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segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23566: Notas de leitura (1482): Alguns elementos sobre a última literatura na Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É evidente que me senti atraído por este número da revista dirigida por Adriano Nogueira, o que João Tendeiro escreveu sobre a Guiné é relevante, ele procede a um esforço Hercúlio para sinalizar uma literatura escrita por colonos brancos e cabo-verdianos. O livro que maior circulação tinha, durante gerações, era a "Mariasinha em África", de Fernanda de Castro, recomposto de edição em edição, até se tornar politicamente correto, deixando o autóctone ser tratado como um bom selvagem. A figura principal deste período terá sido Fausto Duarte. Mas o que fundamentalmente me atraiu nesta revista, e não escondo a minha grande surpresa, foi encontrar uma referência minuciosa ao I Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, que se realizou na Sorbonne entre 19 e 22 de setembro de 1956, onde esteve seguramente Mário Pinto de Andrade e ainda maior surpresa encontrar na íntegra a mensagem de Sékou Touré ao congresso seguinte que se realizou em Roma, uma arma assentada ao colonialismo português. Como foi possível publicar este libelo acusatório numa revista do regime, não deixa de nos assombrar. Por tal razão, em próxima oportunidade, iremos referir o que Sékou Touré mandou na sua mensagem, certamente saída do punho de um intelectual do seu círculo privado.

Um abraço do
Mário



Alguns elementos sobre a última literatura na Guiné Portuguesa

Mário Beja Santos

Estudos Ultramarinos era a publicação do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, tinha como diretor Adriano Moreira. No seu n.º 3, de 1959, publica-se um artigo de João Tendeiro intitulado “Aspetos Marginais da Literatura na Guiné Portuguesa”. Recorde-se que Leopoldo Amado é autor de um excelente trabalho sobre a literatura do período colonial na Guiné (https://vdocuments.site/literatura-colonial-guineense.html).

O quem nos sugere João Tendeiro? Maior clareza não pode haver: “A Guiné não nos deu até agora um escritor nativo. No campo da ficção, as poucas obras de fundo têm sido escritas por europeus ou cabo-verdianos. É o caso dos romances e contos de Fausto Duarte e de vários contos esporádicos de Alexandre Barbosa, F. Rodrigues Barragão e outros, publicados no "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa". Mário Pinto de Andrade, se quis inserir, na sua "Antologia da Poesia Negra", uma produção poética representativa da Guiné, teve de recorrer a um poema de um jovem cabo-verdiano, Terêncio Casimiro Anahory Silva”. Segundo o censo de 1950, frente à Guiné Portuguesa, o português era falado por 1157 indígenas analfabetos e escrito por 1153. João Tendeiro procura explicações edulcoradas para justificar este buraco negro, como numa colónia portuguesa não havia literatura portuguesa escrita por autóctones: “Um dos fatores primordiais da ausência de uma expressão escrita nos meios nativos consiste nas possibilidades reduzidas de que estes dispõem para alcançar um nível intelectual compatível com a sua realização, segundo os padrões universais da arte literária. António Carreira procede a uma outra apreciação, dizendo que as comunidades africanas possuem na vertente da educação uma estrutura muito sua, todo o fio da educação utiliza a transmissão por via oral”. Os europeus, escreve ele, ao contatar intensamente com estas comunidades com o objetivo de as orientar, educar e instruir, têm de enfrentar os inevitáveis problemas inerentes ao choque de culturas diferentes. "A grande massa nativa continua ainda a reger-se pelo regime jurídico aplicável à situação legal de indígena”. Também se faz o reconhecimento de que o islamismo se fazia acompanhar da difusão da escrita árabe. Viriato Tadeu, no volume "Contos do Caramô", bem como os contos publicados por António Carreira, Amadeu Nogueira, A. Cunha Taborda e A. Gomes Pereira no "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa" fazem-se ressaltar a literatura oral, os provérbios e as poesias declamadas de diferentes etnias guineenses.

Vê-se que João Tendeiro leu atentamente todos os números publicados do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. E dá o crioulo como língua veicular pouco suscetível de atrair os guineenses para usá-la literariamente, fazendo o seguinte comentário: “O crioulo enferma de todas as caraterísticas das linguagens faladas e sem grafia independente. Quer dizer: quando transposto para a escrita fica subordinado ao idioma escrito da região. Não existe uma correspondência entre o crioulo e a ortografia portuguesa”. E vai mais longe: “Os crioulos portugueses escritos – seja o da Guiné, sejam os das diversas ilhas de Cabo Verde – não constituem entidades filológicas independentes mas sim transcrições dialetais fonéticas, em termos de português”. E contextualiza o uso do crioulo pelas camadas civilizadas e assimiladas: “Na Guiné, com exceção de alguns núcleos de origem, ascendência ou influência cabo-verdiana, localizados particularmente em Cacheu, Bolama, Bissau e Geba, o crioulo desempenha apenas o papel de linguagem auxiliar nas relações recíprocas entre as diferentes tribos”. E procede a uma sentença quanto aos limites do crioulo: “Do ponto de vista da escrita, é tão estéril como o são as línguas nativas sem representação figurativa dos fonemas”.

E traça comparações com Cabo Verde:
“Enquanto em Cabo Verde o crioulo assumiu o caráter de uma linguagem substituta dos idiomas nativos primitivos, enfeudada à língua portuguesa oficial, na Guiné reveste apenas o aspeto secundário de língua aprendida, desempenhando entre as populações locais um papel semelhante ao dos idiomas utilizados nas relações internacionais entre os povos civilizados”. E o seu acervo de considerações dirige-se a questões relacionadas com a pacificação de Teixeira Pinto: “De todos os povos nativos, a tribo Papel foi a que durante mais tempo se opôs à preponderância dos brancos na Guiné. Os Papéis conseguiram durante anos e anos manter em cheque as forças empenhadas em subjugá-los. Porém, em 1915, as colunas comandadas por Teixeira Pinto irromperam pelas regiões de Safim e do Biombo e impuseram-lhes uma derrota decisiva. A queda, após esta derrota, pode dizer-se que foi vertical. A tribo altiva de outrora deu lugar a uma gente fraca e sem vontade”.

Mudando de agulha, João Tendeiro volta-se para a educação. “Nos termos do Acordo Missionário e do Estatuto Missionário, o ensino dos indígenas é feito na Guiné pelas missões católicas, em escolas de ensino primário rudimentar, cabendo ao Estado a educação dos elementos civilizados. Com a criação, em 1949, do Colégio-Liceu de Bissau, aumentaram as possibilidades de educação dos portugueses residentes na Guiné. Trata-se, no entanto, de uma iniciativa recente e cujos frutos, pelo menos no campo da literatura, ainda não surgiram, se bem que vários estudantes guineenses frequentem universidades na metrópole. Simultaneamente, deu-se mais um passo para a ascensão dos indígenas à cidadania, uma vez que nos termos de legislação de 1946 se consideram como cidadãos portugueses, para todos os efeitos, os indivíduos de raça negra, ou dela descendentes, que possuam, como habilitações literárias mínimas, o 1º ciclo dos liceus ou estudos equivalentes”.

Para além deste trabalho missionário, o autor não deixa de evidenciar a importância do ensino corânico. E cita Teixeira da Mota que refere que em 1951-1952 havia na Guiné 436 escolas corânicas para cerca de 45 escolas das missões católicas, estas com 1044 alunos. Obviamente que o ensino era feito em árabe, com as contingências do uso das línguas locais. Fosse como fosse, os islamizados da Guiné nutriam grande respeito pelos missionários:
“Não têm qualquer hesitação em mandar os filhos às escolas onde eles lecionam. Mas, ao menor intento de catequese, ao mais pequeno sinal de que o espírito da criança se está interessando pela religião dos brancos – logo se ergue uma barreira a isolá-lo e a afastá-lo de tal influência”.

E tudo vai culminar com uma nota picante, a aflorar o mito imperial:
“O problema do ensino dos nativos apresenta-se na Guiné Portuguesa revestido de duas tendências antagónicas. Numa, que representa o ponto de vista tradicionalista fundamentado na noção de superioridade europeia, as populações nativas devem ser educadas num regime de segregação completa dos civilizados; se se trata de mestiços, instáveis por complexo constitucional, na sua recente interfusão de sangues díspares – em que um transmite as hereditárias aquisições multiseculares dos brancos e o outro o primitivo intonso e rude dos negros; se se trata desses mesmos negros, de índole comunitária, estrutura mental pré-lógica, vida imemorial estagnada ou em regresso, marcada por signos e estigmas de diversas estirpes, divergentes da do civilizado branco. A segunda, encaradas pelos defensores do primeiro ponto de vista como própria de idealistas sem o sentido das diferenças psicofisiológicas e sociais entre pretos, mestiços e brancos, proclama um programa em bases semelhantes para o europeu e para o nativo, a quem o ensino rudimentar e elementar colocou em condições de frequentar as mesmas escolas que os brancos”.

Seriam estas as duas tendências. Mas Sarmento Rodrigues impôs a língua portuguesa para todos, sem discriminação.

Ficamos a saber que não havia literatura portuguesa escrita por guineenses e que o ensino dera um verdadeiro salto na segunda metade da década de 1940, irá gradualmente crescer o número daquele que irão falar fluentemente português. E como se vê hoje, os escritores da Guiné-Bissau exprimem-se sem rebuço na língua portuguesa e no seu crioulo.


Mariasinha em África, ilustração de Sarah Affonso
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23565: Notas de leitura (1481): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte III: O Tala Djaló, cmdt do Pel Mil 143 e depois fur grad 'comando' da 1ª CCmds Africana, que virá a ser fuziladdo em Conacri, na sequência da Op Mar Verde

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23559: Notas de leitura (1480): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte II: "Homem gosta de ter mulher na cama, quando vem da guerra", lembra a "Tia", a mulher grande...

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 ("Onças Negras") > Agosto de 1972 > O obus 14

Foto (e legenda): © Vasco Santos (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comlementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1969 > Álbum fotográfico do João Martins > Foto nº 125/199 > Casa do chefe de posto... Em 1965, o chefe de posto era o Fernandes, cabo-verdiano. A localidade tem possuía um posto de rádio, permitindo fazer ligações telefónicas com Bissau e Lisboa.


Foto (e legenda): © João José Alves Martins (2012)  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Imagem à direita: capa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2020] , 445 pp. , il. [ Manuel Andrezo é o pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, ex-cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, 1965/67. ]



1. Sobre Bedanda, no sul da Guiné, região de Tombali, temos cerca de 160 referências. Mas apenas uma vintena sobre a 4ª CCAÇ, também conhecida por 4ª CCAÇ I (4ª Companhia de Caçadores Nativos ou Indígenas).  

Segundo informação do Jorge Araújo, foi criada e instalada primeiramente em Bolama em finais de 1959, tendo-se mudado em julho de 1964 para Bedanda, por necessidades operacionais.  Três anos após a instalação dos seus primeiros efectivos em Bedanda, esta unidade é renomeada, em 1 de abril de 1967, passando a designar-se por Companhia de Caçadores n.º 6 [CCAÇ 6, "Onças Negras"] (vd. postes  P18387 e P18391) (*).

Segundo a CECA (2002) (**), era uma subunidade da guarnição normal, com existência anterior a 1jan61, sendo constituída por quadros metropolitanos e praças indígenas do recrutamento local, e estando enquadrada nas forças do CTIG então existentes. Em 1jan61, estava instalada em Bolama, com um pelotão destacado em Bedanda.

Em 8abr61, iniciou o deslocamento para Buba, onde foi colocada temporariamente, a partir de 6mai61. Em 3jul61, foi transferida para Bedanda, mantendo um pelotão em Buba, até à chegada da CCaç 152, em 28jul61.


Entretanto, iniciou a instalação de forças em várias localidades da zona Sul, nomeadamente em Bolama, Bedanda, Cacine, Aldeia Formosa, Gadamael e Tite, as quais foram recolhendo à sede após substituição por outras forças, ou sendo deslocadas, para outras localidades, como Catió, Chugué e Caboxanque.

A partir de 25jul61, foi integrada no dispositivo e manobra do BCaç 237 e depois sucessivamente no dispositivo dos batalhões e comandos instalados no sector. Tomou ainda parte em diversas operações realizadas nas regiões de Caboxanque, Chugué, Bochenan, entre outras. 

Lamentavelmente, não tem história da unidade. Teve pelo menos 10 comandantes, até 1abr67 (quando passou se designar-se por CCAÇ 6):


2. Estamos agora a ler as memórias (em parte ficcionadas) do capitão Cristo, "alter ego" do cap inf Aurélio Manuel Trindade (hoje ten gen ref), de acordo com o livro cuja capa publicamos acima, da autoria de Manuel Andrezo (pseudónimo literário),  "Panteras à solta",  edição de autor, s/l, s/d [c. 2020] , 445 pp. (**).

Segundo informação do seu amigo e camarada cor inf ref Arada Pinheiro (que me emprestou o seu exemplar autografado), o livro não está à venda em Portugal, foi impresso na Alemanha. Pelo menos um exemplar foi doado à biblioteca da Academia Militar. 

Mas falando das "aventuras e desventuras" do cap Cristo, que vivia em Bedanda, nas barbas do "reino do Nino"... (Já no final da comissão irá conquistar e  destruir Calobol Balanta, até então um dos baluartes da tropa do Nino: vd.  "Reino do Nino", pp. 396-409).

O cap Cristo chegara a Bedanda, em rendição individual, em 6 de julho de 1965, e a sua primeira preocupação foi ganhar a confiança e o respeito dos seus subordinados bem como da população da localidade, que era sede de circunscrição administrativa (ou apenas posto administrativo ?), mas estava então  rodeada de "guerrilheiros" por todos os lados (curiosamente nunca usa o termo, pejorativo, "turras", mesmo sendo inplacável para eles).

 Parte da população sobre o controlo do PAIGC (nomeadamente as "mulheres do mato", que viviamm em Cobumba) vinham, em meados de 1965,  a Bebanda fazer compras (cana e tabaco),  e vender também os seus produtos (arroz, etc.). 

Cabolol, Cobumba e Chugué, na margem norte do rio Cumbijã, eram alguns dos pontos fortes controlados pela guerrilha. Na margem sul, destacava-se  Caboxanque (em pleno Cantanhez), Incala,  Nhai e Salancaur... O aquartelamento das NT, mais próximo, era Cufar. Bedanda tinha um problema demográfico: havia mais homens do que mulheres. E, alegadamente por razões de segurança, ninguém cultivava a rica e extensa bolanha. 

Uma das medidas que o capitão vai tomar,  é.. a "reforma agrária" (pp. 85-92). As ricas bolanhas de Bedanda eram outrora cultivadas pelos balantas. Em 1965, a população era predominantemente fula, e não produzia nada para comer.  Os homens viviam da guerra: eram guias, picadores, milícias... 

As mulheres, por seu turno, eram lavadeiras, "lavadeiras para todo o serviço" (sic)  (pág. 85): "Lavavam a roupa dos militares e iam para a cama com eles", coisa que o capitão até nem via com maus olhos: "Nada tinha contra o facto dos soldados terem a sua lavadeira para todo o serviço". 

(...) "Os militares eram quase todos nativos, mas havia alguns brancos, cabos especialistas, e quase todos os sargentos. Brancos eram todos os oficiais. Todos tinham a sua lavadeira, Por vezes havia problemas com os militares e a população que o capitão tinha que resolver em ligação com o régulo Samba" (...).

Veremos oportunamente como o capitão, beirão e de origem camponesa, vai resolver o difícil problema de ter uma população sob o seu controlo que vivia pior (passava fome) do que a população do "mato"...

(...) "Do lado deles [da gente do mato]  não havia falta de arroz, mancarra, mandioca e óleo.  Do lado da tropa tinham apenas cana, tabaco e panos que os comerciantes traziam de Bissau. e o arroz que compravam às mulheres  dos guerrilheiros" (pág. 87).

A solução encontrada  pelo cap Cristo (de tipo "topdown", de cima para baixo, mas contando com a cumplicidade da Tia, das mulheres  e do régulo, este último a princípio renitente) foi acabar com a "malandragem" que, em Bedanda,  só vivia da guerra...e pôr toda a gente a lavrar arroz, mancarra, mandioca...

Os abastecimentos eram  feitos por via fluvial, por barcos civis com apoio da marinha e da força aérea.  Bedanda tinha dois portos fluviais, o "interior" (rio  Ungarinol, afluente do rio Cumbijã, a 200 metros da povoaçao) e o "exterior" (rio Cumbijã), a cerca de 4 km. O abastecimento mensal, feito através do porto exterior, equivalia a uma verdadeira operação a nível de companhia. O porto interior deixara, há muito, de ser utilizado por razões de segurança, e oposição da Marinha.  O cap Cristo vai quebrar, por fim, o mito de que não era navegável o rio Ungarrional ("A Marinha reabastece Bedanda", pp. 93-103). 

O livro tem apontamentos saborosíssimos (e de interesse documental)  sobre a situação étnica, social, económica e militar de Bedanda, bem como sobre as tropas (uma companhia e um pelotão de milícia, para além de um pelotão de artilharia) que defendem a povoação, outrora parte do chão balanta, Em 1965, a maioria da população era fula, oriunda de várias partes da Guiné, e "principalmente da mata do Cantanhez onde o domínio dos guerrilheiros tem sido evidente" (sic) (pág. 17).

Samba Baldé, o régulo, ele próprio fugiu do Cantanhez, "deixando terras, gado e casa, para não ser obrigado a colaborar com os guerrilheiros".  Bedanda tinha, nessa altura, 4 casas comerciais, sendo as duas mais importantes a Ultramarina e a Gouveia, A Ultramarina tinha à sua frente o Zé Saldanha, "um mulato muito inteligente", e que se dava bem com a tropa. A mulher, Inácia, balanta, era uma excelente cozinheira, a cujos serviços o cap Cristo irá recorrer várias vezes (nos seus dois anos passados em Bedanda). 

O encarregado da Casa Gouveia, por sua vez, era  "um cabo-verdiano mal encarado", de seu nome Fernandes. com fama de jogar com pau de dois bicos (de resto, como quase todos os comerciantes da Guiné)... A sua secretária também era a telefonista: havia um posto de rádio permitindo fazer ligações a Bissau e a Lisboa. 

O cap Cristo teve a preocupação de, logo no início, e ainda na presença do anterior comandante que ele veio substituir, o cap Xáxa, de ir "partir mantenhas" (apresentar cumprimentos) com todas as forças vivas de Bedanda, incluindo a "mulher grande", conhecida por a "Tia" (pág. 19). 

Merece uma página de antologia a sua apresentação e as primeiras "trocas de galhardetes" entre os dois... Veja-se só este diálogo, delicioso e pícaro, em português acrioulado, entre a Tia e o cap maçarico (ainda não se usava o termo periquito) (pág. 19):

− Então, nosso capitão é maçarico. Eu já gosto do nosso capitão maçarico. Se precisar de alguma coisa pede à Tia. Tia arranja tudo para nosso capitão. Se nosso capitão gostar de alguma mulher da tabanca não fale com ela pois o marido e o pai pdoem desconfiar. Fale comigo e eu depois trago mulher a minha casa para nosso capitão.

− Está bem, Tia, mas desconfio que não vai ser preciso  responde  o capitão Cristo.

 Vai, vai, nosso capitão não tem mulher e não pode viver aqui sem sem mulher. Homem gosta de ter mulher na cama quando vem da guerra. Nosso capitão vem até minha casa. Se quiser mulher eu arranjo, se não quiser fica aqui a descansar" (...)

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


8 de março de  2018 > Guiné 61/74 - P18391: (D)o outro lado do combate (21): "Plano de operações na Frente Sul" (Out - dez 1969) > Ataque a Bedanda em 25 de outubro de 1969 (ao tempo da CCAÇ 6, 1967-1974) - II (e última) Parte (Jorge Araújo)


sábado, 18 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22819: Notas de leitura (1399): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte I: "Muitos parabéns, muitos parabéns, muitos parabéns!"

 

Capa do livro do nosso camarada Arsénio Chaves Puim, "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada,  Santa Maria, Câmara Municipal de Vila do Porto, 2021, 286 pp. Capa: Ilha de Santa Maria, do cartógrafo Luís Teixeira, 1587, Biblioteca Nacional de Florença.


1. Estou em dívida para com o meu amigo e camarada da Guiné, o ex-alf mil capelão Arsénio Puim (CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72) que me mandou, pelo correio, um exemplar autografado (e com dedicatória) do seu livro, há 5 meses atrás.

Prometi-lhe fazer uma ou mais notas de leitura, mesmo que o livro não tenha a ver diretamente com a Guiné, ou as memórias da guerra da Guiné. Mas a Guiné está sempre presente, entre nós (*), até na dedicatória, que reza assim: 
"Ao companheiro da Guiné e grande amigo de sempre, Luís Graça. Vila Franca do Campo, 5 de julho d2 2021, Arsénio Chaves Pum".   Confesso que já li o livro, de fio a pavio, e, não sendo sequer açoriano, e só conhecendo 4 ilhas do arquipélago (Terceira, onde fiz férias em 1993, São Miguel, Horta e Pico) fiquei com ganas de dar um saltinho a Santa Maria, logo    que as "novas" pernas mo permitam...

Esta primeira nota de leitura é apenas  para dar conta da publicação  da obra que teve uma 1ª edição em  2008. E fazer uma apresentação (sumária) deste trabalho de pesquisa, revelador de uma grande sensibilidade socioantropológica e, mais do que isso, de um grande amor à sua terra, à sua gente, às suas raízes.  O livro é dedicado aos seus pais e ao povo da ilha, mostrando-se o autor "grato pela herança moral, cultural e linguística que me legaram". E começa por lembrar que o seu pai, António Carvalho Puim, nascido em 1903, "foi uma enciclopédia viva da linguagem mariense de sabor arcaico" (pág. 15).

Este interesse etnográfico pelo "falar" (, a língua mais oral que escrita,) que dá identidade a cada povo ou comunidade, já se revelava, na Guiné. Veja-se por exemplo, o poste P13314, da série "Memórias de um capelão" em que ele exalta as competências linguísticas do povo guineense, a que chama, com propriedade, um povo "poliglota" (**).

O autor, um "jovem" de 85 anos, natural da freguesia de Espírito Santo, Santa Maria,  vive atualmente na Ilha de São Miguel,  em Vila Franca do Campo, estando reformado (desde 1995)  da sua profissão de enfermeiro, do Serviço Regional de Saúde, a que se dedicou em exclusividade, tendo deixado em 1979, o múnus espiritual enquanto sacerdote católico.  Foi ainda professor de História e Português no Externato do Aeroporto, Santa Maria, na década de 60. Opositor político ao regime então vigente, foi mobilizado para a Guiné como capelão militar em 1970, sendo expulso do CTIG, um ano depois,  em maio de 1971. Regressado aos Açores, continuou a paroquiar, manteve o seu empenho cívico e concluiu, entretanto, o curso de enfermagem em 1976. É casado, tem dois filhos e dois netos.

Nunca abandonou, porém, o prazer e o dever da escrita, nomeadamente como jornalista e escritor: foi cofundador da  II série do jornal “O Baluarte”, juntamente com João de Braga e José Dinis Resendes. Foi diretor deste mensário entre 1977 e 1982.
 
É autor ainda  dos  livros «A Pesca à Baleia na Ilha de Santa Maria"  (edição do Museu de Sta Maria e da junta de Freguesia de Sto Espírito, 2001), e  «As Ribeiras de Santa Maria - Seus Percursos e História» (edição do jornal “O Baluarte”, 2009).
 
 2. E de  que é que trata esta 2ª edição de "O Povo de Santa Maria: seu falar e suas vivências" ? Embora fazendo apelo a técnicas da pesquisa etnográfica (como a  observação participante, a entrevista, a biografia, a acão-investigação, a análise documental, etc.), o autor não tem a pretensão de fazer obra académica, o seu objetivo é apenas o de "identificar, coligir e contextualiar um vasto conjunto de elementos e características respeitantes ao falar, muito castiço, muito expressivo e muito bonito, da pequena comunidade de Santa Maria", com a introdução, nesta 2ª edição, de novos temas como a cozinha tradicional,  a cultura da vinha nas fajãs e o casamento rural. 

Mas vejamos o índice do livro (de que se fizeram 500 exemplares). Esquematicamente:

I - Linguagem Popular Mariense (pp.. 19-114), incluindo: léxico popular, locuções e expressões populares, terminologia anatómica e sexual popular, americanismos, e alguns aspectos específicos do falar mariense. 

II - Atividades Tradicionais Marienses e sua Expressão Linguística (pp. 115-218): o carrear e o carro de bois; a lavra da terra, o arado e a grade; a debulha do trigo na eira; o trabalho doméstico do linho; o artesanato; a cozinha tradicional; a arquitetura rural ( a casa tradicional e sua chaminé; moinhos de água e de vento);  a cultura da vinha nas fajãs; a pesca à baleia e o seu léxico baleeiro).

III - Celebrações Festivas: sua Caracterização e Linguagem ( pp. 219- 268):  a Senhora das Candeias na Freguesia do Espírito Santo;  o Império Mariense: praxes, folias e linguagem: o São João de antigamente; os serões na aldeia: a 'matação' do porco; o casamento rural em tempos passados.

Breves Notas sobre a Literatura Popular Mariense (pp. 269-283).

Bibliografia.

Ficam os nossos leitores, espero, com "água no bico", aguardando a segunda nota de leitura, que há de sair, em passando o Natal... Ao nosso autor, só tenho que felicitá-lo pelo seu livro, usando uma expressão tipicamente mariense (das muitas que ele recolhe): ""Muitos parabéns, muitos parabéns, muitos parabéns!".. Remeto a explicação para o autor: "Era assim, em repetição tripla emitida num só fôlego, que as pessoas felicitavam os vizinhos e conhecidos por ocasião de uma acontecimento feiz, como um nascimento, um casamento, a chegada da vida militar, a recuperação deuma doença, etc." (pp. 75/76)... E eu acrescento: a publicação de um livro, como este, que é uma prova de muio amor, paciência e saber.  (***)

Parto também mantenhas natalícias, com o nosso camarada Puim!... Muita saúde e longa vida, que tu mereces tudo!... LG

(**) 20 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13314: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69 / Mai 71) (12): O crioulo (e as suas virtualidades)

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22726: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VIII: A lenda da canoa papel (...ou a maldição da pátria de Cabral)




A lenda da canoa papel: 
 ilustrações do   pintor guineense Lemos Djata (pp. 55 e 57): Lemos Mamadjã Hipólito Djatá, de seu nome completo,  conquistou a Medalha de Ouro para a Guiné-Bissau em Paris, França, numa exposição coletiva organizada pela “Associação da Amizade e das Artes Galego Portuguesa”, que decorreu na capital francesa entre os dias 5, 6 e 7 de Outubro 2018, na sala de exposições do "Carrousel du Louvre". 

Nascido em Bafatá, em 1981, filho de Hipólito Djata e de Mariama Foli Baldé. é licenciado em Línguas Estrangeiras Aplicadas, pela  Universidade de Évora. Só em 2000 é que descobre o seu talento artístico. É pintor e escultor.


1. Transcrição das págs. 55-57 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


A lenda da canoa papel  
(pp. 55/57)


Segundo reza a lenda transmitida oralmente pelos papéis, quando os portugueses chegaram à Guiné, os contactos que estabeleceram com os papéis da ilha de Bissau foram amigáveis e estes até lhes cederam um terreno para se poderem instalar e negociar. 
Podem ficar com este terreno  disse o Rei Insinhate (31). 

Nesse terreno está hoje o Forte da Amura, mas naquele tempo era um antigo curral, o que serviu para os papéis se divertirem, fazendo troça dos novos moradores. 

Com o tempo, o poder dos portugueses foi crescendo, e começaram a exercer o seu domínio sobre todas as terras circundantes (32). Os papéis ficaram revoltados, porque os estrangeiros diziam que agora era tudo deles, e decidiram partir para a guerra. 
– Os estrangeiros querem roubar o nosso chão, querem cobrar impostos, temos que os expulsar! – diziam os papéis. 

Travaram-se muitas batalhas, mas nelas os papéis perceberam que nunca conseguiriam vencer pelas armas o inimigo. Então os papéis recorreram aos espíritos para os expulsarem, e dirigiram-se aos baloberos (33),  pedindo auxílio. 

Os baloberos responderam: 
–Podemos lançar uma maldição, que irá lançar a infelicidade nas terras da Guiné, e os estrangeiros ir-se-ão embora. 

Mas acrescentaram: 
– Cuidado, porque não haverá mais paz nem prosperidade na Guiné, enquanto os estrangeiros não se forem embora e não for feita uma cerimónia para acabar com esta maldição. Será tanta a desgraça, que ninguém aqui quererá viver, mas vocês têm que aguentar o sacrifício, se querem a vossa terra de volta.
– Nós aguentamos, façam a cerimónia para expulsar os estrangeiros  responderam os papéis. 

Foi feita uma canoa em madeira, e os baloberos, reunidos em cerimónia, invocaram todos os espíritos malignos, fazendo-os entrar na canoa. A seguir enterraram a mesma. Na altura a canoa foi enterrada no mato, mas nesse mesmo local foi mais tarde construído o palácio do Governador, sendo presentemente o palácio da Presidência da República. O local preciso onde a canoa foi enterrada, foi mesmo em frente do Palácio, no local onde está o monumento aos heróis. 

Depois da cerimónia do enterro da canoa, os baloberos lembraram mais uma vez: 
– Quando os estrangeiros se forem embora, esta canoa tem que ser desenterrada, e feita uma cerimónia para acabar com esta maldição, senão nunca mais haverá paz e felicidade na Guiné, por isso os pais têm que passar estas palavras para os seus filhos. Não se podem esquecer de fazer a cerimónia! 

Os baloberos ainda acrescentaram: 
– Esta canoa anda debaixo de terra. O poder dos espíritos é muito forte, ele faz a canoa mover-se debaixo da terra espalhando o mal por todo o lado. Só nós conseguiremos saber onde ela está. 

Quando Portugal reconheceu a independência da Guiné-Bissau, e retirou as suas tropas, os papéis correram a chamar os baloberos, pois chegara a hora de desenterrar a canoa, mas os baloberos disseram: 
- Os estrangeiros ainda não foram todos embora, o Presidente da Guiné-Bissau é Luís Cabral, um estrangeiro, um cabo-verdiano. 

A 14 de Novembro de 1980, o Presidente Luís Cabral é derrubado por um golpe de Estado encabeçado, pelo mítico comandante militar do PAIGC, o papel João Bernardo Vieira, mais conhecido pelo seu nome de guerra 'Nino' Vieira.

 'Nino' Vieira suspende a Constituição e fica a liderar o país à frente do Conselho Militar da Revolução, com nove membros. Os papéis rejubilaram, a canoa tinha expulsado os portugueses dando-lhes a independência, e agora expulsava os cabo-verdianos; todos os estrangeiros tinham sido afastados, e agora era um papel que detinha o poder. 

Tinha chegado a hora de desenterrar a canoa e anular a maldição, e os papéis correram novamente pedindo a intervenção dos baloberos. Poucos dias depois os papéis reuniram-se no centro de Bissau, na Praça A Lenda a Canoa Papel /  'Che' Guevara, pois era ali que os baloberos diziam que estava a mítica canoa. 

Juntou-se uma multidão à volta da praça, e asfalto, cimento, tudo foi arrancado, sendo aberto um buraco enorme em forma de canoa, mas para desespero dos papéis nenhuma canoa apareceu. 

Os papéis, desiludidos com os baloberos, esqueceram a canoa e deixaram de contar esta história aos seus filhos. O Presidente 'Nino' Vieira seria assassinado a 2 de Março de 2009. Perdida e esquecida, será que a canoa papel continua a navegar debaixo do chão, espalhando a sua maldição? 

Esta é lenda da canoa papel.
____________________

Notas de Carlos Fortunato:

(31) Insinhate – O rei Insinhate deu autorização para construção de uma fortaleza e vendeu o chão para a sua construção, conforme documento celebrado a 2 de Janeiro de 1697, do livro “A Guiné do século XVII ao século XIX”, pag.76.

(32) Ocupação da Guiné  Portugal, à semelhança das restantes potências europeias, decide impor a sua soberania às suas possessões, pois sem uma ocupação real corre o risco de perder os seus territórios em África, é uma intervenção de difícil realização para Portugal face aos
poucos recursos de que dispõe, e que exige alianças locais, capacidade de comando e muita coragem.

A divisão da África pelas diferentes potências tem o seu ponto alto na Conferência de Berlim (1884-1885), e leva a uma maior intervenção das potências europeias nas suas colónias. Os papéis nunca aceitarão o domínio estrangeiro, e os seus ataques serão frequentes, infringindo várias derrotas ao exército colonial. Apenas com a derrota imposta a 20 de Julho de 1915 por Teixeira Pinto, Portugal consegue o domínio total sobre a ilha de Bissau (História
da Guiné II - René Pélissier, pag. 176).

(33) Baloberos é a designação dada em crioulo aos sacerdotes animistas que realizam cerimónias nos locais sagrados, as balobas. Cada balobero  coloca o seu pote com água na baloba, junto ao poilão sagrado, para receber os poderes do mesmo e a poder usar nas cerimónias que realiza. (**)

2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque, que já foi inaugurada dia 8 deste mês, com pompa e circunstância), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP


Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com
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segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22575: Notas de leitura (1385): Francisco Serra Frazão e o crioulo guineense (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
Não é nenhuma lança em África, trata-se de um maço de fichas, alfabeticamente organizadas, um curioso em filologia do mundo africano português, quadro colonial em Angola, escritor premiado, ter-se-á interessado pela filologia comparada e foi juntando elementos sobre línguas étnicas da Guiné, que não desenvolveu. O que aqui se mostra é a transcrição das suas fichas e conta-se com a benevolência e a disponibilidade dos camaradas na Guiné para corrigir o que Francisco Serra Frazão terá mal interpretado, junto dos seus interlocutores. Só nas décadas recentes é que apareceram dicionários, Benjamin Pinto Bull doutorou-se com o crioulo guineense e há missionários italianos que devotam ao crioulo um estudo notável.

Um abraço do
Mário



Francisco Serra Frazão e o crioulo guineense

Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa consta um volume que aberto revela um conjunto impressionante de fichas de trabalho que pertenceram a este administrador de circunscrição, sempre em Angola, em 1914 já era administrador no Golungo Alto, no prefácio a um dos seus trabalhos, Norton de Matos tece-lhe os elogios mais rasgados pela exemplaridade como funcionário e como investigador. O livro aqui mencionado, sobre as associações secretas entre os indígenas de Angola, recebeu o 1.º prémio de etnografia no XX Concurso de Literatura Colonial. O curioso dos seus trabalhos era a filologia comparada, não faltam referências a Angola, Cabo Verde, São Tomé e Guiné. Foi admitido como sócio efetivo da Sociedade de Geografia de Lisboa em 21 de novembro de 1944, era o sócio 15003, faleceu em março de 1948.

Verificados todos os maços de fichas, encontra-se um levantamento de vocábulos do crioulo guineense. Convém recordar que a primeira tentativa de dicionário é da autoria de Padre Marcelino Marques de Barros, nas últimas décadas, graças ao labor de missionários investigadores do crioulo surgiram dicionários. Não se sabe o que levou Francisco Serra Frazão a interessar-se por estas expressões, há mesmo uma tentativa, que só desenvolveu de forma incipiente, de comparar vocábulos portugueses em cinco ou seis línguas étnicas, não passou de um esboço. Mas quanto ao crioulo, veja-se o que consta destas fichas:
Abrandar – barandá; acabar – cabá; aceitar – setá; acender – sendê, cendê; achar – ódja; aconselhar – consedjá; afogar – fogá; água – iágo; agudo – gúdu; ainda – inda; ajuntar – djuntá; alguém – àguém; ali, aqui – li; amor – querê; aquecer – quentá; aquele, aquilo – quel; arrozal – bolanha; assim – sima, sim, ês; atirar – djogá, ramangá; avermelhar – burmedjá; bater – batê, bati; Bolama – Blama; balaio – balé; balcão, varanda – balcon; bandeira – bandera; barafustar – barafustá; bem – bem; bolo – bolo; bote – bote; cacho – cacho; caiar – caiá; camisa – camisa; candeeiro – candia; canoa – canua; carneiro – carnél, amonton; casa – can, cassa; cascos (de animal) – sapata; chão – tchon; chicote – chicote; chover – djobê; cobrir – cubri; colher – cudjer; concordar – setá; conta – conta; contar – contá, cuntá; convir – sentá; copo – copo; coroa – crua; dar – dá; deitar – botá, bota; deixar – dessá; demanda – demanda; Deus – Deus, Dês; doce – dôc; dossel, sanefa – mêc; doido – dôdo; dois – dôs; é (verbo) – i; eles – es; embarcar – bác; enganar – anganhá; então – antã, antam; escolher – escodjê; esconder – sucundi; escondido – condidjo, sucundido; esmola – sumóla; espera – pera; eu – mim; falcão – falcon; faltar – mangá; fazenda – fassenda; fazer – fassê, fossê, facêl; feira – fera; fiar, confiar – fiá; ficar – fica; filho – fidjo; fogo – fugo; figueira – fuguera; galinha – galinha; garfo – garfo; grande – garandi; grão – garâ; história – stória; imbecil – amonton; irado – brabu; irmão, irmãos – ermon, ermons; janeiro – djanero; janela – djanela; jarra – djarra; junto de – longo; jurar – djurmentá; lenço – lenç; levar – rebatá; lobo – lobo; loja – lossa; lua – lua; luz – candia; macho – matcho; mãe – mamãe; mais – más; malhar – madjá; mancarra – mancara; mandar – mandá; manobra – manobra; mar – mar, mádje; marrada – modjadera; marrar – modjá; matança – matança; matar – matá; meio – mi; mulher – mindjer; menino – minino; meu, minha – nha; miséria – fede; molhar – modjá; moradia – morança; mostrar – mostrá; mudança – cambança; mundo – mundo; neto – neto; nós – na; nosso – nô, nos; novo – nobo; nunca – nem; oiro – ôro; oliveira – olbera; ovo – obo; paciência – passença; pai – papai; parida – padida; pássaro – pástro, pástros (plural); pau – pó (árvore); pedir – pidi; pessoa – aquém; pilão – pilon; poder – pudê; poilão – polon; pois – pô; pomba – pomba; pôr – pô; porque – parque; porta – porta; pouco – pouco; prata – prata; prato – prato; pressa – de pressa; providência – purbidência; rabo – rabo; rato – rato; queixar – queçá; rabiar – rabidá; recuar – racuá; reino – reno; rende – renda; requebro – requendel; respeito – respêto; responder – respondê; retalhar – ratadjá; revirar – rabidá; rua – rua; sair – saí; satã – seitáno; seco – sêcu; sem – sim; senhor – nho; servir – sirbí; seu, sua – sê; silva – sirbi; só, somente – djusto; sobre, em cima – riba; sol – sol; tardar – tardá; teimoso – amonton (carneiro); ter – tenê, tem; tina – tina; tio – ti; todo – tudo; tolo – amonton; tomar – tomá, toma; tornar – torna; torcido – torcido; trancar – trancá, tarancá; tratar – taratá; três – tres; tudo – tudo; tufo – bucho (diz-se das velas pandas); vaca – baca; vai – bá; vela – vela, bela (de navio); vem – ben; vender – bendê; verdade – bardade; vermelho – burmedjo; virar – bidá; voar – buá; vós – bós.

Ver site da aprendizagem do crioulo guineense:
MONTE DE PALAVRAS

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22572: Notas de leitura (1384): "Tempo das coisas", tempo de viver, tempo de morrer... A pungente despedida de Renato Monteiro (1946-2021): 31 poemas escritos de rajada na noite de 3 para 4 de julho de 2021 (Luís Graça)

sábado, 24 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22401: Fauna & flora (16): Répteis da Guiné-Bissau que é preciso conhecer e proteger: 2 crocodilos, o crocodilo-do-Nilo (Lagarto) e o Lagarto preto; e duas linguanas (a de água e de mato)

República da Guiné-Bissau, Direcção Geral dos Serviços Florestais e Caça, Deparatmento da Fauna e Protecção da Natureza, s/l, 34 pp. s/d (Disponível em formato pdf, aqui, no sítipio do IBAP , https://ibapgbissau.org/Documentos/Estudos/Animais%20da%20Guine-Bissau.pdf)


Animais protegidos no lei, na Guiné-Bissu_ estão incluidos o Crocodilo-do Nilo (Lagarto) e o Crocodilo 


1. A propósito dos répeis, referidos no poste P22399 (*), aqui vai informação adicional (**):

 

Fi8cha técncia: Crocodilo-do-Nilo (Lagarto)  (Crocodylus nolotcus) (pág. 28)


 

Lagarto preto (Osteolaemus tetraspis) (pág. 28)



Ficha sobre a Linguana-de-água (Varana niloticus) (pág.29)


Ficha sobre a Linguana-de-mato (Varana exanthematicus) (pág. 29)


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Notas do editor:


(*) Vd. poste de  24 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22399: Fotos à procura de... uma legenda (146): Uma vez por todas, não havia nem há "jacarés" na Guiné-Bissau, mas "crocodilos" (e outros répteis)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20651: (Ex)citações (363); em dia de namorados, qual é a morna mais romântica de todos os tempos ? Segundo o "Expresso das Ilhas", é "A Força de Cretceu", a força do amor, poema do grande poeta da Brava, Eugénio Tavares, que nasceu (1867) e morreu (1930) em Nova Sintra



Cabo Verde > Ilha da Brava > 6 de novembro de 2012 >  Estátua do grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930)...   


["Brava é uma ilha e concelho do Sotavento de Cabo Verde. A sua maior povoação é a vila de Nova Sintra. O único concelho da ilha tem cerca de sete mil habitantes. Com 67 km², Brava é a menor das ilhas habitadas de Cabo Verde, e tem uma densidade populacional de 101,49/km². A ilha tem uma escola, um liceu, uma igreja e uma praça, a Praça Eugénio Tavares". Fonte: Wikipédia]


Foto (e legenda): © João Graça (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O "Expresso das Ilhas", na sua edição "on line", de hoje, dia dos namorados, fez um a pequena inquirição junto de um conjunto de personalidades cabo-verdianas do mundo da música e da literatura, sobre a morna mais romântica de todos os tempos...

(...) "Morna, música rainha de Cabo Verde e Património Imaterial da Humanidade, é a expressão musical da alma um povo. E é uma expressão, por natureza, romântica. Mas dentro de toda a variedade de mornas, há composições que se salientam, pela ode que fazem ao Amor e aos amores.

"Para marcar este dia de São Valentim, inquirimos algumas pessoas directa ou indirectamente ligadas à música e poesia: Qual é a morna mais romântica de sempre?

"Com tantas e tantas composições de excelência e referência que Morna gravou ao longo do tempo, a resposta não é muito fácil. Mas há algum consenso e um Top 3" (...)


(...) "Força di Cretcheu" de Eugénio Tavares é, indiscutivelmente, a morna rainha entre as mornas românticas.

"Foi a escolha de músicos, cantores e compositores como Betú, Teté Alhinho, Tibau, Alberto Koenig, Tó Tavares, e também do antropólogo, especialista em Eugénio Tavares, Manuel Brito-Semedo.

"Seis, em oito entrevistados, colocaram-na no top das mornas românticas." (...)


2. Já quanto às interpretações, o consenso é menor, as opiniões dividindo-se entre Sãozinha Fonseca, Celina Pereira e Gardénia (, esta última, nascida na ilha da Brava tal como o poeta, está a viver nos Estados Unidos)... 

Diz Tibau: “Apesar de não ser fácil a escolha de uma versão mais bonita, escolho a na voz da Gardénia Benros, arranjos do grande Paulino Vieira."

No You Tube, há um vídeo onde se pode escutar escutar esta grande artista cabo-verdiana, interpretando "A Força de Cretceu".


A letra, fomos recuperá-la aqui, no portal da Fundação Eugénio Tavares, e reproduzimo-la, com a devida vénia... [a Fundação Eugénio Tavares tem sede em Sintra, Portugal]. 


Julgamos que não é preciso tradução para português, não obstante o fraco traquejo do crioulo cabo-verdiano... por parte da generalidade dos nossos leitores.


A Força de Cretcheu

Ca tem nada na es bida
Mas grande que amor
Se Deus ca tem medida
Amor inda é maior.
Maior que mar, que céu
Mas, entre tudo cretcheu
De meu inda é maior

Cretcheu más sabe,
É quel que é di meu
Ele é que é tchabe
Que abrim nha céu.
Cretcheu más sabe
É quel qui crem
Ai sim perdel
Morte dja bem

Ó força de cretcheu,
Que abrim nha asa em flôr
Dixam bá alcança céu
Pa'n bá odja Nôs Senhor
Pa'n bá pedil semente
De amor cuma ês di meu
Pa'n bem dá tudo djente
Pa tudo bá conché céu

Eugénio Tavares



[Fonte: EugenioTavares.org. Reproduzido com a devida vénia...]


3. Mas há aqui uma tradução, para português, de Grace Roças ( a quem agradecemos a ajudinha...). Eu arrisquei fazer pequenas 'melhorias', a pensar nos leitores portugueses...

A Força do Amor

Não tem nada nesta vida
maior do que o amor.
Se Deus não tem medida,
o amor ainda é maior.
Maior que o mar e o céu.
Mas de entre todos os amores,
o meu ainda é maior.

Amor gostoso
é  aquele que é o meu,
ele é a chave 
que abre o meu céu.
Amor gostoso
é aquele que eu quero.
Ah, se eu o perder, 
Morrerei.

Ó força do amor 
abre a minha asa em flor,
deixa-me alcançar o céu
para eu ver o Nosso Senhor,
para eu pedir a semente 
do amor bem igual ao meu,
para eu dar a toda gente,
para todos conhecerem o céu.

 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20588: Manuscrito(s) (Luís Graça) (177): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte II


Guiné > Algures > s/d > Manel Djoquin, com o seu icónico velho Ford, de matrícula G-804, a sua caçadeira e um dos seus ajudantes locais... (Dizem que um deles terá sido o Kumba Yalá, quando jovem... Nasceu em Bula, em 1953 e morreu em Bissau, em 2014, aos 61 anos; foi presidente da república, entre 2000 e 2003).

Foto (e legenda: © Lucinda Aranha (2014) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A vovó Nené


A Julinha


Cabo Verde > Santiago > Praia > s/d > c. 1930 > Manuel Joaquim dos Prazeres éra um apaixonado por carros e corridas de carros.. E tinha, em sociedade, uma oficina de reparação de automóveis, a Auto Colonial, na Rua Sá da Bandeira (vd. pág. 29)


Guiné > s/l > s/ d (c. 1950 > O Manuel Djqoquim, numa das suas poses "cinematográficas" (v. pág. 80)

Fotos e legendas (2016): página do Facebook, Lucinda Aranha Antunes - Andanças na Escrita (Com a devida vénia...).


1. Notas de leitura:

Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.

A autora chama "romance" ao seu livro de memórias da família (*)...Na realidade, é um conjunto de histórias de vida, à volta da figura do "africanista" Manel Djoquim, e das "matriarcas" da família, a Julinha, sua segunda esposa, e a "vovó Nené", a ama das filhas e depois cozinheira, vinda da Praia, Santiago, para a casa de Lisboa, onde viveu mais de 60 anos, perfeitamente adotada e integrada na família (cap 1, pp. 9 e ss.; e cap 5, pp. 58 e ss.).

Esclareceu-nos a autora, Lucinda Aranha, a mais nova das filhas do Nequinhas e da Julinha, já nascida em Lisboa: "Efetivamente nunca fui à Guiné ou a Cabo Verde. Para mim,  embora o livro gire à volta do Manel Djoquim, é um livro de mulheres onde dominam as 2 matriarcas. Este trio constitui as 3 personagens mais importantes." (*)

Na contracapa pode ler-se:

"A busca de uma vida melhor. O encontro com a aventura e o desconhecido. A liberdade de uma nova terra. Os encontros e os desencontros de uma vida amorosa"...

Na Guiné andava sempre armado...
Era uma inveterado caçador (pág. 71)
Esta nossa amiga, que nunca viajou, fisicando falando, até Cabo Verde e à Guiné-Bissau, acabou por
escrever um livro que é também uma "hino de amor" àquelas duas terras por onde andou, viveu, amou, trabalhou o seu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres (1901-1977). E um "hino de amor" aos seus pais, aos amigos dos seus pais, às suas manas, à sua ama, escrito de resto com delicadeza e inteligência emocional para não ferir suscetibilidades, até porque há muitas pessoas vivas: as irmãs, os amigos, os seus descendentes... Daí a autora chamar "romance" a este livro.

O livro tem 13 capítulos e 169 pp, onde o crioulo se mistura, saborosamente, com o português. Mas todas as falas ou expressões em crioulo têm tradução, em nota de rodapé, como a fala da vovó Nené (Maria Mendes, no romance): "C'uzas di vida, sima Deus crê. Mim nasci lá lundji, badia di pé ratchado e vem vivi e ve morri cum sinhóra e sus filhu fèmia em Lisboa" ["Coisas da vida, como Deus quer. Nasci longe, vadia de pé rachado e vim viver e morrer com a senhora e as filhas em Lisboa".] (p. 58).

Falando do feitiço de África, tudo começou, por Cabo Verde, onde Manel Djoquim, chega, em 1922, instalando-se na Praia onde começa por trabalhar, como mecânico, na Central Elétrica. Em 1930, casa-se com Tonha, "filha da terra" (pág. 33)., de quem tem duas filhas e um rapaz. 

A alfacinha Julinha, 11 anos mais nova, , aparecerá mais tarde, na viragem dos anos 30 (pp. 45 e ss.). Desta relação,  nascem, na Praia, duas irmãs da Lucinda... Em 1944, a família ruma até Bolama, onde nasceu uma terceira filha... Em 46, a Julinha e as filhas, mais a ama cabo-verdiana,  regressam a Lisboa, onde nasceu  a Lucinda.

Nascido em Lisboa, em 1901, em plena "belle époque" (, que só o era para uma minoria privilegiada da alta nobreza e da burguesia em ascensão...), Manuel Joaquim terá visto em África uma tripla oportunidade para a sua vida... Na época, África estava longe de ser um "destino comum" para os portugueses que procuravam uma "vida melhor", longe da  metrópole, e dos tempos difícdeis do pós-guerra, mas também a "aventura" e o "desconhecido", a par da "liberdade" e dos "amores".. O Brasil era então,  de longe, o grande destino da emigração portuguesa.

Território português durante séculos, povoado por escravos e por europeus,  Cabo Verde não foi, mesmo assim, objeto de grandes memórias escritas por parte das gentes metropolitanas que naquelas ilhas se fixaram ou lá viveram durante uns largos tempos. Daí também o interesse adicional deste livro, com apontamentos e fotos interessantes sobre o quotidiano da vida na Praia, onde o Manel Djoquim viveu, mais de duas décadas,  entre 1922 e 1944. (1922 é uma data aproxiamda, em rigor a autora não sabe o ano exato em que o pai se ficou na Praia.)

Mais sorte terá tido, nesse aspeto,  o Mindelo, na ilha de São Vicente, cidade aberta,  cosmopolita, e que teve sobretudo o privilégio de ter, durante décadas, o Foto Melo, um estúdio fotográfico que atravessou um século (1890-1992), tendo documentado praticamente toda a vida (política, militar, económica, social, cultural...), a demografia e  a geografia  da ilha...

"O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim", dado à estampa em 2018, parece-nos ser, de algum modo, um desenvolvimento do livro anterior da autora, "No reino das orelhas de burro" (Lisboa, Colibri, 2012, 106 pp.), baseado também nas estórias  de homens e bichos que povoaram a sua infância (***)...

Na obra, agora em apreço, a autora baseou-se numa exaustiva pesquisa documental (escrita e fotográfica), recorrendo ao arquivo da família mas também e sobretudo às suas recordações de infância, adolescência e juventude  (o pai morreu quando ela estaria já  à beira dos 30), bem como a entrevistas a familiares e amigos do pai e da família, do tempo de Cabo Verde e da Guiné. Pai que é uma personalidade complexa e contraditória, conservador, puritano, moralista, mas também anticlerical, aventureiro, inimigo das corridas de touros e do fado,  e em termos político-ideológicos um admirador de Salazar tanto quanto de Amílcar Cabral...

A autora consultou igualmente a escasssa imprensa local, dessa época, "O Eco de Cabo Verde" (, com início em 1933) e o "Arauto", primeiro semanário e depois diário, que se publicou em Bissau, de 1943 a 1968. Teve, também, verdade se diga, uma boa ajuda dos nosso blogue e dos nossos camaradas e amigos que ainda conheceram o Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, durante a guerra... pelo menos até 1970/71... (A PIDE/DGS e as autoridades militares acabaram por impedi-lo de deambular livremente pelo  mato, com a sua carriplana, alegando razões de segurança; e isso foi "o princípio do fim": em 1973 tem um AVC,  já em Lisboa, e morre quatro anos depois, precisamenre em 25 de dezembro de 1977.)

A "morabeza" cabo-verdiana  está muito bem retratada no capítulo II ("Na cidade da Praia" (pp. 28-44).  Há ali personagens (amigos da tertúlia do Manuel Djoquim) que mereceriam um outro deenvolvimento num romance de maior fôlego: são homens (, não entram aqui mulheres...) das relações de amizade e convívio do futuro homem do cinema...(que, de resto, coneça aqui,  na Praia, a sua carreira de empresário de cinema, prosseguida depois , em 1944, em  Bolama,  onde se fixa, a convite da Associação dos Bombeiros locais, para dar sessões de cinema ao livre, com documentários sobre a II Guerra Mundial). (**).

"Além de mecânico da Central [Elétrica], de dar uma mãozinha na Marconi, fizera-se sócio da oficina-garagem do Pires [, a Auto Colonial,], abrira uma casa de comércio, dessas que vendem um pouco de tudo, dedicara-se à projecção de filmes.

"Ademais lucrava com a comodidade de a Central ficar  perto do cinema, o Teatro Africano, rebatizado  Cineteatro Virgínio Vitorino pelo Estado Novo, que desconfiara do nome primitivo, censurando as veleidades autonomistas africanas.

"A sala  era-lhe subalugada pela Cãmara, que administrava também a luz. Morava então na rua  Serpa Pinto, mesmo junto ao cinema e à Central, numa casa com quintal, árvores e fruta-pão e bananeiras e muito espaço para a criançada que ia nascendo e para os cães e os gatos de que gostava de se rodear.  A casa comercial e a oficina ficavam na rua Sá da Bandeira, a rua mais larga da cidade"  (pág. 23).

Numa terra assolada por secas cíclicas, a fuga à fome, à morte e à pobreza fazia-se muitas vezes emigrando para a Guiné e também para São Tomé e Príncipe. Para os cabo-verdianos,  a vida na Guiné era-lhes mais fácil, "ou não fossem mais estudados,o que lhes garantia bons cargos, posições de chefia" (p.33).

Este e outros temas eram pretexto para a cavaqueira, tal como a chegada á ilha de  exilados políticos, quer ainda no tempo da República como depois durante a Ditadura Militar e o Estado Novo: o coronel  Fernando Freiria ou o médico militar Carlos Almeida, são dois exemplos citados.

Também teve eco, naquela tertúlia,  a "grande escandaleira [que] foi o ataque ao crioulo e aos mulatos no 1º Congresso de Antropologia Colonial realizado no Porto, em setembro de 34. O dr. Luís Chaves, conservador do Museu Etnológico, cheio de zelo ariano, defendendeu que os mestiços eram seres inferiores, degenerados, incapazes de produzir obras literárias" (p. 37)... Com isso, amesquinhavam-se grandes escritores crioulos como o Fausto Duarte, autor do romance "Auá", que ganhara justamente o 1º prémio do 1º Concurso de Literatura Colonial, e em defesa do qual veio a terreiro o Juvenal Cabral, pai do Amílcar Cabral, nas páginas de "O Eco de Cabo Verde".

Depois de 1936, há outro motivo de conversa,  a abertura  da "colónia penal" do Tarrafal, na ilha de Santiago  (p. 41). E, e ainda antes de (e durante)  a guerra, as histórias dos alemães que, apesar da neutralidade do governo de Salazar, não se coibiam de ir a terra, desembarcados dos submarinos que patrulhavam o Atlântico, quer ´para se reabastecerem quer para fazerem jogatanas de futebol com a miudagem... (pp. 41/42).

Mas o acontecimento mais marcante desta época, pelo insólito, foi a passagem do zepelim, em 1934...

No livro "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim" (Alcochete: Alfarroba, 2018),
Lucinda Aranha faz referência a este memorável evento nos termos seguintes termos:

" (...) mas nada os fez [ao Manel Djoquim e amigos de tertúlia]  dar tanto à língua como o espetácul nunca visto do zepelim que, na manhã de 12 de junho de 34, pairou sonre o céu  da Praia, em espera de um passageiro alemão que resolveu ìr às comprars de sedas e outros artigos japoneses na casa Serbam. Foi um embascamento que os fez abandonar casa e trabalho " (...) (pág. 34)

Recorde-se que o zepelim era um grande dirigível, rígido,com carcaça metálica, de tecnologia e fábrico alemães, usado para travessias do Atlântico na década de 1930.


Cabo Verde> Ilha de São Vicente > Mindelo >  S/ d > A foto ilustra a passagem dum zepelim mas não tem datas.  Foto do álbum de Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001), pai do nosso camarada Hélder Sousa, natural de Vale da Pinta, Cartaxo, ex-1º Cabo n.º 816/42/5 da 4ª Companhia do 1º Batalhão de Infantaria do  R.I. 5,  despois integrado no RI 23... A foto tem a data de 18 de Outubro de 1943 e na legenda refere ser 'recordação de S. Vicente'. O original é "foto Melo". (****)

Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2009). Todo os direitos reservados. [Edição e Legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

É uma raridade esta foto: ao que parece, dataria de 1937, ano e que o Mindelo foi sobrevoado por um dirigível que pretendia abrir uma carreira entre a Europa e o Novo Mundo, o LZ 129 Hindenburg, de fabrico alemão, origulho do regime hitleriano:

(...) Reza a História, que o dito aparelho, uma das grandes apostas à época para o transporte de passageiros, adoptando os mesmos tipos de luxos dos grandes 'Paquetes Transatlânticos' que estabeleciam as ligações entre os três continentes, Europa, África e Américas, fez só uma viagem ligando os dois continentes. Partiu da Velha Europa para o Novo Mundo - o continente Americano, tendo passado sobre Cabo Verde.

"Mindelo ficou na sua rota e Tuta [Guilherme Melo] registou esse momento, único! O aparelho passou sobre a Ilha de São Vicente, tendo largado três sacos de 'Mala Postal' - a forma complicada como se dizia correio - e teve um fim trágico ao aterrar em Lakehurst nos USA [, em 6 de Maio de 1937].

"Para os arquivos, fica mais esta imagem, só possível em Mindelo, pelo manancial de informação que corria na ilha, por causa dos cruzamentos dos cabos submarinos do Telégrafo Inglês e da Italcable (Italianos) e do seu movimentado Porto, também à época local de passagem obrigatória para os barcos que cruzavam o Atlântico Sul" (...)". 
Fonte: sítio Mindel Na Coraçon

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 14 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20558: Manuscrito(s) (Luís Graça) (176): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte I

(**) Vd. postes de 10 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14238: Fotos à procura de ... uma legenda (51): Manuel Joaquim dos Prazeres, empresário de cinema e caçador, Cabo Verde (1929/1943) e depois Guiné (1943/73)... Fotos da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde, com amigos (Lucinda Aranha)

(***) Vd. poste de 15 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12991: Tabanca Grande (433): Lucinda Aranha, filha de Manuel Joaquim dos Prazeres que viveu em Cabo Verde e na Guiné entre os anos 30 e 1972, e que era empresário de cinema ambulante

(****) Vd. poste de 9 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4926: Meu pai, meu velho, meu camarada (12): 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, S. Vicente, 1943/44 (Hélder Sousa)