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sexta-feira, 3 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21135: Bombolom XXIV (Paulo Salgado): Memória, em catadupas, as minhas memórias, que são, afinal, memórias dos outros



1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 30 de Junho de 2020:

Camaradas Editores do nosso Blogue

O meu Bombolom (não sei que número…).

Abro os “Diários da Guiné” do Mário Beja Santos, recebidos ontem, dia 29 de Junho de 2020, em tempo de pandemia. Vieram-me à memória, em catadupas, as minhas memórias, que são, afinal, memórias dos outros. Do Suleiman Seidi e do Nhindé Cudé, sargento e alferes de segunda linha, do Jam Fodé, comerciante próspero, e as crianças, e as mulheres, sobretudo a Kadi. Dos soldados, melhor dos soldadinhos (que éramos todos). Para falar deles todos não bastam os livros que escrevi, os livros que li, as narrativas de outros camaradas (gosto de usar a palavra camarada, já o afirmei aqui no blogue, carregada de um duplo sentimento: a partilha da caserna no que ela tem de físico – portanto uma conotação militar – e da noção imanente de companheiro, amigo, até do ponto de vista psicológico; ora, ainda valeria a pena falar no sentido de camarada de ideologia, mas isso nem sempre aconteceu, claro, salvo raras excepções). Para falar deles teria que os ouvir – e foi isso que fiz enquanto cooperante – indo em sua busca. Já estive com eles no meu “Guiné – Crónicas de Guerra e Amor”, e por lá passei no meu “Milando ou Andanças por África”. Até no livro infantil 7 Histórias para o Xavier, meu neto.


Mas hoje quero dizer, clamar, o quão satisfeito fiquei ao abrir o primeiro volume dos Diários. E logo me saltou a ideia de agradecer ao Mário Beja Santos: a delicada dedicatória, a nota explicativa, merecida, dirigida ao Luís Graça, e o comentário oportuno do Virgínio Briote. O que me chamou a atenção – desculpar-me-eis – foram as “leituras de guerra”. Apetece-me dizer: diz-me o que leste e dir-te-ei o que foi para ti o tempo de guerra, em termos de passar o tempo, o tempo vivido para lá das emboscadas e das cambanças e dos tarrafos e dos rios e das morteiradas e dos tiros. O Beja Santos, que me desculpe esta falha de não ter ainda comigo a obra; agora vou ler o sumo que vasto é, e que me trará – quem sabe? – alguma ideia nova.

Uma última palavra neste bombolom de hoje: para mim, a minha escrita está fortemente “agarrada” ao que passei em África. Lá, no Olossato, na Sintra da Guiné, como referiu há tempos o Beja Santos, povoação que visitámos os quatro, num Fiat 127 (!) em 1991, ele, a minha mulher, Conceição Salgado, a minha filha a Maria Paula, e eu, que por lá andou a fazer o 11.º ano e que, feito o doutoramento, quis uma viagem à Guiné, como prémio.

Um abraço. Um agradecimento ao historiador Mário Beja Santos.

Outro aos editores. Merecido. Pela persistência.
Paulo Salgado
30.06.2020
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20106: Bombolom IV (Paulo Salgado): Primeira Guerra e Guerra Colonial

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20106: Bombolom XXIII (Paulo Salgado): Primeira Guerra e Guerra Colonial

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro "Milando ou Andanças por África", com data de 22 de Agosto de 2019:

Meus Camaradas do Blogue,
No meu livro Milando ou Andanças por África, tive oportunidade de falar de um combatente da Primeira Grande Guerra – homem que conheci nos meus tempos de pré-adolescência e que me encheu a alma de histórias fantásticas, decerto verdadeiras, ainda que narradas após mais de cinquenta anos…

Aí vai um pedaço da narrativa do velho Ti Brasas (nome fictício do combatente, pedreiro era…):

Paulo Salgado


O Bombolom IV - Primeira Guerra e Guerra Colonial
 

De MILANDO OU ANDANÇAS POR ÁFRICA

Da Quarta Andança – O Pedreiro

Sentados no muro da propriedade, chamada Pombal, ancião e jovem em amena cavaqueira, um revivendo o passado, emocionado, outro, embebecido com a narrativa.

- Conte lá, Ti Brasas, como foi a viagem e a chegada a Moçambique para combater no norte contra os alemães durante a Primeira Grande Guerra – pediu Pedro.

E o bom velho recordou, indo buscar lá bem atrás as lembranças:
- O barco Moçambique ia atafulhado de militares, nos porões fedorentos, nos deques sebentos, ao relento, espalhados por todos os lados, dormindo mal, comendo mal, deitando o que o corpo não quer ao mar, uma imundície e uma sujeira espalhada pelo navio, obedecendo a graduados de fortes bigodes, imponentes nas suas fardas, estou a vê-los, Pedro, descansando no último convés, à sombra de guarda-sóis, perto da ponte de comando, e a dar ordens a uma confusão de mais de mil homens. Quando passámos o equador, eu pensava que era uma linha traçada a negro, e era, pois negros eram os dias de caloraça e de humidade, sem condições para nos banharmos, e as necessidades era de rabo para o mar e com água do mar lavávamos as nalgas, sem fruta, sem comida que se visse, só desespero, só pequenas lutas nos porões e nos conveses por um lugar melhor para pernoita. Como me lembrava dos melões da Vilariça, das laranjas do Pocinho, das uvas códegas do Larinho, de um cadorno de pão com linguiça, de um ou dois ou três copos de tinto, ali só um caldo deslavado e batatas cozidas com pele e migadas por um azeite mal rançoso!

Onde é que vimos alho semelhante? Ah, no velho Carvalho Araújo, de 1970… transportador de carne para canhão, como o Moçambique de 1914…

"Carvalho Araújo" - Com a devida vénia a Navios Mercantes Portugueses
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18845: Bombolom III (Paulo Salgado) (3): O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)

sábado, 14 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18845: Bombolom XXII (Paulo Salgado): O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)



T/T Carvalho Araújo a caminho da Guiné. A 26 de abril de 1970, avistámos à rè o  T/T Vera Cruz (a caminho de Angola ou Moçambique, presumivelmente).


Foto (e legenda): © António Tavares (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Paulo Salgado, ex-alf mil op esp. CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72


Bombolom III  (Paulo Salgado) (3) > O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)



O desembarque do navio Zaire [1] decorreu num ambiente de estranha confusão a que os militares não estavam habituados, não obstante alguma desorganização nestas circunstâncias, por falta de meios. Durante a viagem, sede, fome e miséria no bojo do Zaire foram uma constante. Depois, do barco até à praia, os soldados sentiram o miserando esforço dos indígenas para carregar às costas os militares. Sim, às costas.

Tenho tido oportunidade de aprofundar os meus conhecimentos, com várias leituras, sobre a primeira grande guerra em África [2]. Estava-se na primeira vintena de anos do século XX, carregada de episódios políticos, nacionais e internacionais, alguns deles relativos às posições assumidas por ingleses e alemães que, no fundo, pretendiam, juntamente com outras potências (França, Itália, Bélgica…), dominar o continente africano, com prejuízo para Portugal, afastando-o, por vezes com maneiras cordatas, diplomáticas, todavia frequentemente pela coação política. Recorde-se o vexame do Ultimato inglês [3], ainda no século XIX, que pensadores e escritores da época apelidaram de enorme afronta do aliado tradicional (por exemplo, Guerra Junqueiro).

Passo, então, a transcrever os seguintes excertos da obra indicada em rodapé (ver nota 2):

«…quando, já noite cerrada, cheguei ao local que o Quartel-general tinha destinado ao estacionamento do meu batalhão [na zona do Rovuma, perto de Porto Amélia - nota deste escriba], encontrei-me numa pequena clareira, raspada à pressa no seio da floresta, sem ar e sem luz, dando-me a impressão do poço Poe [4] aberto na solidão daquele mato…foi ali o nosso primeiro bivaque [5]

Prossegue um pouco mais adiante a descrição pessoal deste ilustrado combatente à chegada ao Norte de Moçambique, em 1915:

«Parece que o Quartel-general ignorava a viagem que há um longo mês vínhamos fazendo em direcção a estas paragens».

Ao ler este precioso depoimento pessoal, de que transcrevi dois breves excertos, decerto escrito em circunstâncias adversas, não posso deixar de referir a viagem atribulada do Carvalho Araújo, nome do bravo marujo, que transportou para o Teatro de Operações da Guiné, na sua primeira viagem [6] após restauro e adaptação a transporte de tropas.

Após a IAO [7], e cumpridas as férias antes do embarque, ia a malta de barco. Ao longo de sete dias, a “carne para canhão” esteve sujeita às miserandas condições de habitação do navio. Sobretudo os soldados viajavam no bojo do barco, em condições deploráveis, enquanto os graduados tinham algo de mais positivo lá no alto.

Sou muito claro: só a necessidade e a obrigação de orientar as tropas nos faziam descer ao fundo, aos graduados, aos porões, onde se jogava às cartas e se vomitava imenso... Uma miséria no ano de 1970!

Igualmente, chegados a Brá – quem lá passou, sabe como era! – distribuíram-nos tendas esburacadas e colchões meio podres, e atacados pela mosquitada. Depois, já no mato, a sobreposição com os “velhinhos”, uma confusão dos diabos…

Como vedes, camaradas, as situações vividas em guerra na África estavam separadas por cerca de cinquenta anos e não houve grandes melhorias. Diferente e melhor na guerra colonial, pois que estavam garantidos na Guiné e, creio, nos restantes TO, o serviço postal militar (SPM), a distribuição, precária mas existente, de víveres e outros produtos, a electricidade fabricada por geradores, o apoio clínico, o apoio pastoral, o apoio dos “héli-canhões” ou dos “fiats”…

Até à próxima crónica do meu bombolom.

Paulo Salgado – 30.6.2018
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Notas do autor:

[1] Foram vários os navios utilizados no transporte de tropas para o norte de Moçambique e sul de Angola durante as operações havidas na Primeira Grande Guerra, por força do confronto entre Inglaterra e Alemanha, e na qual Portugal participou, dada a velha aliança com os ingleses. De acordo com o Capitão-de-Mar-e-Guerra, José António Rodrigues Pereira (Revista Militar, nºs 2551 e 2552), mencionam-se os seguintes navios envolvidos nesta guerra no norte de Moçambique, 1914-1916: Moçambique, Durhan Castle, Beira, Cazengo, Ambaca…

[2] Por exemplo a leitura do livro Epopeia Maldita – o Drama da Guerra de África, de A. Cértima, publicado em 1924, como já referira na crónica anterior do meu Bombolom.

[3] Como é sabido, o governo inglês exigiu a Portugal, em memorando, no ano de 1890, a retirada das forças portuguesas que, por direito, tinham ocupado o território compreendido entre Angola e Moçambique. O governo português e o rei foram muito atacados pelos republicanos. Entre outros intelectuais, Guerra Junqueiro vituperou a concessão do governo e do rei D. Carlos na sua obra, direi patriótica e panfletária, Finis Patriae, onde escreveu versos de revolta, de que ora se recorda «Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente// Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?» É de recordar, no entanto, que as diversas tomadas de posição por republicanos pouco interesse prático revelaram, como defendia Eça de Queirós.

[4] É uma referência do autor do livro citado (ver nota 2) ao conto ‘O Poço e o Pêndulo’, de Edgar Alan Poe, que fala, como sabeis, de um condenado que sente a sensação horrível de estar preso numa masmorra, num espaço claustrofóbico.

[5] Bivaque designa um acampamento rudimentar para passar a noite na natureza, vigiando. Trata-se de uma expressão muito utilizada nas campanhas militares, herdada da palavra francesa bivouac. Bivaque é também a designação de boné, utilizado por militares ou paramilitares.

[6] Este navio fazia a carreira dos Açores, transportando pessoas e gado dos Açores para o Continente; já meio consumido pelo uso e pelo tempo, foi, por necessidade, transformado em navio transportador de militares para a Guiné. Nele seguiu a CCAV 2721, onde este escrevinhador estava incluído, e duas companhias e uma secção de morteiros.

[7] No Arquivo do Centro de Documentação do 25 de Abril – Universidade de Coimbra, há um texto – que eu conheça, pois haverá outros – sobre a mobilização, a IAO – instrução de aperfeiçoamento militar, que, na Guiné passou a fazer-se, creio eu, a partir de 1972, e que refere o que passo a transcrever:

«O militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra, e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem. Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam-se de novo em parada no quartel, com as malas, e embarcavam nas viaturas militares para a estação de caminho-de-ferro mais próxima».

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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de 2018  Guiné 61/74 - P18757: Bombolom III (Paulo Salgado) (2): As guerras - a primeira e a colonial

terça-feira, 19 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18757: Bombolom XXI (Paulo Salgado): As guerras - a primeira e a colonial

© Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro "Guiné - Crónicas de Guerra e Amor", com data de 10 de Junho de 2018:


O Bombolom III – As guerras - a primeira e a colonial

O Beja Santos tem feito um trabalho extraordinário – o zeloso pesquisador utiliza uma linguagem escorreita na construção da sua prosa historiográfica. Obrigado pelos saborosos textos, pois que, assim e ao menos, fica registado o passado que pode servir (ou não) de lição para o futuro das nossas relações com África (andam tão por baixo…!), para o bem e para o mal, ou para compreendermos melhor essas mesmas relações.

As minhas passagens pela Guiné, por Angola e uma visita breve a Moçambique têm-me “provocado” o interesse em aprofundar um pouco do que vivemos – os portugueses – nas colónias, em especial na primeira grande guerra e na guerra colonial (alguns pretendem que se diga guerra do (ou no ?) Ultramar).

Sobre a primeira grande guerra e a evolução da nossa presença em África, acho fundamental ler os trabalhos de Aniceto Afonso e de Matos Gomes, por exemplo, em Portugal e a Grande Guerra 1914-1918, publicado em 2013; de um grande seareiro (da Seara Nova), Augusto Casimiro, sendo uma das obras meritórias deste pensador o livro Angola e o Futuro – Alguns Problemas Fundamentais, publicado em 1956 (?); António de Cértima que escreveu, romanceando sobre a realidade junto do Rovuma, uma obra que se chama Epopeia Maldita – o Drama da Guerra de África, de 1924; sobre a evolução da nossa presença em África, leiam-se igualmente os Ensaios, de Adriano Moreira, de 1960, uma tentativa de explicar o luso-tropicalismo; também os trabalhos do Prof. Santos Júnior, médico e antropologista, que participou em diversas missões em Moçambique, (legou o seu vasto fundo bibliográfico à Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo – a minha Terra), de que realço, agora, A Alma do Indígena através da Etnografia de Moçambique, de 1950; do acérrimo defensor da presença lusa, Couto Rosado, que escreveu Nota Ligeiras – Angola, saído em 1938; de Sá Viana Rebelo ficamos a saber o seu pensamento (e de outros dirigentes de então) na obra Angola na África – 1961; Contra o Vento – Portugal, o Império e a Maré Anticolonial -1945-1960 de Valentim Alexandre, de 2017 – obra essencial para quem se interesse profundamente pelas ideias, entre outros vários temas, que se foram desenvolvendo na emancipação das colónias (províncias) portuguesas.

Poderia elencar mais de cinquenta de obras que fui adquirindo, apenas por curiosidade, já que me falta a metodologia e a profundidade de historiador. E a razão é simples: pretendo tocar de novo o meu bombolom – em silêncio há meses – para registar alguns episódios que fazem semelhar a presença das lutas acesas de militares portugueses no norte de Moçambique e no sul de Angola, durante a primeira grande guerra, com a guerra movida nas colónias desde 1961 a 1974. Sim, há similitudes e há diferenças significativas. Registo uma semelhança: o número de mortos e de estropiados lá no norte de Moçambique e lá no sul de Angola, e depois na guerra entre 1961 e 1974, nas três frentes. Milhares, muitos milhares…

10.6.2108. Ah, hoje é o dia de Portugal – o que deve ser invocado?

Até breve.
Paulo Salgado
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18737: Bombolom III (Paulo Salgado) (1): Guerra - Guiné e Moçambique - Aqui na Primeira Grande Guerra

terça-feira, 12 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18737: Bombolom XX (Paulo Salgado): Guerra - Guiné e Moçambique - Aqui na Primeira Grande Guerra

Com a devida vénia a Wikipédia


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro "Guiné - Crónicas de Guerra e Amor", com data de 30 de Abril de 2018:

Meus Caros Camaradas, 
Se vos aprouver, o meu bombolom vai tocar outra vez. 
Para já, o anexo. 

Um abraço
Paulo Salgado

********************

BOMBOLOM III

GUERRA - GUINÉ E MOÇAMBIQUE - AQUI NA PRIMEIRA GG

Camaradas, 
O meu bombolom tem de troar, de novo. 

Quando era um rapaz de dezassete anos, aconteceu o que muitos tiveram oportunidade de presenciar: a chegada de um corpo à aldeia ou vila, numa caixa de pinho, que era de um nosso conhecido, um pouco mais velho, que as balas trespassaram – consequência de uma guerra que fizemos e da qual nunca soubemos, profundamente, a sua razão da ser. 
Já havia sido as independências do Gana, do Senegal e de tantas outras colónias no continente africano, antes de a guerra rebentar oficialmente em Angola no dia 4 de fevereiro. 

Vem isto a propósito de me lembrar de um velho ancião, combatente no norte de Moçambique, aquando da primeira grande guerra iniciada pelos alemães. Ali, a guerra começou em 1915, quando na Europa, se iniciara em 1914. Estava ele no adro da igreja da minha aldeia – Larinho, concelho de Torre de Moncorvo – e disse-me após o fogo de uma secção em homenagem ao soldadinho falecido, seu neto, correndo-lhe as lágrimas cara abaixo: esta guerra ainda vai durar mais tempo do que a que nós sofremos lá nos confins do Rovuma! 

Como eu adorava estar à conversa com ele, contou-me diversos episódios. Tratarei de narrar alguns, se tal tanto aprouver aos dinamizadores do nosso blogue. 
As misérias foram tantas que, posso concluir, ainda sofreram mais por falta de medicamentos, equipamentos, alimentos, armamento… 

Até breve. 
Paulo Salgado
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Nota do editor

Vd. poste de 22 de novembro de 2011 Guiné 63/74 - P9075: Bombolom II (Paulo Salgado) (5): I Grande Guerra em África (1914-1918), guerra colonial (1961/74)... Relembrando os nossos mortos

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9075: Bombolom XIX (Paulo Salgado): I Grande Guerra em África (1914-1918), guerra colonial (1961/74)... Relembrando os nossos mortos




Lisboa > 1914 > I Guerra Mundial (1914-1918) > Cais do Arsenal > Embarque de tropas portuguesas para Angola, durante a 1ª Guerra Mundial > Sob o comando de Alves Roçadas, foi enviado para Angola uma força expedicionária de 1600 homens, em Outubro de 1914. Por sua vez, o batalhão de infantaria nº 23 partiu para Moçambique.

Fonte: Cortesia de Wikipédia (2011). Imagem do domínio público (documento com mais de 70 anos).



1. Mensagem, de 20 do corrente, do nosso amigo Paulo Salgado [, transmontano de Moncorvo; administrador hospitalar reformado; consultor, especialista em gestão de serviços de saúde, a trabalhar em Angola;  ex-Alf Mil, CCAV 2721,Olossato e Nhacra, 1970/72]: 

Camaradas, Amigos, Camarigos: 

Tem andado calado o meu bombolom (*)… Há tanta coisa para contar. Mas, às vezes, fico indeciso… Se achardes bem,  postai esta mensagem de solidariedade para os que sofreram tanto como nós, lá no Rovuma, lá no Cunene, durante a primeira grande guerra. Como nós  – mais ainda, tenho a certeza – passámos na Guiné. Um abraço, Paulo.

2. Bombolom II > I Grande Guerra (1914-1918)

Em 18 de Agosto de 1914,  tendo sido declarada a Grande Guerra, o governo português, entendeu ser necessário guarnecer e reforçar diversos postos fronteiriços no norte de Moçambique e no sul de Angola,  para o que foram mobilizadas duas forças expedicionárias com destino àquelas colónias, ameaçadas pelos alemães.

As cenas mostradas nas fotografias da Ilustração Portuguesa e de outras revistas da época não eram muito diferentes das que todos quantos rumaram a Moçambique, Angola e Guiné conhecem sobejamente.

Na verdade, amigos do blogue, o meu velho amigo Ti Adriano contava-me as histórias que viveu no norte de Moçambique, de 1915 a 1919 – quatro anos…!

O seu neto veio a falecer cerca de 50 anos depois nas matas da Guiné! 

Os seus olhos marejaram-se de lágrimas no funeral, em choro convulsivo, e bem sabedor do que teria sido a “guerra” sofrida pelo neto. Ouvi-o após a cerimónia da secção que veio acompanhar o soldado na caixa de pinho (como cantava o Adriano – o outro: Correia de Oliveira…): 
- Pobre filho, quanto terás sofrido!
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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7706: Bombolom XVIII (Paulo Salgado): Saber viver viver com a pluralidade de pontos de vida, debaixo do poilão da nossa Tabanca Grande

1. Mensagem de Paulo Salgado (a viver e a trabalhar neste momento em Luanda, Angola, como especialista em administração de serviços de saúde; ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721,Olossato e Nhacra, 1970/72) [, foto à direita,]


Data: 1 de Fevereiro de 2011 14:36

Assunto: Uma palavra amiga


Companheiros ou camaradas ou camarigos!

Verifico com satisfação que é salutar ter pontos de vista diferentes face à guerra que vivemos - todos com muito sofrimento. Registo, ainda, com agrado que há diferentes pontos de vista sobre o modo como a guerra foi feita e conduzida. 


Agrada-me a capacidade intelectual dos editores do nosso blogue que, balizando-se em princípios éticos, em valores morais e dentro do que é razoavelmente aceitável em termos de linguagem e de conceitos, assumem a responsabilidade de aceitar publicar notícias ou ideias contraditórias. É muito salutar esta grande capacidade dos nossos editores!

Quero reafirmar, aqui e agora, o que um grande cabo do meu grupo de combate, cuja grandeza de alma era e é inquestionável: só devemos é ter a consciência tranquila. Se cada um de nós - já com idade para compreender e aceitar a diferença e para fazer juízos tranquilos - tem pontos de vista diferentes, que nos resguardemos do vilipêndio e da maledicência. Saibamos ser Velhotes na dimensão humana. Saibamos olhar para os outros com a mesma benevolência e exigência que gostaremos que apreciem em nós.

O que diz o Mário Beja Santos sobre "celebração" pode não ser compreensivelmente aceitável. Mas é, certamente, um ponto de vista que merece reflexão, nunca o "atirar a pedra" - só atira pedras quem está incólume. Tenhamos a paciência dos "homens grandes" que à sombra do poilão sabiam discutir as questões com paciência e sem azedume, com tranquilidade e sem virulência. 

Saibamos dizer aos nossos filhos e netos: nós, pais e avós, participámos numa guerra que (muitos) não queríamos; nós, pais e avós, olhamos para trás e, fugidos alguns à guerra ou presentes outros, não nos envergonhamos dos actos. 

Recordo-me de dois homens muito queridos da minha meninice, na mesma aldeia, que estiveram no norte de Moçambique (Rovuma) durante mais de quatro anos, friso quatro anos, na primeira guerra mundial. Tinham pontos de vista diferentes, muito diferentes sobre os factos que viveram. Mas eu gostava de os ver bebendo alguns copos na taberna - na praça da aldeia - rirem e chorarem, tantos anos depois! Lição grande aquela de dois homens analfabetos, mas enormes na inteligência e no humanismo.

Tenho a certeza que alguns militares que estiveram comigo na minha companhia viram a guerra de maneira diferente da minha, sentiram-na no corpo e na alma de tal forma forte e dramática que certamente nem sequer desejam falar dela. No que me respeita, só descreverei aspectos paralelos, interligados, marginais - nunca sobre emboscadas que fizemos ou que sofremos, de golpes de mão com ou sem êxito, nunca sobre patrulhamentos. Isso está na história da companhia.

Respeitemos as memórias individuais e a memória colectiva que alguém deverá fazer, e se não concordamos com Almeida Bruno, ou com Beja Santos, ou com qualquer anónimo, sejamos rectos, humanos e deixemos os nossos contributos com a benevolência de combatentes que procuram o bem-estar nesta recta final das nossas vidas. Sem, com isso, deixarmos de afirmar a nossa verdade. 

Mas há tantas verdades, camaradas ou companheiros ou camarigos...

Paulo Salgado 
ex-alferes miliciano
Guiné 70-72.

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segunda-feira, 21 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6622: Bombolom XVII (Paulo Salgado): Pequena homenagem ao Victor Condeço e aos demais camaradas que já partiram





Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Vila > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Foto 50 > "Lagoa com nenúfares,  à esquerda na estrada de Catió/Príame"


Foto (e legenda): © Victor Condeço (2007). Direitos reservados.




1. Mensagem do Paulo Salgado, membro da nossa Tabanca Grande, antigo Alf Mil Cav, (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72, sob o comando do Cap Cav Mário Tomé), com data de 20 do corrente:

Assunto: Pequena homenagem

Fica a minha sentida prece aos que nas margens da vida sofreram, e lutaram, e caíram, cá e lá, e nos sorriram também…

Paulo Salgado


2. Bombolom II > Pequena homenagem
por Paulo Salgado

Hoje o meu bombolom (*) (**) vai ecoar: pelas planícies do Ribatejo, para lá do Entroncamento, pelas bolanhas da Guiné – ambas encharcadiças, ambas dolorosamente vividas por homens e mulheres que trabalham a terra e a água, cá e lá.

Dos que a morte levou, cedo era para eles e para nós, nas cheias arrasadoras que o Redol relata nos seus livros amantes da terra e do rio, nas margens esventradas pelos tumultos das águas, levando vidas e os poucos haveres.
- Maldita vida esta - gritavam loucamente as mulheres agarradas à esperança de os corpos aparecerem mais abaixo no rio largo…

Cedo era para eles e para nós, nas margens da vida e de uma bolanha qualquer, vendo-os crivados de balas ou de estilhaços erguendo os olhos para o céu por entre as poilões sagrados, numa última prece.
- Puta de guerra esta - sussurrado por companheiros em soluços entrecortados pelos estampidos das balas das kalachnikov, um derradeiro adeus, e uma corrida para o héli…

À memória dos que já partiram. Dos que sentiram na carne e na alma o sofrimento. Dos que viveram ao nosso lado, dos que partilharam connosco as margens da vida.

Ao Condeço (***), que agora partiu…ao Gomes que foi há dias… E também ao Sebastião, ao Borges, ao Suleimane…

A nossa vida vai ficando mais pobre.
Um abraço.

Paulo Salgado [actualmente, em Angola, foto à esquerda; administrador hospitalar, reformado]
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Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 14 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6389: Bombolom II (Paulo Salgado) (1): Morreu o Gomes - O anti-herói


(**) Bombolom, nome masculino. (Do crioulo bombolõ, «id.», baseado em onomatopeia)... Guiné-Bissau;  tambor grande, construído a partir de um tronco de cerca de 1,5 m de comprimento, escavado no sentido longitudinal de modo a ficar apenas com uma fenda de abertura, a qual é percutida com baquetas para transmitir mensagens, sobretudo notícias de falecimentos.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6389: Bombolom XVI (Paulo Salgado): Morreu o Gomes - O anti-herói

Bissau > 31 de Agosto de 2004

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado* (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 8 de Maio de 2010:

Meus Caros Editores e camaradas e tertulianos
Se achardes bem, postai esta singela homenagem.

Saudações
Paulo salgado


Bombolom II (1)

Morreu o Gomes – o Anti-Herói


Soube há dias que o antigo soldado do meu grupo de combate, o Gomes, faleceu em Lisboa.

Vítima de doença cardíaca, partiu para algum além que nós, humanos, não sabemos onde é – os crentes (ainda que mais ou menos crentes) acreditam que há um além, um ser superior, como dizem os narcóticos anónimos – deixou-nos e eu quero deixar uma homenagem pública (neste nosso espaço que é público) a um anit-herói.

Depois do regresso, apenas o vi num almoço de confraternização da minha Companhia – a CCAV 2721, que todos os anos se reencontra. Andava com uma vontade enorme de o rever, como de rever o Novais, o Correia e tantos outros que me acompanharam pelas matas e bolanhas vizinhas do Morés (repito: vizinhas, para que fique bem claro, pois das pouquíssimas vezes que ousámos penetrar foi um arraial de pancadaria com consequências gravíssimas que me escuso de contar – já disse ao nosso primeiro Editor, Luís Graça que me recuso a mostrar a história da Companhia, a não ser por razões de feitura de trabalho investigatório…).

O Gomes era um senhor na vida civil. Ao sábado, mecânico de camiões, com bom salário, comia o seu bife a cavalo no Galeto, na Av. da República, Lisboa… como ele se divertia falando dos bifalhões, quando comíamos as sardinhas com feijão enlatado…lá no Olossato.

Estava na guerra absolutamente consciente de que os meses tinham que passar, estava na guerra porque não fugira para os bidonville algures em Paris; estava na guerra com um desprezo total do que se passava à sua volta; estava na guerra com uma postura de apenas fazer o mínimo. Um dia, queixou-se de que estava doente: teria paludismo e, portanto, não poderia fazer o patrulhamento. Claro que ficou na caserna. No final da actividade, fui à caserna saber da sua saúde. Lá estava, preparando uns passarinhos para ele e para a sua equipa Sentença do alferes: dois reforços de sentinela às 2 horas da madrugada – o castigo!

Vim a saber depois: ele conseguira levantar-se e preparar algo para os companheiros. Fui injusto.

O Gomes, pela sua postura, ensinou-me muito. Era preciso ter calma, era preciso ver as coisas profundamente. E sempre achei que ele sabia muito mais da vida do que eu. Nunca me esqueci da sua presença serena, meio malandra e meio sarcástica, também.

Pois é. Revi os três (o Novais, com quem tive uma maca que nunca nos esqueceu, a ambos; o Correia e o Gomes) passados 37 anos após o nosso regresso. Como habitualmente, levei uma prenda das muitas que trouxe comigo para ofertar, e que trouxe aquando das minhas viagens à Guiné-Bissau. Fez-se o sorteio… e, quer o destino destas coisas: a estatueta saiu ao Gomes…

Gomes: lá onde estiveres, fazes parte da minha história pessoal, não apenas pela por força da passagem pela guerra, como alguém que era um anti-herói, mas pela forma como abordavas a maneira de viver. Ou serias herói?

Paulo Salgado
Ex-Alf Mil Op Esp
CCAV 2721
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6360: Convívios (150): Encontro do pessoal da CCAV 2721, dia 28 de Maio de 2010 em Almeirim (Paulo Salgado)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1458: Bombolom XV (Paulo Salgado): Contos mandingas, de Manuel Belchior, ou a sabedoria dos guineenses


Guiné > Região do Oio > Farim > Olossato > O Alferes miliciano Salgado, em cima do capô dum GMC, e devidamente assinalado por um círculo a vermelho. Fazia parte da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), e era seu comandante o capitão de cavalaria Mário Tomé. O Olossato fazia parte do chão mandinga.

Foto: © Paulo Salgado (2005). Direitos reservados.


Mensagem do Paulo Salgado (1), ex-alf mil Alferes miliciano da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que teve como comandante o capitão de cavalaria Mário Tomé, hoje coronel na reforma (2)


Meu Caro Luís Graça,
Camarada e Tertuliano:

Não é demasiado: os nossos contributos - de todos os tertulianos, com muitos e diferentes pontos de vista - não existiriam, não cresceriam, não ganhariam voz e dimensão, não fora o teu trabalho, a tua paciência, a tua sagacidade, o teu sentido de independência face às saborosas e dignas diferenças de ideias sobre a guerra (ultimamente tem sido produzida matéria de discussão, onde eu pretendo dar a minha achega, como já fiz anteriormente, pelo menos uma vez).

Quero - uma vez mais (põe isto blogue, por favor) - dar-te um abraço de muita consideração.

Comecei assim este meu contributo - que, julgo ter esse direito, deverá a continuar-se a chamar bombolom - para, uma vez mais, e da minha parte dar destaque a aspectos que, tendo muito que ver connosco (ex-militares na Guiné), se afastam, a maior parte das vezes, do que foi a guerra, como a vivemos, como a julgámos e julgamos, hoje.

O meu contributo de hoje é trazer uma história contada pelo historiador e cientista (por que não?!) Manuel Belchior, que escreveu várias obras sobre África e, em especial, sobre a Província da Guiné (era assim, lembrais-vos todos).

A sentença da lebre ajuda-nos a compreender, através da intervenção de animais e humanos (em comunhão de linguagem e de partilha de dúvidas) como os homens se comportam, como existem, em toda a parte, em qualquer latitude ou longitude, os ladinos, os malteses, os indiferentes, os acomodados, os sacrificados.

Sendo possível publicá-la, seria interessante, pois serviria para nós meditarmos um pouco sobre a natureza humana, e, em especial, relembrarmos como é grande a alma dos guineenses, ou dos alentejanos, ou dos transmontanos (que sei eu?) na sua sabedoria popular.


Paulo Salgado

PS - Voltaremos a contos e estórias (de guerra, serão algumas)

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A sentença da Lebre

In: Contos Mandingas, de Manuel Belchior (1971) (3)
(com a devida vénia, ao autor e à editora).


Certo crocodilo abandonou as margens do rio em que habitava e resolveu partir em guerra contra os animais da floresta. Porém, bem depressa viu quão infeliz havia sido a sua decisão e quão pouco preparado estava para viver e lutar num meio que não era o seu, pois somente por milagre escapou de ser reduzido a cinzas por uma grande queimada e, ainda meio tonto e chamuscado, estava a ser atacado por um bando de jagudis (*) que não lhe poupavam as sua valentes bicadas, quando foi salvo por um moço pastor ao qual angustiosamente pediu:
- Por quem és, tira-me deste lugar onde a morte me espreita e leva-me para o rio de onde nunca devia ter saído. Anda, faz-me esse favor, que te serei eternamente grato.
- De boa vontade o faria – disse-lhe o moço – se isso não fosse tão perigoso para mim. Agora que te vês em perigo, pedes com muito bom modo e tudo prometes; mas que sucederá, quando chegados ao rio, eu te soltar, ficando, assim, completamente, à tua mercê?

O grande lagarto lamuriou, afirmando que isso que isso era impossível, que não tinha tanta maldade e ingratidão, e de tal maneira o medo da morte o tornou eloquente e o fez parecer sincero, que o rapaz, comovido, se deixou convencer. Por sugestão do próprio crocodilo, o pastor amarrou-lhe as mandíbulas com uma corda feita de casca de árvore, e ligando-lhe solidamente o corpo a uns paus, pô-lo à cabeça e assim o transportou.

Quando atingiram as margens do rio e o rapaz se preparava para o depositar no solo, o crocodilo pediu-lhe que entrasse na água porque o seu estado de fraqueza era tal, que não poderia, por si só, transportar-se até lá. O moço concordou e, ao dar-lhe a água pelos joelhos, quis parar, e novamente o crocodilo lhe pediu que fosse um pouco mais longe até a água dar-lhe pelas coxas e também mais uma vez o pastor lhe fez a vontade.

Quando, por fim foi descarregado e se viu completamente solto, com as mandíbulas desamarradas e a meio do rio onde as vantagens eram todas suas, o jacaré agradeceu efusivamente ao rapaz o enorme favor que lhe prestara; mas disse-lhe que, apesar de tudo quanto lhe havia prometido, ia comê-lo porque devorar as pessoas e animais que estavam ao seu alcance era uma lei natural a que não podia faltar sem incorrer no desagrado dos seus antepassados que nunca tinham feito outra coisa. Decerto dissera que pouparia o seu salvador – mas que promessas não se fazem quando se está à beira da morte?

Bem argumentou o pobre pastor, falando de injustiça, mas o crocodilo não saía da sua e, certo que todos compreenderiam que o levava a obedecer a uma lei fatal que não lhe deixava margens para sentimentalismos, aceitou a proposta do rapaz para que fossem ouvidos os três primeiros seres que chegassem ao rio.
- Se todos forem da tua opinião – dizia o pastor – então terei de confessar que fui um parvo e a culpa de ser comido é inteiramente minha.

O primeiro animal que veio beber água ao rio foi um cavalo. Ouviu atentamente o que lhe disseram as duas partes em litígio, e por fim, sentenciou:
- O rapaz não tem razão; não há promessa que valha quando ela vem contra um costume que sempre existiu e há-de existir. É da natureza do crocodilo comer os animais que puder. E dito isto, foi muito tranquilamente pastar.

A seguir apareceu uma velha que, depois de informada do que se passara, disse:
- Como ousas tu, rapaz, falar de injustiça e de ingratidão? Pois não é verdade que todos os homens são uns ingratos? Olha para mim e vê como estou mal vestida e maltratada. No entanto, já fui nova e bonita e o meu marido prometeu que gostaria sempre de mim. Mas agora, que tomou novas mulheres, não me liga a menor importância (**). Se tu chegares a casar, serás como ele. Portanto, como os homens não dão mais valor às promessas que fazem do que o crocodilo à sua, a minha opinião é que deves ser comido.

Finalmente surgiu a lebre. O rapaz, amargurado pelos pareceres anteriores, quando acabou de expor a questão, disse:
- Tu és o último dos três seres que consultámos e também a minha última esperança. Os outros dois deram razão ao crocodilo e disseram que aquilo que eu penso ser uma ingratidão é coisa perfeitamente natural. Diz-nos a tua opinião.

A lebre ouviu muito bem aquilo que ambos disseram, mas afirmou que nada entendera porque o seu ouvido já não era bom dada a sua avançada idade. Deste modo, se quisessem que ela pudessem julgar com segurança, tornava-se necessário virem até à margem. Assim fizeram, e a lebre, depois de ouvir novamente a exposição do caso, e antes de entrar no fundo da questão, recusou-se a acreditar que o rapaz tivesse podido transportar um crocodilo tão grande como aquele desde a floresta até ao rio. A menos que visse com os seus próprios olhos como o caso tinha sido possível, ela pensaria que estavam a rir-se de si. Se é facto que dava maçada fazerem novamente a caminhada até à floresta, ela contentava-se ver como o moço pudera pôr o crocodilo à cabeça sem que ele escorregasse.

Então, tanto o jacaré como o rapaz se prestaram a uma pequena demonstração em que o primeiro foi novamente amarrado e posto nas melhores condições de ser transportado.
Quando viu o anfíbio bem ligado e à cabeça do moço pastor, a lebre perguntou a este:
- Há algum tabu a respeito da carne de crocodilo? (***) Vocês gostam dela e costumam comê-la?
- Não existe nenhum tabu a tal respeito e todos nós gostamos dela.
- Então estou a ver que também para ti é uma lei natural comer o jacaré. Desobedeceste a ela por bondade quando na floresta o tiveste à tua mercê, e ainda por cima o salvaste. Se agora que ouviste as razões desse velhaco, que aumenta a sua ingratidão fazendo-a passar por coisa natural, ainda o poupares, deixarás de ser bom para seres simplesmente um imbecil. Já que ele voltoua estar em teu poder, leva-o para casa e come-o.

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(*) Ave de rapina muito conhecida em toda a Guiné, aparecendo nas povoações onde é poupada e até protegida porque faz desaparecer a carne dos animais em decomposição – aqui para nós, Lucinda: vi com os meus olhos, os jagudis comerem as placentas lançadas ao terreiro descampado do Hospital de Bissau!!! – não se admire.

(**) A mulher deste conto apresenta aqui uma queixa muito vulgar entre as esposas dos polígamos (os muçulmanos, os animistas, são polígamos.

(***) Alguns clãs não podem, por motivos religiosos, matar nem comer, o jacaré. Daí esta pergunta da lebre.

NOTA: A lebre representa, em muitas partes da África ocidental, a esperteza, a inteligência, a malícia salomónica, de resolver os assuntos.


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Notas de L.G.:


(1) Vd. último post do Paulo Salgado: 11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1421: Crónicas de Bissau (o 'bombolom' do Paulo Salgado) (14): Um final com homenagem a um homem grande, Fernando Sani

(2) Sobre o Mário Tomé, vd. o seguinte post:


UDP > Textos > Guerra Colonial > Trocando Umas Ideias Sobre a Guerra Colonial, Mário Tomé, 29 de Setembro de 2003 (artigo publicado em Público de 29 de Setembro de 2003)



(...) "Grosso modo, Portugal, com 10 milhões de habitantes, fez um esforço de guerra em África cerca de nove vezes superior ao dos EUA, no Vietname, com os seus 250 milhões de habitantes. Portugal mobilizou para a guerra colonial mais de 800 mil jovens, teve 8 mil mortos, 112.205 feridos e doentes, 4 mil deficientes físicos e estima-se que cerca de 100 mil doentes de stress de guerra. 40% do OE destinava-se á Defesa. A isto há que acrescentar a sangria de milhão e meio de emigrantes entre 60 e 74.


"A Guiné estava perdida, reconhece o nosso historiador, ao considerá-la um mini-Vietname" (...)

(3) Manuel Belchior: Contos mandingas. Porto : Portucalense Editora. 1971. 336 pp. Vd. sítio Memórias de África. (Colecção Ultramar).

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1421: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (14): Um final com homenagem a um homem grande, Fernando Sani

Guiné-Bissau > Bissau > Hospital Nacional Simão Mendes > 2006 > O Fernando Sani é o que está de pé, ao centro, junto da restante equipa de apoio à cólera. A cólera, felizmente foi extinta, pouco tempo depois.

Foto e texto: © Paulo Salgado (2007). Direitos reservados

Caro Luís,

Soubera eu que tinhas estado aqui, na minitertúlia (1), e teria aparecido, com todo o prazer.

Como sabes, a minha relação com o Povo da Guiné é de grande simpatia e carinho.

O que se segue - já nem sei se escrevi algo sobre isto anteriormente - já foi produzido na Gestão Hospitalar [, revista da Associação Portuguesesa dos Adminisytradoires Hospitalares]. Dei-lhe um retoque e eu penso que não vai mal ao mundo se for reproduzida aqui para os queridos tertulianos saberem que há alguns camaradas que andaram pela Guiné depois da guerra e que os Homens se entendem quando querem...

Fazes o arranjo como quiseres e se quiseres.

Um abraço de estima,

Paulo Salgado

Comentário de L.G.: Paulo Salgado é administrador hospitalar no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. Acaba de regressar de um mais um ano de cooperação na Guiné-Bissau, onde esteve à frente do Hospital Nacional Simão Mendes. Com esta crónica, e com o regresso do Paulo (e da Conceição) a casa, podemos dar por finda a crónica que ele alimentou ao longo de mais de um ano (2). E acaba bem: é o testemunho de um homem da saúde e um cidadão do mundo, o Paulo Salgado, de grande sensibilidade e generosidade, a outro homem, grande, o Fernando Sani, que trabalhou com ele no Hospital Nacional Simão Mendes e que a morte já levou. Claro que o Paulo e o seu 'bombolom' não vão ficar mudos... Um retemperador regresso a casa, à pátria, aos nossos hospitais, é o que lhe desejo (com um beijinho para a São). E, à volta, cá o(s) espero.
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Camaradas Tertulianos:

Desejo transmitir-vos um dos factos que vivi nesta minha comissão de 12 meses (tudo somado são cerca de seis anos na Guiné que me dão força para poder dizer: quando querem, os Homens entendem-se…). Isto para vos significar o apreço e carinho que tenho pelo POVO da Guiné-Bissau. Hoje e antanho.

Fernando Sani – homenagem a um Guineense

Conheci o Sr. Fernando Sani há cerca de quatro anos, nas minhas actividades no Hospital Nacional Simão Mendes. Não são muitos anos se considerarmos que os homens vivem muitos mais; todavia, foram os suficientes para construirmos uma sã convivência, e para eu me aperceber que estava lidando com um homem superior.

Durante estes anos, tive oportunidade de colher dele: a humildade intelectual – ele que fora um homem viajado e culto; a solidariedade – ele que partilhava o magro salário que auferia com muitos familiares e amigos; a bondade – que irradiava através dos actos praticados junto dos que ainda eram mais carenciados; a educação fina – que dele brotava em gestos de simpatia de homem habituado a falar nhô ou nhá quando tratava com alguém, homem ou mulher, que lhe merecia respeito segundo as tradições da Guiné-Bissau, que ele prezava. Um Homi Garandi.

Muitas vezes conversámos de diversos assuntos, e havia sempre alguma novidade que me surpreendia agradavelmente.

Numa das conversas, falou-me dos tugas e daquilo que com eles aprendeu quando jovem: fora apadrinhado por um médico que fizera a sua vida profissional clínica no Hospital Militar e no Hospital Civil, e dele recebeu incentivos na sua via escolar, em Bissau, já no tempo da guerra.

Compreendeu, todavia que o rumo da sua Terra era outro e foi bolseiro no Leste onde adquiriu bagagem múltipla que não desejo referir, por honra da sua memória.

Assumindo a chefia do sector de saneamento do HNSM, detinha conhecimentos que o colocavam no lugar cimeiro da profissão: dominava os conceitos de higiene e limpeza que deveriam ser praticados; sabia dirigir os funcionários que lhe estavam adstritos com palavras amigas e não com modos agrestes; era capaz de dar o exemplo carregando às costas – admito que já cansadas pelo sofrimento – o pulverizador e, protegido e sabedor das regras de utilização, e com os instrumentos adequados, desinfectar as salas, as enfermarias, para, de seguida, com muito profissionalismo, limpar os materiais e guardá-los de novo.

Foi no período da cólera que ocorreu entre Julho de 2005 e Fevereiro de 2006, durante meses, que este homem se revelou ainda mais aos meus olhos: incansável, encaminhava os doentes para a enfermaria, de noite e de dia, entregando-os ao pessoal de enfermagem; solícito e zeloso, ia buscar os soros e outros produtos de hidratação oral para aplicação e tratamento dos doentes; imperturbável face ao cheiro nauseabundo provocado pelas diarreias, caminhava pela enfermaria, protegido, para acudir a um ou outro doente; atento às informações e ensinamentos que a equipa de Médicos Sem Fronteiras lhe indicavam, e que nele viam um Profissional conhecedor e interveniente.

Neste período da cólera, outras mulheres e homens estiveram na frente da luta contra o perigo escondido, mas ali bem visível no sofrimento de crianças, velhos e adultos. Para esses homens e mulheres que permaneceram ao lado dos doentes, também a minha amizade.
O Sr. Sani veio, um dia, dizer-me:
- Amigo, estou muito cansado. - E eu li-lhe no rosto esse cansaço.

Com outros amigos, o visitei ao longo das semanas que sobreviveu. Mas sempre um leve sorriso lhe esmorecia a face magra à medida que a doença o fustigava. Da última vez, apenas balbuciou o meu nome.

Cá fora, eu chorei. Chorei pelo Homi Garandi. Pelo Amigo.

Que os Deuses, o teu e o meu, Querido Amigo, te coloquem no lugar mais bonito que existe nos céus, pois tu, Fernando Sani, mereces como poucos.

No seu funeral, os seus Familiares, muçulmanos piedosos, chamaram-me para acompanhar o corpo até ao repouso final.

Obrigado, meu Amigo, por aquilo que me ensinaste, nesta Terra que não é minha, mas que aprendi a amar através das crianças, dos homens e mulheres que sempre têm um sorriso de esperança.

Paulo Salgado
Abril de 2006

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 9 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1412: A minitertúlia de Matosinhos e... Leça da Palmeira (Carlos Vinhal / Xico Allen)

(2) . posts anteriores:

5 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXX: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (1)

(...) "Vou tentar relatar (narrar, contar, ficcionar quanto baste) as minhas vivências nesta terceira (ou quarta?) comissão / presença demorada... (Agora estamos numa Missão que é um termo muito divulgado por quem passa aqui curtas ou mais longas estadias em nome de alguém a fazer qualquer coisa – confesso-vos que tenho visto muita coisa mal feitinha)"(...).


13 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXL: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (2)

19 de utubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLVII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (3)


(...) "Hoje, sábado, fomos até ao Saltinho, com os cooperantes da Saúde que chegaram ontem no avião (já agora: a Dra. Adelaide, ginecologista; o Dr. Justiça, hematologista e que também fez a guerra em Angola) e ainda o João Faria, engenheiro hospitalar (que já cá está há oito dias… Manga di tempu! , que esteve em Angola, e que se está a aguentar com brio e companheirismo nas lides do Hospital Civil... Todos eles emprestaram à viagem de 350 km um sabor especial)" (...).

5 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXI: Crónicas de Bissau ou o 'bombolom' do Paulo Salgado (4)

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (5): para onde ?

3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXIII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (6): HN Simão Mendes

5 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXVIII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' de Paulo Salgado) (7): Suleiman Seidi

30 de Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CDIII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (8): novos tertulianos

18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (9): História e estórias


30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXV: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (10): ontem e hoje em Uaque

1 de Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 -CDXC: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado)(11): Beethoven e batuque no Olossato

2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato

13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1069: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (13): Para quando África ?

(...) "Quem está aqui em trabalho intenso, meses a fio, deixa coisas para contar num amanhã, escrevinha outras para uma memória que há-de ser escrita, agora e sempre falando da Guiné sob outros ângulos e com outras visões e tu perguntarás e os camaradas perguntarão:- Por que razão não bombolaste?

(...) Lá no Hospital há traumatizados há meses à espera de intervenção. Era isto que eu ia contar? Mas hoje apeteceu-me. 10 de Setembro de 2006. (Ouvi passar uma ambulância uivando - o que irá fazer ao Hospital com o doente?)" (...).

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1069: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (13): Para quando África ?

Guiné > Região Autónoma de Bissau > Setembro de 2006 > Uma bolanha cultivada com arroz

Foto: © Paulo Salgado (2006)

Guiné- Bissau > Bissau > Setembro de 2006 > Hospital Nacional Simões Mendes : serviço de urgência
Foto: © Paulo Salgado (2006)
Texto de Paulo Salgado (ex-Alf Mil Cav, CCAV 2712, Olossato e Nhacra, 1970/72; administrador hospitalar, actualmente cooperante em Bissau)
Meu Caro Luís Graça, Amigos (Camarigos):


Insatisfação ou discordância com a Tertúlia? Muitas vezes terá acontecido de tudo um pouco - não nego. Produziu-se tanto trabalho com nível que não me deixou indiferente e muito menos insatisfeito. Discordante, muitas vezes, e disso dei conta há meses atrás...

Quem está aqui em trabalho intenso, meses a fio, deixa coisas para contar num amanhã, escrevinha outras para uma memória que há-de ser escrita, agora e sempre falando da Guiné sob outros ângulos e com outras visões e tu perguntarás e os camaradas perguntarão:
- Por que razão não bombolaste? (1)

E eu:
- Consolei-me com as discussões à volta dos temas mais preferidos dos camaradas tertulianos:a guerra - certamente aquilo que mais sentem hoje, e ainda, na carne e na alma (2)...

Li as prosas do Marques Lopes, as críticas do Didinho (outsider muito crítico). Maravilhei-me com as palavras saborosas e sentidas do Beja Santos (que revi, em Bissau, aqui em 1991), andava ele preocupado com a limpeza e higiene dos alimentos .

Um dia entrou-me no gabinete:
- Você é que é o Paulo Salgado?

E depois fomos visitar o Coronel Jaquité... Lembras-te, Beja Santos, e do pôr-do-sol no Cumeré, depois da visitação e reencontro com esse inimigo amigo?

Pois é:
Já correm de novo as águas violentas no Saltinho;
Já ardeu a casa do Pansau em Uaque (ele, coitado, fugiu para Cabo Verde à procura de melhores dias - oxalá que não se tenha metido nos barcos para as Canárias...) (3);
Já andam a transplantar o arroz de novo;
Os putos brincam com carrinhos de papelão nos regatos das chuvas
e as bajudas lavam os corpos debaixo da chuva abençoada;
e o povo sempre com esperança...

As ONG proliferam (algumas têm valor, claro, outras, nem tanto...valha-me Deus, um qualquer)
e o Banco Mundial aperta. É a roda que roda...

Trabalho?
Sim, imenso.
Naquele perímetro hospitalar, nada de novo, infelizmente para mim, infelizmente - sobretudo - para os doentes;
E a cooperação é feita aos repelões...
Desculpa não falar da guerra,
das emboscadas que nos fizeram,
do Sebastião que morreu sem saber que estava numa guerra...
Do Horácio: - Meu alferes, eu tenho que apanhar uma hepatite para ser evacuado...
Desculpa, Luís.
Mas sabes:
Este ano ainda não chegou a cólera;
Valha-me Deus, é melhor nem pensar, pois aquele hospital está tão carenciado...

Já temos o que chegue e o que não chega:
- Olha, olhai: uma vez fizemos um golpe de mão e fomos deslocados para o objectivo em heli.
Sabes o que vimos? Tabancas ardidas pelos Fiats (não era assim que se chamavam os caças?) Velhas e velhos esbaforidos. E putos assustados. E encontrámos papéis espalhados no caminho: Soldados, desertai, esta guerra não serve ninguém... Bom, não me lembro se eram estas as palavras, mas os panfletos continuam numa gaveta em casa.

As cartas de amor/carinho/paixão/ - miudinhas, às vezes com minudências nuas cruas suaves - mas tão curiosas - do Lobo Antunes (4)- deixaram-me a pensar e a reflectir na grandeza e na pequenez que nós somos (quando a minha mulher mas lê ao fim destas tardes chuvosas de Agosto e Setembro - eu tinha-as trazido porque era do LA que se tratava).

- Ainda bem, dirás tu, com a tua benevolência. Ainda bem que somos grandes e pequeninos.

Esteve cá um parasitologista do INSA - Porto (5). Ficou admirado. Cientificamente, claro. O caso não era para menos:
- Há tantos parasitas.
E eu disse-lhe:
- Venha passar aqui uns mesitos e vai ver as troponossomíases, as bilharzioses, as filiarises (não sei se se escrevem assim estas doenças) e outras...

Sabes, Luís, anda aqui tanta gente: franceses, suecos, espanhóis, americanos, senegaleses, que sei eu? Até aconteceu a reunião da CPLP. E eu sem dar notícias...O bombolom não ecoou...

Lá no Hospital há traumatizados há meses à espera de intervenção. Era isto que eu ia contar?
Mas hoje apeteceu-me. 10 de Setembro de 2006. (Ouvi passar uma ambulância uivando - o que irá fazer ao Hospital com o doente?).

Se calhar foi porque me chegou às mãos Para Quando África, entrevista de René Holenstein a Joseph Ki-Zerbo, edição do Campo das Letras (Porto, 2006, c. € 14). Polémico, é certamente. Mas muito profundo.

Mantenhas pa tudus
Paulo Salgado
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Notas de L.G.:

(1) Vd. o último 'bombolom' do Paulo Salgado, com data de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato
(2) Julgo que o último post assinado pelo Paulo Salgado foi de 3 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: Do Porto a Bissau (13): Notícias do Paulo Salgado
(3) Vd. post de 30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXV: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (10): ontem e hoje em Uaque
(...) Hoje, ao fim de tarde, no troço desta picada faz-se tarde e todos sabem que a noite está aí, negra: o rapazio, ao som dos últimos assobios em toscos mas belos instrumentos de lama fabricados, empurra as vacas para o redil junto das tabancas, as mulheres recolhem as crianças e as galinhas, o Pansau acaba de entaipar as entradas da casa que planificou e construiu (tenho o filme de meses de trabalho) para evitar a devassa enquanto não tiver o telhado feito de cibes, e o capim respectivo, uma mulher puxa o último balde do fundo do poço para prevenir uma noite longa, o Martinho já passou por mim há uns minutos com meia dúzia de peixes que apanhou na armadilha de um riacho que enche na maré cheia, uma mulher nova com os filhos às costas troca um chau comigo e logo dois meninos: chau" (...).
(4) Referência ao último livro de António Lobo Antunes > D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da guerra. Organização e prefácio Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2005.
(5) Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge

quinta-feira, 2 de março de 2006

Guiné 63/74 - P584: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato

Guiné-Bissau > Maqué > 2006 > " O mais belo poilão que conheço da Guiné" (Paulo Salgado) .
© Paulo & Conceição Salgado (2006)


Texto do Paulo Salgado:

O regresso de um homem bom!

Quero falar-vos do Moura Marques – camarada de luta, companheiro de labutas, amigo de confidências. Nos idos meses de 1970-1972. Foi no Olossato que se forjou uma solidariedade grande, mas já em Santa Margarida se notava ali a bondade e valentia do Moura Marques, para quem não havia heroísmos nem cobardias, para quem mais valia a verdade do que o servilismo. Se foi louvado, só o poderia ser pela coragem, pelo exemplo, pela calma que dele transparecia, que dele irradiava.

Ontem, dia 26 de Fevereiro de 2006, 35 anos depois de a CCAV 2721 embarcar para Lisboa, fomos ao Olossato: ele, a Maria da Conceição e eu no Prado. Devagar, para bebermos em conjunto as emoções, e rememorar momentos vividos com os outros camaradas.

Saída em direcção a Bula e dali para Bissorã: o largo, as fotos ao que resta de Os Bigodes, as casas coloniais envelhecidas pelo tempo inclemente, a picada, que outrora era picada por causa das minas, e, não sei por que razão, agora estava linda, avermelhada, e, ao lado, as pequenas bolanhas do alto do Maqué, onde está o mais belo poilão que conheço da Guiné, o que resta do aquartelamento da pontão do Maqué, não mais do que algumas paredes onde ainda se descobre uma fresta espreitando para a mata lá atrás (ai quantas sentinelas feitas pelos infernais, pelos vampiros). As fotos da praxe. O marejar de lágrimas do MM.

- Vês, ali, Salgado, tantas horas de trabalho na construção do heliporto, quantas horas perdidas na solidão da mata, quanto de nós ali está ! – dizia ele, emocionado… E a Maria da Conceição tirando as fotos das mais bonitas que já vimos…
Na ligeira subida para o Olossato, alguém grita correndo:
- Bolea, patim bolea!Parámos. Uma mulher vinha correndo:
- Um mindjer prenhadu sta ali na caminhu!

E nós os três preparados para o que desse e viesse que as dores e contracções (percebiam-se) eram repetidas e já nos imaginávamos a fazer de parteiros na beira da estrada…Felizmente a mulher aguentou. E lá foi levada com mil cuidados ao centro de saúde. E nós, como sorrimos de satisfação e de alívio.

Guiné-Bissau > Cumeré > 2006 > Uma viagem de regresso ao passado... © Paulo & Conceição Salgado (2006)

O reencontro com os amigos. Um deles anda se recordava do cabo Moura. E o Moura Marques mais uma vez emocionado:
– Bolas, um homem sofre, com este exorcismo (palavras do MM).

Uma oferta aos amigos. Uma visita à campa muçulmana do Suleiman Seidi. Uma oração em silêncio, um silêncio de saudade, uma saudade enorme – o Suleiman era um irmão. Eu que o diga. O Moura Marques chorou, de pé, honrando a memória de soldado milícia português – um homem chora quando tem que chorar, bolas.
- Olha, ali era o PC, e ali o local dos morteiros; acolá o bar…
-E ali, bem visível a caserna, agora escola de marabu...

O sol já caía a pino. E os amigos, de volta: mantenhas, e o desejo manifesto do grão-de-bico (homem agora com quatro filhos…menino era naquele tempo):
- Cabo Moura leva-me para Lisboa.

Guiné-Bissau >Olossato > 2006 > O grão-de-bico, ontem criança, hoje homem grande, pai de filhos, reencontra o Moura Marques e o Paulo Salgado... © Paulo & Conceição Salgado (2006)

Que carinho e que ternura e que vontade de ter outra vida o desejo destes homens, dos que estiveram connosco dos que combateram do outro lado.
- Salgado, isto é demais!

Lá fomos em direcção ao rio Olossato, sempre bonito e frondosas as margens, lodoso, embora. Mais fotos e sempre as crianças, as belas crianças. Umas bolachas que a Conceição distribuiu fizeram-nas sorrir. Sorrir ainda mais, se é possível.

Guiné-Bissau > Rio Olossato > O Paulo Salgado e o Moura Marques, 35 anos depois...
© Paulo & Conceição Salgado (2006)

Depois a picada para Farim com passagem por Cansambo (só possível agora visitar, pois naquele tempo estava arrasada) e K3; a travessia de canoa a remos para a outra banda: Farim. Tarde quente de calor do sol e de calor humano. Uma cerveja meio quente junto da Fatu Turé e Mustika Turé, encarregadas do bar da festa carnavalística (assim lhe chamou o comandante da canoa! – um neologismo (?!) para o nosso vocabulário.
- Boa tarde! A bos portuguisis? Pai di nôs.
O que responder a tal fé antiga? Sem palavras.
De novo a cambança. No meio do rio, gritou o comandante da canoa vizinha, a motor, sorrindo:
- Li, tene manga di lagartus…

Guiné-Bissau > Rio Farim > 2006 > Cambana do rio..."A bos portuguisis? Pai di nôs".© Paulo & Conceição Salgado (2006)

A corrida para Mansabá, umas fotos do jovem ferreiro e da forja… Depois, Mansoa. Um hospitalzinho novo, da cooperação francesa, e as ruínas do quartel com soldados sentados à sombra dos mangueiros…!

E a seguir, Uaque. O último olhar para uma viagem longa, mas emocionantemente bela, reconfortante. Estava (quase) feita a catarse… O Moura Marques:
- Meu Camaradão, meu amigo.

PS - No dia anterior, estivéramos em Nhacra e no Cumeré… exactamente no dia em que pela última vez o MM almoçara com o seu amigo Fernando (periquito) que viria a morrer em emboscada dois dias depois…

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P473: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (11): Beethoven e batuque no Olossato

Aconteceu: ouvíamos Beethoven - a quinta (por acaso?!); eram cerca das oito da noite. Preparava-me para sair com o meu grupo de combate; ao longe, o batuque de festa: seria casamento, seria chur, seria certamente uma festa. Batuque e Beethoven...Contraste? Só quem não estivesse (e esteja) com atenção às coisas... os homens exprimem as suas emoções de forma semelhante, com intensidade, com carinho, com receio, com esperança!Ali, no Olossato, Beethovem e Batuque. Que emoções!

Agora, em 2006, quase trinta seis anos depois, ouço a moda: Mozart, e, ali ao lado, bem perto, um batuque no bairro de Belém, onde fica a Universidade de Amílcar Cabral (UAC). Podeis acreditar: naquela noite saí para o mato, e naquela noite de breu (nem sei como resistíamos) ribombou o tiroteio...

Hoje estou aqui: ouvindo Mozart, enquanto a Maria da Conceição lê a Mistida, de Abdulai Silá, entusiasmada - e eu metido comigo mesmo a repensar o passado, a ver os meus companheiros (tão jovens!) em fila indiana, cheios de medo como eu... que raio de coisa esta, eu para aqui a falar enquanto o Mozart me traz calma... e eu aqui ao computador escrevinhando que bom seria rever os meus companheiros sãos - eles que acreditavam em mim (acreditariam, verdadeiramente?!).

Que raiva, Mozart! Que tristeza me invade. Leva-me nos braços. Deixa-me esquecer.

Paulo Salgado