segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9272: Memória dos lugares (168): Bambadinca, de 1969/71... Evocando a figura do antigo comerciante Fernandes Rendeiro, natural da Murtosa, recentemente falecido... (Leopoldo Correia)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72)> Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o O Rio Geba ao fundo, e a saída para leste (no sentido de Bafatá)... Em primeiro plano, a morança do comerciante português Rodrigo Fernandes Rendeiro, casado com uma mulher mandinga, Auá Seide, que tinha uma prole numerosa. Faleceu recentemente, no passado mês de setembro. Paz à sua alma. Fui visita da sua casa e beneficiei da sua hospitalidade. A Auá Seide, que o Rendeiro nunca mostrava aos seus convidados, militares, era uma excelente cozinheira, a avaliar pelo seu chabéu de frango de cuja e sabor ainda me lembro... Também nunca me lembro de ter vistos os seus filhos, embora ele nos falasse, com orgulho,  de uma filha mais velha, já a estudar no Continente...

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Ainda o ano passado, no convívio do pessoal do BART 2917, soube através do Dr. António Vilar, médico, que é de Aveiro, que o antigo comerciante de Bambadinca ainda estava vivo. Teria então cerca de 90 anos ou por aí perto. 

Terá nascido, portanto, por volta de 1920. Recordo-me de ele dizer que tinha vindo para a Guiné com 17 anos. Na altura em que com ele privámos, em Bambadinca, era homem de meia idade, perto de 45 anos. (Pelas mimnhas contas, teria nascido em 1925/26). Sempre magro de cara e de corpo (contrariamente ao outro comerciante de Bambadinca, o Zé Maria), tinha uma loja e armazéns junto ao nosso aquartelamento. Fico grato ao nosso leitor (e camarada) Leopoldo Correia por nos dar notícias, embora más, desta família, que era nossa vizinha e de cuja hospitalidade beneficiámos, alguns de nós...

Também o Beja Santos já evocou aqui, há tempos, o Rendeiro e a sua loja, nestes termos:

"Luís, li os teus comentários sobre as guloseimas de Bambadinca. Seria bem interessante que se desencadeasse aí uma tempestade de recordações à volta da mesa, não os acepipes de Bissau mas os desenrascanços das gazelas de mato e peixe da bolanha, bem como os cantineiros que ainda conhecemos e que nos ajudaram a levantar a moral da muita comida sorumbática a que éramos obrigados.

"Quase me sinto a entrar na loja do Rendeiro (o concorrente do José Maria de Bambadinca) onde eu encomendava o caldo de mancarra à subida da rampa, para todo o contingente que me acompanhava, naquele dia". (...)




2. Do nosso leitor e camarada Leopoldo Correia:


De: Leopoldo Correia [mailto:correia.leopoldo@gmail.com]
Enviada: domingo, 25 de Dezembro de 2011 10:29
Assunto: Feliz Natal e um Próspero Ano de 2012, Felicidades!!

Bom dia de Natal. Este contacto é de um camarada conterrâneo do tuga de Bambadinca, Fernandes Rendeiro, que pelo que eu tenho lido era um bom amigo das [Nossas] Tropas.

O Joaquim Mexia [Alves] também o evoca várias vezes. Infelizmente já não está entre nós, pois foi sepultado na sua terra natal [, Murtosa,] em 10/09/2011, tendo eu assistido ao funeral e tido contacto com toda a " ínclita geração", os filhos de Fernandes Rendeiro / Auá Seide, da qual só tenho a dizer bem. A que estudava em Coimbra, era licenciada em direito e era magistrada: faleceu também há cerca de 5 anos. Era juíza do Ministério Público em Lisboa.

Por hoje já basta de más notícias, não acham ?

Continuação de Boas Festas para toda a Família e cumprimentos do
ex-Fur Mil Leopoldo Correia

"Eduque os meninos e não será preciso castigar os Homens" (Pitágoras)
Feliz Natal e um Próspero Ano de 2012, Felicidades!!

________________

Nota do editor:

Último poste da série > 18 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9226: Memória dos lugares (167): As nossas lavadeiras da Guiné, a nossa Amélia de Bissorã (Maria Dulcinea)

Guiné 63/74 - P9271: Agenda cultural (181): No dia 19 de Dezembro foi descerrada uma placa toponímica em Ponta Delgada, em homenagem aos combatentes caídos em campanha (Carlos Cordeiro)



1. Em mensagem do dia 24 de Dezembro, o nosso camarada Carlos Cordeiro (ex-Fur Mil At Inf CIC - Angola - 1969/71), Professor na Universidade dos Açores, enviou-nos para publicação duas fotos e uma parte da sua intervenção no dia 19 de Dezembro* pp, aquando do descerramento da placa toponímica referente à nova Rua Combatentes do Ultramar, em Ponta Delgada, em homenagem a todos os camaradas açorianos que intervieram na Guerra do Ultramar.




Inauguração da placa toponímica “Rua Combatentes do Ultramar” em
Ponta Delgada, S. Miguel, Açores


Conforme foi anunciado no nosso blogue, no passado dia 19 foi inaugurada a placa toponímica “Rua Combatentes do Ultramar”, na freguesia citadina de Santa Clara, concelho de Ponta Delgada. O acto foi presidido pela Dra. Berta Cabral, presidente da Câmara e contou com a presença do Comandante interino da Zona Militar dos Açores, do Presidente do Núcleo de Ponta Delgada da Liga dos Combatentes e de diversos antigos combatentes.


Na ocasião, como proponente da designação toponímica, saudei, numa breve intervenção, a decisão da Câmara (tomada por unanimidade), salientando a justiça da homenagem no ano em que se evocam os 50 anos do início da Guerra do Ultramar. Duas passagens da minha intervenção:

“Com este acto simbólico, a edilidade não está, naturalmente, a exaltar a guerra ou o comportamento do poder político de então. Os antigos combatentes entendem esta decisão da Câmara como o reconhecimento ao empenhamento, denodo e coragem que alguns milhares de jovens de Ponta Delgada demonstraram durante aqueles treze ou catorze anos, em paragens tantas vezes inóspitas e em situações de grande sacrifício físico e emocional, de precariedade gritante e enfrentando perigos diários […].
Está também implícito nesta placa um tributo a todos os que, ainda nos nossos dias, carregam consigo uma espécie de ‘rescaldo’ da guerra, quer nas suas marcas físicas, quer nos seus efeitos psicológicos. Mas mesmo esquecidos e tantas vezes injustiçados, esses antigos combatentes não se esquecem ‘daquele tempo’: dos combates, das minas, dos camaradas feridos e mortos, da fome e da sede, do cansaço, das saudades dos seus entes queridos. Mas também, talvez numa certa nostalgia da juventude perdida, a recordação da camaradagem sem limites, das amizades que se prolongaram para toda a vida, desse espírito de união e solidariedade que as dificuldades quotidianas e o perigo extremo ajudam a cimentar".

Um abraço,
Carlos Cordeiro
____________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9221: Agenda cultural (179): Descerramento de placa toponímica em Ponta Delgada, em homenagem aos combatentes caídos em campanha, dia 19 de Dezembro pelas 16 horas (Carlos Cordeiro)

Vd. último poste da série de 21 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9245: Agenda cultural (180): RTP1, hoje, 4ª f, 21, às 21h: Programa Linha da Frente: Histórias de quem combateu...A RTP mostrou a alguns ex-combatentes do Ultramar, pela primeira vez, as suas mensagens de Natal, Adeus, até ao meu regresso!...

Guiné 63/74 - P9270: Notas de leitura (316): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Novembro de 2011:

Queridos amigos,
Estas “Literaturas da Guiné-Bissau” constituem seguramente o panorama mais actualizado de uma literatura que continua em fase de busca e afirmação. Temos aqui condições para estudar escritores de várias gerações, críticos da desgovernação, reconstrutores de mitos, vozes de desalento, narradores colocados entre a ficção e história, aparecem aqui trovadores e artífices da construção da Guiné-Bissau.
É um livro importante que não podemos descurar. É bem provável que algumas destas vozes anunciem as trombetas do futuro. Que todos nós gostaríamos que fosse a prosperidade e o desenvolvimento merecido para gente tão acolhedora e próxima de nós, na língua e na história.

Um abraço do
Mário


Literaturas da Guiné-Bissau

Beja Santos

“Literaturas da Guiné-Bissau: cantando os escritos da história é uma obra em que as várias críticas apresentadas constituem-se contributos para leituras de obras de autores guineenses e/ou de inspiração guineense, seguindo as mais diversas direcções e dicções, questionando, em alguns casos, a invenção/existência da nação guineense, e, em outros casos, indagando sobre a guineidade enquanto fio nevrálgico da entidade guineense”. É deste modo que Odete Costa Semedo e Margarida Calafate Ribeiro apresentam uma reflexão multifacetada, a várias vozes, poetas, contistas e romancistas justificam como estão a desconstruir e a reconstruir aquela que foi a língua do opressor e que evoluiu para língua de emancipação, opção e apropriação e também língua do coração (“Literaturas da Guiné-Bissau”, organização de Margarida Calafate Ribeiro e Odete Costa Semedo, Edições Afrontamento, 2011).

Os intelectuais guineenses sentem-se confrontados com várias lacunas e vazios culturais: têm conhecimentos difusos sobre o passado anterior à chegada dos portugueses, à proveniência das diferentes etnias, há muito poucos elementos sobre os impérios no qual se veio a organizar o território da Guiné-Bissau; segue-se uma abundante literatura de viagens que inclui navegadores, bispos e viajantes, há também alguns depoimentos de estrangeiros, no século XIX, com a primeira tipografia em Bolama, surgem os boletins oficiais e alguns jornais, e entre 1946 e 1973 publicaram-se 111 números do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. É evidente que o território das letras se espraiou por outras latitudes: inúmeros depoimentos das publicações coloniais, há a figura singular de Marcelino Marques de Barros, um cónego guineense que recolheu e publicou contos e cantigas da tradição oral; segue-se a literatura do período colonial onde preponderaram escritores como Fernanda de Castro e Fausto Duarte; e Amílcar Cabral e Vasco Cabral foram duas vozes relevantes na poesia apelativa à luta de libertação.

O livro abre dois textos críticos a contextualizar historicamente os modos e os porquês da actual literatura guineense: é uma pesquisa sobre o inconsciente colectivo, uma tentativa de afirmação mais além da literatura colonial e da literatura da resistência. Procurando um ponto de partida, considera-se Carlos Semedo como o primeiro autor guineense, alguém que em 1963 já escreve a pensar no futuro, para lá da presença colonial. Estas duas autoras procedem a um levantamento minucioso da literatura mormente nos verdes anos da independência até aos dias de hoje, dando ênfase à publicação, em 2010, de Traços no Tempo: antologia poética juvenil da Guiné-Bissau, com a participação de 23 poetas e onde abundam as temáticas do poeta sofrido com a dor de um país desencontrado. As autoras debruçam-se sobre a produção literária da geração de Tony Tcheka, Agnelo Regalla e Hélder Proença, a par de duas figuras marcantes da cena musical, Armando Salvaterra e José Carlos Schwarz. Antes do virar do século, surgem contistas e narradores como Domingas Sami, Manuel da Costa e Abdulai Sila, sendo este último autor considerado como um escritor profundamente original. Chega-se assim século actual, é tempo de fazer balanço sobre as utopias de construção da nação guineense. As ensaístas escrevem que o assassinato de Hélder Proença, em 2009, veio decretar o fim dos sonhos de Amílcar Cabral e referem que já em 1994 Carlos Lopes alertara para o modo como o sonho nacionalista se distanciara da concepção de Amílcar Cabral. Uma das tónicas dominantes da poesia da Guiné-Bissau da pós-independência manifesta-se pelo desencanto, é uma poesia que se vai afastando do tom épico-revolucionário, enveredando por um lirismo dos afectos.

Um outro olhar é dado pelo próprio Tony Tcheka, ele garante que a literatura guineense está viva. Considera que se escreve mais hoje embora se continue a publicar pouco. A questão editorial prende-se com a ausência de sensibilidade para as questões de natureza cultural e literária e não esconde a sua mágoa: “As oportunidades têm-se esfumado nos actos tresloucados e irresponsáveis de muitos que teriam por obrigação construir e consolidar os alicerces da casa grande Guiné-Bissau. Porém, os escritores, músicos e artistas plásticos negam o estatuto de derrotados. Porfiam criando. Insistem na lírica. Optam pela via artística, porventura a mais consentânea com os sinais da terra, com o pulsar do quotidiano e o sentimento escancarado nas caras anónimas pungidas de mágoas encruadas”. Depois de repertoriar os principais nomes, de José Carlos Schwarz a Félix Sigá, de Filinto Barros a Odete Costa Semedo, Waldir Araújo e Silvano Gomes, Tcheka saúda o contributo da moderna poesia e refere-se assim a este vasto elenco: “São jovens poetas. Sonhadores sim, mas apalpando e interpretando o vaivém e o pulsar da terra dos poilões sagrados que albergam uma vida mitigada. Ultrapassaram as distâncias e juntaram-se no epicentro dos sentimentos. Ali onde a dor e a paixão se confundem (…) Justo será dizer que há uma construção nova. Entre os vários estilos identificados, nota-se a preocupação de um estilo novo. Em certos casos, celebra-se o casamento perfeito entre a temática social e a lírica, sofismada até com contornos inovadores, mas sempre muito perto dos cantares guineenses expressos por meio de uma oralidade eivada de valores culturais multifacetados”.

Maria Nazareth Soares Fonseca pergunta em que língua pode um guineense escrever, os africanos têm dentro de si a oralidade, os guineenses comunicam entre si pelo crioulo, cada escritor vê a língua portuguesa à sua maneira, não há preconceito de escrever em português, há memória e a história e há que enfrentar os problemas advindos da necessidade de assumir a língua da colonização como a língua da nova nação e também como língua literária, a despeito da língua do coração ser a dos ancestrais, uma negritude que ainda não encontrou a comunicação apropriada. Daí a prática decorrente de se escrever em crioulo, com um sabor forte de terra, dando mais vigor e autenticidade às tradições próprias dos costumes do país.

Fiquemos por aqui, por ora, há mais vozes que querem comunicar as suas maneiras de ver a literatura. Teresa Montenegro vem falar do fogo, luz e fulgor, entusiasmo, paixão e destruição, meio controlado e meio à solta, fogueira, ferro em brasa, na Guiné-Bissau o fogo está presente na forja dos ferreiros, na preparação do óleo vermelho, da cera, da cana e do sabão, mas também no fogo interior, o fogo que nas queimadas devora o capim. Esse fogo é uma força vital na tradição oral e na oratura, matrizes do crioulo desta Guiné-Bissau.

(Continua)
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9254: Notas de leitura (314): Recortes da História da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9259: Notas de leitura (315): De Campo em Campo, por Norberto Tavares de Carvalho (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P9269: Camaradas da diáspora (8): José Freitas, ex-Fur Mil, CART/CCAÇ 11, "Os Lacraus de Paunca", Nov 70/Set 72: vive hoje em Sydney, Austrália





Guiné > Zona Leste > paunca > CCAÇ 11 > O Fur Mil Adriano Neto  > "Finais de Junho meados de Julho de 1972, (não tenho a data registada), deixo a CART 3521 e rumo para os chãos de Paunca, passando a integrar a Companhia de Africanos CCAÇ 11, onde permaneci até ao fim da comissão.  Na CCAÇ 11, bem como em todas as Companhias Africanas, todo o pessoal à excepção dos graduados e especialistas, eram de origem Guineense. Com este pessoal contruí uma camaradagem sã, tenho saudades de alguns momentos, pese embora também tenha tido alguns conflitos que pontualmente foram resolvidos. Após a Independência não sei o que lhes aconteceu, mas lamento que possam ter sido abandonados".

Foto: © Adriano Neto (2011). Todos os direitos reservados.



Guiné > Zona Leste > Paunca > Abril/Maio de 1974 > CCAÇ 11, "Os Lacraus de Paunca" > Os Furriéis Milicianos J. Casimiro Carvalho, à esquerda, e Cláudio Moreira, à direita... O primeiro, mais novo, veio substituir o segundo, um velhinho dos Lacraus.

Foto: © Cláudio Moreira (2008). Todos os direitos reservados.




1. Mensagem de José Freitas, mais um camarada da diáspora, a viver na Austrália:


 De: José Freitas [mailto:josefreitas@optusnet.com.auu ]
Data: 20 de Dezembro de 2011 20:32
Assunto: Complemento à História da CART 11 Paunca - Guine


Meus Cumprimentos,  Luís Graça

Gostaria de me apresentar: Sou José Freitas,  nasci em Lisboa, vivia na Costa de Caparica na altura da minha incorporação militar.

Sou ex-Furriel Miliciano de Artilharia,  curso tirado na Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas. Fiz a minha comissão de serviço militar na Guiné,  entre Novembro de 1970 e Setembro de 1972.

Fui incorporado na Companhia,  CART 11 -  "Os Lacraus de Paunca"  - na Zona Leste da Guiné. Neste período a Companhia era formada por Oficiais, Furriéis and alguns Cabos Especialistas vindos do Continente e soldados recrutados localmente de maioria étnica  fula -  todos sem exceção bons profissionais, meus amigos,  e que os recordo com saudade.

Esta semana descobri (e entrei em) o seu site e gostei muito de ler os depoimentos de Renato Monteiro, Abílio Duarte e J.M. Pereira da Costa, relativos a histórias da CART 11,  "Os Lacraus", no período antecedente à minha chegada à Guiné. Foi bom recordar.

O Abílio Duarte refere que o seu Comandante de Companhia foi o Cap Mil Analido Aniceto Pinto que eu conheci porque quando cheguei a Paunca, em  Novembro de 1970,  ele ainda era o Comandante da Companhia,   esperando ser rendido, o que aconteceu, em Dezembro de 1970 (?),  pelo meu  Capitão Mil Francisco Neves de Almeida,  natural dos Açores.

O  Abílio Duarte, como diz,  acabou a Comissão em Dezembro de 1970,  provavelmente  foi rendido por um Fur Mil  que comigo embarcou para a Guiné e como eu foi colocado em Paunca. Se a memória não me atraiçoa (ai como ela anda ultimamente,  os anos não perdoam e já contam cá 62 lindas Primaveras!) o nome do Fur Mil que fui substituir  na CART 11, em Paunca,  chamava-se Cunha.

Ainda gostaria de informar que,  quando em Setembro de  1972 acabei a Comissão de Srevico Militar e regressei a Portugal,   a Companhia ainda se chamava CART 11, "Os Lacraus de Paunca".

Foi com prufunda tristeza que,  ao ler o artigo de Abílio Duarte,  soube que o/os Governo(s) Portugues(es) após o 25 de Abril 1974,    abandonou(aram) os soldados naturais da Guiné que lutaram a meu/nosso  lado com dignidade e fidelidade.

Enfim por estas, por outras e mais algumas,  estou com a  minha família a viver em Sydney, Austrália,  há 27 anos,  mas nunca esquecendo onde nasci  e o que fui.

Se souberem de algum convívio anual da CART 11/CCAC  11,  informem-me pois apesar de estar longe gosto de ter notícias e quem sabe se for informado antecipadamente estar presente aproveitando umas férias em Portugal.


Muito grato em participar e reviver tempos passados mas nunca esquecidos e sempre à vossa disposição.

José Freitas


PS - Desculpem a falta de acentuação nas palavras mas o meu Computer/Keyboard aqui na Austrália não tem essa facilidade [, teclado português].


2. Comentário de L.G.:


Caro camarada Freitas: 


Sobre CART 11 / CCAÇ 11 temos pelo menos uns vinte postes ou referências, no nosso blogue. Além dos camaradas já citados - Renato Monteiro, Abílio Duarte, J. M. Pereira da Costa, temos entre nós, como membros desta Tabanca Grande que é o nosso blogue,  mais outros camaradas que também foram "lacraus de Paunca" ou passaram por Paunca, como tu: o Adriano Neto, o J. Casimiro Carvalho, o Cláudio Moreira... 


Ficas de imediato convidado a juntar-te a ele e a nós. Basta para tanto mandar-nos duas fotografias tuas, digitalizadas, uma atual e outra do teu tempo de Paunca. Acrescentas,  a isso, uma pequena história de que te lembres.


Em Contuboel, em Junho/Julho de 1969, convivi com a futura CART 11 (mais tarcde, CCAÇ 11)... Já tenho falado aquii do Fur Mil  Renato Monteiro, originalmente da CART 2479 / CART 11, que seguiu para Piche, a nordeste de Nova Lamego (ou Gabu), com os seus africanos, na mesma atura em que nós (CCAÇ 2590/CCAÇ 12) seguíamos para Bambadinca. Estes africanos fizeram a recruta e a instrução de especialidade juntamente com os nossos. Na altura Contuboel funcionava como um centro de instrução militar, tal como Bolama. Nunca mais o tornaria a ver, ao Renato Monteiro. Graças a este blogue,  ele localizou-me em 2005 e acabámos por nos (re)encontrar. 


Como vês, camarada José Freitas, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande! Agora apareces tu, mais um camarada da diáspora, que teve de procurar, infelizmente,  outras paragens para viver e trabalhar fora da Pátria. Imagino quanto seja duro. Mas sei que nunca esquecerás a tua Pátria, por muito madrasta que seja. A ligação ao nosso blogue vai-te ajudar a mitigar a saudade. Ficamos à espera de mais notícias tuas. Um ano de paz e esperança para ti e os teus. 


Luís Graça, fundador do blogue, administrador e editor.


PS - Tens aqui o mapa ou carta de Paunca, escala 1/25000, para refrescares a tua memória, relativamente aos sítios por onde andaste... 
_____________

Nota do editor


Último poste da série > Guiné 63/74 - P9043: Camaradas da diáspora (7): José Marçal Wang de Ferraz de Carvalho, Fur Mil Op Esp, da 16ª CCmds e da CART 1746 (Xime, 1968/69): vive hoje em Austin, Texas, EUA

domingo, 25 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9268: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (11): Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72):

Caras amigas e amigos, companheiros, camaradas e irmãos nesta caminhada pela Vida

Temos vivido a chamada 'época natalícia' com o costumeiro cortejo de votos de "Boas Festas", de "Bom Natal", "Festas Felizes", etc., etc..

Olhando à minha volta, 'vendo, ouvindo e lendo', fico sempre perturbado com o que se passa e com o facto de a maior parte das manifestações referidas me parecerem desfasadas dessa realidade. Levo algum tempo a adaptar-me à onda dominante e acabo quase sempre por 'desabafar'.

Para não destoar das restantes vezes, aqui vos deixo o que remoí este ano.

"Festas Felizes". "Bom Ano Novo".
Abraços


MENSAGENS DE NATAL DOS NOSSOS CAMARADAS E AMIGOS

Novamente, “BOAS FESTAS” …..

Desta vez não vos vou incomodar com sentimentos à volta da natureza da época que vivemos. Não porque tenha mudado a sua essência, os seus fundamentos, os seus objectivos, mas precisamente por isso, já que não haverá muito mais a dizer para além do que escrevi o ano passado.
Este tempo é aquele em que renasce a esperança no ‘novo’, no futuro, seja o mais próximo, seja o de mais longo prazo.
Faz poucos dias ocorreu o Solstício de Inverno, ponto do desenvolvimento do ano em que o tempo momentaneamente parece parar, o ponto em que as noites (as trevas, a escuridão, os medos…) deixam de crescer e passa a haver um progressivo aumento do dia (da luz, da claridade, da confiança…). Uma expressão antiga desse fenómeno, com a rima própria da sabedoria popular, diz-nos (relativamente ao crescimento do dia) que “pelo Natal, um pulinho de pardal”.

A observação desses fenómenos fez com que os povos antigos atribuíssem a esta época o ‘ponto de viragem’, o momento da ‘vitória da luz sobre as trevas’, o momento da esperança de que as sementes, tendo ‘morrido’, pudessem cumprir a sua função criadora e com o calor pudessem germinar e produzir novas colheitas, abundantes, e indispensáveis à continuidade da Vida.

Com o nascimento de Jesus (na mesma época) passou a haver nova ordem de esperança, a esperança da ‘salvação’ do Homem obtida pela redenção do Filho de Deus feito Homem.
Na prática trata-se do mesmo objectivo, das mesmas motivações, só que agora passa-se do plano material para o plano espiritual, para o plano filosófico.

Chegamos então aos dias de hoje, em que tudo o que atrás se indica mantém a sua validade. Mais que nunca, precisamos de vencer as trevas. Mais que nunca, precisamos da Luz. Mais que nunca, precisamos que este tempo seja agora um tempo de esperança, de renovação.

As ameaças que sobre todos nós se agigantam (e não tenham dúvidas que é mesmo para todos nós, pois mesmo aqueles que julgam poder passar incólumes ao vendaval, aqueles que julgam que por estarem ‘mais perto’ dos ‘agentes do mal’ e disso poderem beneficiar, serão descartados logo que desnecessários), exigem não só uma vigilância constante mas, e principalmente, uma maior vontade de reacção.

Não se deve perder de vista quem e o quê tem a responsabilidade pelos calamitosos tempos que se vivem e que se antevêem. Temos a obrigação de não permitir que os erros se repitam. Não podemos deixar-nos iludir com as loas dos ‘brandos costumes’ e com isso deixarmos de punir os responsáveis. Os externos e os ‘capatazes’ internos.

Por tudo isto só posso desejar que tenham tido umas “Festas Felizes”.

À semelhança do que fiz o ano passado, e para terminar com nota positiva, queria deixar aqui uma espécie de prece aos meus Irmãos, aos meus Amigos e aos meus Camaradas, quer se encontrem em terra, no mar ou no ar, em que lhes desejo um pronto restabelecimento dos seus males e um rápido regresso a casa, se for esse o seu desejo.

“Feliz Ano Novo”!
Hélder Sousa
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9267: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (10): Mensagens de Diana Andringa, Afonso Sousa, José Romão, Júlio César, José Belo, Eduardo Campos, Vacas de Carvalho, Ernestino Caniço e Rogério Cardoso

Guiné 63/74 - P9267: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (10): Mensagens de Diana Andringa, Afonso Sousa, José Romão, Júlio César, José Belo, Eduardo Campos, Vacas de Carvalho, Ernestino Caniço e Rogério Cardoso

MENSAGENS DE NATAL DOS NOSSOS CAMARADAS E AMIGOS

1. Da nossa tertuliana, jornalista, Diana Andringa:

Obrigada, Carlos e Dina – e aproveito a “boleia” para desejar a todos Boas Festas e que o Ano Novo seja o melhor possível.

Diana Andringa

************

2. Do nosso camarada Afonso Sousa, ex-Fur Mil Trms, CART 2412, Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70:

Aos meus estimados amigos:
Quero desejar-vos um bom Natal no seio das vossas famílias, que o passem com alegria, paz, felicidade e esperança num tempo melhor.

Para todos vós, Boas Festas. Feliz Ano Novo.
Afonso Sousa


************

3. Do nosso camarada José Romão, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, e CCAÇ 16, Bachile, 1971/73:

Desejo a todos os meus amigos e familiares
Um Feliz Natal e um próspero Ano Novo de 2012.

Zeca Romão


************

4. Do nosso camarada Júlio César, ex-1º Cabo, CCAÇ 2659/BCAÇ 2905, Cacheu, 1970/71:

Postal de Natal diferente...
...para recordar!

Boas Festas, Feliz natal e próspero Ano Novo para toda a família, são os votos sinceros do Júlio e esposa

Abraços
Júlio César


************

5. Do nosso camarada José Belo, ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia:

Desde este "extremo do extremo" Norte da Europa, os Votos de um Feliz Natal e Bom Novo Ano para os Camaradas da Guiné e suas Famílias.

Um grande abraço do
José Belo


************

6. Do nosso camarada Eduardo Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74:

Olá, amigos/as.
Como é Natal, e um novo ano vai começar, não queríamos deixar de vos desejar as Boas Festas. Aproveitamos a ocasião para vos desejar um Feliz Natal e Próspero Ano Novo.

Abraços e beijinhos. Festas Felizes.
Eduardo Campos e Manuela


************

7. Do nosso camarada José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav e Comandante do Pel Rec Daimler 2206, Bambadinca, 1970/72:

A todos os meus amigos e suas famílias desejo um Natal Feliz e Boas Festas.


************

8. Do nosso camarada Ernestino Caniço, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá, Mansoa e Bissau, 1970/72:

Para todos os camarigos votos de


************

9. O nosso camarada Rogério Cardoso, ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66:

Apresenta aos camaradas combatentes da Guiné, e a todos os familiares, os votos de Natal feliz e um Ano 2012 com a chamada crise aliviada.

Um abraço amigo
Rogério Cardoso
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9266: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (8): Votos de um novo ano, prenhe de esperanças renovadas, com duas sugestões de leitura (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P9266: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (9): Votos de um novo ano, prenhe de esperanças renovadas, com duas sugestões de leitura (Cherno Baldé)

1. Mensagem do Cherno Abdulai Baldé:



 De: Cherno Abdulai Baldé <chebalde@hotmail.com
Data: 23 de Dezembro de 2011 11:40
Assunto: Feliz Natal

Meu caro amigo e irmão Luís Graça,

Venho por este meio desejar-vos, a ti, a tua familia e a todos os editores e colaboradores da Tabanca Grande, um bom NATAL e um próspero ano novo,  prenhe de esperanças renovadas.

Quero, igualmente, informar-te que muito recentemente foram lançados em Bissau dois livros muito importantes de autores Guineenses, para preencher, penso eu, o vazio que sempre predominou nesse dominio.

O primeiro livro é de um jovem quadro da diplomacia guineense, um colega [meu] de Kiev (1986/90) e de Lisboa (2000/2002), Apolinário Mendes de Carvalho que lançou um livro intitulado A diplomacia da Guiné-Bissau face aos novos paradigmas da cooperação internacional,  onde faz um balanço quase exaustivo e sonda as perspectivas da cooperação do país, as diversas condicionalidades, vantagens e desvantagens da cooperação internacional,  etc.

O segundo livro, e este certamente vos poderá interessar mais, é um lançamento a título póstumo de Filinto Barros com o titulo de Testemunho. O autor, recentemente falecido em Portugal, foi alto dirigente do PAIGC e dos sucessivos governos do país no periodo que se seguiu ao 14 de Novembro e vai preencher uma lacuna, embora parcial, de que o Mais Velho Antº Rosinha vem reclamando constantemente aos Guineenses, ou seja, a sua versão dos factos.

Comprei um exemplar que vou oferecer à Tabanca Grande. Quando houver um portador, poderão reclamá-lo, é vosso.

Com os meus melhores cumprimentos,
Cherno Abdulai Baldé
______________


Nota do editor:

Guiné 63/74 - P9265: (Ex)citações (167): Vagomestria(s) (Torcato Mendonça / José Brás)



Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Fotos Falanets II > Foto nº 47 > Em Mansambo, uma das mais paradísiacas estâncias de turismo militar no Leste, também havia rancho melhorado... Por exemplo, leitão balanta...

Foto: © Torcato Mendonça  (2006). Todos os direitos reservados.


1. Compilação de comentários do Torcato Mendonça e do José Brás ao poste P9246 (*):

(i) Torcato Mendonça:


Zé Brás: Agora li-te e vi que eras vagomestre ou coisa parecida. A minha CART tinha um. Mas quem organizava tudo era o 1º Sargento e não sei (ou sei?) quem mais. Eram os profissionais, os tais de uma comissão e fazem contas à vidinha.
- Vocês - dizia ele para os Furriéis de modo a ser ouvido por outros, a quem não diria, assim cara a cara -, vocês vão e dois anos depois acabou. Nós já estamos com algumas comissões… 

Eu esperava o dia. Já tinha havido “baile” e os papéis...enfim.  Um dia ri-me, se me ri. Caímos em valente emboscada e o homem vinha para férias. Acabou o tiroteio, as voltas normais e está a andar. Olho para o Nosso Primeiro:
- Porra, que cara é essa?
 Ainda tinha o sangue nos calcanhares..., diacho, que raio de profissional! ... E ria...Ai os profissionais! Ele diz-me:
- Queria encontrá-lo quando viesse de férias. 

O que vi levanta-me dúvidas. Olá, pensei eu...Nada contra os profissionais operacionais. Estes eram de secretaria. Competente nisso e, por isso mesmo,  governava a papelada e os eteceteras burocráticos da Companhia. Eu quase que ia ficando na Comissão Liquidatária, pois comandava a CART [2339]. Não fiquei,  para alegria dele(s).

O vagomestre ou mestre vago era (e é) um óptimo rapaz. Não tinha lança, não via moínhos e, se Dulcinea tivesse, era na terra dele. Menos ainda um Sancho...Assim tentava dar o melhor,ia de quando em vez numa coluna ao Sonaco [, a norte de Contuboel], terra de vacas .

Não tínhamos messe ou comida diferenciada de outros militares.Todos comiam e dormiam de forma igual. Foi essa a instrução recebida e praticada em Mansambo. Haviam duas mesas, uma pequena para oficiais e outra maior para sargentos. Estavam na metade interior de um abrigo em L; na outra metade estava o salão de festas (10/12 m2) de uma parte do meu grupo. Servia, aquele espaço de tudo, salão de refeições, de reuniões, de convívio e bar. 

Sim, de bar. Havia um frigorífico a petróleo mas quando os 10,5 disparavam, fornicavam os vidros da "chama" e nem sempre havia substitutos.Uma deliciosa merda, pá.

Nas Tabancas era pior e chegamos a comer feijão frade com feijão frade. Até o óleo da lata das cavalas se finou. Cavalas há muito que tinham cavado. Em visita o General resolveu a situação. Até tabaco houve nesse dia.Tabaco pá em cigarros. Felizmente, pois tudo se estava a acabar. Até as quecas se foram...
Áh...quanto custava uma Companhia. Nisso falamos fora da época do Papai Noel... Carrito?... Ainda, uns fulanos que por aí andam, nos vão ao bolso para o tal "fundo de reserva"... 


Torcato: Não, não [era] vago mestre nem mestre vago. Apenas um gajo mais daquele que refilavam da merda da mesa porque, pelo menos era o que parecia, havia quem quisesse comprar carrinho se voltasse. 

O maior refilão e mais teimoso dos refilões era eu, até que o Capitão (que também havia de andar com fome), deu um murro na mesa e gritou: 
- Porra, Zé Brás, você vai ser o próximo gerente da messe para sorjas e oficiais. 

E fui. E desatei a caprichar. Aquilo já não era a mesma coisa. Caramba! Arrisquei o pêlo algumas vezes indo a sítios danados quase sozinho. Num mês dei duas vezes leitão. A comida era boa e sobrava ainda para alguns soldados mais próximos da cozinha. 

Comprei copos de vidro, toalhas de mesa e outros luxos. No fim, o que sobrou não dava nem para cãozinho daqueles que abanam a cabeça sobre colcha colorida na retaguarda do carro/projecto do Primeiro.

 Houve mosquitos por cordas porque o homem explicava-me que numa boa administração tinha que se construir um fundo de reserva, e eu explicava-lhe que da dotação para a barriguinha da malta não se podia fazer, nem fundo nem reserva, coisas do meu avô que comia mal hoje com medo de ter de comer mal amanhã.

De novo o comandante comandou: 
- Gaita, pá. Ou se calam ou dou uma porrada num e não será no que me trata tão bem.
___________

Notas do editor:

Guiné 63/74 - P9264: Em busca de... (178): Meus camaradas Leite, Lopes, Dinis, Ramalho, Veloso... da CCAÇ 2679 (Bajocunda, 1970/71) (Manuel Soares, ex-Sold Cozinheiro)

1. Comentário, com data de ontem, do Manuel Soares, ao poste P9026 (*):

Olá. Sou o Soares e era o cozinheiro da companhia 2679 [ vd. CCAÇ 2679,
Bajocunda, 1970/71].

Gostava de entrar em contacto com os meus ex-colegas, Alferes Leite, Lopes, Dinis, Ramalho, Veloso...

 Eu moro na Maia e já tentei o contacto de alguns camaradas dessa guerra.

Fico a aguardar alguma notícia. (**)

Um grande abraço

Manuel Soares
TM 936063483
_________________


Notas do editor:

(*) Vd. poste de 11 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9026: História da CCAÇ 2679 (44): Uma coluna reforçada a Copá (Jose Manuel Matos Dinis) 

(**) Último poste da série > 22 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9247: Em busca de ... (177): Procuro camaradas da CCAÇ 3489/BCAÇ 3872, Cancolim, 1971/74 (Manuel Moura, Fur Mil, 2ª CCAÇ/BCAÇ 4518, Jan/Set 1974)

sábado, 24 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9263: Tabanca Grande (313): António Eduardo Gouveia Carvalho, ex-Cap Mil da CCAÇ 3, Bigene e CCAÇ 19, Guidaje (1974)

1. Vou começar a apresentação do nosso camarada e novo tertuliano António Eduardo Carvalho, com um pedido desculpa pessoal, pela minha demora, motivada pelo acumular de correspondência que atira para as "calendas" as mensagens mais antigas.

Escrevia ontem o Carvalho no seu comentário deixado no Poste 6612:

Sou o Ex-Cap. Mil. António Eduardo Gouveia Carvalho. Já tentei integrar este maravilhoso colectivo, mas não possuo fotografias do tempo da Guiné.
Serei um dos vossos com todo o gosto, pois ao consultar, o que faço muitas vezes, este espaço netiano, verifico, com agrado que é muitíssimo bem orientado pelo camarada Luís Graça e seus directos colaboradores, a quem desde já presto a minha homenagem.
Aproveito para desejar a todos uma Festas Felizes.

Fui procurar na minha caixa de correio, tipo Torre do Tombo, e encontrei esta sequência de mensagens:


i) Mensagem de António Eduardo Carvalho em 7 de Outubro de 2010:

Costumo ver o vosso blogue que acho muito rico.
Gostava de fazer parte deste grupo que já é tão grande.


António Eduardo Gouveia Carvalho
Cap. Miliciano CCaç 3 e CCaç19 - 1974
Mais uma vez, Parabéns pelo blogue



ii). No dia 9 de Outubro de 2010 enviei esta resposta ao nosso camarada António Carvalho

Caro António Carvalho
Muito obrigado pelo teu contacto e pela tua vontade em te juntares a nós.


Presumo que estarás ciente das nossas normas de conduta e daquilo que pretendemos ao publicar as memórias daqueles que lutaram em terras da Guiné. O lado esquerdo da nossa página contempla todas as respostas às dúvidas que poderão surgir quando se pretende fazer parte de uma comunidade virtual, neste caso a nossa Tabanca Grande.

Presumo que acompanhaste o fim da guerra comandando os bravos militares guineenses que a nosso lado lutaram muitos anos e que no fim das hostilidades foram descartados e abandonados à sua sorte. Gostaríamos, se a isso estiveres disposto, nos desses a tua versão desses acontecimentos, já que os viveste, e ainda o que sentiste na hora do regresso. Como foram vividas as últimas horas até à independência e tudo o mais que achares por bem contar.

A tua posição de CMDT de Companhia deu-te oportunidade de acederes a determinado nível de informações, hoje desclassificadas, que não seriam do conhecimento da maioria dos combatentes, e que poderão ficar registadas no nosso blogue para memória futura.

A fim de seres apresentado formalmente à tertúlia, envia uma foto actual e outra do teu tempo de Guiné, tipo passe, mais uma pequena história pessoal ou não, e fotos, se tiveres, com legenda para a ilustrar.

Refere as datas de ida e volta, locais por onde andaste, etc. Poderás ainda contar um pouco de ti, do teu passado e presente, etc.

Se acederes a este link - http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Tabanca%20Grande - poderás ver as apresentações anteriores.

Ficamos então na expectativa de novo contacto teu.

Por meu intermédio recebe um abraço do editores.
Carlos Vinhal



iii). No dia 10 recebemos nova mensagem do nosso novo tertuliano:

Caro Carlos Vinhal
Estou completamente ciente das vossas regras e é exactamente por isso que penso que me enquadro nessa forma de estar.

Pedes-me fotografias dessa fase e actual.
Da fase da guerra só recentemente, através de um Alferes da minha Companhia (Luís Socorro), cujo telemóvel vi através do Blogue, consegui duas fotografias que ele possuia.
Essas fotografias, uma delas foi tirada no Senegal, quando, depois do 25 de Abril, tive um encontro com o PAIGC.
Outra foi tirada em Guidaje, também depois do 25 de Abril.
Numa delas (Senegal ) sou o terceiro a partir da esquerda. Na outra é fácil de ver sou o único branco confraternizando com soldados e civis.


Aproveito para te informar que há uns quatro anos fui entrevistado pelo Joaquim Furtado para a série sobre a Guerra, mas até agora ainda não apareci. Sei que quem indicou o meu nome foi o Comissário Politico do PAIGC, Duke Djassi, (Leopoldo Luís Alfama).
Obrigado pelo teu contacto.
Vou tentar enviar as fotografias, agradeço que digas alguma coisa.


Um grande abraço.
António Carvalho



iv). No mesmo dia respondi:

Caro António Carvalho
As fotos chegaram, mas não estão em bom estado para a partir delas fazer uma foto fardado tipo passe. Se tiveres o cartão militar, digitaliza e manda.
Fica a faltar a foto actual e um texto de apresentação.
Se fores avisado do dia em vai para o ar episódio em que apareces, diz-nos para alertar a tertúlia.


Já agora, quero tirar uma dúvida. Sendo tu mais velho do que eu só 4 anos, foste Cap Mil em 1974. Pergunto, foste para a tropa mais tarde ou cumpriste o serviço normal e foste outra vez chamado? Temos casos de Cap Mil já "velhotes" que foram chamados depois de ter família constituída, só porque não tinham sido mobilizados antes.

Um abraço
Carlos Vinhal



v). Ainda no mesmo dia António Carvalho:

Fiz o serviço militar no RI 6 na Senhora da Hora, a minha Especialidade era Inf. Oper. e Reconhecimento, como fui 2º classificado no COM não fui como Alferes.
Vim para a disponibilidade em 1969 e fui chamado para o CPC em 1973.

Fui para a Guiné em rendição individual com destino a Bolama, mas, chegado a Bissau, mandaram-me para Bigene (CCaç 3) e depois para Guidaje (CCaç19).
Já li uma passagem no blogue na rubrica "no 25 de Abril eu estava..." onde um dos Alferes da Companhia branca conta, no fundamental, o que se passou.
Para além disso há outras coisas que se passaram, mas que até agora tentei esquecer.
O Capitão que foi ao encontro do PAIGC era eu.

Nessa altura já eu tinha três filhos e trabalhava na Direcção Geral das Alfândegas, como Quadro Técnico.
Quando regressei da Guiné vim de novo trabalhar para a DGA. e actualmente estou aposentado.
Se algum dia se proporcionar gostaria de falar nisto com vocês
.

Um abraço
Ant. Carvalho



vi). Ainda no mesmo dia respondi ao nosso camarada:

Caro Carvalho
Foste um dos sacrificados milicianos, chamados para tapar buracos. A minha Companhia teve dois Cap Mil, o Jorge Picado, nosso tertuliano, hoje com mais de 70 jovens anos, e o Cap Mil Santos Caeiro, bem mais novo, que quando regressámos (MAR72), ainda lá ficou a penar.


Podes e deves contar tudo, desde que não te seja penoso. Por vezes o escrever, falando com aqueles nos compreendem, os outros camaradas, serve de terapia, uma espécie de desabafo, já que os nossos familiares, filhos e netos, não estão para aturar as nossas estórias, tão estranhas para eles.
[...]
Aguardo, então os teus elementos em falta para te apresentar.
Uma boa semana.
Carlos



vii). A partir daqui houve uma troca de mais duas mensagens e fez-se silêncio total até hoje, dia 23 de Dezembro de 2011. Mais de um ano. Inconcebível da minha parte.

Caro camarada Eduardo Carvalho
Confesso que me senti mal ao ler o comentário que fizeste no Poste 6612.
Era o que faltava alguém ficar de fora da tertúlia só por não ter uma foto para enviar.
Com os elementos que cá tenho vou apresentar-te formalmente, pelo que te podes desde já considerar membro deste grupo de ex-combatentes.
Quando quiseres, se tiveres alguma coisa para nos contares enquanto CMDT daquelas duas Companhias africanas, teremos muito gosto em publicar.
Breve irás receber notícia da tua apresentação. Espero que este endereço esteja actualizado, pois apareces no comentário como "torcava"


Recebe um abraço deste teu camarada e novo amigo, mais os votos de Boas Festas natalícias e de um 2012 pleno de venturas.

Carlos Vinhal

OBS:- Se possível, p.f. acusa a recepção deste mail


2. Comentário de CV:

Camarada Eduardo Carvalho, estás finalmente apresentado à tertúlia.
Não ter fotos da Guiné não é impeditivo de fazer parte do nosso Blogue, queremos, isso sim, o teu testemunho de um tempo difícil para todos, que coincidiu com a passagem do poder para o PAIGC, tempo de indefinição, em que principalmente os Oficiais com responsabilidades de comando tiveram um importante papel.

Já que não tens nenhuma foto tua do teu de Guiné, queria que na primeira oportunidade me enviasses uma foto actual, tipo passe, para encimar os postes com eventuais textos teus. É um costume nosso que queremos manter.

A tua correspondência deverá ser sempre enviada para luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e para um dos editores, eu ou Eduardo Magalhães, cujos endereços encontrarás no lado esquerdo da nossa página.

Em nome da tertúlia e dos editores deste Blogue envio-te um abraço de boas vindas e já agora, os nossos votos de Boas Festas para ti e para os teus familiares.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9240: Tabanca Grande (312): João Gabriel Sacôto Martins Fernandes, ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil (1964/66)

Guiné 63/74 - P9262: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (1): O Natal de 1973, em Cufar, na véspera da Op Estrela Telúrica...

1. Há dias o António Graça de Abreu (AGA) mandou-nos uma bela prenda de Natal, o ficheiro em word, completo (com exceção das fotos) do seu Diário da Guiné, 1972/74, com autorização para publicarmos os excertos que  entendermos ter interesse para os nossos leitores.

Estamos a falar do livro, editado pela Guerra & Paz, Lisboa, em 2007,  embora com outro título (Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp).

Recorde-se que o AGA chegou a Bissau a 24/6/1972, vindo de DC-6, de Lisboa. Foi colocado no CAOP1 - Comando de Agrupamento Operacional nº 1, sediado em Canchungo (Teixeira Pinto). É Alferes Miliciano, com a especialidade de Atirador de Infantaria, reclassificado por incapacidade parcial em "Secretariado, Serviço de Pessoal". Chega a Canchungo, de helicóptero, a 26, de manhã. Nunca identifica o seu comandante, coronel paraquedista [ Durão]. Tem um diário, onde escreve quase todos os dias (ou em alternativa, cartas e aerogramas que manda à sua mulher, num total de 347, até ao fim da comissão, 17/4/1974). Teve os seus primeiros "trinta e cinco dias de férias em Portugal" de 7 de Novembro a 17 de Dezembro de 1972 (, período em que não quaisquer notas no seu Diário).  Irá passar depois por Mansoa (Parte II do Diário) e acabará a sua comissão, sempre no CAOP1, em Cufar, no sul da Guiné (Parte III).

É desta III parte do seu diário, que transcrevemos as suas entradas relativas aos dias 22, 24 e 26 de dezembro de 1973. É em Cufar que ele passa o seu Natal de 1973, o seu segundo Natal na Guiné, numa época claramente de escalada da guerra no sul... Estava em curso mais uma grande operação no Cantanhez, a Op Estrela Telúrica. Como ele escreveu ironicamente, "Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação 'Estrela Telúrica.' Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade".  (LG)


(...) Cufar, 22 de Dezembro de 1973 

Deixei a cidade [de Bissau], deixei o frenesim das gentes, os motores, a poluição, a confusão e regressei ao bucolismo do campo, à nada pacata aldeia africana, aos rebentamentos de granadas, foguetões e bombas, às cabeças alteradas pela guerra, ao desamor e aos medos.

Ao descer do Nordatlas na pista da Cufar, deparei-me logo com a nossa ambulância à espera, pronta para as evacuações para Bissau. Mais um morto e oito feridos, fuzileiros estacionados no Chugué atacados no rio Cumbijã mesmo em frente a Cufar.

Preparam-se grandes operações na zona. Os comandos africanos vêm cá para baixo fazer mortos, ter mortos. Ontem – isto é muito animador! – deslocaram-se para Cufar mais dois médicos (um cirurgião e um anestesista) mais uns tantos enfermeiros. Trouxeram uns quilos largos de aparelhagem médica e cirúrgica, e materiais para primeiros socorros, enfim temos um aparato clínico capaz de assustar o menos medroso.


Os pobres vão morrer com a certeza de que morrerão bem acompanhados e assistidos.

Por estes dias, chegarão mais quinhentos homens, três companhias de comandos africanos, mais a minha conhecida 38ªde Comandos e ainda talvez pára-quedistas. Estes homens vão tentar a “limpeza” do Cantanhez. Em Bissau, encontrei alguns alferes amigos da 38ª que me puseram a par do que se espera com esta operação. Os rapazes também estão receosos, a moral não é elevada.


Entretanto, os Fiats continuam a bombardear aqui à nossa volta, com poucos resultados, parece que os guerrilheiros já possuem abrigos à prova da nossa aviação.

Cufar, 24 de Dezembro de 1973 


Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné em guerra.

Fui a Cadique com o meu coronel, de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã.  Os pobres de Cadique, que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel comandante do batalhão que não o atingiu por pura sorte. O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.

A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?

Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvairo da espécie humana.


Cufar, 26 de Dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estômagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente e presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressámos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz.

Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de “Estrela Telúrica”. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a “Estrela Telúrica” prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª, fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a “embrulhar”, seis feridos graves entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata,[1] com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros… No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DOs, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os helis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato. Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um heli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação, este tipo de operações era impossível. Durante estes dias os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos “embrulhanços”, das flagelações. É impressionante o potencial de fogo, de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação “Estrela Telúrica.” Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.
_____________

Nota de AGA: [1] Sobre o acidentado percurso do alferes Marcelino da Mata, ver a narração pessoal da sua participação nesta guerra em Rui Rodrigues, (coord.), Os Últimos Guerreiros do Império, Editora Erasmos, Amadora,1995, pp. 195-213

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9261: Estórias do Juvenal Amado (40): O meu compadre Aljustrel

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado*, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 21 de Dezembro de 2011:

Carlos, Luís, Virgínio e restante Tabanca Grande
Há muitos camaradas que, por vezes, quando estou com eles já não sei se eram da CCS ou de alguma companhia operacional. Conheço-os e pronto, mas também há os que passados estes quase quarenta anos, a sua recordação está tão viva que parece que nunca estive sem os ver. O Aljustrel é a par de muitos outros uma figura incontornável e já há algum tempo fazia tentativas para relatar as suas andanças. Muitas mais coisas há para dele contar mas por agora fico por aqui.
JA


ESTÓRIAS DO JUVENAL (40)

AI COMPADRE AMADO, QUE DOR TÃ GRANDE!

O meu compadre "Aljustrel" era um daqueles camaradas que as estudava e armava a cada passo.
Era mecânico e acompanhou-me nalgumas das piores colunas que fiz pelo Leste. Como já contei, era ele que ia comigo quando o Teixeira caiu na mina e também me acompanhou a Buruntuma em 1973, quando se esperava um grande ataque do PAIGC naquela zona, depois dos ferozes ataques a Copá. Nessa altura também sapadores do 3872, foram destacados para essas paragens e por lá ficaram durante uns tempos a "semear" os mortíferos engenhos. Eu e o "Aljustrel" tivemos mais sorte pois viemos logo embora no mesmo dia, depois de descarregarmos a nossa perigosa mercadoria.

Da esquerda para a direita: Lourenço (periquito), eu e o Aljustrel.

Mas o que eu quero é falar do "Aljustrel", que tinha uma propensão para a tonteira e alguns disparates, que fizeram dele personagem única.
Ele estava sempre envolvido na matança de algum cabrito, que entrasse no arame, chegando mesmo a matar um que tinha sido oferecido ao nosso Comandante.
Quando soube de quem era o bicho, apresentou-se com ele debaixo do braço ao nosso T.Coronel, dizendo que ele andava à solta e que o tinha matado sem querer. Está claro o nosso Comandante olhou para ele e disse, que se andava à solta não era dele. A verdade é que ele tinha proibido os animais à solta dentro do quartel e assim não quis dar o dito por não dito.

No inicio da nossa comissão quando fez o primeiro reforço resolveu pregar uma rajada de G3 numa vaca e gritar que eram turras. Escapou dessa como de muitas outras.
Um dia disse-me: "oh compadre Amado o periquito tem umas galinhas já matadoras e o que é que acha de a gente matar uma e fizer um petisco?" Assim foi, matamos, assamos a galinha e quando estava pronta, fomos ao posto de sentinela onde o Lourenço periquito estava de serviço e zás, fizemos uma petisqueira.

O periquito ficou tão contente e tão agradavelmente surpreendido, que até pagou as cervejas, enaltecendo a nossa amizade por nos termos lembrarmos dele para o pitéu. Escusado será dizer quando no outro dia deu pela falta da galinha, nunca mais se calou de f.d.p. para cima.

Um dia foi entregar material para abate a Bissau e pela terceira vez pediu à mãe dinheiro para a carta de pesados. Ele ia para Bissau com boas intenções, mas uma vez lá, havia umas raparigas muito acolhedoras lá para os lados do Pilão e a carta ia à vida, nas ditas, da vida.
Entretanto quando pediu à mãe o dinheiro para a carta, ela perguntou-lhe se a mesma era da avião, pois estava cansada de lhe enviar o dinheiro para o efeito.

Quandos os "periquitos" estavam para chegar, brincávamos com coisas sérias. O Aljustrel, eu e o Esteves na enfermaria

Outra vez foi chamado ao Comandante, porque uma madrinha de guerra, a quem com o tempo acabou por prometer casamento se queixou dele. Ela fez queixa porque ele lhe deixou de escrever. Foi obrigado a escrever-lhe e à cautela, passou a escrever a todas as outras, não fosse alguma lembrar-se de fazer queixa dele também. O Comandante avisou-o, mais alguma fizesse queixa dele e ia ver como elas lhe mordiam.

Mas umas das melhores teve a haver com as férias.
O nosso herói fez requerimento para o gozo de férias, mas como não vinha à Metrópole, entendeu passá-las no quartel e deitado. A malta achou graça e assim levavam-lhe as refeições à cama, deixou de se barbear, só saía de noite para ir para a tabanca ou para a cantina, não fosse o azar de ter um mau encontro com o Tenente Raposo ou mesmo com o Comandante.
Não esperava ele que tanto descanso lhe fizesse mal.

Um belo dia o compadre "Aljustrel" ia para se levantar e não conseguiu. Umas dores lancinantes nas costas, não o deixavam endireitar nem dar passada. "Aí compadre Amado que me desgracei. Que dor tã grande!!!!!" Amparado por mim e pelo periquito, a caminho da enfermaria com as costas num ângulo de 90º, assim mais ao menos como a Alemanha perdeu a guerra.
Resultado, o "Aljustrel" acabou as férias na enfermaria a levar umas injecções, que o Dr Pereira Coelho lhe receitou. Doeram que se fartou, mas curou-o.
Este episódio teve outro realce ao ser responsável, por ter acabado com o direito a férias, para quem permanecesse no quartel.

Passado pouco tempo depois de termos regressado, apareceu-me em Alcobaça com a esposa e já uma filha. Depois disso deixei de o ver durante 34 anos, não sabendo nada dele durante esse tempo pois correu o Mundo como embarcadiço. Num almoço em 2008 na Mealhada apareceu com esposa, a segunda filha e mais o marido desta. Foi uma alegria reviver as estórias.
Era ver a esposa e a filha olharem incrédulas para ele.
Faltava-lhes aquilo para acabarem de o conhecer melhor.
Um abraço
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9227: Blogoterapia (194): Como é bom não termos dúvidas (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 5 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8857: Estórias do Juvenal Amado (39): O meu Avô Juvenal, o Benjamim e Eu

Guiné 63/74 - P9260: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (12): Madrinha de guerra e... amor

1. Em mensagem do dia 21 de Dezembro de 2011 o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:


Outras memórias da minha guerra (12)

Madrinha de guerra e… amor

O Neca Quintino era sapateiro e bastante conhecido. Além de ser um artista no desempenho da sua profissão, granjeara um certo respeito pela sua honrada postura e pela solidariedade da sua viuvez precoce. Casou com a Micas do Canto, sua vizinha e bem conhecida desde os tempos de criança. Sempre se sentiram atraídos um pelo outro e, logo que puderam, assumiram uma relação, aliás abençoada por todos.

Era gente de trabalho árduo, fruto dos tempos inseguros da República e da fome que os acompanhou com a implantação do Estado Novo e os sacrifícios com a “neutralidade” de Portugal durante a II Grande Guerra. Além do amanho da casa e das hortas, do pequeno quintal, a Micas estava sempre ao lado do Neca, para o ajudar nos trabalhos de sapateiro.

A filha Deolinda, nasceu “antes do tempo”, o que acontecia muitas vezes com o primeiro filho de um casal. Portanto, naquele ano de 1944, além do casamento dos pais, festejou-se, também, o baptismo da Deolinda. O pai do Neca era serrador e o tio solteiro era pedreiro. Juntos decidiram ajudar o Neca e a Micas e iniciaram a construção de uma casa de quatro paredes. Na parte de cima, ainda colocaram, entre os tijolos vermelhos, três janelas e uma porta mas em baixo, estava tudo vedado com casqueiras de madeira.

A mulher já havia abortado por três vezes e fora avisada de que a sua vida corria perigo sempre que isso acontecia. Porém, a Micas queria um rapaz e como vira que os três fetos eram do sexo masculino, ela vivia ansiosa por conseguir o filho tão desejado.
Quis o destino que no último parto, as coisas corressem pior. Assim, a contrariar a alegria do nascimento do rapaz, caiu a tristeza do falecimento da Micas, pouco tempo depois.

Com oito anos, a Deolinda deixa a escola e vai ajudar o pai e cuidar do bebé recém nascido. Por outro lado, o Neca, apesar da falta de apoio da falecida mulher e, ainda, com algumas dívidas da casa inacabada, resolve instalar luz eléctrica em casa. Convida alguns colegas de profissão, para trabalharem com ele, ajudando-o, assim, a custear tal investimento. A Deolinda substituía a mãe em quase tudo. Sempre com o irmão ao lado, dentro de uma giga de giesta, fazia quanto o pai lhe pedia.

O Quinzinho, que herdou o nome do avô, rapidamente se tornou no miúdo mais acarinhado daquele lugar. Foi crescendo cheio de atenções e simpatias e muito amor da irmã adolescente, que sempre o tratou como se fosse seu filho, para além de seu boneco de estimação.

Quando estalou a guerra em Angola, já a Deolinda era uma mulher. Mulher de raça! Fazia o trabalho de qualquer sapateiro, cuidava da casa e ainda se esforçava na pequena horta contígua à casa.

Na cave da sua casa, em redor de duas mesas colocadas de frente para a luz, que penetrava pelas duas portas abertas (de Verão e de Inverno), trabalhavam mais de 10 pessoas. Trabalhavam à tarefa para as várias fábricas de calçado da região e davam o seu máximo de tempo e de esforço para conseguirem ganhar o sustento condignamente. O Neca trabalhava isolado lá mais atrás, junto a uma pequena mesa, onde era ajudado pela filha Deolinda e por um ou outro aprendiz que ia admitindo. Desta forma, isolava a sua filha das conversas menos convenientes dos adultos e dava o privilégio da entrada da luz, aos outros (seus “inquilinos”).

A Deolinda era inteligente e apercebia-se de quase tudo que ali se discutia, do futebol à política (surda); da religião à má-língua. Agora, já mulher, quando soltava os seus longos cabelos pretos, via-se que, apesar de não ter mais que 1 metro e 60, se tratava de uma mocetona. Era bem feita de corpo e tinha um palminho de cara muito bonita e uns lindos e expressivos olhos negros. Todavia, escondia as mãos e os joelhos, devido aos calos do trabalho.

É nesta fase dos primeiros tempos da guerra, que se vive com muita emoção, o envio das nossas tropas para defender o Portugal de além-mar.
Havia um vizinho, o Zequita, que gostava muito de ir para lá aos serões, ouvir a conversa e ler em voz alta alguns jornais ou revistas que chegassem até ali. Tinham por ele muita simpatia porque era órfão do Zé da Feira, considerado um amigo de todos, que falecera de doença hepática com trinta e poucos anos. Além disso, como eram praticamente todos analfabetos e sem tempo disponível, gostavam de ser informados, através das leituras, enquanto trabalhavam.

Como se falava muito nas Madrinhas de Guerra, a Deolinda confessou que gostaria de ter um afilhado. O pai, embora torcesse o nariz, não via motivos para censurar tal desejo da sua sacrificada filha. Porém, ela tinha um grande entrave: saíra da escola com a primeira classe e já quase nada sabia.
Um dia, ela apanhou uma revista (talvez a “Flama”) e viu lá uma foto tipo passe de um rapaz com a farda diferente. Era da Força Aérea e pedia a alguém que o contactasse durante aquela guerra. Logo que o Zequita lá chegou, ela disse-lhe, meio a brincar, que ele poderia mandar-lhe uma carta no nome dela.

Passados poucos dias, a Deolinda não aguentava tanta emoção. Pois havia recebido uma linda carta, com a primeira foto dedicada por um bonito rapaz, e a tratá-la com elevada educação. O Zequita, apesar dos seus 15/16 anos, gostava muito de cinema e já havia lido alguns livros de enredo romântico, especialmente os de Camilo Castelo Branco, emprestados pelo vizinho Mário Malheiro. Por isso, não foi difícil “abusar” um pouco desses conhecimentos e colocar o relacionamento da Deolinda com o Pára-quedista, João Morgado, talvez um pouco acima da realidade.

A Deolinda, que nunca namorara, entusiasmou-se e agora, já não se sentia bem quando o tema de “Madrinha” era motivo de discussão ali na mesa de trabalho. Preocupava-se, então, em controlar o que o Zequita escrevia e tomou uma atitude:
- Pai, quero frequentar a Escola de Adultos. Vai ver que consigo trabalhar e ir para a escola.

O pai, apesar da falta que ela lhe fazia, ficou contente com a decisão.
Não levou muito tempo para que ela se desenvolvesse na escrita e, com a ajuda do Zequita, o relacionamento de Madrinha de Guerra estava a transformar-se numa relação amorosa.

Entretanto, o Zequita, que trabalhava na cortiça, também resolveu ir aprender contabilidade à noite, no ensino privado, e passou a dispor de pouco tempo para acompanhar as cartas da Deolinda. Este atraso veio a provocar alguma aceleração no relacionamento Madrinha/Afilhado. É que o João Morgado, o tal afilhado, vinha, através do ciúme, demonstrando cada vez mais, que se sentia apaixonado. E ela, por mais que se esforçasse, não se sentia capaz de lhe corresponder como gostaria. A barreira da escrita e um certo retraimento face ao vizinho Zéquita, eram motivos de sobra para chorar a sua sorte. É que o Zequita alinhou naquilo como uma brincadeira e parecia não aceitar o desenvolvimento que estava a levar. Especialmente, não gostava que a Deolinda se apaixonasse daquela forma por “um desconhecido”.

Ela pensou, pensou, chorou, chorou e acabou por tomar a difícil decisão. Quando apanhou o Zéquita, pediu-lhe para escrever a última carta.

Querido João
Gosto muito de ti. Mas neste momento, estou obrigada a parar com o nosso relacionamento. A culpa não é tua. Um dia, se quiseres, poderei explicar-te pessoalmente.
Até lá, desejo-te as maiores felicidades, especialmente nessa maldita guerra.
Fica com esta última foto, tirada no monte da Senhora da Saúde dos Carvalhos.
Um beijinho desta que nunca te esquecerá.
Deolinda

A partir dali, a Deolinda sofria em silêncio aquela mágoa de um amor “cancelado”. Dedicava-se cada vez mais a preparar-se para o exame da 3.ª classe e continuar a aprender aquilo que tanta falta lhe tinha feito agora.

Cerca de dois meses depois, pára um carro VW azul claro, junto da casa da Deolinda. Nenhum vizinho o conhecia. Dele saiu um jovem que se dirigiu à primeira pessoa que encontrou:
- Por favor, diga-me onde vive uma rapariga chamada Deolinda.

- Não tem nada que saber, o senhor parou lá quase à beira. É essa, a segunda casa para quem vem do lado da Feira. – respondeu a vizinha.

Bateu no pequeno portão. Surgiu o Ti Neca que, do alto da escadaria, lhe perguntou o que queria.

- Chamo-me João Morgado e quero falar com a sua filha Deolinda.
Ela que já se apercebera do que se estava a passar, surgiu-lhe junto ao portão, vinda de trás da casa.

Ele, decidido, atira-lhe:
- Vim de férias. Não aguentava estar lá na guerra e ao mesmo tempo não suportava o teu afastamento. Tens de me dizer o porquê dessa atitude.

A Deolinda, emocionada e já com as lágrimas a escorrer-lhe pelas faces, exclama:
- Não tenho coragem para te dizer toda a verdade.

- Seja o que for, só sairei daqui esclarecido e quando tu mandares. – respondeu ele.

- Gostei de ti logo na foto em que pedias uma Madrinha de guerra. Como tive que abandonar a escola, aos 8 anos, quando a minha mãe morreu, pedi a um rapaz vizinho que te escrevesse em meu nome. Nunca pensei que cairia nesta situação. Fui para a escola nocturna por tua causa e agora, que já me sinto capaz de te escrever, não o podia fazer porque a letra não era a mesma. Tinha que parar. Não te queria continuar a mentir. Por outro lado, tens que saber que somos muito pobres, que sou uma rapariga simples, que vivo para ajudar a criar o meu irmão e ao meu pai, fazendo de sapateira e o trabalho de casa. Como vês, não sou rapariga para ti, porque vejo que és rapaz de outras possibilidades.

- Não, por favor, não digas isso. – interrompeu o João, que continuou:
- Também gostei logo de ti e agora, depois do que acabas de contar, sinto-me mais decidido a lutar para que venhas a ser minha mulher.
- Mas eu nunca namorei. Nem ninguém me interessou como tu. – continuou cada vez mais banhada em lágrimas.
- Que se passa, filha? – Perguntou o pai que havia ficado lá em cima.
- Diz ó rapaz para subir. Não fiquem aí a modos do povo ouvir.

Entraram os dois. Estiveram lá umas horas a conversar, para se conhecerem melhor.

À saída, ainda o Ti Neca estava sentado no cimo da escada, junto à porta aberta. O João aproveitou para lhe dizer:
- Senhor Manuel, apenas lhe quero dizer que o Senhor tem a melhor filha do mundo e eu, daria tudo para que ela viesse a ser minha mulher. Ela não tem nada a ver com as raparigas que conheço.
Sou ribatejano. Meu pai, que Deus tem, ensinou-me a tratar os problemas de frente, como se enfrentam os touros. Como trabalho muito, também não tenho tempo para meias conversas. Volto para a guerra. Penso que agora vou para o “descanso” e não vou mais para os combates. Fico feliz se a Deolinda continuar a estudar. Por mim, vai até onde quiser ir. Temos muito trabalho mas também temos empregados para ajudar.

************

Uns dois anos depois, estive com o Ti Neca, por ocasião dos Fiéis Defuntos. E perguntei-lhe:
- Que é feito da sua Deolinda?
- Está lá para a beira de Santarém. – respondeu e continuou:
- Casou com uma jóia de homem. O meu Quinzito está com ela e anda a estudar e eu, ando lá e cá. Estou aqui porque vim ao Cemitério ver a minha patroa, mas vou já para baixo. Ela está em finais de gravidez e não me sai da cabeça o que aconteceu à minha falecida Micas.

- E o trabalho, como vai? - perguntei.
- Olha, isto está a mudar. Os fabricantes de calçado querem agora toda a gente a trabalhar junto deles. O meu patrão Romualdo tem-me dado algum serviço para casa mas, isto já não é vida para mim. Por outro lado, a minha filha e o meu genro querem que eu fique lá. E eu já estou a habituar-me àquela vida no Ribatejo, ajudo no que posso e, realmente, sinto-me em família.

Há mais de 30 anos que quando passo naquela rua, reparo que a casa foi acabada e se mantém bem cuidada. Porém, sempre de portas e janelas fechadas.
Um dia, há uns 15 anos, consegui falar com uma vizinha do lado. Perguntei-lhe:
- Que é feito do Senhor Neca?
- Já faleceu há uns 4 ou 5 anos. Do filho não sei nada. Parece que foi para o estrangeiro. Esse, não cheguei a conhecer porque nunca o vi cá. Mas a Professora Deolinda e o Senhor Morgado passam por cá de vez em quando. Já têm netos!

Silva da Cart 1689

OBS:- As devidas vénias a Manuel Graça, autor da foto do desembarque de tropas em Angola em 1961
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9155: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (26): Ao domingo não há guerra e Estragos no bananal

Vd. último poste da série de 30 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9119: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (11): Sexo - a quanto obrigas