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quarta-feira, 12 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24472: Historiografia da presença portuguesa em África (376): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Há momentos nesta viagem presidencial em que se pressente, que mesmo discretamente na retaguarda, é o ministro do Ultramar que regozija com o legado deixado em cerca de 3 anos de governação. Onde quer que chegue a comitiva presidencial, Sarmento Rodrigues é recebido com a maior cordialidade, tanto pelos agentes coloniais, empresários, administrativos, como pelas autoridades gentílicas e o povo que desassombradamente o saúda. O que se passou em Bissau é flagrante, está tudo marcado pela gestão de Sarmento Rodrigues, dos equipamentos de saúde à educação, às infraestruturas desportivas, às melhorias da ponte do cais de Pidjiquiti. A viagem a Bolama de certo modo deixa o jornalista consternado, fala nas populações em delírio, mas não esconde a dor e a melancolia que aquela cidade ao abandono provoca, houve manifesta incapacidade de gerir com equilíbrio a transferência da capital, Sarmento Rodrigues ainda tentou um acordo com os potentados económicos para estes se manterem firmes naquela região agrícola tão exuberante, mas os negócios foram-se transferindo para Bissau, inexoravelmente Bolama caiu no esquecimento, o que assombra quando o seu património era tão interessante.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho.

Já estamos a 5 de maio, Craveiro Lopes começa o dia visitando o Dispensário do Mal de Hansen, percorreu três exposições que o jornalista (presume-se Rodrigues Matias, ele aparece como coordenador dos dois volumes a que aqui se faz referência do diário da viagem) classifica a primeira como consoladora, a segunda como banal (à primeira vista) e a terceira macabra. O ilustre visitante recebe uma lembrança, um bordado com as palavras “Seja bem-vindo”, trabalhado a linhas encarnadas sobre linho branco. Das três mulheres doentes que haviam bordado aquele pano, uma não tinha dedos nem mãos. O jornalista foi ao seu encontro e dá-nos um quadro comovente. Enquanto Craveiro Lopes se mantém no Dispensário, o jornalista visita a Cumura, povoação do posto de Prábis, escolhida em tempos pelo comandante Sarmento Rodrigues para local de isolamento dos leprosos contagiosos. E diz-nos o jornalista que ali vivem, num mundo reduzido em pouco, mais de duas centenas de infelizes de ambos os sexos.

Bor, onde Craveiro Lopes se dirigiu após a visita ao Dispensário, é um desconhecido éden da ilha de Bissau, a 6 km da cidade. Ali foi criado um Reformatório de Menores e Asilo de Infância Desvalida, a cargo das Missões Católicas. A designação foi mudada para Asilo de Infância Desvalida de Bor. O ilustre visitante distribui a cada criança um pacote de rebuçados. Craveiro Lopes foi inesperadamente visitar o posto de Prábis. No caminho passou sob um maravilhoso túnel de cajueiros, e diz-nos o jornalista que se tratava de um pormenor que iria ter ocasião de apreciar largamente pelo interior: milhões de cajueiros plantados ao longo de todas as estradas da Guiné.

Findo o programa da manhã, vamos ao da tarde. Craveiro Lopes comparece ao grande festival militar, escolar e desportivo no Estádio de Bissau. Ao centro do campo de futebol formavam a tropa, a mocidade portuguesa, uma companhia de caçadores indígenas, 60 filiados do Centro de Milícias; atrás deste contingente, estão centenas de alunos das escolas oficiais e missionárias, 200 atletas dos clubes desportivos e uma coluna de tropa de segunda linha. Depois do desfile, realizou-se a final de um torneio de futebol entre o Sport Lisboa e Bissau (o Benfica local) e o Clube Futebol Os Balantas (o Belenenses local), ganhou o primeiro. Seguidamente, foram agraciados clubes desportivos e 17 chefes indígenas do concelho de Bissau. Craveiro Lopes sai do estádio em apoteose.

É nesta circunstância que o jornalista aproveita para descrever o concelho de Bissau lembrando que da sua população de 30 mil habitantes, há 22 mil da etnia Papel e 5 mil da etnia Balanta. A 6 de maio, a ilustre comitiva parte para Bolama no aviso Bartolomeu Dias, sem, porém, o jornalista nos ter descrito ao pormenor a nova ponte do cais do Pidjiquiti. Ele trata Bolama como a capital que foi, a visita presidencial é um tanto apresentada como uma romagem de saudade, um misto de peregrinação e desagravo. Faz-se a história da ocupação da primeira capital da Guiné e subitamente surge-nos uma referência a Silva Gouveia, o homem que criou um potentado económico na Guiné: “Silva Gouveia, que chegara à Guiné tão moço como pobre, dedicava-se à pesca; depois abrira padaria e casa de comidas para as praças da guarnição, na rua Marquês d’Ávila; em seguida, arranjara-se a construir edifícios de pedra e cal e requerera licença para lançar um muro-cais em frente da sua maior instalação. Era o colosso a desferir o voo para o grande triunfo que o esperava.”

Há laivos de melancolia nas descrições que se seguem. Bissau, em crise de crescimento repentino, comprava, para cobrir mais casas, as telhas que os proprietários bolamenses arrancavam das suas moradias abandonadas. Mas o jornalista está ali para pintar a cena em cores triunfais, temos a população em massa a acompanhar a viagem de Craveiro Lopes até aos Paços do Concelho, este o edifício da mais elevada categoria arquitetónica. Seguem-se os discursos do presidente da autarquia e do representante do comércio local – todos sonham com o revigoramento de Bolama. No final da sessão, foi lida a portaria que concede escudo de armas e bandeira própria à cidade de Bolama, Craveiro Lopes entregou nas mãos do presidente de autarquia a bandeira já com brasão, entre os calorosos aplausos de toda a assistência.

Segue-se um curioso desfile regional de gentes congregadas no largo Teixeira Pinto, não vai faltar dança frenética. Depois ficamos a saber que no concelho de Bolama não predominam em número os Bijagós, mas sim os Mancanhas. Por entre os dançarinos, um velho exótico passeava despreocupadamente um crocodilo pela arreata de um cordel de juta, o bicho arrastado pela trela dava sinais evidentes de um aborrecimento quase mortal.

Depois do almoço, um trepidante programa de visitas: ao quarte da Companhia Indígena de Engenhos; ao Hospital Regional de Bolama; à Missão Católica e à Igreja de S. José. E vem um encómio do jornalista: “Deixou esta visita ao sr. general Craveiro Lopes a impressão de que a cidade de Bolama se não resigna à condição de vencida pelo facto de ter deixado de ser a capital.”

Segue-se a visita à propriedade Gã Moriá, da firma Silva Gouveia, Craveiro Lopes é recebido pelo administrador D. Diogo de Melo. A Câmara de Bolama ofereceu um Porto de Honra no salão de festas da sede dos Bombeiros Voluntários, a que estiveram presentes todas as autoridades e “a melhor sociedade de Bolama”. À noite, da varanda do Palácio, Craveiro Lopes assistiu às danças Bijagós. O jornalista esmera-se a descrever tais danças, diz que é quase um teatro, logo na intenção do bailado, o bailarino, ajudado pelo corpo de baile que o acompanha, descreve as fases do seu envolvimento com a mulher pretendida, vê-se que esteve atento e que sentiu a densidade daquele processo cultural e artístico.

A 7 de maio, a ilustre comitiva reembarca de regresso às terras do continente. Antes, o jornalista refere que se avista o plano de água em que desciam as grandes aeronaves das primeiras travessias, pista maravilhosa de 6 km de comprimento e 1,8 de largura, no braço de mar chamado Gã Pessoa. Fala-se do desastre aéreo que vitimou os aviadores italianos. Estamos agora a caminho de Fulacunda.


Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Retrato oficial de Craveiro Lopes no Museu da Presidência, pintura de Eduardo Malta
Dispensário do Mal de Hansen, Guiné Portuguesa
Imagem de uma reportagem da RTP na Guiné no tempo do governador Peixoto Correia
Paços do Concelho de Bolama, já em adiantado estado de ruína
Igreja de S. José, Bolama
Uma das mais admiráveis fotografias de Bolama, publicada no livro "Bijagós: Património Arquitetónico", pelos arquitectos Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade e o fotógrafo Francisco Nogueira; Edições Tinta-da-China, 2016

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24452: Historiografia da presença portuguesa em África (375): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24452: Historiografia da presença portuguesa em África (375): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Craveiro Lopes foi o primeiro Presidente da República a visitar a Guiné, percorrerá nesse ano e no ano seguinte as parcelas africanas do nosso Império. Estamos no ano em que António Júlio Castro Fernandes, antigo ministro da Economia, administrador do BNU e figura grada do regime produzirá um documento que é uma radiografia do Estado da Guiné, advertindo nas entrelinhas os riscos e ameaças que andam no ar, e que ganharão corpo 3 anos depois, com a independência da Guiné-Conacri. Se me decidi a fazer o relatório desta viagem é porque ele permite ver com nitidez a obra do Comandante Sarmento Rodrigues, a Guiné ainda é um fim do mundo mas ganhou corpo administrativo, assomou uma componente cultural. O jornalista que acompanhou a viagem do General Craveiro Lopes dirá que naquele Porto de Honra oferecido pelas atividades económicas, a mesa primava por cristais e pratas e cravos vermelhos. Enquanto isto é dito, Castro Fernandes no seu documento deixa escrito preto no branco que toda aquela classe de gentes dos negócios primava pela mediocridade, havia que gerar um impulso regenerativo, antes que fosse tarde.

Um abraço do
Mário


O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do Presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Seja como for, quando começar a guerra, a Força Aérea Portuguesa irá investir mundos e fundos para tornar aquele aeroporto digno desse nome.

De Bissalanca até à Sé foi o carro presidencial escoltado por 40 cavaleiros Fulas e Mandingas. Haverá uma cerimónia no Alto do Crim, o presidente da edilidade entrega-lhe a chave da cidade, entre muitas ovações. A comitiva chega à Sé, são todos recebidos pelo Prefeito-Apostólico, D. Martinho da Silva Carvalhosa, haverá Te Deum. Segue-se uma sessão de boas-vindas nos Paços dos Concelho, que culmina com o discurso do Governador Melo e Alvim. Terminada a cerimónia, o Chefe de Estado segue para o Palácio acompanhado por uma multidão. Ali há um jantar oficial e depois vão para a varanda ver estralejar foguetes, vão aparecendo pela Praça do Império cavaleiros, gente curiosa.

Estamos já a 3 de maio, Craveiro Lopes vai prestar homenagem a Nuno Tristão, uma escultura de bronze da autoria de António Duarte, vai descerrar uma placa de bronze, é a primeira de uma longa série, discursa, fala da História da Guiné, da sua descoberta, muitas palmas. E daqui segue para a fortaleza de S. José de Bissau, no tempo do Governador Sarmento Rodrigues houve aqui muitas obras, reconstruiu-se o baluarte de Puana, repararam-se as muralhas e os parapeitos. Faz uma visita ciceronada pelo Comandante-Militar, Coronel Neves e Castro. Descerra-se nova lápide comemorativa. Na parada, ergue-se o monumento aos Heróis da Ocupação, realizado sobre projeto do topógrafo Raúl Lomelino. E a ilustre comitiva parte para nova inauguração, a nova Escola Paroquial das Missões Católicas D. Berta Craveiro Lopes, esta descerra uma placa de mármore e procede-se a uma visita às quatro salas de aula da escola, prontas para acolherem 400 alunos.

No cumprimento das suas obrigações, Craveiro Lopes regressa ao Palácio para receber o Governador da Gâmbia. O jornalista aproveita para dizer que o Alto-Comissário da África Ocidental Francesa fora recebido na véspera, no aeroporto, tal como o enviado especial do Presidente da República do Líbano (a colónia libanesa tem peso económico e financeiro na Guiné). Ao princípio da tarde realiza-se a visita ao Hospital Central de Bissau, a comitiva oficial é recebida pelo Diretor, Dr. Rui Roncon. É aqui que o jornalista não se contém nos epitalâmios e no endeusamento presidencial: “A alegria de ver o Presidente morfiniza a tortura dos achaques”.

À noite, nos jardins do Palácio, Melo e Alvim ofereceu um “Pôr-do-Sol”, que reuniu “a melhor sociedade da província” e a totalidade das individualidades nacionais e estrangeiras presentes da capital.
“Deram a nota elegante da festa as senhoras da sociedade local, que capricharam em apresentar-se com modelos do melhor corte, alguns diretamente recebidos dos costureiros parisienses.”

Estamos chegados a 4 de maio, Craveiro Lopes vai inaugurar a estátua de Teixeira Pinto, no Alto do Crim, obra do escultor Euclides Vaz, que representou o pacificador da Guiné fardado, segurando a pistola na mão direita caída ao longo do corpo. Há discurso do Comandante Militar e Craveiro Lopes descerra lápide. E partem todos para o Bloco Industrial da Sociedade Comercial Ultramarina, Craveiro Lopes é recebido pelo principal dirigente da empresa, António Júlio de Castro Fernandes, antigo ministro, figura política grada do regime, Administrador do BNU (nesse ano, produzirá um documento de indiscutível importância cujas páginas essenciais estão transcritas no meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba: O BNU da Guiné"). Segue-se visita à fábrica de descasque de arroz, outra de óleos vegetais, segue a itinerância pela central elétrica privativa e por uma fábrica de sabões. Não há detença, daqui ruma-se para a Escola Primária Dr. Oliveira Salazar. Mais uma lápide descerrada. A seguir, teve lugar a inauguração do Lar Santa Isabel, destinado aos sem lar.

Estamos já na parte da tarde, realiza-se uma sessão cultural no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. O Comandante Teixeira da Mota irá proferir uma conferência de dezenas de páginas, elenca a obra feita por esta entidade, refere os trabalhos de Fausto Duarte e Alexandre Barbosa, entre outros. Não deixa de relevar a colaboração da Missão Geoidrográfica da Guiné. No final, foi oferecia a Craveiro Lopes uma medalha artística de bronze da autoria de Anjos Teixeira, mandada fazer exclusivamente para comemorar esta visita. O Presidente visita o “incipiente” Museu da Guiné. Continua a não fazer pausas, as atividades económicas da Guiné oferecem ao Presidente e comitiva um Porto de Honra e o jornalista refere a atmosfera aprimorada da mesa, “semeada de cristais, pratas e cravos vermelhos”.

Já estamos a 5 de maio, Craveiro Lopes começa o dia visitando o “Dispensário do Mal de Hansen”. Está à sua espera o Dr. Rui Roncon e o médico leprólogo Mário Veiga. Será um dia muito movimentado, como iremos ver.

General Craveiro Lopes e a Sr.ª D. Berta, 1952
Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Ponte Craveiro Lopes sobre o Corubal
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24436: Historiografia da presença portuguesa em África (374): Antes da literatura da guerra da Guiné, o quê? (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24421: Historiografia da presença portuguesa em África (373): O problema dos transportes na Guiné, um olhar e sugestões de um engenheiro de pontes, princípio da década de 1950 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Nada me fora dado ler nesta visão de articular transportes rodoviários com marítimos, o engenheiro Barahona de Lemos trabalhou na Guiné e a mim deixou-me uma recordação do seu trabalho, as pontes que ligam Bambadinca a Amedalai, que aqui se mostram. Quando o PAIGC flagelou Bambadinca em 28 de maio de 1969, tentou dinamitar um dos pontões, abriu brecha mas continuou ao serviço. Bem me surpreendeu a imagem de Bissalanca no início da década de 1950, neste tempo a TAP ainda não chegava a Bissau, a viagem para o interior da Guiné exigia ir a Paris e daqui apanhar avião para Dacar, e depois de automóvel para o interior da colónia. Foi o trajeto que utilizei no meu romance "Mulher Grande", ela vai casar a Varela exatamente neste tempo e bem se agoniou entre Paris e Dacar. A outra surpresa são as imagens de Bolama anteriores a 1935, nunca tinha visto tais imagens, é para mim gratificante que fiquem no nosso indispensável histórico acervo fotográfico, para uso de quem ama a Guiné, poder olhar para um passado e para um património que ficou derruído.

Um abraço do
Mário



O problema dos transportes na Guiné, um olhar e sugestões de um engenheiro de pontes, princípio da década de 1950

Mário Beja Santos

Consultando a publicação Estudos Coloniais, Revista da Escola Superior Colonial, volume III, 1952, fascículo n.º 3, encontrei um artigo do engenheiro Humberto Luís Barahona de Lemos intitulado "O problema dos transportes na Guiné – Sua importância". Na administração colonial, a década de 1920 corresponde ao período em que houve um intenso debate acerca da questão fundamental de que a ocupação e a exploração de riquezas exigiam infraestruturas rodoviárias e portuárias. Não escapámos à pertinência dessa discussão, embora no caso vertente da Guiné não houve impacto, o orçamento da colónia contemplava expressamente arranjos portuários, na generalidade dos casos de pouca monta e a conservação das estradas de terra batida.

Sarmento Rodrigues é o governador que lança empreendimentos de maior gabarito e o seu continuador, Raimundo Serrão, concluiu diferentes iniciativas e pôs em marcha outras. Encontrei na revista "Ecos da Guiné" imagens como a ponte entre Bambadinca e Xime, que acabou por ter uma importância crucial no decurso da guerra, houve a tentativa de a fazer explodir, em 1968, e então, para sua conservação, criou-se um posto de vigilância que tinha o nome pomposo do destacamento da ponte sobre o rio de Undunduma, o Luís Graça também por lá penou.

O engenheiro Barahona de Lemos andou pela Guiné a fazer o estudo de pontes, agradece o apoio que recebeu do engenheiro Carlos Krus Abecassis, alto funcionário público, espraia-se sobre considerações genéricas, diz que a Guiné portuguesa é do ponto de vista agrícola fértil e rica, fala sobre as suas principais produções, as oleaginosas e entra na questão das comunicações, começa pelos rios navegáveis, observa que há uma navegação a barcos de alto-mar, é o caso do rio Cacheu que é navegável numa extensão aproximável de 160 quilómetros, desde a sua foz até ao porto fluvial de Binta. E adverte-nos que o problema que aqui pretende pôr tem a ver com o estudo do aproveitamento dos transportes fluviais conjugados com uma rede de boas estradas. Fala na existência de 3 mil quilómetros de estradas, quase todas de terra batida, sendo permanente o mau estado dos pavimentos. Considera que a causa mais importante que dificulta a formação de uma mais densa rede de estradas é o facto da Guiné estar retalhada por vias aquáticas que na época das chuvas inunda extensas planícies.

Observando o material flutuante, diz que este, para permitir um bom rendimento, com as consequentes vantagens económicas, exige a utilização de embarcações de calado tão reduzido quanto possível e comenta que as barcas e batelões existentes na Guiné não pertencem a este tipo, são de boca estreita e com grandes exigências de tirante de água. A utilização das jangadas motorizadas ou de ferryboats, estima ele, não só oferece rápida ligação entre as margens como garante as indispensáveis condições de segurança nas travessias. Procura dar-nos um quadro das vias navegáveis principais na Guiné, assim: rio Cacheu, estuário do rio Mansoa, rio Geba, estuário do Rio Grande de Buba ou Bolola, estuário do rio Tombali, estuário do rio Cumbijã, estuário do rio Cacine. Sugere dar-se prioridade às obras no Cacheu, até por motivos de soberania, está-se perto do rio Casamansa e da Senegâmbia francesa. Considera que o volume das dragagens a fazer é até 2 milhões de metros cúbicos e assim, feito este encargo, ficaria o rio Cacheu navegável numa extensão de mais 13 quilómetros.

Falando do estuário do rio Mansoa, parece-lhe de grande interesse a ligação rodoviária de Bissau com o norte da colónia, atravessando o estuário do Mansoa na Ponte de Safim. Quanto ao estuário do Geba, refere que o rio oferece boas condições de navegabilidade entre Bissau e Bambadinca e sugere a retificação do leito do rio entre Bambadinca e Bafatá, observando que o rio Corubal dispõe boas condições de navegação até ao porto de Xitole. Passando para o estuário do Rio Grande de Buba observar que se trata de um grande braço de mar que tem a sua embocadura junto à ilha de Bolama e que tinha sido nas margens deste grande estuário que de início se estabeleceram feitorias e centros comerciais, contudo a região fora abandonada pelas guerras entre etnias e por ser pouco saudável. Passando para o estuário do Cumbijã observa que dos braços do sul da Guiné é o único que tem atualmente importância económica, em virtude de ser a via de acesso ao importante centro arrozeiro de Catió, pois é através deste braço de mar que é transportado o arroz que por via marítima é levado para Bissau e para Bolama, existem, contudo, dificuldades na travessia da barra do estuário, onde afloram recifes perigosos. E escreve: “Quando se fizer o levantamento hidrográfico da barra deste rio, poderão estudar-se as obras a fazer para melhorar o acesso a Catió”.

Escreve seguidamente as vias rodoviárias primárias da Guiné, hei o seu elenco:

- Bissau, Safim, Nhacra, Mansoa, Mansabá, Bafatá, Nova Lamego e Pitche;
- Bissau, Ponta de Safim, João Landim, Bula, Teixeira Pinto, Caió, Cacheu, S. Domingos, Praia Varela;
- S. Domingos, Sedengal, Bigene, Binta, Farim, Mansabá;
- Bula, Bissorã, Mansabá;
- Bissau, Enxudé, Tite, Bolama;
- Bolama, Fulacunda, Bula, Catió;
- Mansoa, Gole, Canturé, Fulacunda (em meu ponto de vista, fora da realidade da época, de Canturé subia-se até Gambiel, daqui até Geba e de Geba até Bafatá).

Vai dando sugestões para a melhoria das estradas, reconhece a necessidade de se vir a utilizar ferryboats ou jangadas metálicas acionadas por motores, para dar continuidade às estradas interrompidas junto dos grandes rios. Refere detalhadamente as melhorias que ele propõe. Logo na estrada entre Bissau e Pitche diz que o Plano de Fomento do Ultramar reserva verba para a ponte que liga as duas margens do Geba, próximo de Bafatá. Observa que a Ponte de Ensalma liga a ilha de Bissau ao continente atravessando o canal do Impernal. Da argumentação usada, fica-se com a quase certeza que Barahona de Lemos projetou a ponte sobre o Geba. Entre Bissau e Varela, a ligação que propõe seria feita pela Ponte de Safim onde a travessia do estuário de Mansoa iria utilizar um ferryboat ligando a João Landim. E daí havia rodoviária que conduziria a Bula, Teixeira Pinto, Caió e Cacheu. Reconhece a necessidade de se fazer a travessia do estuário do rio Cacheu em dois pontos, utilizando jangadas metálicas motorizadas e diz que o percurso referido encurtaria em 70 quilómetros a distância entre Bissau e S. Domingos. Se assim se fizesse, as comunicações de Bissau com a Senegâmbia francesa, por Ziguinchor, ficariam assim gradualmente facilitadas, o que contribuiria para evitar o isolamento e a atrofia económica e social dos territórios a norte do grande estuário do Cacheu. Falando da estrada de S. Domingos, Sedengal, Bigene, Binta, Farim, Mansabá observa que dada a circunstância do Cacheu apresentar no seu leito fundos rochosos, é de pensar na possibilidade de se construir uma ponte na vizinhança de Farim; esta ponte traria a Farim uma possível compensação caso se encarasse a vantagem de se deslocar em definitivo o entreposto marítimo para Binta, e assim seria evitada a realização de trabalhos de correção do Cacheu desde Binta a Farim.

Muito mais escreve neste trabalho, nunca me fora dado ler algo de tão bem articulado sobre a ligação entre os transportes terrestres e marítimos, era uma fase de grande construção, como se disse tudo começara com Sarmento Rodrigues e Raimundo Serrão continuou. Reconheça-se que as propostas de Barahona de Lemos exigiriam um orçamento avultado. Quem leu este trabalho, terá reconhecido o valor e o entusiasmo do autor, mas o decisor político passou adiante.

Estas três imagens foram retiradas da revista Ecos da Guiné, as duas primeiras têm valor sentimental para mim e para o Luís Graça, e seguramente para todos aqueles que faziam o itinerário entre Bambadinca e Xime; quanto à terceira imagem, ela permite avaliar a indigência do campo de aviação em Bissalanca, quem queria chegar à Guiné não aterrava em Bissalanca, o itinerário mais frequentado era ir a Paris e daqui seguir para Dacar, daqui seguia-se de automóvel até Ziguinchor e depois escolhia-se o ponto de chegada. Este era o aeroporto no início da década de 1950.
Quero compartilhar com o leitor a alegria de ter encontrado num documento aparentemente inócuo, datado de 1935, imagens que até hoje não tinha encontrado sobre a capital da Guiné. Espero que estas imagens surpreendam portugueses e guineenses, e fico muito contente porque vejo o nosso histórico arquivo recheado de preciosidades.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24398: Historiografia da presença portuguesa em África (372): Revista de História, n.º 13, Janeiro-Março, Ano IV, 1953 - Um texto fundamental para o estudo da História da Guiné: Fontes quatrocentistas para a geografia e economia do Saara e da Guiné (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 13 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24141: Notas de leitura (1563): Cadernos Militares - Convencer a malta do Exército dos malefícios da descolonização (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Interrogava-me em Mafra que livros os nossos instrutores utilizavam para justificar a legitimidade da guerra para onde íamos e o contexto em que estava a decorrer a descolonização e os múltiplos desastres que acarretara. Dizia-se com a maior das displicências que estávamos em África há cinco séculos e que não vieramos só para fazer negócios, aqui tínhamos arribado como um farol da civilização ocidental, para desenvolver e cristianizar. Mal desembarcados em Bissau, logo se perguntava qual o grau de civilização e cultura aqui aportada, mal líamos umas brochuras e ficava-se a saber que a administração a sério, a tentativa cultural a sério, o plano de infraestruturas gizado para toda a colónia era uma obra recente, encetada pelo Governador Sarmento Rodrigues que pusera a Guiné no mapa, a tal colónia que quase representava um lugar modestíssimo de praças e presídios. Há que reconhecer que os instrutores dos oficiais e sargentos milicianos fizeram um esforço homérico que vamos tentar convencer que não havia para ali qualquer tipo de conversa da treta.

Um abraço do
Mário



Convencer a malta do Exército dos malefícios da descolonização

Mário Beja Santos

O Estado-Maior do Exército deu à estampa durante a guerra colonial um conjunto de Cadernos Militares, seguramente destinados a apoiar a ação dos formadores, com responsabilidades em preparar oficiais e sargentos milicianos para questões prementes envolvendo o campo ideológico. A seu tempo aqui se falou do Caderno Militar consagrado à Guiné, recorda-se que o então Tenente-Coronel Hélio Felgas publicou o livro Guiné 65, vamos ver hoje o Caderno Militar n.º 4 assinado pelo Major de Infantaria Nuno Sebastião B. S. Valdez Tomás dos Santos, publicado em 1969 e intitulado "O Problema da África Atual".

Contextualizando o que aconteceu em África depois da II Guerra Mundial, elenca as mudanças ocorridas em França, na Grã-Bretanha, na Bélgica, Itália e Espanha, potências detentoras, de protetorados, colónias e até de um império, como era o caso da Itália. Escreve o autor: 

“Nessa época, a vida dos povos africanos era tranquila e sem outras preocupações além das de ganhar o seu sustento diário. As potências coloniais asseguravam, gratuitamente, o ensino e a justiça, defendiam os africanos das suas mais terríveis doenças e impediam as guerras tribais. Os povos africanos estavam atrasados em muitas centenas de anos em relação à civilização dos europeus. Mas, de uma maneira geral, o progresso ia-se firmando, pouco a pouco, em todo o continente”.

O autor tenta explicar as dificuldades da colonização africana, logo o clima insalubre, a descoberta dos medicamentos para tratar as principais doenças tropicais é bastante recente, as biliosas e as febres palustres enfraqueciam e envelheciam precocemente os brancos. E o autor, sem pestanejar, faz uma afirmação de arromba: “Tudo o que existe construído em África é obra do homem branco”

Fica-se a pensar o que é que o senhor major sabia das minas de África do Sul e de outras riquezas extraídas exclusivamente por africanos em toda a África Austral. Mas o autor dá outra explicação para os grandes obstáculos da colonização efetiva: 

“O continente africano só aparentemente é rico. Em regra, os solos são pouco profundos e, salvo nas regiões equatoriais, ou nas de montanha, não produzem mais do que capim e árvores de pequeno porte”

Lê-se e não dá para acreditar. O autor faz questão de não ignorar um dos mais graves motivos de atraso, a educação. Mas dá-se outra explicação:

“Em consequência do desfasamento de civilizações, para os africanos menos evoluídos, como é óbvio, é difícil aprender aquilo que não tem caráter prático e aplicação imediata na sua vida. Em contrapartida, são completamente abertos a novos processos de caça, de luta e à melhor maneira de utilização dos recursos da selva. Não são grandes trabalhadores. Mas não é exato dizer que são preguiçosos e mandriões. Em meados deste século, pretos e brancos estavam a trabalhar em perfeita colaboração no aproveitamento de todos os recursos do continente africano. Quando a semente desse trabalho imenso estava a caminho de germinar surgiu a descolonização”.

E trata os ventos de mudança, atribuindo a expressão a um político inglês “de quem já hoje ninguém recorda o nome” (Harold Macmillan, então Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha), fala da origem das independências africanas, sentencia que houve abdicação dos países europeus colonizadores, uns verdadeiros desastrados, e que de um modo geral, as populações dos países independentes, estão dececionadas com o resultado. Falando especificamente da Bélgica: 

“No que era há dez anos a colónia mais rica e mais bem administrada de toda a África hoje, a autoridade do governo só se faz sentir regularmente nas cidades. Fora das aglomerações urbanas reina a lei do mais forte. Latrocínios, pilhagens, assassinatos – são meros acidentes um dia-a-dia de desordem constante”

O senhor Major Nuno Tomás dos Santos devia ser perito em estratégia e influente conhecedor em geopolítica, afirma categoricamente: 

“Grande parte dos novos países africanos não têm população suficiente para constituir uma nação. Um ou dois milhões de habitantes, ignorantes, pobres, vivendo de uma agricultura itinerante, sem nenhuma noção de como se administra e que fins procede um Estado, não são suficientes para formar um País. E como essa escassa população se divide em tribos que falam línguas diferentes, têm costumes muito diversos e, acima de tudo na vida, se odeiam entre si, é evidente que não poderão nunca constituir uma verdadeira nação”.

E o leitor destes Cadernos Militares informa os seus subordinados sobre a instabilidade política, económica e financeira destes Estados, o resultado destas independências estavam à vista: recrudesceram as lutas tribais, agravaram-se as doenças, espalhou-se o espetro da fome. O anexo do documento informa os interessados sobre a atitude dos países limítrofes em relação aos elementos subversivos.

 Veja-se o que o senhor major diz do Senegal e da República da Guiné. No Senegal, o presidente Senghor tem apoiado tanto o PAIGC como a FLING, o auxílio manifesta-se essencialmente na permissão de trânsito de elementos e material do PAIGC; procura-se evitar a permanência demorada de grupos terroristas no seu território, pois Senghor tem tido a preocupação de controlar o armamento do PAIGC em trânsito, mandando escoltar as colunas terroristas do Exército ou da Guarda Republicana, não quer desvios de armamento para a região do Casamansa. Na República da Guiné, Sékou Touré tornou o território um paraíso para os terroristas, cede-lhes bases, campos de treino, meios de transportes. Pelo seu efetivo e organização, crê-se que o PAIGC é presentemente uma força dentro da República da Guiné, com a qual terão de contar os elementos adversos ao regime de Sékou Touré.

E não há mais comentários a fazer. "A Expansão Portuguesa em Culinária", por Fernando Castelo-Branco, edição da Petrogal, 1989, é um belíssimo álbum com instantâneos alusivos ao reflexo dos Descobrimentos e da Expansão na alimentação e na culinária dos portugueses, bem como na dos povos que sofreram influência desse processo histórico. 

O historiador Fernando-Castelo Branco discreteia sobre a influência portuguesa em culinárias ultramarinas e sobre influências ultramarinas na culinária portuguesa. Vamo-nos cingir à Guiné, refere um comentário do sociólogo brasileiro Gilberto Freire que refere a cozinha luso-africana da Guiné. Estranhamente, o autor não nos dá quaisquer informações sobre esta culinária luso-africana. Nada ficamos a saber sobre esta culinária, felizmente que já se fez aqui recensão à gastronomia guineense, ao seu chabéu, à sua galinha à cafreal e à sua canja de ostra, mas apanhamos com uma citação dos Lusíadas:

“Por aqui rodeando a larga parte
De África, que ficava a Oriente:
A província Jalofo, que reparte
Por diversas nações a negra gente;
A mui grande Mandinga, por cuja arte
Logramos o metal rico e luzente,
Que do curvo Gambeia as águas bebe,
As quais o largo Atlântico recebe;

As Dórcadas passámos, povoadas
Das Imãs que outro tempo ali viviam.”


A Guiné dos tempos atuais
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24135: Notas de leitura (1562): "Livro de Vozes e Sombras", de João de Melo; Publicações D. Quixote, 2020 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24075: Notas de leitura (1556): O Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau: Imagens Para Uma História (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Por mão amiga tive acesso a este livro que surgiu no seguimento da exposição "O Museu Etnográfico Nacional: Trinta anos de História", inaugurada no Museu de Bissau em setembro de 2017. Tem imagens esclarecedoras do património que resistiu a várias depredações, espoliações e destruições. Recordo sempre o orgulho que senti no Museu Metropolitano de Nova Iorque quando numa vasta sala dedicada à Arte Africana li uma ficha de um colecionador famoso, da família Rockfeller, dizendo, com sincero entusiasmo, que tinha comprado peças artísticas das etnias Bijagó e Nalu e que as considerava do mais genial que lhe fora dado ver. Portugal possui igualmente um rico património da Arte Guineense, bom seria que se fizesse uma recolha de peças de valor indiscutível, elas estarão sempre associadas à presença portuguesa e à veneração que tal arte nos merece e merecerá.

Um abraço do
Mário



Conhecer o Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Não há ninguém que tenha feito comissão na Guiné que não conheça este edifício, no nosso tempo era Museu da Guiné e o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, reunia uma preciosa coleção de património etnográfico, o impulso inicial coube a Avelino Teixeira da Mota, então colaborador direto de Sarmento Rodrigues, e nas mesmas instalações funcionava o importantíssimo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa responsável pela publicação colonial mais relevante: o Boletim Cultural, ainda hoje incontornável. E havia uma biblioteca, nesse espaço ocorreram conferências que tiveram projeção. Com a independência, extraviou-se muita coisa, nos anos 1980 o museu foi transferido ali para os lados do INEP e em 2017 voltou ao edifício primitivo que já cumprira outras funções, como Ministério dos Negócios Estrangeiros e Direção-Geral da Cultura. Para comemorar o regresso, em 15 de setembro de 2017 foi inaugurada uma exposição intitulada “O Museu Etnográfico Nacional: 30 anos de História”, associaram-se diferentes parceiros, desde o Instituto Camões, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Embaixada de Espanha em Bissau, organismos da Universidade de Oxford e outros. O catálogo foi publicado em 2018 e permite ao leitor ficar com uma ideia do que é hoje o acervo museológico, depois das diferentes provações que terá sofrido, não esquecer que durante a guerra de 1998/1999 perderam-se objetos e muitos documentos, perdas tão irreparáveis que quando o visitei em 2010 e fiz entrega de um presente de todas as cartas da então Província da Guiné, na escala de 1 para 50 mil, o então Presidente do INEP, Dr. Mamadu Jao, agradeceu-me comovidamente, nada existia de tão substancial. Depois da guerra, houve tentativas de reparação, lembro a reconstituição de imensas imagens graças à Fundação Mário Soares, que deu origem à exposição “Raízes”, que então visitei no Bairro da Ajuda e que ainda hoje se pode adquirir na Fundação Mário Soares a preço simbólico. A exposição de 2017 revela o que se tem feito na digitalização de imagens e como se têm procurado superar os danos terríveis da guerra e dos esbulhos.

Este volume, com texto em português e castelhano mostra imagens do passado, havia um catálogo-inventário da secção de etnografia do Museu da Guiné Portuguesa, Teixeira da Mota estimulara muitas doações, fizeram-se estudos, a etnografia da Guiné apareceu em populações de grande difusão, lembro, a título de exemplo, A Arte Popular em Portugal, da Verbo, que teve a responsabilidade de orientação de Fernando Castro Pires de Lima, há muitos elementos etnográficos guineenses em Portugal, basta visitar a Sociedade de Geografia de Lisboa ou acompanhar as atividades do Museu Nacional de Etnologia. Há ainda documentos à venda, alguns deles preciosos, produzidos pela Junta de Investigações do Ultramar. Lembro que António Carreira produziu um belo trabalho sobre panaria cabo-verdiana e guineense e que Rogado Quintino é autor de uma obra etnográfica de valor indiscutível sobre a prática e utensilagem agrícola na Guiné, bem como Fernando Galhano publicou outra obra relevante intitulada Escultura e Objectos Decorados da Guiné Portuguesa no Museu Etnológico.

Este livro que acompanha a exposição de 2017 descreve trabalhos de pesquisa ao longo das últimas décadas e mostra imagens de grande importância sobre a escultura Nalu e Bijagó, como o pássaro Koni Nalu, a máscara Nimba, os espíritos Bijagós, a cabeça de vaca, obras representativas do que há de melhor na escultura guineense. Temos imagens da tecelagem, os famosos panos de pente, onde a etnia Manjaco ocupa um lugar à parte, imagens sobre aldeias, para podermos confrontar o habitat das diferentes etnias, como organizam as cozinhas, as dependências, como se processa a construção das casas, se possuem pinturas murais.

Lê-se nesta obra que os melhores tecelões são Papel e Manjaco, embora as peças comumente consideradas mais genuínas – por respeitarem toda a tecnologia tradicional, sejam da tecelagem Fula. “Os tingidos e sobretudo os panos Manjacos, com fios de várias cores que desenham padrões específicos, são adquiridos e acumulados pelas mulheres, para oferecer em funerais ou em intercâmbios matrimoniais. A produção de algodão, a cardagem e a fiação perderam importância na Guiné-Bissau após a destruição das variedades tradicionais provocada pela tentativa colonial de introduzir a cultura de algodão para exportação, que também falhou depois da independência. Hoje a maioria dos fios usados em tecelagem são importados e de fabrico industrial. O tingimento dos panos continua a ser praticado artesanalmente pelos Saracolé”.

O livro contempla o trabalho em ferro, as artes agrícolas, os instrumentos musicais onde primam os instrumentos de corda como a korá, os de percussão, caso do tambor falante e o xilofone designado por balafon, a cestaria e olaria, onde se distinguem magníficos trabalhos de balaios de palmeira de leque, os jogos de criança, a multiplicidade de manifestações religiosas que vão desde a “forquilha de alma” Manjaco, a edificação de mesquitas, as indumentárias cerimoniais. Em capítulo à parte releva-se a arte Nalu onde os objetos escultóricos aparecem em rituais e danças. Temos igualmente os lugares com paisagem e património, com destaque para a Fortaleza de Cacheu e há numerosos vestígios da presença militar portuguesa, ponho ênfase na lápide onde se escreveu: “A Ti, Deus único e Senhor da Terra, oferecemos estas gotas de suor que nos sobraram da luta pela Tua palavra eterna, soldados da CART 1613”.

Há igualmente uma secção que privilegia a cultura nacional, pois um Museu Nacional de Etnografia tem não só a missão de documentar a diversidade étnica de um país mas também de colaborar na consolidação da identidade nacional, as imagens de dança balética ou carnavalescas são elucidativas de um mundo pós-colonial. O livro encerra com a notícia do seminário de Museologia que se realizou em 1989 e mostra mais de 130 imagens de objetos do atual Museu Etnográfico.

Seria muito bom que um dia se pudesse expor na Guiné o acervo das coleções particulares e de diferentes museus portugueses. Não vi referidos os objetos de couro produzidos pela etnia Mandinga, lembro-me de ter comprado almofadas e vi à venda bainhas para espadas e outros artefactos. E recordo ter ido ao mercado de Bafatá adquirir ourivesaria, não vejo referência destes trabalhos no pós-independência. Deseja-se longa vida a este Museu Etnográfico e a mais intensa cooperação com Portugal, país que detém um património privilegiado.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24064: Notas de leitura (1555): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - II ( e última) Parte - Uma acusação de peso, a de Aristides Pereira: "Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (que não era: nasceu em Bafatá, viveu 10 anos em Cabo Verde, numa vida curta de 49 anos...)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
As atas do Conselho prosseguem dominadas pelas discussão de regulamentos, normas, concessão de créditos, a Província vai se dotando de legislação, bem interessante para quem investiga cotejar estas atas com o Boletim Oficial da Guiné e as leituras possíveis que passavam, por exemplo, pelos jornais e pelo Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Aqui e ali ouve-se a voz do povo, é o caso do padre missionário que vem acusar a autarquia de Bissau de crueza os indígenas que não pagam a tempo e horas, protestando que há dois pesos e duas medidas; ouve-se a queixa de um conceituado comerciante, Mário Lima Wahnon, que manifesta indignação com a concorrência desenfreada no mercado de amendoim, o que leva outro conselheiro a dizer que não há alfaiate ou sapateiro que não cheguem à Guiné e prontamente queiram enriquecer, sabe Deus como. A descolonização já bate à porta, chegámos a 1957 e as perturbações com a União Indiana movimentam manifestações e vozes calorosas a exaltarem o Portugal uno e indivisível.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (7)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Nunca esquecendo que estes volumes depositados na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa têm lacunas, há saltos da cronologia, por exemplo passou-se de 1951 para 1955, dá para ponderar o que distingue uma governação como a de Sarmento Rodrigues e como as dos seus sucessores acabaram por legitimar o espírito de modernização das instituições, consolidando infraestruturas, abrindo estradas, inaugurando pontes e fontanários, cuidando dos equipamentos de saúde, criando o liceu de Bissau, por exemplo. Referimos no último texto que já estamos no mandato de Diogo de Mello e Alvim, iremos verificar grandes ausências do governador por motivos de saúde. Participa no Conselho de Governo um elemento missionário, adiante será mencionado pela importância da sua intervenção. A partir de outubro de 1955 encontramos as atas com bastante regularidade, vejamos sumariamente os assuntos tratados: plano quadrienal de trabalho; crítica por não se incluir no mesmo a construção de silos para a mancarra; há largas referências à necessidade de um grandioso plano de estradas; discute-se a reforma dos serviços de assistência pública, bem como o orçamento geral da província para o ano económico de 1956; concedem-se bolsas de estudos e autorizam-se créditos; é posto à discussão o horário de trabalho dos estabelecimentos comerciais; referencia-se a tuberculose pulmonar como um importante desafio e há consenso para a transformação da missão do sono em missão de combate às endemias; é aprovado uma sobretaxa sobre o preço da gasolina e aprovado o abono sobre as ajudas de custo. Deteta-se que a partir de novembro é contínua a ausência do governador, quem preside ao Conselho é o vice-presidente, o Diretor da Fazenda. É na sessão de 29 de novembro que intervém o padre Cruz Amaral, tinha a ver com uma comunicação que este fizera ao governador, então doente na residência, manifestara discordância de opinião quanto às observações do padre missionário. E abordava publicamente a questão por que se via forçado um esclarecimento.

Assim:
“Há tempos fora abordado por alguns indígenas que lhe disseram ser obrigados pela Câmara Municipal a pagar o chão que ocupam com as suas moradias, vulgarmente de adobes cobertas a colmo. Que o mínimo que lhe cobravam era 200 escudos mensais, afora outros encargos. Fiquei impressionado, solicitei a pessoa da minha confiança para que me obtivesse elementos mais concretos e precisos, pois o assunto interessava sobre maneira ao representante dos interesses dos indígenas no Conselho de Governo. Essa pessoa trouxe-me a mesma notícia devidamente retificada. Os indígenas de Bissau, qualquer que seja o seu grau de assimilação, além de todos os impostos, pagam à Câmara Municipal 100 escudos por cada moradia e se a moradia for alugada passa a pagar 200 escudos; e quando destinada a estabelecimento comercial o imposto camarário pelo terreno que ocupa vai de 400 a 500 escudos.”

E o sacerdote observava a escassez de proventos dos indígenas e a crueza das execuções fiscais, quem não pagava a Câmara arrancava-lhe as portas e delas fazia coleção em monte no recinto do município. E assim verberou:
“Devo dizer a Vossas Excelências tais notícias que me deixaram verdadeiramente atordoado, não se pode ficar impassível perante tal violência. Numa terra como esta em que os CTT não cortam o telefone aos assinantes que estão 2 anos e mais sem pagar; onde a Emissora local sente repugnância em enviar para as execuções fiscais as taxas de recetores atrasadas, nesta terra, vamos descaridosamente arrancar as portas de domicílios que ocupam um chão que antes de ser do município já era dos indígenas. Isto vai contra o que há entre nós de tradicionalmente bom e cristão e compromete bastante os altos princípios de assimilação, de civilização humana que apregoamos”.

As discussões de caráter económico começam a vir à tona, veja-se o exemplo do período antes da ordem do dia aparecer o seguinte alerta vindo de um comerciante, Mário Lima Wahnon: “Avizinha-se o comércio da mancarra. Encerrou-se o comércio nalgumas localidades devido às taxas muito elevadas das licenças de comércio. Mas sei que apesar disso alguns comerciantes servem-se de camiões para comprarem mancarra nas povoações indígenas, com manifesto prejuízo daquelas que se sujeitam a pagar as taxas progressivas e despesas com a manutenção do estabelecimento todo o ano. Esta situação não deve continuar devendo o Governo exercer rigorosa fiscalização sobre este comércio ambulante e clandestino. Também se aproxima a campanha de arroz. Na área de Fulacunda é costume aparecer uma legião de homens e mulheres (chamados cristãos) que conduzem garrafões de água-ardente e tabaco para comprarem arroz de casca e de pilão nas diversas populações indígenas, também com manifesto prejuízo dos comerciantes legalmente estabelecidos. O governo proibiu a comercialização de arroz de pilão, mas a verdade é que o comércio de arroz de pilão continua todo o ano. Começou estes dias a venda de arroz de pilão no porto de Bissau e no mercado”.

Deu-lhe réplica o chefe dos Serviços de Administração Civil, alegando que o problema das limpezas dos produtos é um problema cíclico, observando que o mal tem outra origem, e não se coíbe de dizer qual: “Estamos habituados a ver chegar à província pedreiros, sapateiros, alfaiates, mulheres humildes e homens humildes que nunca tiveram outra profissão se não as que ficam apontadas; no entanto, ou porque o profissão lhes parece deprimente ou porque a sua ânsia é apenas a de enriquecer, 3 dias depois já aparecem licença para estabelecimentos de uma taberna ou de qualquer ramo comercial, intitulando-se comerciante”. Queixa-se que deveria haver regulamentação para instituir a carteira profissional, esta não existe e lembra que se dão fianças aqueles que adquirem camiões que permitem ir às tabancas utilizando meios ilegais e fraudes.

O Conselho continua a ser presidido pelo Diretor da Fazenda, o esforço legislativo prossegue: normas sobre os serviços de administração e funcionamento dos armazéns ou depósitos fiscalizados de regime aduaneiro, revisão do Regulamento dos Serviços das Alfândegas da província da Guiné; normas sobre a entrada, trânsito e saída de peles; regulamento de transportes em automóveis; tabelas de emolumentos a cobrar nos serviços públicos da Guiné. A 25 de abril de 1956 comunica-se a exoneração de Diogo de Mello e Alvim e a nomeação de Álvaro Silva Tavares, este presidirá à 1ª sessão do Conselho em 1 de outubro.

Paira já no ar a chamada questão da Índia e o chefe dos Serviços de Administração Civil apresenta uma moção a propósito de uma manifestação da população de Bissau de solidariedade com o governo central, no sentido de que a nação portuguesa é una, indivisível, e que a província toda está em íntima comunhão com estes princípios. “O Conselho de Governo não pode ficar indiferentes às interpretações que têm havido na ONU, em que o nosso delegado tem procurado mais uma vez demonstrar a inanidade dos conceitos de outros que, evidentemente, ainda não terão a capacidade suficiente para compreender o que seja uma unidade na diversidade”, moção que foi aclamada pelo Conselho com vozes de muito bem e apoiado.

(continua)

Avenida da República, Bissau
Pormenor da Catedral de Bissau
Estatueta Bijagó
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24010: Historiografia da presença portuguesa em África (352): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (6) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23972: Historiografia da presença portuguesa em África (351): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2022:

Caros amigos,
Continuamos em 1949, o comandante Sarmento Rodrigues regressou a Lisboa mas deixou um acervo legislativo que continuou em discussão no Conselho de Governo. Em 3 sessões realizadas em maio deste ano, discutiu-se de novo as condições de acesso aos medicamentos, as responsabilidades das farmácias, a distribuição por grosso dos medicamentos e os requisitos para o exercício da profissão de odontologista. São matérias que alguns poderão considerar dispensáveis para o conhecimento da História da Guiné, mas que, em minha modesta opinião, marcam uma viragem no processo civilizacional, a organização dos Serviços de Saúde à luz dos direitos que todos na Guiné teriam na acessibilidade ao medicamento; e em termos de Saúde Pública discutiam-se igualmente os requisitos dos profissionais de saúde. Entendi que estes elementos eram de extrema importância, é um dos pontos de visibilidade da extensão do que foi a governação de Sarmento Rodrigues na sua conceção de colónia-modelo.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (5)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

O Governador agora chama-se Manuel Maria Sarmento Rodrigues, é Capitão-Tenente e está a imprimir, de forma gradual, uma nova vitalidade orgânica à colónia, um perfil organizacional, uma dinâmica de desenvolvimento, uma reformulação da política de Saúde.

Sarmento Rodrigues deixa a Guiné no início de 1949, mas muita da legislação que ele idealizou prossegue em discussão e é aprovada, continuamos a apreciar diplomas que têm a ver com a área da Saúde, mormente a dispensa de medicamentos, a atividade farmacêutica e, pasme-se, o exercício da profissão de odontologista, o que deu imensa discussão pois já havia protésicos na Guiné, a legislação aprovada não os deitou fora.

Estamos agora em 12 de maio de 1949, o Conselho de Governo reúne presidido pelo Encarregado, Tenente-Coronel Pedro Pinto Cardoso, entra-se na discussão de uma proposta acerca da Inspeção Superior dos Serviços de Saúde. Volta-se a referir que têm direito ao fornecimento de medicamentos gratuitos pelas farmácias e ambulâncias do Estado, além dos indígenas, indigentes, pessoal missionário, assalariados do Estado, praças de pré do Exército e da Armada, internados em estabelecimentos de beneficência e presos e detidos nos presídios e cadeias mencionados no Regulamento dos Serviços de Saúde; de novo se referem os proventos globais do agregado familiar, para saber quem está isento de pagamento ou beneficia de descontos ou terá de pagar pelo preço de fatura; tal como na legislação anteriormente aprovada, menciona-se que todos os servidores do Estado e suas famílias têm direito ao fornecimento gratuito de sais de quinino e medicamentos anti palúdicos quando receitados pelos médicos dos Serviços de Saúde, beneficiando os servidores do Estado do fornecimento gratuito de medicamentos tripanocidas; estabelecem-se os requisitos para o fornecimento de medicamentos pelas farmácias, prevê-se a existência de documentos; aos indígenas não é exigido documento algum para a sua apresentação nas consultas dos estabelecimentos de assistência do Estado, mas o fornecimento de medicamentos é feito mediante receita passada pelo médico de Serviço de Saúde; o receituário a todos aqueles que têm direito a medicamentos gratuitos deve obedecer, quanto possível, ao formulário oficial dos Serviços de Saúde.

Na reunião seguinte, que se realizou em 19 de maio do mesmo ano, presidida pelo mesmo Encarregado de Governo, entrou em discussão o projeto de diploma respeitante ao fornecimento de medicamentos ao Estado, por grosso. No início houve para ali uma grande discussão, o Encarregado de Governo disse que este projeto tinha origem numa exposição apresentada pelo Diretor Técnico da Farmácia Moderna, Dr. Estarrenho Valentim, quem pôs ordem foi o Delegado do Procurador da República que lembrou aos presentes que o que estavam em causa era a importação e o fornecimento de medicamentos ao Estado por grosso. O Chefe dos Serviços de Saúde afirmou que em Angola e Moçambique não só as farmácias e drogarias podiam fornecer medicamentos por grosso mas também os representantes da Metrópole até mesmo firmas estrangeiras, sem farmacêuticos a dirigi-los, e na Guiné era obrigatório um diretor técnico, exigência que se pode considerar um tanto exagerada; a legislação que agora se procurava aprovar sobre o fornecimento de medicamentos por grosso exigiam que na Guiné houvesse um simples procurador, e que os medicamentos especializados ou não, de origem estrangeira, ainda não verificados em qualquer território do Império colonial português, passariam a ser analisados à entrada na colónia no laboratório de análises químicas, bromatológicas e toxicológicas dos Serviços de Saúde.

O Conselho de Governo volta a reunir em 20 de maio, a discussão agora incide sobre o projeto de diploma sobre o exercício da profissão de odontologista, há quem entenda que a clínica dentária só pode ser exercida por médico odontologista, há quem replique que os atuais práticos dentistas da Guiné podem exercer cirurgia e prótese dentária mas não a clínica dentária; é sugerido que devem ser respeitados os direitos dos dentistas atualmente existentes na Guiné, como ato de justiça, no futuro é que não devem ser admitidos outros nas mesmas condições; há que observe também que os dentistas atuais devem ser submetidos a um exame, e há quem discorde com tal critério, dizendo que não faz sentido o indivíduo que durante 10 ou 15 anos exerceu uma profissão a contento do público seja agora obrigado a fazer exame. Após discussão assentou-se que ficavam autorizados os atuais práticos dentistas, já coletados pelo exercício da profissão, a executarem trabalho de odontologia desde que se inscrevessem na Repartição Central dos Serviços de Saúde. E o Conselho também deliberou no projeto de diploma respeitante ao fornecimento de medicamentos por grosso ao Estado que os farmacêuticos que fornecessem substâncias medicinais em desacordo com a receita médica podiam ser condenados a penas de prisão e ao pagamento de multas.

(continua)

Almirante Sarmento Rodrigues
Hospital de Cumura, a leprosaria da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23948: Historiografia da presença portuguesa em África (350): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (4), veja-se hoje como Sarmento Rodrigues pretendeu instituir mudanças no sistema de saúde, incluindo as farmácias e os medicamentos (Mário Beja Santos)