/nossas empresas. 

Dir-me-ão que a Garça deixou de caber no algoritmo da empresa 
Que a contratou para trabalhar connosco e para nós.

As nossas vidas são simples, 
As contas é que são complicadas, 
E os contos ainda mais… 

Pelo menos, é o que ouvimos dizer todos os dias: 
"A economia, seu estúpido!" 
Pois seja, a economia, meu estúpido, digo eu para mim mesmo,
Mas não é ela, a estúpida da eonomia,  
Que nos vai matar os sonhos!... 
Nem as nossas gentis garças que se atravessam, em voo raso, 
Na nossa autoestrada da vida, ou nos atalhos
Em que a gente se mete, sem medir às vezes os trabalhos.

Já lá vai quase uma década 
Que eu vi a jovem e tímida Garça, 
A entrar pela nossa casa  adentro, 
E a competir, taco a taco, 
Com os machos informáticos de barba rija,
No terreno que era (ou tinha sido) o deles.
 
Era minha vizinha, a Garça, da Estremadura,
Mas podia ser de Trás-os-Montes, 
Ou da Ucrânia, ou da Guiné-Bissau, tanto fazia.
E depois habituei-me a vê-la, 
No meu querido mês de agosto, 
Na minha não menos querida praia das férias de verão, 
Já com os rebentos pela mão… 

Sim, porque entretanto, também foi mãe, 
Como todas as garças deste mundo.
Tinha sido mãe, nestes anos que passaram por ela e por mim, 
Assim tão de repente, e sem a gente se  dar conta.

Eu sei que a Garça é  uma mulher lutadora 
E que leva daqui um portfólio, como se diz agora, 
De competências cognitivas e não-cognitivas (, que palavrões!)
Competências não só técnicas 
Mas também humanas e relacionais, 
Que a vão ajudar a voltar rapidamente 
Ao mercado de trabalho... das presas e dos predadores.

Mas, perdoem-me a fra(n)queza, 
Eu vou ter saudades da nossa Garça, 
Da sua voz aguda, e do seu sorriso, 
E daquele seu jeito de, mesmo debaixo de stresse, 
Me dizer, com a maior gentileza do mundo: 
"Professor, deixe aí o seu portátil, 
Que a gente já resolve o problema"… 

O único consolo que me resta, 
Enquanto faço o luto pela sua perda, 
Valioso recurso humano da casa de todos nós, 
É que eu vou já encontrá-la, na segunda feira, 
Na minha querida praia das férias de verão,

E vou convidá-la para tomar uma bica, 
E, como diria um bom alentejano, 
Tabaquear o caso, com ela… 
Ou,   por outros palavras,  
Dar à íngua,  pôr a conversa em dia, 
Puxar umas fumaças (ela, não eu que sou ex-fumador há muito…). 

Vamos recordar as pequenas histórias 
Com que a gente tece, colectivamente, 
A malha da grande História… 

Mesmo sem direito a retrato institucional, 
Que esse é prerrogativa dos nossos maiores
A Garça faz parte da nossa pequena história, 
 
Porque um dia, essa Garça,gentil,  franqueou 
O portão do nosso casarão que nem sequer tem  número de polícia,
E voou até ao departamento de informática, 

E porque as nossas organizações devem ter um rosto, 
E porque o melhor delas somos nós, 
A acreditar nos livros do gurus da gestão, 
As equipas e os trabalhadores de equipa,  e os seus líderes, 
Então eu atrevo-me  a falar em nome das garças que não têm voz, 
E mesmo sem legitimidade institucional para o fazer, 
Para simplesmente lhe dizer: 
"Obrigado, Garça, vamos sentir a tua falta. 
Mas também sabemos que tens asas e força para voar! 
Força e perícia! 
E nos teus novos voos por novos céus, 
E nos teus passeios, à cata de comida, por novas águas pantanosas,
Não te esqueças de nós, 
Que gostamos sempre que os amigos voltem e nos visitem,
Sempre que quiserem e puderem!
Muita saúde e longa vida,  porque tu mereces tudo! "

Luís Graça, Lisboa, 31 de julho de 2013, revisto hoje.

PS -Nunca mais voltar a ver a Garça gentil... Oxalá esteja bem ou ainda melhor do que da última vez que a vi, em finais de julho de 2013.
 
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Nota do editor: