1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2017:
Queridos amigos,
Aqui se põe termo a uma curta viagem sobre a prática desportiva na Guiné-Bissau, com um apontamento da importância que o PAIGC conferia, no período da luta armada, à ginástica e ao desporto em geral. A guerra, a descolonização e o isolamento do colonialismo português alteraram em profundidade a política de desporto ancorada por Sarmento Rodrigues, um crente no luso-tropicalismo e um impulsionador do bom relacionamento com os territórios limítrofes. A chegada de contingentes militares metropolitanos aumentou o número de técnicos desportivos mas os grupos guineenses decaíram devido à gradual instabilidade política. É esse histórico que aqui fica registado.
Um abraço do
Mário
Usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa e no PAIGC (2)
Beja Santos
Em texto anterior, retirado da revista Análise Social n.º 225, de 2017, sumularam-se as apreciações do investigador Victor Andrade de Melo sobre as manifestações desportivas na Guiné Portuguesa desde a era de Sarmento Rodrigues até 1961, o ano que precede o início das ações subversivas do PAIGC. No artigo do mesmo autor intitulado “A nação em jogo: esporte e guerra colonial na Guiné Portuguesa (1961-1974)”, publicado na revista Antíteses, da Universidade Estadual de Londrina, Brasil, aflora-se o impacto da guerrilha do PAIGC, mas é importante dar atenção ao prelúdio desses acontecimentos. Os clubes mantiveram a sua atividade até ao início da guerra, enfrentado os mesmíssimos problemas que se tinham registado nos anos 1950, com relevo para as dificuldades financeiras e deficiências organizativas graves. Isto para dizer que a política do desporto na Guiné tinha uma dependência crucial no incentivo estatal. Um cronista observou que o Liceu Honório Barreto inaugurado em 1957 não possuía um espaço adequado para a prática do desporto, isto em 1961. A Mocidade Portuguesa tentava a implantação na Guiné, fazia uma inserção que ia desde a apresentação de danças indígenas até à educação física.
A guerra trouxe modificações de montra e uma delas foi a participação de militares em diferentes modalidades desportivas. Equipas das Forças Armadas passaram a participar nos eventos desportivos. Em 1967, o Torneio da Páscoa contou com a presença da seleção nacional de militares, que um cronista saudou como uma forma de exaltação do império: “Foi este o último elo que ligou os desportistas da Guiné e a Mãe Pátria, nesta magnífica jornada que jamais se poderá apagar da mente deste povo modesto. Bem hajam, valentes soldados de Portugal, que a este cantinho trouxeram um pouco da recordação do nosso verdadeiro Lar". Os militares também passaram a ocupar funções de direção, caso do Capitão António Rodrigues Rebelo de Carvalho que em 1963 assumiu o Conselho Provincial de Educação Física, empossado diretamente pelo Governador da Guiné.
Em 1964, um dos mais tradicionais campeonatos disputados na Guiné, o Torneio Internacional da Páscoa, pela primeira vez não contou com equipas de fora da província. Escreveu-se em O Arauto: “Os tempos mudaram. O momento atual não permite que continuemos a manter relações desportivas com esses vizinhos”.
No ano seguinte, como já se escreveu no texto anterior, veio a Académica de Coimbra, que retornava à Guiné com o mesmo sucesso que obtivera nos anos 1950. Em Abril de 1962, desembarcaram em Bissau, para realizar jogos em várias cidades, as seleções portuguesas de vólei e andebol. O Arauto voltou a embandeirar em arco: “Em Bissau ou em Bafatá, em Farim ou em Bula, em Teixeira Pinto ou em Bissorã, irmanados do mesmo desejo e no mesmo brio – portugueses, pretos, mestiços e brancos – entregaram-se ao desenvolvimento desportivo local, alheios às contrariedades". Uma delegação do Sporting Clube de Portugal veio à Guiné em 1966, trouxe um presente da Câmara Municipal de Lisboa, livros para serem distribuídos por escolas e bibliotecas, houve jogos de futebol, andebol, futsal e basquetebol.
Para apurar qual das equipas participaria na Taça de Portugal, jogaram a UDIB e a Académica de Mindelo, ganhou a UDIB que veio a disputar a fase seguinte com o Olhanense, foi eliminada.
Spínola não descurou o fenómeno desportivo, e na entrega da Taça da Guiné de 1969 referiu que o seu intuito era atingir a “grande massa do povo guineense que pretendemos valorizar física, intelectual e moralmente no quadro da consecução de uma vida melhor”.
Mas os conflitos e o estado de sobressalto permanente tinham posto as coletividades a viver com inúmeras dificuldades. Em 1968, o Torneio de Páscoa, que já não era internacional, foi cancelado, no ano seguinte quem veio jogar na Taça de Portugal com o Sporting foi a UDIB. A despeito dos sobressaltos, ainda se fez um rali Bissau-Mansoa. Mas os dias do desporto colonial tinham os dias contados.
Victor Andrade de Melo dedica depois a sua atenção ao desporto nas zonas de conflito. Na escola-piloto de Conacri a educação física era uma matéria obrigatória. Os dias de aula iniciavam-se com sessões de ginástica e prática desportiva. Para os líderes do PAIGC, tratava-se de garantir o que consideravam um direito: os cuidados com a saúde e a higiene, bem como o acesso a uma faceta da cultura. A ginástica era ministrada no Lar dos Combatentes que acolhia os que deixavam a Guiné e iam para Conacri preparar-se para participar na luta armada. O Programa para a Preparação de Soldados das FARP lançado, em 1968, pela Escola de Formação de Combatentes, que tinha como um dos seus objetivos “preparar os nossos combatentes fisicamente, de forma a que possam levar a cabo as ações militares e as marchas com êxito […] Para conseguir este objetivo deve treinar-se o pessoal em ginástica, campos de obstáculos e em combates de corpo a corpo". Há mesmo uma carta de Nino Vieira para Luís Cabral a pedir materiais para a prática desportiva, pede explicitamente uma bola de futebol. Na Fundação Mário Soares guardam-se diferentes documentos de líderes revolucionários pedindo equipamentos desportivos, nessa mesma fundação encontram-se fotos de jogos de futebol disputados entre prisioneiros portugueses e membros do PAIGC. Em jeito de conclusão, o autor refere que “é possível inferir que os dois grupos, Forças Armadas de Portugal e do PAIGC lograram algum sucesso na mobilização pelo desporto. De um lado, era uma forma de ajudar a suportar a dura vida da guerra, uma diversão quotidiana com a qual se envolvia mais intensamente os que já a apreciaram. Do outro lado, juntamente com a ginástica, era concebido como ferramenta para a preparação do combate, para desenvolver espírito de grupo, aptidão física, controlo e disciplina."
____________
Notas do editor
Poste anterior de 19 de outubro de 2020 > Guiné 671/74 - P21465: Notas de leitura (1315): “Para o bem da Nação: usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa (1949-1961)”, um artigo de Victor Andrade de Melo na Revista Análise Social de 2017 (1) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 20 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21469: Notas de leitura (1316): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - V (e última) parte (Luís Graça): Em Brá, no final da comissão, tem como companheiro de quarto o furriel mil 'comando' Vassalo Miranda, uma 'figura ímpar', grande autor de banda desenhada da nossa guerra