segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3249: Bibliografia de uma guerra (33): Memórias literárias da Guerra Colonial: Na 5ª feira, todos com o nosso António Graça de Abreu

Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf MIl Graça de Abreu junto ao obus 14.


No próximo dia 2 de Outubro, 5ª feira, às 19H00, na Biblioteca-Museu República e Resistência/Grandella , o António Graça de Abreu, membro da nossa Tabanca Grande e nosso querido camarada, apresenta o seu livro Diário da Guiné, Lama, Sangue e Água Pura.

O livro, publicado pela Guerra e Paz Editores, em 2007, foi escrito a partir das notas do seu diário e dos seus aerogramas.

O nosso blogue convida todos os amigos e camaradas da Guiné, e em especial os que residem na área da Grande Lisboa, a participar, festivamente, neste evento. É também um pretexto para nos encontrarmos e matarmos saudades.

O António Graça de Abreu foi Alf Mil, no CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74).

(i) Regressou a Portugal nas vésperas do 25 de Abril de 1974.

(ii) Viveu na China vários anos. Entre 1977 e 1983 leccionou Língua e Cultura Portuguesa nas Universidades de Pequim e Shanghai.

(iii) Natural do Porto, é casado com uma médica chinesa, de quem tem um filho.

(iv) É professor do ensino secundário em Mafra.

(v) Leccionou Sinologia na Faculdade de Ciências Sociais Universidade Nova de Lisboa (FCS/UNL) e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCPS).

(vi) Vive no concelho de Cascais.

(vii) Tem uma dúzia de livros publicados na área da Sinologia, da poesia e dos estudos luso-chineses. É um reputado tradutor de chinês-português.


República Popular da China > Pequim > s/d > O António Graça de Abreu na praça Tianamen

Fotos: © António Graça de Abreu (2008). Direitos reservados.

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Notas de vb:


Artigo relacionado em:

24 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3235 Bibliografia de uma guerra (31): Memórias literárias da Guerra Colonial em Angola

Vd. alguns postes recenets do António Graça de Abreu, publicados no nosso blogue:

9 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3188: A guerra estava militarmente perdida ? (28): René Pélissier, uma crítica, uma adenda, um ponto final (António Graça de Abreu)

19 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2962: A guerra estava militarmente perdida? (20):Um Fraco Rei Faz Fraca a Forte Gente (António Graça de Abreu)

30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não estava, nós é que estávamos fartos da guerra (António Graça de Abreu)

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2760: Notas de leitura (8): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros... ou a guerra que não estava perdida (A.Graça de Abreu)

O António é membro da nossa Tabanca Grande e activo colaborador do nosso blogue desde Fevereiro de 2007:

5 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1498: Novo membro da nossa tertúlia: António Graça de Abreu... Da China com Amor

6 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)

12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1517: Tertúlia: Com o António Graça de Abreu em Teixeira Pinto (Mário Bravo)

27 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1552: Lançamento do livro 'Diário da Guiné, sangue, lama e água pura' (António Graça de Abreu)

16 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1601: Dois anos depois: relembrando os três majores do CAOP 1, assassinados pelo PAIGC em 1970 (António Graça de Abreu)

17 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1668: In Memoriam do piloto aviador Baltazar da Silva e de outros portugueses com asas de pássaro (António da Graça Abreu / Luís Graça)

1 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1807: António Graça de Abreu na Feira do Livro para autografar o seu Diário: Porto, dia 2 de Junho; Lisboa, dia 10

7 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2414: Notas de leitura (5): Diário da Guiné, de António Graça de Abreu (Virgínio Briote)

domingo, 28 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3248: Eu, capitão miliciano, me confesso (1): Engenheiro agrónomo, ilhavense, 32 anos, casado, pai de 4 filhos... (Jorge Picado)


Ílhavo > Costa Nova > 25 de Agosto de 2008 > Eu e o nosso ex-Cap Mil Jorge Picado (*), numa esplanada local. Falando naturalmente da nossa Guiné e das nossas desvairadas vidas. O Jorge, que já está reformado, há uns largos anos, da função pública (foi engenheiro agronómo dos Serviços Regionais do Ministério da Agricultura), sofreu há meses, em Novembro passado, um duro golpe com a morte, aos 69 anos, da sua companheira, esposa e mãe dos seus quatro filhos (Ana Constança, Jorge Manuel, João e José Senos da Fonseca Picado). Maria José de Senos da Fonseca Picado, carinhosamente conhecida na Costa Nova como D. Zeca, foi uma das fundadoras e a grande líder da mais importante instituição privada de solidariedade social da região, o CASCI - Centro de Acção Social do Concelho de Ílhavo, fundado em 1980. Figura ilhavense muito conhecida e respeitada, era "uma força da natureza" - dizem os seus amigos e admiradores. 

 O Jorge é uma figura afável e um grande conversador, um verdadeiro tertuliano. Neste texto, que dá início a uma nova série ("Eu, capitão miliciano, me confesso"), conta aqui as suas peripécias como capitão à força no TO da Guiné... Ilhavense, é um talvez dos raros da terra que não fez a "tropa do bacalhau"... 

Nesta esplanada, havia vários amigos dele e do meu amigo, Zé António, ligados ao mar e às marinhas (mercante e de guerra), incluindo o comandante na reforma e antigo professor da Escola Naval, José Armando Leite, por sinal compadre de outro amigo meu, ilhavense, o Dr. João Sena Vizinho, especialista em medicina do trabalho... Na Costa Nova, que pertence ao concelho de Ílhavo, o mar faz parte, de resto, do ADN de (quase) todo o mundo (**)... 

Leia-se, a propósito, o blogue de Ana Maria Lopes, Marintimidades. A Ana Maria Lopes é a antiga directora do notável Museu Marítimo de Ilhavo, que é de visita obrigatória, para quem passar por aquelas bandas... (Tive o privilégio de ter, este ano, um guia excepcional, na pessoa do Arq José António Paradela, que é um ilhavense de razão e coração, e que aos 16 anos passou pela duríssima experiência da pesca do bacalhau na Terra Nova).


Costa Nova > Ria de Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > Um amigo comum, meu e do Jorge Picado, o Arquitecto José António Boia Paradela (pseudónimo literário, Ábio de Lápara).

Costa Nova > Ria de Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > A Alice e o Zé António atolados no "tarrafo" da ria... De repente, vi-me transplantado para as margens do Geba Estreito, nas proximidades de Mato Cão, quarenta anos atrás...

Costa Nova > 26 de Agosto de 2008 > c. 8h50 > Caminho pedonal entre as dunas, que vem da Praia da Barra... Um magnífico passeio. Parabéns aos ilhavenses e à Câmara Municipal de Ílhavo pelo seu contributo para a defesa e preservação das dunas desta costa fabulosa, líndíssima...

Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > Um tradicional barco moliceiro, hoje transformado em meio de transporte de turistas... Tradicionalmente, os moliceiro têm (ou tinham...) dois paineis de proa e dois de popa, de pintura naïve... Cada painel consta de um desenho policromado, com uma cena mais ou menos pícara, relacionada com o quotidiano dos pescadores ou dos camponeses da ria, enquadrada por cercaduras de flores ou figuras geométricas. Há sempre, na base, uma legenda-comentário, escrita às vezes em mau português, e com um segundo sentido (como no caso da imagem acima: "Mete as batatas no rego"...).

Costa Nova > Ria de Aveiro > Agosto de 2006 > A embarcação tradicional que fazia, até há pouco tempo, a travessia entre as duas margens, a Costa Nova e Ílhavo, cidade e sede do concelho... Parece que a carreira foi extinta... 

 Fotos (e legendas): © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

 1. Mensagem do nosso amigo e camarada Jorge Picado (*) com data de 26 de Setembro último: 

 Assunto - CPC/QC 

 Caríssimos Luís e restantes editores: 

 Acordei depois de regressar da belíssima Praia da Costa Nova, onde voltarei hoje para passar o fim de semana da tradicional Festa da Sra da Saúde, apesar de já não se assemelhar ao que era antigamente, mas que por tradição encerrava a época [balnear] e lembrei-me de escrever umas coisas que, se julgarem de interesse e oportunas publiquem. Se as meterem no cesto de papeis, não fico ofendido, podem crer, porque ás vezes dá-me a maluqueira e sou um pouco inconveniente. Abraços do Jorge Picado 

2. Na última década (?) de Agosto, na maravilhosa praia da Costa Nova do Prado onde passava o período estival, tive o grato prazer de rever, infelizmente por pouco tempo, o nosso Chefe da Tabanca Luís Graça, acompanhado de sua Esposa. Só não foi uma surpresa, porque o meu conterrâneo e amigo comum – Arq Paradela – que ele iria visitar, na véspera à noite, tinha-me avisado da sua passagem, a caminho da sua “Quinta” no Douro para uns dias de férias. 

 Foi com grande satisfação que (falámos abordámos) troquei [impressões com ele], Conversámos talvez durante uma hora, se tanto, sobre várias coisas vários assuntos…a minha terra… a profissão - até porque a mulher também era do Ministério da Agricultura … E, como não podia deixar de ser, veio também à baila a temática da Guiné e a minha “repescagem” para o serviço militar. 

Ao contar-lhe, muito superficialmente como e quando as coisas se passaram, fiquei com a ideia que manifestava um certo espanto. Não sei se foi impressão minha ou se na verdade o Luís ainda não se tinha inteirado bem da situação de como “apareceram” certos Cap Mil já um tanto “entradotes” na idade. Isto levou-me a pensar se não seria de deixar o meu testemunho sobre tal facto, até para que muitos possam compreender e ajuizar de certas situações vividas nos TO por quem conviveu com alguns desses “militares”. 

 Evidentemente que sobre esse assunto falo apenas por mim, mas tenho a certeza que das muitas dezenas de camaradas que como eu foram “obrigados” a ser Capitães, não teriam sido poucos os que apenas queriam era ver o tempo passar rapidamente e tudo fazer para preservar as suas vidas se possível de boa saúde, sem carrearem problemas de consciência pela vida dos jovens (que não tinham culpa alguma) obrigados a servir sob as suas ordens. 

OS CURSOS DE PROMOÇÃO A CAPITÃO DO QUADRO COMPLEMENTAR 

 Não sei se antes (do início da Guerra Colonial) já existiam destes cursos, mas quero apenas referir-me àqueles que passaram a existir quando a falta de Oficiais Subalternos para comandarem Companhias (sim, porque a verdade nua e crua sobre muitas vocações militares evaporou-se quando esta profissão teve de enfrentar armas a sério!!!), colocou o Governo de então na situação de lançar mão do expediente de repescarem os Oficiais Milicianos dos anos anteriores ao início da Guerra Colonial e antes de atingirem os 35 anos de idade, interrompendo-lhes as suas actividades profissionais e “subtraindo-os” até aos seus compromissos familiares, independentemente da sua vocação… 

 Faço aqui um parênteses para dizer que houve igualmente o caso dos Médicos que, até com mais idade pois alguns foram como Majores, mas estes iam exercer a sua profissão-especialidade e não comandar jovens em operações militares. Por isso não iam para CPCs ou afins. Começaram por conseguinte a convocar pelos COM que englobavam “os mancebos” no limite daquela idade e foram prosseguindo… até que este “filão” esgotou… e tiveram que “inventar” aqueles que o muito prezado Tertuliano Cor Rui Alexandrino denomina de “Capitães Proveta”, ainda que eu, apesar da idade com que fui chamado, também me considere como “um proveta”, dada a nula vocação militar (se a tivesse, após o 7.º ano liceal teria ido para a Academia Militar, pois que até era bom desportista e a prova disso é que fui o 2.º classificado do meu COM de AAA, graças claro às boas notas dos testes e da parte física que nunca pelo chamado “brio militar” que deixava muito a desejar…) e os fracos conhecimentos militares entretanto adquiridos… 

 Aproveito esta oportunidade, não para me desculpar que nada me pesa na consciência para que o tenha de fazer. Cumpri sempre as ordens que me foram dadas militarmente – em tempo de paz e na guerra – seguindo no entanto sempre aquela velha máxima de caserna mais ou menos assim: “na tropa, voluntário nem para descascar batatas”. Mas faço-o um tanto ou quanto espicaçado pelas duras, e porque não dizê-lo oportunas “críticas”, que o citado Rui faz no seu Rumo a Fulacunda, que aqui aproveito para elogiar e dizer que li (e hei-de reler) com enorme satisfação, não só por relembrar terrenos que pisei (e alguns também calcorreei), mas sobretudo por terem ficado tão “seguros” para mim, graças ao seu (ainda que outros também tivessem colaborado) profícuo labor e enorme capacidade e competência militar. Para o Rui e todos os outros, o meu agradecimento. 

 Depois destas divagações, que considero úteis para que possam compreender e então ajuizar certas situações vividas nos TO por quem conviveu com alguns desses “militares”, acrescento mais alguns pressupostos. Argumentariam talvez os defensores daquela época: “O País estava em guerra…era um dever Nacional que todos tinham por obrigação cumprir…”. Mas a verdade é que nem todos os dos COM eram chamados para estes Cursos. Apenas os que permaneceram nas Armas de Artilharia, Cavalaria e Infantaria, o foram. Ou seja, uns tinham mais obrigações do que outros! “Os de Engenharia não eram precisos, porque as necessidades desta Arma não existiam. Afinal só precisavam de Caçadores”, dir-se-ia. Mas se os Artilheiros (de AA e Costa) foram transformados em Caçadores, porque não transformaram também os Engenheiros? E porque é que alguns que tinham feito os COM naquelas Armas, foram depois, uma vez obtido um Curso de Engenharia, reclassificados (a seu pedido?) precisamente para não serem “apanhados”? E porque nem todos os Cursos de Engenharia permitiam tal reclassificação? 

Enfim, questões que naquela época não podiam ser afloradas, mas que nunca digeri, dado o meu ressaiboamento com a instituição militar (ou talvez fosse mais correcto com o Governo de então) que se foi gerando a partir da passagem a Aspirante Miliciano. Mas antes de prosseguir, como agora é corrente dizer-se quando se apresentam certas ideias, vou fazer a minha declaração de interesses. 

 Não tenho nada contra: (i) a Instituição Militar em si; (ii) todos aqueles que optaram pela carreira militar por convicção; (iii) todos os combatentes que se bateram nos diversos TO e o tenham feito por convicção ou sem ela (como no meu caso). Sou um pacifista, não daqueles folclóricos que empunhavam os cartazes Make love, not war, pois não sou tão ingénuo que julgue possível a resolução de todos os conflitos pelo diálogo, daí admitir a existência de Forças Armadas, é bom que se entenda. Mas ir para a guerra, quando não se optou por essa carreira, é preciso ter razões para tal…para bom entendedor… 

 Por isso após esta declaração de interesses, vou prosseguir com o assunto que me propus expor, mas as minhas queixas contra “o meu serviço militar” não são só as já afloradas. Cheguemos então ao CPC/QC que me transformou em Capitão, não de qualquer navio como as dezenas de conterrâneos meus, mas do Exército. Aquilo porque esperava há mais de um ano, aconteceu nos finais de Junho de 1969, quando recebi a convocatória para “frequentar o CPC/QC-2.º T.º/69, com início em 25/8/69, na EPI, nos termos da nota n.º18211-P.ºHC, de 27/6/69, da 2.ªSec. da RO/DSP/ME”. 

 Tinha: (i) 32 anos; (ii) cumprido o serviço militar obrigatório há 9; (iii) feito o 5.º ano do ISA [ Instituto Superior de Agromomia] há 10; (iv) sido convocado para prestar novamente serviço militar de 30/8/61 a 6/2/62 e de 18/8/62 a 17/10/62 duas situações que me inutilizaram 2 anos de ensaios de campo necessários para o meu trabalho de final de curso tendo como consequência apenas ter defendido a minha Tese do Final de Curso em Julho de 1963 (então já sem arriscar mais ensaios de campo), quando todos os meus colegas de curso já tinham 1 ou 2 anos de exercício profissional; (v) casado (até este acto esteve quase para ser impedido pela Instituição Militar) há 8; (vi) 4 filhos e (vii) trabalhava na Direcção Geral dos Serviços Agrícolas [DGSA] , mais exactamente com sede em Aveiro.

 No meio desta “desgraça”, felizmente que, no início de 1968, quando duma deslocação a Lisboa para reuniões de trabalho nos serviços da especialidade, fui alertado que o Covas Lima – de que já falei em história anterior – tinha sido convocado (ou estaria já?) para o CPC, pois era de COM anterior e, que se aproximava a vez doutro e também a minha - que era de COM posterior - de sofrermos a mesma sorte, pelo que tínhamos de tratar da nossa vida profissional visto que ambos estávamos ligados aos Serviços Agrícolas por contrato que, uma vez interrompido, nos fazia perder o vínculo à Função Pública, mesmo que a interrupção fosse motivada por convocatória militar. 

 Devo confessar que na “parvónia”, i. e. fora de Lisboa, estava completamente a leste destes conhecimentos e só por esta coincidência é que não fui apanhado desprevenido tendo, conjuntamente com essoutro colega, dado os passos necessários para que os Responsáveis da então DGSA salvaguardassem a nossa situação de forma a assegurarem-nos os postos de trabalho no caso de sobrevivermos. 

 Desculpem mais este à parte (ainda poderia acrescentar pelo menos outro), mas esta era a forma como nos tratavam então. Apresentámo-nos na EPI em Mafra no dia 25 de Agosto pelas 8H(?), devidamente fardados como constava das normas e de imediato, num dos corredores do Claustro bem perto da Porta de Armas(?), procedeu-se à formatura onde foi feita a chamada – para conhecimento dos possíveis desertores, que creio não ter havido – tendo sido dada a voz – pelo Ten do QP que nos comandava – de “apresentação a doentes(?)”, com a respectivamente formatura uns passos em frente. Para meu espanto – não sei qual foi a reacção dos restantes – logo se adiantaram alguns que, creio, seguiram quase de imediato para a consulta externa em Lisboa. 

Não sei quantos se safaram ou quantos regressaram, mas sempre guardei a imagem dum, que deve ter sido um bom actor – pelo menos amador no teatro da Academia de Coimbra – cuja face mais parecia ter sido revestida por “uma máscara de desvairado”. Uma coisa é certa, obteve os resultados que queria na Psiquiatria, pois livrou-se de tais sacrifícios pela Pátria. Estou a falar dum tal… oriundo da Figueira da Foz e mais não digo… Não posso precisar se fui o único – logo o 1.º – do meu COM de ART, mas creio que sim e apenas citarei os nomes daqueles de que me lembro. 

 Começarei logicamente pelos 3 colegas Agrónomos, que tivemos o mesmo TO por destino:

- O Ilídio Moreira, do curso de agronomia anterior ao meu, foi Cmdt duma CCaç (Geba) dum BCaç sedeado em Babadinca de 1970-72; 

 - O José Maria Queiroga (o tal que estava nas mesmas condições quanto ao emprego), do meu curso, foi chefiar a EAFB (Serviços Agrícolas) de 1970-72;

 - O António Clemente da Costa Santos, igualmente do meu curso, na REPACAP do COMCHEFE de 1970-72; 

 - O João Cupido, de Mira, e que passou a ser meu colega nas viagens a casa aos fins-de-semana, deixando-o à sua porta e apanhando-o lá ao Domingo à noite no regresso a Mafra, cujo destino também foi a Guiné como Cmdt da CCaç 2753 , onde teve um brilhante Alf Mil que conheci nas margens do RCacheu e não mais me esqueci (mesmo desconhecendo o seu nome, até ao encontro de Monte Real. Gratas recordações, podes crer, Victor Junqueiro); 

 - Tenho uma vaga ideia de que havia um Morais, assim para o gordinho e ar e espírito bonacheirão que teria desertado já em Moçambique (?). 

 - Um Ten MIL que tinha continuado na vida militar e vinha do Quartel da GNR que existia perto das Janelas Verdes, cujo destino desconheci; 

 - Os 3 jovens Alf Mil (ou graduados em Ten?) já com uma comissão e voluntários para seguir a carreira, respectivamente Fernandes (o Cap da famosa expressão do “Verão Quente”, “as armas estão em boas mãos”), Caimoto que também foi para a Guiné e um 3º de que não sei o nome; - Havia ainda um Nascimento que, creio, usava óculos. 

 Pronto, são estas as minhas recordações concretizáveis dos camaradas do CPC. A esta distância, sem qualquer elemento de referência, nem sei quantos éramos, mas o sentimento que guardo sobre a disposição, o (des)interesse, a resistência manifestada à execução da preparação militar que nos era ministrada (analisado agora até me parece que era ou foi um contra-senso) e a quezilência para com os instrutores, posso afirmar que era maioritária. 

Quanto aos instrutores: 

 - Havia um Major, mais para o baixo do que alto, talvez o Cmdt do curso e que nos ministrava uma das disciplinas teóricas, mas já nem sem qual. 

 - Um Cap ou ainda Ten do QC, com uma comissão pelo menos em Angola, que nos ministrava assuntos de Manutenção Militar, de que recordo conscientemente as vezes com que nos chamava a atenção para o cuidado e atenção que devíamos dispensar ao controlo administrativo da Companhia, para que no final da comissão não sofrêssemos qualquer dissabor. Repetiu-nos estes conselhos vezes sem conta, dando-nos exemplos concretos de camaradas “apanhados”, no final das comissões, nas malhas “de outras guerras” que a maioria das pessoas, e com certeza até muitos dos camaradas, desconhecem. 

 Devo confessar que na altura achava toda aquela conversa um tanto ou quanto estranha. Afinal estavam-nos a preparar para comandar soldados numa guerra ou para chefiar uma qualquer repartição administrativa (até uns mapas impressos numas folhas muito compridas me faziam lembrar os existentes nas Repartições de Finanças, que conhecia fruto do meu contacto por ter pertencido à Comissão de Avaliação dos Prédios Rústicos de Ilhavo)? A verdade é que também ia sendo “tramado” nessa outra guerra da MM. Se tiver disposição ainda contarei esse episódio. 

 Não sei quantos Ten do QP nos ministravam outras matérias incluindo as propriamente militares, desde a ordem unida, passando pela aplicação militar, tácticas, provas de campo, etc. Os últimos dias foram considerados como estágio complementar que constou dumas visitas a outras Forças com quem poderíamos ter de actuar, tais como: Fuzileiros; Força Aérea em Tancos e Operações Especiais em Lamego, onde terminámos no CIOE o estágio complementar do CPC no dia 20DEZ, data em que garbosamente fomos promovidos automaticamente a Capitães! E era assim que em 118 dias (não úteis), se transformavam simples paisanos (a maioria, pelo menos, sem motivação e naqueles anos já não apoiantes de tal guerra) de 32-33 anos em “brilhantes” Capitães, que eram dados como aptos para comandar tropas numa guerra daquela natureza? Por isso caros camaradas pergunto. Ainda se admiram de situações menos correctas de certos Cmdt de Companhia? Era assim que queriam ganhar a Guerra? 

 Desculpem, mas tenho por mim que muito fizeram eles. E com estas condições até me admiro como não houve mais mortos devido à sua inexperiência militar. No dia 21 de Dezembro passámos à situação de licença registada, ficando a aguardar (mesmo que tivessem perdido o emprego) o resultado, não do totoloto ou do euro milhões que ainda não existiam, mas do “bilhete premiado” na lotaria dos TO e Unidades. 

 _________ 

 Nota de L.G.: 







Guiné 63/74 - P3247: O Nosso Livro de Visitas (30): José Augusto de Araújo, 1.º Cabo At Cav, CCav 2639, Binar, Bula...(1970/73)

Apresenta-se o José Augusto de Araújo, ex-1º Cabo Cav, CCAÇ 2639




Caros amigos ex-combatentes, daqui vos envio as minhas saudações para todos quantos fazem parte desta Tabanca Grande, e não só! Mas passemos ao que interessa.

Eu gostaria de fazer parte da vossa já longa lista de ex-combatentes, motivo pelo qual vos estou a contactar! Passo portanto a apresentar-me:



Nome: José Augusto de Araújo

Posto/especialidade: 1º cabo Atirador de Cavalaria

Unidade mobilizadora: Reg. de Cav. 7

Companhia Cav 2639

Grupo de combate: 4º pelotão

Local: Guiné

Zonas de acção: Binar, Bula, destacamentos de Pete, Ponta Consolação, Capunga,e Bissum-Naga.


Junto as duas fotos necessárias para o vosso ficheiro/arquivo:





Com os meus agradecimentos

José Augusto de Araújo

__________


Notas:


1. Caro Camarada José Augusto:

Estás apresentado com as honras que te são devidas. Ficamos agora a aguardar a tua Memória.

vb

2. artigos relacionados em

sábado, 27 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3246: Simpósio Internacional de Guileje: Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, saúda António Lobato, ex-prisioneiro (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guileje > 7 de Março de 2008 >

Depoimento gravado por Luís Graça, em Bissau, no Hotel no dia 7 de Março, por voltas 13h11, no último dia do encerramento do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008). 

As condições de luz eram más e a máquina era uma digital, de fotografia e não de vídeo. Joseph Turpin era um dos históricos do PAIGC, juntamente com Carmen Pereira e Carlos Correia, que estiveram presentes no Simpósio. Pediu-me para mandar uma mensagem para o António Lobato, o antigo sargento piloto aviador portuguesa, cujo T 6 foi abatido em 1963, na Ilha do Como (*). 

 Feito prisioneiro pelo PAIGC, o Lobato foi levado para Conacri, onde permaneceu sete longos anos de cativeiro, até à libertação em 22 de Novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde. 

"Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim..." - são as primeiras palavras deste representant do PAIGC, na altura a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta. 

 Neste curto vídeo, o Turpin recorda os momentos em que, por diversas vezes, visitou o nosso camarada na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que revelaram o melhor da nossa humanidade... 

"Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade"... 

Joseph Turpin agradece ao Lobato as palavras de apreço com ele se referiu à sua pessoa, ao evocar há tempos, em entrevista à rádio, a sua experiência de cativeiro. Agradece o exemplar do livro que o Lobato lhe mandou e que ele leu, com interesse. Diz que ficou sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato. 

"Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau" - são as últimas palavras, deste homem afável, dirigidas ao teu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada... 

 O Joseph Turpin insistiu comigo para entregar pessoalmente ao António Lobato esta mensagem. Infelizmente só agora tive oportunidade de o divulgar no nosso blogue (*), esperando que ele acabe por chegar ao conhecimento do seu destinatário. 

Não tenho, por outro lado, nenhum contacto pessoal com o António Lobato, que só vi uma vez, por ocasião da estreia do filme-documentário As Duas Faces da Guerra, de Diana Andringa e Flora Gomes. Espero, ao menos, que  alguém possa garantir, ao Joseph, em Bissau, que "a carta chegou a Garcia".

Para o António Lobato vai, da nossa parte, da minha e dos meus editores, bem como de toda a nossa Tabanca Grande, uma palavra de respeito, camaradagem, solidariedade e apreço.

Entretanto, da conversa que tive em Bissau, com o Joseph Turpin, recordo-me de ele me ter dito o seguinte: 

(i) O Élisée Turpin era seu tio e fundador do PAIGC (**); 

(ii) O Amílcar Cabral ficava originalmente em casa do pai do Joseph em Conacri; 

(iii) Eles eram uma família de comerciantes; 

(iv) Não falavam português, mas francês - o próprio Joseph aprendeu o português mais tarde... 

 Vídeo (1' 36''): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Vídeo alojado em: You Tube >Nhabijoes.

__________ 

 Notas de L.G.: 

 (*) Vd. poste de 26 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3244: Bibliografia de uma guerra (32): Liberdade ou Evasão (Carlos Vinhal) 

 (**) Vd. poste de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC (Élisée Turpin)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3245: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (4): Honório, o cow-boy dos ares (José Nunes)

1. Mensagem, de 22 de Setembro do corrente, do José Nunes (*), ex-1.º Cabo Mec Elect de Centrais, do BENG 447 (1968/70).

Um dia tenho de me deslocar em serviço para Bissum-Naga, pelas 7 da manhã. Sou colocado na base do gabinete de transportes. Não estava pessoal nenhum. Passados uns momentos aproxima-se um indivíduo mestiço, com quase dois metros, pistola pelo joelho, tipo cowboy:

- Então, pessoal, vamos viajar, eu sou o Honório.

Na minha frente o mítico piloto que quase ninguém conhecia e todos suspiravam de alívio quando o motor do seu avião roncava nos céus da Guiné. Era norma entregar os carregadores da arma ao piloto e ele verificar se não havia munição na câmara. O Honório vira-se para e diz:

- Alguém me quer matar? Então vamos lá.

Dirigimo-nos para a DO:

- Engenheiro, tu vens prá frente.

A DO só tinha dois assentos à frente, a caixa de carga era onde a malta viajava. Levantamos, diz o piloto:

- Como temos aí amigos que andam pela primeira vez de avião, temos de fazer disto um passeio...

Voámos sempre por cima da estrada da base até João Landim. Todas as curvas da estrada foram feitas como se fôssemos de automóvel. Dirigia-se para Bula uma GMC carregada de pessoal, descia em direcção à jangada no rio, o amigo Honório ao ver a GMC dá uma gargalhada e diz:

- Ah!, vocês vão aí?!

Pica a DO direito à GMC e eu só vejo pessoal a saltar da viatura em andamento. O avião levantou e ele ria , ria...
Ao aproximar-nos de Bula numa bolanha lá andava pessoal a trabalhar e ele novamenta pica o avião direito ao pessoal, e eu cada vez mais mal disposto com as manobras bruscas do avião:

- Engenheiro, olha em frente, não o obstáculo, vê-se pelo canto do olho...

Antes de aterrarmos em Bula, demos duas voltas a indicar que íamos aterrar, o avião faz-se à pista de terra e fica um soldado de braços no ar petrificado a ver o avião aproximar-se. A aterragem teve de ser abortada, voltámos, nova volta e aterrámos. Ao aterrarmos, o Honório foi logo procurar o soldado e galhofar com o medo que apanhara.

Entretanto, aproxima-se um Tenente-Coronel:

- Honório, eu vou para Bissum.

- Não vai, não, o engenheiro têm prioridade, e os dois artilheiros fazem falta em Bissum... ou não ? - replicou o piloto.

- O senhor é que sabe! Vou na próxima semana - respondeu o oficial superior e e afastou-se.

Levantámos para Bissum, e assim que o avião aterra, o piloto desaparece.
Mais tarde vim a saber que o piloto gostava de ser mimado com uns bons petiscos. Rolas não faltavam naquelas bandas, e como ele gostava de passarinhos fritos, na semana seguinte dia de avião era sinónimo de frescos e pescada congelada...

Quando vinha, lá ia ele pró petisco. Quando volta, o avião está carregado, ele aproxima-se e diz:

- Senhor Tenente-Coronel, quantos quilos de carga temos ?

- Não sei.

- Então descarregue tudo e diga-me o peso! Se esta merda não levanta e bate nas palmeiras, lá dizem que o Honório é maluco, mas não é, sabe o que faz.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Um Dornier, DO 27, na pista, de terra batida, do aquartelamento. Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006).

Viajei com o Honório mais uma vez, mas via-o no Hotel Portugal normalmente a jantar com um capitão operacional, sempre que este vinha a Bissau comer bife com ovo a cavalo e beber uma garrafa de Antiquary.
Quando conheci o Honório estava ele nos Transportes. Dizia-se que tinha ido deixar umas encomendas numa base aérea no Senegal, até houve bronca na ONU. Fez de tudo nos céus da Guiné, Fiat, T6, DO (**).

Faz bem recordar camaradas que com abnegação tudo deram sem nada pedir em troca. Ao ler o post sobre Honório (***), veio-me à memória as viagens que fiz com ele. Onde quer que estejas a minha singela homenagem.
___________

Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

13 de Setembro de 2008 >Guiné 63/74 - P3202: Estórias avulsas (22): Missão Católica ou Missão Heróica? (José Nunes)

22 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2469: Tabanca Grande (55): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Electricista de Centrais (BENG 447, 1968/70)

(...) "Apresenta-se na Tabanca [Grande] o 1.º Cabo Mec Electricista de Centrais, do BENG 447, José Silvério Correia Nunes. Estive na Guiné de 15 de Janeiro de 1968 a 15 de Janeiro de 1970. Para regressar, paguei a passagem de avião na TAP, pois só em Março deveria haver barco de regresso. Fiz assistências e electrificações em aquartelamentos como Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglês, Bolama e Bissum-Naga" (...).

(**) Salvaguarda-se a afirmação do José Nunes que parece não corresponder à realidade, uma vez que o Honório não terá pilotado Fiat.

(***) Vd. postes de:

22 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3224: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (7): Honório, o aviador...

23 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3226: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (1): Honório, Sargento Pil Av de DO 27 (Jorge Félix / J. L. Monteiro Ribeiro)

24 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3232: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (2): O Honório, meu amigo (Torcato Mendonça / Alberto Branquinho)

24 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3234: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (3): O Honório que eu conheci... em Luanda (Joaquim Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P3244: Bibliografia de uma guerra (32): Liberdade ou Evasão, de António Lobato (Carlos Vinhal)

1. Ao falarmos do livro Liberdade ou Evasão , do então (1995) Tenente Piloto da FAP António Lobato (hoje Major), mais não queremos que prestar a nossa homenagem ao militar que, nos limites da impotência, escolheu a prisão em troca da liberdade, que lhe era concedida se traísse os seus princípios e os seus camaradas que lutavam nos céus, nos rios e nos diversos chãos da Guiné.



Liberdade ou evasão: O mais longo cativeiro da guerra
Autor: António Lobato
Colecção: Memória do Tempo
Editor: Rui Rodrigues
Editora: Erasmos
Local: Amadora
Ano: 1995
Nº páginas: [6], 187, [27]

Foto da capa: © ERASMOS e António Lobato

2. No dia 22 de Maio de 1963, houve uma colisão entre dois aviões da FAP, quando em missão de ataque ao solo, na ilha do Como, e após um deles ter sido atingido por fogo IN.

 Depois do toque, um dos aviões despenha-se em plena selva, tendo morrido o piloto e o outro faz uma aterragem de emergência numa bolanha, tendo o piloto sido capturado e maltratado por elementos do PAIGG.

O sobrevivente, o Sargento Pil Av Lobato, é levado, ferido, para a Guiné Conacri onde lhe é dada a hipótese de escolha entre a deserção da Força Aérea Portuguesa ou a prisão nas cadeias dos PAIGC.

Quem é este homem ?

António Lobato, minhoto, natural de Melgaço, foi um dos percursores da Força Aérea na Guiné:

(i) Iniciou o seu curso de pilotagem em Setembro de 1957, em S. Jacinto, Aveiro;

(ii) Embarcou para a Guiné em Julho de 1961, onde nem sequer havia infraestruturas para a Força Aérea;

(iii) Depois de muito trabalho, sem condições, em Setembro do mesmo ano acaba-se de montar o primeiro T6, que descola da pista de Bissalanca, tendo aos comandos o António Lobato.

Foi este o início da sua guerra, nas sua próprias palavras.


Guiné> Vista aérea da Base Aérea 12> Bissalanca

Um DC6 no Aeroporto de Bissalanca.

Fotos retiradas do Blogue dos Especialistas da BA12, Guiné 1967/74, com a devida vénia


A Missão, o acidente e a captura

Depois de inúmeras operações nos céus da Guiné, no dia 22 de Maio de 1963, aconteceu o acidente durante uma missão na Ilha do Como.

Após a queda do avião, acidente de que saiu praticamente ileso, mal pôs os pés em terra foi atacado e ferido com gravidade por cerca de duas dezenas de naturais, armados com catanas.

Começa assim o seu calvário. É levado de acampamento em acampamento até chegar à presença de um jovem guerrilheiro da Zona Sul, Nino Vieira, que o informa de que o seu destino será Conacri.

Já neste país, desembarca em Sansalé onde os seus ferimentos são tratados. Embarcado no navio Bandim, recentemente capturado aos portugueses, segue viagem até Victória onde é desembarcado, seguindo depois por terra até Boké e daqui finalmente para Conacri.

Aqui é-lhe proposto que faça uma declaração à rádio contra a política ultramarina de Salazar, comprometendo-se a nunca mais combater em África pelas Forças Armadas Portuguesas, tendo como contrapartida a liberdade em qualquer país do Leste para trabalhar ou estudar. Como recusasse a proposta foi encarcerado na Maison de Force de Kindia, em condições no mínimo desumanas. Estava-se entretanto no dia 17 de Junho, decorridos 27 dias sobre o acidente.

Muitos anos de cativeiro e três tentativas de fuga, a última das quais proporcionando uma semana de liberdade.Recapturado, António Lobato e os companheiros de fuga são reconduzidos à prisão, de onde saem finalmente, e em definitivo, no dia 22 de Novembro de 1970, libertados durante a Operação Mar Verde, planeada e conduzida pelo Comandante Alpoim Calvão.

São muitas as peripécias vividas e descritas, assim como o susto que apanharam no dia em que lhes é servido frango assado ao almoço e lhes é franqueada a porta para o recreio. Saem receosos de ter chegado a hora da execução, mas afinal era para serem fotografados pelo célebre fotógrafo húngaro, Bara István.


Guiné-Conacri > Conacri > Instalações do PAIGC > 1970 > Prisioneiros portugueses, fotografados pelo fotógrafo húngaro Bara István (nascido em 1942).

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria (com a devida vénia / with our best wishes...)


Vou transcrever parte da página 168, onde António Lobato compara dois tipos de comportamentos entre os seus sequestradores.

Referindo-se ao chefe dos sentinelas da Maison de Force de Kindia, o Koda, apelida-o de racista e como tendo um ódio de morte aos prisioneiros, cuja sorte são as ordens emanadas pelos dirigentes do PAIGC, para que a vida lhes seja poupada.

Diz então António Lobato:

- O comportamento deste homem não pode servir de exemplo para qualificar os outros guerrilheiros do PAIGC e muito menos uma parte dos seus responsáveis. De entre estes, merecem especial referência, Fidelis Cabral, Aristides Pereira, Joseph Turpin e o 'Tio Lourenço', não só pela sua moderação, sensatez e sabedoria, mas sobretudo, pela força do humanismo que deles emana e se repercute em quantos, por razões comuns ou mesmo contrárias, se encontram à mercê das suas decisões. São os homens bons do presente, mas sem dúvida também os do futuro.

Mas, para se ter uma ideia mais precisa do que passou em cativeiro o Tenente António Lobato, nada melhor que ler o seu livro. A descrição dos longos dias de caminhadas pelo mato da Guiné, após a sua captura, das tentativas de fuga, das condições de vida na prisão, em cubículos de dimensões reduzidas, e do poder da resistência física e mental que ele conseguiu manter naquelas condições adversas, resistindo estoicamente durante sete anos e meio, tocam o leitor até à última página.

Obra quase no limite da ficção, até pela odisseia em que se transformou a libertação colectiva dos prisioneiros portugueses em Conacri.

Sendo a Operação Mar Verde um segredo de Estado, António Lobato é obrigado a assinar um documento onde se compromete a não revelar a verdade e, em entrevista à Televisão (previamente gravada), transforma a sua libertação numa fuga individual bem sucedida. Por que o fez, poderão saber no livro.


Foto do Tenente Lobato quando, no passado dia 31 de Maio de 2008, os Especialistas da Força Aérea, que serviram na Guiné, o homenagearam com o respeito que ele nos merece. Junto e ladeando-o estão o Victor Barata e o Carlos Wilson, organizadores deste evento.

Guiné 63/74 - P3243: Blogpoesia (26): 35 anos de Guiné-Bissau: A minha contribuição para a tua festa, meu irmão, minha irmã (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da Semana > 27 de Abril de 2008 > "Esta foto será legendada muito em breve. Aos nossos visitantes pedimos desculpas pelo atraso"...

Querido Pepito, queridos amigos da AD e da Guiné-Bissau, irmãos e irmãs: para quê mais palavras, se esta imagem vale por mil palavras ? Metaforicamente falando, está aqui a tua Guiné, a vossa Guiné, a nossa Guiné, a aprender a andar, a cair e a pôr-se de pé, como jovem nação que é...

É a minha leitura, ou sugestão de leitura, se mo permitem: sem cinismos, sem paternalismos, com a com + paixão com que eu, à distância de milhares de quilómetros, vos vejo, e às vossas boas obras...

Força, amiga, força, irmã!... Que o caminho se faz caminhando, parafraseando o grande poeta espanhol António Machado ("Caminante no hay camino, se hace camino al andar", poema popularizado pelo cantor catalão Joan Manel Serrat)


Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento. Direitos reservados (Com a devida vénia...)


35 anos de Guiné-Bissau:
A minha contribuição
para a tua festa, meu irmão, minha irmã (Luís Graça)
(*)

Dedicatória:

A todos os que morreram na guerra colonial,
guerra do ultramar
ou luta de libertação,
na Guiné...
Para que o sacrifício das suas vidas
não tenha sido gratuito
nem em vão.
E para que nós próprios possamos,
no nosso dia, na nossa hora,
morrer finalmente em paz...



Há quem diga, cinicamente,
que a única coisa que os guineenses ganharam,
com a independência,
foi um hino,
uma bandeira
e uma pátria…
O que já não era pouco,
não é pouco.
Mas eu acho que ganharam muito mais:
ganharam também o direito de serem homens,
citando o Amílcar Cabral,
meu inimigo, meu irmão.
Ganharam o direito de serem eles mesmos.
De escolherem o caminho,
a picada,
a estrada,
o trilho do futuro.
O direito de escolher
e, por conseguinte,
o direito também de errar.

A independência não se conquista,
constrói-se.
Portugal, que é uma velha nação da Europa,
com uma identidade já milenar,
é um bom exemplo disso.

Convenhamos
que o balanço destes 35 anos,
de independência,
da tua independência,
podia ter sido mais exaltante…
Onde está o homem novo,
onde estão os amanhãs que cantam,
as palavras de ordem da cartilha marxista-leninista
que te ensinaram ?
Mas 35 anos é um lapso de tempo
que não é nada na história de um povo,
na história dos teus povos
na história da tua África,
na história da nossa humanidade…
E muito menos na cronologia da vida na terra…
Não nos compete, a nós, velhos tugas,
fazer esse balanço
substituindo-nos aos nossos amigos guineenses
que hoje comemoram,
sem pompa
nem circunstância,
os 35 anos em que o PAIGC,
sem pedir autorização a ninguém,
e muito menos ao Governo português de então,
declarou unilateralmente a independência,
nas matas do Boé…

Fizemos as pazes,
reconhecendo formalmente,
um ano depois,
a independência do novo país lusófono.
Só tenho pena que Amílcar Cabral,
o preto mais português de África,
já não fosse vivo.
É que não foi só um hino,
uma bandeira
e uma pátria
que os guineenses ganharam.
Ganharam também uma língua que os une,
do Cacheu ao Tombali…
E essa não é mais a língua dos estrangeiros
e dos colonizadores…
É a língua, viva, de uma comunidade de irmãos,
crescidos,
que foram à vida,
que estão espalhados pelos vários continentes,
mas que mantêm entre si uma rede
de afectos,
de interesses,
de valores,
de códigos,
de signos,
de idiossincrasias,
de cumplicidades,
de memórias,
de sabores,
de cheiros,
de encontros
e de desencontros,
de velhos ódios
e de novos amores...

Não, não vou chorar por ti, Guiné-Bissau (***).
Estamos também aqui para festejar o teu dia,
o teu parto…
Violento, doloroso, distócico ?
Meu irmão, minha irmã:
o nosso não o foi menos…
Agora vamos lá aumentar a tua esperança de vida
e melhorar, pouco a pouco,
a tua qualidade de vida…
Guiné, o teu povo,
valente, afável e valoroso,
hospitaleiro e generoso,
bem o merece.
O melhor do teu povo,
as tuas crianças,
bem o merecem.
Faz isso por ti,
por elas,
por todos nós.

Luís Graça

Portugal, 24 de Setembro de 2008

________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 11 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3193: Blogpoesia (25): Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma a uma madrinha de guerra (Luís Graça)

(**) Vd. poste anterior > 24 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3236: Efemérides (10): 35.º Aniversário da declaração unilateral da Independência da República da Guiné-Bissau (V. Briote)

(***) 31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2704: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (12): Que o Nhinte-Camatchol te proteja, Guiné-Bissau

Guiné 63/74 - P3242: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (45): Um almoço tardio com um engenheiro exterminador


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.




Operação Macaréu à vista

Episódio XLV

UM ALMOÇO TARDIO COM UM ENGENHEIRO EXTERMINADOR
Beja Santos

Fotografias amorosas no Bambadincazinho e outras estórias


A Guiné está alagada, todos os cursos de água que passam pela região de Bambadinca transformam-se em lama, recordam-nos o dilúvio permanente, água no solo, nos rios, ribeiras, bolanhas, estradões, picadas, valas. Passámos a noite na missão do sono, assim começou o mês de Julho. Ao nascer do dia, procurei desentorpecer o corpo com um duche, dormitei e a seguir fui buscar Malaquia, a linda noiva de Fodé Dahaba, à tabanca de Bambadinca para tirarmos fotografias destinadas ao seu amor em Lisboa. Fodé Dahaba ainda está no Hospital Militar Principal, adapta-se a uma prótese, ainda cambaleia, pede notícias, quer que eu venha depressa, garante não querer regressar à Guiné sem me ver em Lisboa. Em Bambadinca converso com Jará, a mãe de Malaquia, apareceu engalanada, traz um vestido de cores ciclâmicas, a menina aparece também em indumentária festiva, lá vamos de jeep com o avô Quebá, imponente em traje muçulmano com sabadora azul debruada a ouro. No Bambadincazinho, de onde parti há escassas horas, aguardo um primozinho Dahaba que é almani, tias, sobrinhos, a mãe daquele e daqueloutro, tudo em tons garridos, seguem-se dois rolos de fotografias com grandes poses, há risadas mas também a grande apreensão por esse Fodé ausente há mais de um ano e meio. A todos procuro consolar, prometo a Malaquia escrever ainda hoje a Fodé garantindo que o homem mais bonito do mundo é noivo da bajuda mais linda da Guiné, da Gâmbia, da África Ocidental, de todos os continentes.

Rua de Bambadinca em dias de chuva

No regresso, vou procurar pôr o correio em dia. O mandinga Sana Mané, milícia de Missirá, pede ajuda pecuniária e comunica que houve um ataque de foguetões em Farim. Entra o Pires para informar que vão mais quatro soldados para os Nhabijões conjuntamente com gente da CCS, temos um pelotão reduzido a vinte homens. Não me dá tempo para eu refilar, esta noite voltaremos para a emboscada nocturna, amanhã estaremos na ponte de Udunduma, seguir-se-á uma coluna ao Xitole e pergunta-me em que dia é que passaremos a fazer patrulhas diárias na estrada Xime-Bambadinca. Pelas informações que disponho, seremos vigilantes da Tecnil a partir de 6 e muito provavelmente até ao fim do mês, isto independentemente dos reforços de urgência, as colunas ao Cossé e a Badora, os patrulhamentos nos Nhabijões, a secção que vai a Bafatá buscar correio e os frescos, e o mais que se sabe.

Escrevo à Cristina comunicando que o Queirós já vai a caminho de Lisboa, é prémio governador da Guiné, peço desculpa pelas lembranças pobrezinhas, sou um marido casado de fresco com falta de dinheiro. Nesse aerograma apresento assim o Queirós: “É um Teixeira mais pequeno, é um leal amigo, é destemido, tivesse estudado seria um oficial exemplar”. Refiro que estou a ler uma colectânea de contos sobre vampiros organizada por Roger Vadim, procuro acabar “A Erva Canta” de Doris Lessing, que houve cinema na tabanca, “O Aventureiro de Cincinnati”, com Steve McQueen, Edward G. Robinson e Ann-Margret, um drama à volta do jogo do poker, uma interessante realização de Norman Jewison, que continuam os assaltos nos Nhabijões, para nós é uma situação incompreensível, só de manhã é que a população se vem queixar, não se ouvem gritos, não há tiros nem desacatos, é uma estranhíssima conspiração do silêncio. Termino dizendo que ainda ninguém sabe da minha substituição, vaticina-se que o substituto possa demorar mais um mês ou mesmo dois. Neste aerograma, para não a afligir mais, escondo-lhe que o furriel Ocante vai ser evacuado, que o sargento Cascalheira vai ser operado em Bissau e que o furriel Pires dá sinais de esgotamento. Penso para os meus botões que a situação ideal para esta altura era sermos desterrados para os Nhabijões e aqui ficarmos esquecidos.

Continuadas surpresas com a literatura emprestada por D. Violete

Os nossos encontros lembram os dos espiões. Saio da messe de oficiais com uma resma de papéis debaixo do braço, atravesso placidamente a estrada, avanço para a escola, viro à direita, bato à porta da casa da professora, quando de lá saio trago à mesma porções de papéis, é preciso estar atento para saber que é uma resma de outras preciosidades. Curiosamente, desta feita, venho com papéis magros, jornais amarelecidos, folhas desirmanadas. Tudo me serve para me sentir ocupado neste tempo de marasmo, de desconsolo, os meus vínculos não passam por esta nova unidade mas sim pelos meus soldados e pelo que quero aprender da Guiné. Com o caderninho viajante aberto, escrevo o que me parece útil com a esferográfica Bic.

D. Violete passou-me uma revista chamada Ocidente, lembrou-me a revista Ilustração Portuguesa, fotografias e textos curtos. O número é de 30 de Novembro de 1907 e fala de uma rebelião na Guiné Portuguesa. O autor, depois de insistir na falta de auxílio da metrópole, escreve: “Bissau, batido em 1904, sendo o governador o actual general sr. Vasconcellos e Sá, depois de ali termos sofrido um grande desastre em 1891, não se pensou nunca em o ocupar; depois de tantos sacrifícios e abnegações, ficámos com o domínio efectivo somente na fortaleza”. E mais adiante: “Os indígenas na região de Geba foram sempre considerados os mais submissos e nossos amigos; foram nossos auxiliares na campanha contra o Oio. Foi a região escolhida pelo o governador Biker para implantar o imposto, cobrado pela primeira vez em 1902, sob a designação por imposto de capitação, e no ano seguinte transformado no imposto de palhota actual”. Começo a perceber que esta prosa obedece a uma orientação crítica, sabe-se lá quem pretende insinuar torpezas sobre o governante de Bolama, pondo-se praticamente ao lado de Infali Soncó e denegrindo o régulo do Xime: “Diz-se que o régulo Infali Soncó estava descontente por lhe terem sido tiradas umas armas pertencentes ao Estado, e que aproveitou o pretexto de umas bofetadas aplicadas a um súbdito. Cremos que ele não sentiria menos as bofetadas do que o desgosto de lhe tirarem as armas, porquanto o esbofeteado não foi um súbdito qualquer foi um dos seus judeus, tocador de marimbas. As armas que lhe foram agora tiradas, tinham sido emprestadas por um governador para ele se defender contra as incursões e roubos dos balantas de Enxalé, que confina com o seu território. Ele, autorizado pelo governador, fazia guerra a seu modo, de represálias, queimava povoações, apreendia mulheres, gado, etc, àqueles povos que não queriam saber do nosso domínio nem nos pagam imposto (...). A má vontade da maior parte dos régulos fulas a Abdulai do Xime é já antiga. Desde que Abdulai é régulo do Xime nunca os fulas quiseram reconhecer a sua autoridade e abandonaram o território, tendo pedido desde então um régulo da sua raça. O Xime está despovoado. Tem sido uma teimosia querer impor pela força aos fulas um régulo originário de território francês. Com esta nova guerra vamos levantar inimizades com chefes que sempre têm sido nossos amigos porque se muitos hão-de ser por nós, alguns hão-de ser contra nós...”. Fica-se mesmo a perceber que há uma opinião pública descontente, a crítica publicada no Ocidente é, sem margem para dúvidas, uma chamada de atenção para o Terreiro do Paço. Suspendo as leituras por aqui, tenho ainda outra crítica ao governador Muzanty para examinar e depois quero ler um livro com belas ilustrações, Babel Negra. Fica para depois das emboscadas nocturnas, das colunas e dos patrulhamentos. Talvez amanhã, talvez depois.

O livro de Landerset Simões propõe-se abordar a etnografia, a arte e a cultura da Guiné. Em tudo fica pela rama, mas não deixa de ser curioso. É uma imagem muito própria dos anos 30, com destaque para o exotismo, numa atitude colonial de revelação do indígena com hipóteses de vir a ser civilizado. Aliás, o general Norton de Matos escreve na apresentação: «O autor deste livro é um colonial. Classifico-o de colonial, porque revela no seu trabalho as qualidades essenciais. A vocação que o levou a África, a maneira como se deixou envolver pelo meio estranho em que quis penetrar, sem se deixar dominar por ele, sem perder as qualidades de colono portador e iniciador de uma civilização superior àquela que já encontrara.»
Esta fotografia é de uma impressionante beleza.


O alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca

São aproximadamente nove quilómetros a distância que separa o aquartelamento do Xime do destacamento-povoação de Amedalai. Os primeiros dois quilómetros às portas do Xime estão concluídos, desmatou-se amplamente à volta, é um território com extensas bolanhas, o perigo de emboscada é quase improvável (disseram-me mesmo que nunca houve aqui emboscadas). Os construtores da estrada lembraram-se mesmo que vivemos uma guerra, a maquinaria está permanentemente exposta a actos destruidores, tem por isso que recolher a porto seguro, todos os dias. De Amedalai até Ponta Coli há alguns perigos, desmatou-se tudo à volta da estrada, já se prepararam os primeiros dois quilómetros, pelo menos o macadame está pronto a receber o tapete de alcatrão. Os trabalhadores da Tecnil partem ao amanhecer seja do quartel do Xime seja do destacamento de Amedalai. Nós preparamos a segurança, a partir das cinco e meia da manhã, com os primeiros alvores do dia. À frente, um grupo de cinco picadores, depois dois Unimog 404 pejados de trabalhadores, depois as máquinas, das mais potentes às mais ligeiras, nós flanqueamos, as viaturas seguem lentamente, a maquinaria faz-se ouvir, esmagando o saibro da estrada. Nisto levamos uma hora. Só que estamos na época das chuvas, o amanhecer faz-se com alguma neblina, redobram-se as cautelas, depois o dia aquece mesmo sufocando as gargantas e as narinas, é um tempo de estufa, o suor empapa-se às fardas, não pode evaporar. Os desacertos à programação dos trabalhos são pois inesperados, um caudal de chuva atormenta os corpos, o ritmo de trabalho reduz-se, e por vezes é impraticável quando os trabalhadores lançam o cascalho, ele escorre para as bermas e atola as valas abertas a enxada. Quem patrulha procura descortinar o horizonte, felizmente que não tem havido flagelações, levamos à cautela o morteiro 81, os guerrilheiros não se anunciam, isto quando estamos fartos de saber que nunca houve tanta pilhagem como agora nos Nhabijões.

Aquela manhã surgira com sol, direi mesmo que foi uma manhã quente, os operários estiveram em permanente azáfama, as máquinas resfolegaram, o engenheiro e os capatazes circulavam em todas as direcções. Era um engenheiro de trato afável, com mais de trinta anos, um cabo-verdiano com o cabelo quase escorrido, visivelmente bem educado e de bom trato, impunha-se certamente pela sua competência, era visível que não precisava de gritar nem muito menos se impunha a insultar. Aparecia à hora certa, seguia habitualmente a pé, confirmava o que se fizera na véspera, dava instruções aos capatazes durante o percurso, circulava, rectificava, ninguém o contestava. À distância, com um olho no fundo das bolanhas e com o outro a vasculhar quaisquer sinais de intrusão nocturna, sempre obcecado com as minas anti-pessoais, não perdia este espectáculo de autoridade natural.

Ao fim da manhã, parávamos, a comida surgia dos bornais ou dos potes da bianda, que alguém entretanto preparara, quer para militares quer para civis. Nesses instantes, e só nesses instantes, conversava amenamente com o engenheiro Semedo (vamos supor que era esse o seu nome). Viera da Brava até Lisboa, fizera o Técnico com altas classificações, aceitara este contrato com a Tecnil, previa que depois dos bons resultados deste empreendimento o lançassem numa obra de maior envergadura.

Mas naquele dia não tirámos a comida dos bornais. O tempo arrefeceu, o céu começou por se iluminar em tons exagerados de estúdio cinematográfico, e até temi que se estivesse a formar um tornado, mas o que aconteceu é que chegou uma semi-escuridão e depois o ribombar que anunciava o dilúvio. Ele chegou, ensopou em minutos a roupa, era chuva espessa, o saibro fugia, escorria pelas valetas. O engenheiro Semedo avançou para mim, disse-me sem hesitação ou resignação: “Sr. alferes, não podemos continuar, vamos regressar a Amedalai, amanhã também é dia”. Retirámos com a maquinaria, havia Unimogs em Amedalai e sugeri ao engenheiro Semedo: “Proponho que hoje não se coma do bornal, convido-o, vamos até à messe de Bambadinca, tomamos um banho e mudamos de roupa, fazem-se uns bifes ou uns ovos, o vinho fica por minha conta”. O engenheiro Semedo aceitou e regressámos sem que o dilúvio abrandasse. Pelas 15h, tínhamos bife com ovo a cavalo e eu abri uma garrafa de Dão tinto Porta dos Cavaleiros.

Uma insólita proposta de exterminação de inimigos

Comíamos e bebíamos com satisfação, tudo indicava que seríamos novos amigos. Falámos de cineclubes, revelei-lhe que tinha sido sócio de quatro (Imagem, ABC, Universitário e Católico), falámos de ciclos de filmes, como a comédia britânica dos anos 50, Sacha Guitry, Hitchcock, Visconti e De Sica. Depois falámos de livros, houve um momento em que senti que tínhamos mudado de ambiente, eu estava a viver a fundo as minhas saudades. É nisto que se inicia a mais inesperada das conversas sobre a guerra e as soluções que se equacionam, qualquer coisa deste género:

- Sr. alferes, tem consciência que esta guerra ainda não está resolvida por interesses obscuros?

Foi como se tivesse engolido muitos cubos de gelo em segundos, fiquei hirto, quase incapaz de raciocinar. Depois investi, delicadamente.

- Sr. engenheiro, vai perdoar-me mas nós militares não conversamos sobre essas coisas com civis. A guerrilha tem as suas regras, a guerra tem os seus segredos. Desculpe recusar responder-lhe.

- Vamos lá, não se acanhe, estamos a falar sem quaisquer testemunhas, podemos dizer o que nos apetece, aqui nada nos compromete. O que eu estou a dizer-lhe é que há uma solução militar para pôr termo a este conflito com os terroristas. Eles aproveitam-se da vossa incapacidade em lutar com as mesmas armas.

Sentia-me siderado com a evolução da conversa, agora o engenheiro passava-nos um atestado de incapacidade.

- Sr. engenheiro, creio que exagera, lutamos com todos os meios, já deve ter visto que estas obras de construção, o reordenamento, as políticas de saúde e de educação, servem o desenvolvimento, as populações estão a viver melhor.

- Às vezes, penso que as tropas metropolitanas têm medo de avançar, acobardaram-se, querem estar aqui uns meses e irem-se embora. É assim que o terrorismo tem crescido, vocês revelam-se incapazes de ganhar a guerra.

Levantei-me lívido, amaldiçoando aquele convite e aquele Dão Porta dos Cavaleiros saído do meu bolso. O engenheiro revelara-se um grosseiro, uma besta incapaz de perceber que estava em minha casa.

- Se me permite, a conversa foi longe de mais.

- Não foi, o Sr. alferes recusa discutir as soluções militares, elas existem, não volte a cara às realidades.

- Sr. engenheiro, como é que quer resolver uma guerrilha num território destes, com amplas fronteiras de dois Estados que nos são hostis, com populações que vivem no mato e que não querem regressar?

- Sr. alferes, bastavam seis companhias de cabo-verdianos, em meses tínhamos acabado com esta peste.

- Sr. engenheiro, espero que saiba o que é o efectivo de seis companhias, como é que esses seus conterrâneos resolviam a guerra?

- Nós, ao contrário de vocês, matávamos sem hesitar esses pretos de m... Entrávamos nessas barracas onde eles vivem e matávamos tudo, acredite, velhos e crianças ninguém escapava. Só se resolve o terror com um terror ainda mais violento. Há séculos que vimos de Cabo Verde para aqui, eles são indígenas e não passam disso. Portugal tem que saber escolher.

Invadido pela náusea, pretextei afazeres, o almoço acabou em silêncio. Continuei a ver o engenheiro Semedo todos os dias, ele fez bem em não ter voltado a falar-me dos seus planos de extermínio. Mas naquele dia perdi definitivamente a inocência: havia um conflito racial mal dissimulado, tão ou mais explosivo que aquele que separava os que se acobertavam com a bandeira portuguesa e os que dela se queriam libertar.

As últimas ilusões sobre o conflito racial vou perdê-las em breve, quando chegar o meu “periquito”.

Uma semana a ler Mauriac e Agatha Christie

Há muito tempo que não lia François Mauriac e fopi muito bom ler “O Fim da Noite”. Teresa Desqueyroux é uma mulher que veio da província onde terá cometido uma tentativa de assassínio do marido, instalou-se em Paris, tem saúde débil, vive numa quase completo isolamento. O estilo de Mauriac apoia-se nas análises, nos monólogos, nas sensações e mas imagens. Teresa vai receber a visita de filha e durante algum tempo ela fica liberta das suas amargas recordações. Maria, no entanto, vem pedir ajuda à mãe, não está segura dos sentimentos do seu noivo, Jorge. Teresa interfere, o noivo da filha declara-se à mãe. Teresa envolve-se em novas lutas e novas renúncias, arquitecta estratégias para a reconciliação entre Maria e Jorge. Chega a voltar à província, reencontra o marido e procura selar o casamento da filha. Teresa está cansada de tudo, anseia pela o fim, a noite é o fim da vida. Percebo agora porque é que dizem que Mauriac é um génio, como é que as suas narrativas são insuperáveis na ordem da escrita.





Tradução de Cabral do Nascimento, capa de Fernando de Azevedo, Editorial Estúdios Cor, 1957. É uma das obras-primas François Mauriac. No prefácio, ele escreve: "Não quis fazer de O Fim da Noite a continuação de Teresa Desqueyroux, mas sim o retrato de uma mulher no declínio e que eu já descrevera no tempo da sua mocidade criminosa". Esta Teresa é uma mulher neuraesténica, isolada, muito doente, que revê a filha que a vai visitar a Paris, pedir-lhe conselho sobre a sua relação amorosa. Esta visita vai detonar a retoma de relações com a família da província, incluíndo o marido, Bernardo. Mas as personagens princípais são de facto Teresa, a filha Maria e Jorge, o seu namorado. Jorge pensa ter-se apaixonado por Teresa, nem tudo vai acabar bem, excepto para a precipitação do fim da noite de Teresa. A arquitectura literária de Mauriac é sublime, eu ainda não sabia que ele estava fadado a passar ao nível dos clássicos da literatura francesa, e mesmo mundial.

“Os Crimes do ABC”, de Agatha Christie, é um outro pequeno clássico do seu génio. O capitão Hastings, velho amigo de Hercule Poirot, está de volta e acompanha o talentoso investigador belga num dos seus casos mais surpreendentes. Alguém manda cartas a Poirot indicando local e dia de um acontecimento misterioso que a polícia não desvendará, assinando ABC. Haverá vários crimes, todos eles insolúveis, não se encontra razão de ser para aqueles crimes, até que um pobre alienado se entrega à polícia, confessando-se culpado. Poirot revela a maquinação que está por detrás, é um dos mais surpreendentes grandes finais de Agatha Christie, uma hábil utilização da árvore que se oculta na floresta.






N.º 167 da Colecção Vampiro, tradução de Mascarenhas Barreto, belíssima capa de Lima de Freitas. É obra de referência obrigatória, quando se fala na criadora de Hercule Poirot. Estamos em 1935, o capitão Hastings voltou da América do Sul, descobre que Poirot pinta o cabelo e bigode. Começam a chegar as mensagens assinadas por ABC, em Andover haverá o primeiro crime (Alice Ascher), outros ocorrerão. Irá aparecer o Inspector Japp, velho companheiro de Poirot em investigações criminais. Crimes insolúveis, parece. Até que um dia Alexander Bonaparte Cust se entrega à polícia. Então, Poirot desvenda uma maquinação surpreendente do cérebro diabolicamente inteligente que empurrava ABC para a pesquisa dos polícias. Livro imperdível, pelo menos para os aficionados do policial.


Em breve, vai chegar Nelson Wahnon Reis. Mal sabe o meu substituto o drama que o acompanha, a angústia que me veio trazer. Iremos percorrer juntos toda a zona de intervenção, irei partir para Bissau em grande desassossego. E um dia parto no Carvalho Araújo, será uma viagem de doze dias, passando por Cabo Verde e São Miguel. Com algumas peripécias dignas de uma comissão onde elas estiveram sempre presentes.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 19 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3218: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (44): Em Bissau, no julgamento de Quebá Sissé

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3241: O meu baptismo de fogo (1): E depois, nunca mais houve paz em Cuntima... (Virgínio Briote)

Guiné > Zona Leste > Cuntima > CCAV 489 > Abril de 1965 > Na estrada que vinha do Senegal e atravessava a povoação de Cuntima (mais tarde conhecida pela Avenida do Senegal), a fotografia dos oficiais da CCAV 489. Da esquerda para a direita, o Adilson (Didi), o médico Dr. Lourenço (açoreano da Terceira), o Cap Pato Anselmo (mais tarde tornado famoso por se ter rendido em 25 de Abril de 1974 ao Cap Salgueiro Maia, com os carros de combate na Baixa lisboeta), eu (VB) e o outro alferes maçarico (que era assim que se chamavam na altura os recém-chegados), chamado Carvalho.

Foto e legenda: © Tantas Vidas, Blogue de Virgínio Briote, Lisboa (2008). Direitos reservados.


1. O nosso editor Virgínio Briote, convém lembrá-lo, foi Alf Mil em Cuntima, CCAV 489 / BCAV 490 (Jan/Mai 1965). Estava lá em rendição individual. Esta unidade participou na célebre Op Tridente (Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964). O Batalhão era comandado pelo Ten Cor Fernando Cavaleiro, que também foi o comandante das forças terrestres na Op Tridente.

O Briote fez depois, como voluntário, o 2º curso de instrução dos Comandos. Foi comandante do Grupo Diabólicos (Set 1965 / Jun 1966). Regressou a casa em Janeiro de 1967. O episódio que relata aqui, com muita finura de estilo e sentido de humor, passa-se no período em que estve com os velhinhos da CCAV 489, em Cuntima.

Espera-se que o nº 1 desta série seja o início de uma colecção de histórias, relatos ou depoimentos sobre a primeira vez do guerreiro, o tão ansiado (e temido) batptismo de fogo...

O nosso querido companheiro destas lides bloguísticas é, também ele, talentoso autor de um notável mas discreto blogue, Guiné, Ir e Voltar... Como eu já há tempos o defini, é "um blogue intimista sobre a arte da guerra e do amor em tempo de guerra, da amizade, da camaradagem, da solidariedade, da cumplicidade, da alegria de viver, da recusa da lógica estreita do matar para não morrer, da memória, do retorno, do ir e do voltar"... (LG)


2. O meu baptismo de fogo > Faquina Fula, Faquina Mandinga

por Virgínio Briote


Meu Capitão, um dia destes vou sair com o pelotão. Ai vai, para onde? Para onde costumamos ir, Faquinas, Sitató, para esses lados! Tem mas é juízo, pá, o Didi logo. Já tivemos Comos (1) que chegasse, não precisamos de mais sarilhos! A paz nesta zona foi conquistada por nós e, se eles passam sem problemas, nós também não os temos tido. Convém às duas partes, é bom não esquecer. Cuidado, meu capitão!

O pessoal está cá há muitos meses, demasiados, falta-lhe pouco tempo para regressar à metrópole. Precisa mais de quem o proteja do que gente que o meta ao barulho, o Capitão para eles.

Mas Cuntima é uma pista desimpedida para meterem minas e armas no Oio, são trilhos pisados de fresco, passam todos os dias. A minha ideia? Sair daqui sem espalhafato, a outras horas, permanecer na zona até eles aparecerem. Se vamos sempre para o mesmo sítio montar emboscadas, se nunca os encontramos e se o caminho está sempre pisado de fresco, só não os apanhamos se não quisermos, ou então se formos azelhas.

Ao princípio da tarde numa conversa com o Furriel Covas, escolheu-se quem deveria sair. A seguir reuniu-se o pelotão na presença do Capitão, que fez questão de assistir à partida.

Vamos dar uma volta por aí, quem quer vir? Voluntários, só voluntários, o Capitão a atalhar, e o pelotão todo a dizer, eu vou. Tu, tem mas é juízo! Mas eu também quero ir, meu Capitão, o soldado a insistir! Dos Furriéis só não foi o Duarte que não tinha jeito para voluntário. Vinte e dois deram o passo em frente, mais um guia indígena e cinco auxiliares nativos.

Saíram da zona em viaturas, em direcção à fronteira. Uns minutos depois, apearam-se e internaram-se no mato, por um caminho que mal se via, de há tanto tempo não passar ali ninguém.





Foram andando com cuidado, devagar, mais separados uns dos outros, sem grandes barulhos. Afinal, o pessoal sabe andar no mato. Avistaram a tabanca de Faquina Mandinga, abandonada há muito. Chegados perto do local onde costumavam emboscar-se, prosseguiram pelas margens do trilho, até à fronteira.

Para os lados de Sitató (1), quase em frente a Koldá, no Senegal, viram um local descampado. Os trilhos todos marcados com pegadas recentes. Esconderam-se atrás de arbustos e de pequenos baga-baga. Uma volta pelo pessoal para ajustar algumas posições individuais. Estabeleceram uma frente de cerca de 100 metros, ao longo do trilho que vinha do Senegal, com a bolanha em frente, um ângulo de visão de mais de 180 graus. Todos na expectativa, prontos para o que desse e viesse. E dispostos a esperar, pelo menos até ao meio-dia do dia seguinte. Mas eles devem aparecer antes.

Deitou-se com a G3 ao lado, tirou do casaco a Agfa que recebera de Angra uns dias antes, para o caso de haver motivos.

Eram para aí 17, 17 e 30, quando se ouviu uma voz muito baixa dizer, vêm aí gajos! É agora, o coração a dizer-lhe conta comigo. No meio de um silêncio enorme, uma culatra puxada atrás, um barulho que até eles devem ter ouvido. Já? A que propósito?

Uns tiros, uma rajada, depois uma girândola de rajadas para o descampado em frente, tudo em pouco mais de um minuto. Sacos pelo chão, gritaria, um preto a mancar com uma bicicleta ao lado, a tentar montar para cima dela, uns tipos caídos a gemer, um nem se mexia, os valentes alentejanos pareciam que estavam a jogar rugby, todos ao monte para cima deles, para aí 5 ou 6, filhos desta e daquela. Eram poucos para tantos sacos, de arroz, sal e cola, duas bicicletas, granadas, duas caixas com munições, uma Mauser, portuguesa em tempos, livros de leitura em português, correspondência… Uma pequena secção de reabastecimento do PAIGC posta fora de combate em pouco mais de meia hora.





Não foi esta mas era uma coluna de abastecimentos do PAIGC, escoltada por elementos armados. Imagem do Centro de Documentação Amílcar Cabral, Fundação Mário Soares. Com a devida vénia.


Um trabalhão pegar naqueles alentejanos e pô-los de regresso, com os prisioneiros feridos em padiolas improvisadas. Levou mais tempo a regressarem do que a irem, está bom de ver. Iam fazendo perguntas aos infelizes que tinham sido apanhados, para onde tanto arroz, para família, e livros, para meninos da família aprender a ler, cola para a família também, e que família é essa? Família muito grande, não é?

E quem foi o artolas que resolveu puxar a culatra atrás? Quem usa Mauser aqui, os milícias, quem havia de ser! Tinha que ser, meu alfero, turra vinha lá! Mas porquê, logo quando eles estavam a entrar na zona de morte?

Este sim, foi um baptismo de fogo! Era assim que gostaria que fosse sempre, apanhá-los à sorrelfa, sem darem por ela.

Avistaram Cuntima ao longe, a noite já fechada, os petromaxes acesos, e, junto ao arame farpado, militares e muita população civil. O Capitão ao encontro deles, então?

Eu não lhe dizia que era uma questão de horário, meu Capitão? Tudo bem, queira Deus que este episódio não nos traga problemas. Vá-me dando pormenores, vamos para o posto de rádio, vá falando (3).

Uma desorganização total, meu Capitão. Cada um a fazer o que lhe deu na mona, a abrirem fogo quando lhes apeteceu, a correrem todos a monte, sem segurança nenhuma, o gajo da culatra...

Espera-lhe pela volta, o Didi a virar costas, quem havia de ser?

Mas a guerra, de facto, tomou conta de Cuntima. Foi como se tivessem mexido num enxame de abelhas. Uma ou duas semanas mais tarde, a outras horas, nova emboscada, e desta vez ninguém puxou a culatra antes. Depois, umas minas, a seguir um ataque a Cuntima. Nunca mais houve paz ali.

A fronteira ali tinha sido riscada num mapa, era mais administrativa que outra coisa, não correspondia a nenhuma divisão real entre as pessoas ou etnias. Familiares viviam de um lado e do outro, às vezes mudavam-se com as famílias todas atrás.

Em Cuntima fazia-se muita psicossocial. O médico, o dr. Lourenço, um açoriano da Terceira, era um homem bom, com espírito muito prático, não protestava com as condições precárias. Era preciso, fazia-se. Sempre disposto a dar uma ajuda àquelas populações, não interessava a que horas. Mais que uma vez o doutor tivera que ir ao Senegal ver gente doente. A tropa conduzia-o até à fronteira, depois entregava-o aos guardas senegaleses que o acompanhavam até à tabanca dos doentes.

No passado, aquela gente nunca tinha tido um apoio tão grande como agora. Ajudavam-se os nativos na construção das casas, providenciavam-se mosquiteiros, faziam-se desinfestações, limpavam-se caminhos, abriam-se outros. Nunca faltavam voluntários para ajudar. Nem precisavam de arregaçar as mangas, andavam quase todos em tronco nu. De facto, naqueles dois ou três anos, desde que o PAIGC tinha iniciado a guerrilha, estava a fazer-se mais por aquela gente do que nos outros anos todos para trás. Isto, se se levasse em conta o que se via feito até então. Quase nada. A guerra tem destas coisas.

A companhia militar estacionada em Cuntima, Colina do Norte como era agora chamada, tinha um efectivo a rondar os 150 homens, a esmagadora maioria já a poucos meses de regressar à metrópole. Alguns, muito poucos, estavam lá em rendição individual, para tapar as falhas que ocorrem sempre. Esse era o caso do Gil. Os outros alferes, o Didi e o Ferreira tinham partido de Estremoz com o batalhão 490.

O Didi tinha o tamanho de um português, um ar de bem-nascido, com o sotaque do Rio de Janeiro, muito pronunciado. Totalmente contra, insinuava estar tão próximo dos guerrilheiros como das tropas que comandava. Um bom coração para as questões humanitárias, sempre pronto a ajudar, quase sempre de má vontade para tudo o que fosse acção ofensiva contra a guerrilha.

O Ferreira mantinha-se ao largo destas discussões, não se manifestava, por cansaço ou por outro motivo. Falava da namorada e da mãe, com os olhos brilhantes para as fotos ao lado da cama. Tinha ganho no Como a imagem do alferes mais operacional da companhia, os soldados falavam dele com respeito, via-se que tinha ascendente.








O Gil acreditava no Império, em Portugal do Minho a Timor. De mãos dadas com as populações, de arma na mão contra os que se opunham. Impensável, não via como podiam ter entre eles quem pensasse como o Didi. Tanto choque de pontos de vista em tão pouco tempo, a guerra deixou de ser motivo de conversa, evitavam-na. Limitaram-se a conviver o resto do tempo que permaneceram juntos. Quando, por qualquer motivo, um deles insistia na conversa da guerra, o outro, como se tivessem combinado antes, punha-se a falar do Benfica e do Sporting.

O Capitão tinha um ar blasé. Sobre o alto, magro, uma cara fina e os olhos assustados. Os galões dele mandavam naquela tropa e as coisas andavam por si. Via-se nele o desejo de acabar a comissão o mais depressa possível, sem mais chatices, o que não era nada fácil com um Coronel (4) daqueles.

O doutor falava dos doentes e de Angra, a cidade onde nascera. Agora que tinha ali um recém-chegado da sua terra, puxava-lhe pela língua. Conheceste o quê? O Monte Brasil e as Lajes, claro, a Praia da Vitória, a Terra Chã, a Serreta, os Biscoitos, e que mais? Visitaste o Palácio dos Capitães-Generais, o Outeiro da Memória, a Igreja da Misericórdia, os Impérios, o Algar do Carvão? E que gente conheceste? Em que café paravas? No Internacional, do Mário? Horas e horas de conversa, perguntas atrás de perguntas. E a namorada terceirense, que tal? Aquela que te escreve, julgas que não sei? Ora, pelo endereço, calhou, só isso, mais nada. Por acaso conheço a família dela, e a ela também, cheguei até a ver-lhe a garganta!



© Virgínio Briote (2008)

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Notas de vb:

(1) Referência à Op Tridente, Ilha do Como, em que a CCav 489 participou integrada no BCav 490 (Jan-Mar 1964).

(2) Corredor de passagem para Canjambari e daí para o Oio.

(3) “Nas regiões fronteiriças, o adversário procura pôr-se a coberto da acção das NT refugiando-se nos territórios vizinhos. Uma emboscada montada nas cercanias de Colina do Norte, Cuntima, foi bem sucedida e causou dois mortos e vários feridos confirmados. Os bandoleiros fugiram para a República do Senegal, donde flagelaram as NT. Nesta acção foi capturado armamento, munições, material diverso e abastecimentos.” Do Boletim nº 6, do E.M.

(4) Ten Cor Fernando Cavaleiro.