sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22690: A nossa guerra em números (2): Alimentação, ração de combate, "comes & bebes"... "Diziam as mulheres na minha aldeia que os homens se conquistavam pela boca. Digo eu: As guerras também" (Joaquim Costa, minhoto, dixit)

1. Em bora hora, o Joaquim Costa trouxe à baila o tema da "ração de combate" e os seus deliciosos segredos... 

Diz ele que no seu tempo apareceram umas rações com "umas  latas de chispe e feijoada/tripas que era como fazer uma refeição num restaurante com estrela Michelin" (*). 

E depois acrescenta este apontamento que vale um poema: 

"Depois de 'deitar abaixo' a respetiva ração, chegava o momento mais esperado e importante do dia, o momento do cimbalino (não confundir com o momento coca-cola!)."...

Cimbalino ?!.. Isso mesmo:

"Fechava os olhos e transportava-me para uma esplanada de praia do picadeiro da Póvoa de Varzim, a contemplar o mar... e saboreava, com estilo, o melhor da ração – o comprimido de café."

Confesso que foram momentos que eu perdi no meu tempo (1969/71)... É que sempre detestei a ração de combate nº 20 (só conheci esta)... Mas o português sabe dar a volta ao texto e, fazer entrada para o inferno, uma caminho de volta ao paraíso. Arremata o nosso "Tigre do Cumbijã":

 "Depois, era o clímax com as fumaças do cigarro oferecido por (quase roubado a) o Machado ou o Gouveia. Se fosse numa emboscada noturna, o ritual das fumaças contemplava o retirar do tapa-chamas da G3 com a introdução do cigarro no cano para um gajo não se tornar um alvo fácil de 'tiro ao boneco', por parte do IN."

Ficou tão "viciado" na cafeina, ou no seu substituto (, o tal "comprimidinho"), que hoje ainda confessa: 

"Luís, sem café fico insuportável. Sou capaz de fazer quilómetros para ir aonde servem bom café e fico possesso quando vou a um restaurante caro e me servem uma zurrapa de café." (*).

O poste já deu origem a mais de duas dezenas de comentários. E, se calhar, ainda ficou muito coisa por dizer ou confessar. Vamos recuperar comentários relativos à nossa querida "ração de combate", complementados por   alguns números para a nossa nova série "A nossa guerra em números" (**)... e para a nossa "incultura geral". 

(Mas, afinal, para que é que serve esta m... de informação ?", perguntarão alguns doutores. Utilizo o termo m..., com a sua licença, que é o que alguns dos meus mais próximos, a começar pela mimha cara-metade,  usam quando dizem: "Lá estás tu a chafurdar na m...")


2. Na realidade, houve malta que gramou mais as rações de combate do que outros: um exemplo é a CCAV 8351, Os Tigres do Cumbijã, que andaram muito tempo "abivacados" como os ciganos (please, sem conotação racista)... 

Diz o Joaquim Costa:

"A nossa relação com as rações de combate era muito forte. Não só levávamos com elas nas saídas para o mato, bem como no próprio destacamento que construímos do zero. Pois só tivemos direito a frigorífico a petróleo e a cozinha,  passados uns meses depois de aí [, no Cumbijã, ]nos instalarmos. 

Quem não gostou desta mudança foi o vagomestre Ferreira que abalou do hotel de 5 estrelas de Aldeia Formosa para o parque de campismo selvagem do Cumbijã juntamente com a cozinha."...

Houve, pois,  desgraçados que não souberam, durante alguns períodos da comissão, o que era uma "refeição quente", mesmo que fosse só o caldo com pouca batata e algumas verduras, liofilizadas.., para além do indispensável casqueiro. (E quando não havia farinha, recorria-se á ração de bolacha!...).

3. O Valdemar Queiroz c0nta-nos, com o seu  habitual sentido de humor, como eram as andanças de uma companhia africana (a CART 11), em que as praças, por serem muçulmanas e por lhes fazer mais jeito o patacão, eram "desarranchadas:

(...) As nossas rações de combate de 1969/70 tinha uma lata de leite com chocolate que era uma delicia. Como os nossos soldados fulas eram muçulmanos, e os senhores do 'grande rancho geral' queriam lá saber disso, mal abríamos as caixas havia trocas das latas de carne e a bisnaga de queijo (?), que diziam ser de leite de porca, connosco três furriéis, três cabos e de início o alferes, mais o homem das transmissões, pelas latas de sardinhas.

Normalmente era uma ração de combate de uma refeição, para uma operação de intervenção / segurança com regresso para jantar ou saída após almoço para segurança / emboscada noturna e regresso de manhã para o pequeno almoço. 

Quando era mais de um dia havia rações duplas, mas o normal era levar duas e dois cantis de água, que estupidamente nas primeiras saídas o cabo Rochinha levou um cantil com vinho e ia morrendo de sede. 

Nunca fizemos fogueira para aquecer a lata de carne, que ficaria mais apetitosa e inclusive evitávamos fumar para não sermos detetados à distância. Tínhamos toda a atenção para nunca deixar latas vazias no local da refeição.

Por acaso o nosso vagomestre também se chamava Ferreira e era um tripeiro chapado, que cumpria menos mal as suas funções. Com alguns problemas por, normalmente, só haver um pelotão, os homens especialistas e o capitão no quartel que lhe dava para se "prendar" e ficava descalço com as contas. O 1º. sargento que andava sempre à guerra com ele sabe-se lá porquê, dizia-lhe 'com estas contas qualquer dia o melhor é atirar-se ao Geba'.

Mas como era rancho geral para todos, desde o capitão ao soldado básico, os soldados fulas eram desarranchados, as contas sempre se normalizavam e havia comidinha variada e bem confecionada.

Também havia problemas quando saímos para emboscada noturna com regresso a meio da tarde, como tal levávamos uma ração dupla, chegávamos em cima da hora do almoço e não havia nem rancho nem a ração que já tinha marchado. Em Nova Lamego resolvíamos esse problema com uma saída de visita ao restaurante local. (...)

4. No supracitado livro do ten cor Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 379 pp.), há informação interessante sobre a  alimentação, os produtos alimantares, e o seu custo, incluindo as rações de combate (RC 20) e as rações de substituição (RS 30) (vd. pp.286 e ss.).

A ração de combate propriamente dita (RC nº 20) era a que se usava em operações, fora do aquartelamento. A ração de substituição (RS nº 30) tinha mais produtos e podia ser consumida no aquartelamento, "quando não era confeccionada refeição quente" (pág. 290).

Havia havia ainda a Ração de Bolacha (140 gramas, por dia e por homem): substituia o pão quando este não era distribuido com a RC nº 20 ou a RS nº 30.

Cada ração estava pensada, para um homem, para as 24h / três refeições. 

Mas o António. J. Pereira da Costa ainda é do tempo da "ração coletiva" (!)...

(...) Recordo-me das rações colectivas para 5 homens que eram extremamente incómodas porque obrigavam a que todos comessem ao mesmo tempo e as embalagens era maiores do que as 'individuais'. Estas mais flexíveis tinham o inconveniente de serem monótonas. Assim, quem tivesse de fazer uma operação de vários dias comia o mesmo (ou quase) durante esse tempo. 

Os comprimidos de café destinavam-se a criar um sabor idêntico ao que deixava o café (de saco). Os soldados muçulmanos não comiam tudo o fosse e pudesse ser de porco (especialmente chouriço). Creio que o pessoal da Manutenção Militar e os "planeadores" e financeiros nunca se preocuparam com a monotonia da alimentação durante as operações e daí vem o nosso ódio às rações. Se alguma vez as tivessem experimentado duranma te dois ou três dias, podia ser que  as tornassem mais atraentes e variadas. Falta referir que as rações traziam uma folhinha de algo parecido com papel higiénico e que também podia ser usado como guardanapo" (...) (*)

5. Com a crise petrolífera do final do ano de 1973 / início de 1974 (, que nos lixou a todos!), os géneros alimentares escassearam no mercado e/ou subiram de preço. 

Isso teve naturalmente reflexos nos custos do Exército, que além disso viu os custos de transporte acrescidos. E teve implicações no moral da tropa... Houve produtos cujos preços dispararam brutalmente, de 1973 para 1974. Veja-se alguns exemplos de preços de produtos de venda ao público em Lisboa:

Produto / Preço de 1973  (kg, litro ou embalagem) / Subida em 1974 (%)

Arroz / 8$90 / 20%
Azeite / 35$00 / 50%
Batatas / 2$50 / 80%
Bacalhau / 44$00 / 113%
Chouriço / 45$00 / 66%
Frango / 26$00 / 46%

No quadro da pág.290, o autor, Pedro Marquês de Sousa,  certamente, por lapso, não indicou a unidade de medida dos produtos a seguir ao arroz. Para o azeite, por exemplo, deve ser o litro. Quanto ao bacalhau, sabemos que era "liofilizado",  deveria vir em caixas, tal como chouriço... O que importa a destacar é o valor (preço) considerado, pelo exército, nas contas da guerra do ultramar em 1974 (, de acordo com a célebre lista publicada no nosso blogue) (***).

Por exemplo:

Arroz:7$00;
Azeite: 48$00;
Batata: 8$20;
Bacalhau; 167$20;
Chouriço: 64$80;
Frango; 41$80...

Não admira que a malta para o fim da guerra tivesse que se agarrar à RC nº 20 ou RS nº 30 ou à Ração de Bolacha...

De qualquer modo, com a crise petrolífera e a crise económica de finais de 1973/ princípios de 1974, os preços dispararam, tornando-se cada vez complicado alimentar  "o ventre da guerra". Por outro lado, o sabemos o preço por unidade das rações em 18/7/74, em Nova Lamego (CCS/ BART 6523, 1973/74):

Ração de combate nº 20: 43$00 por unidade; havia 680 em stock;
Ração de substituição nº 30: 14$54 por unidade; havia em stock: 250 em stock.

Não há referência à Ração de bolachas... Mas ainda havia farinha (mais de um tonelada) e fermento...

Por norma e por razões de segurança, na Guiné tinha de haver uma reserva de 72 mil Rações de Bolacha, 50 mil da RC nº 20 e 20 mil da RS nº 30... (Cito o Pedro Marquês de Sousa, "Os números da guerra de África", pág.292).

6. No fim é  caso para perguntar: "Ó Joaquim, como é que uma tropa, como a nossa, que passava a vida a queixar-se do tacho e do vagomestre e das rações de combate, podia ganhar a guerra ?! Não podia, está visto"...

Ao que o Joaquim, minhoto (e maroto), respondeu, muito sabiamente:

"Diziam as mulheres na minha aldeia que os homens se conquistavam pela boca. Digo eu: As guerras também!!!" (*)


(***) Vd. poste de  6 de fevereiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20626: (Ex)citações (362): O ventre e o patacão da guerra, segundo duas preciosas listas de junho de 1974, guardadas pelo Zé Saúde... Cada um de nós tinha direito a um "per diem" de 24$50 para comer, o equivalente na época a um dúzia de ovos da Intendência (, a preços de hoje, 4,10 euros)

Guiné 61/74 - P22689: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (77): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2021

Queridos amigos,
É um período de suspense, em breve um dirigente da Confederação Europeia dos Sindicatos fará uma proposta de trabalho a Paulo, Annette rejubila, já sonha que o seu amoroso saia da Rua do Eclipse todos os dias para tratar da vida mesmo com itinerâncias europeias, que é o timbre desta gente. Annette está em Amesterdão, já vigora o Tratado de Nice, a União Europeia parece caminhar a uma outra velocidade, no horizonte perfilam-se dez adesões. Com o sentido do dever, foi esta a promessa que deu a Paulo quando aceitou entrar num romance que também tinha uma história de guerra colonial, vai continuando a coligir os papéis, já fez contas aos meses que Paulo esteve na Guiné, aquela comissão deve estar para findar em breve. E então surge aquela história de ódio, parece-lhe tudo inacreditável, se é para meter no romance à força é algo que lhe parece abominável, com lisura e discrição irá perguntar a Paulo se as coisas se passaram exatamente assim. Talvez um pouco pior do que eu te contei, responderá ele, aquele ódio estava latente, e hoje não se manifesta abertamente, são dois povos que guardam o azedume e a virulência graças à providência da distância.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (77): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo adoré, cheguei ontem à noite a Amesterdão, conferência de peritos em História Europeia, juízes do Tribunal de Luxemburgo, professores universitários de Estudos Europeus, representantes políticos e outras sumidades que em grande recato e durante dois dias cheios vêm debater os desafios e as oportunidades do Tratado de Nice e tecer considerações sobre a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que foi aprovada na mesma data que este tratado. Muita chuva, um trabalho insano, couberam-me quatro línguas, está aqui gente de toda a Europa, incluindo do Espaço Económico Europeu, presentes observadores de dez países candidatos, é uma autêntica cacofonia, cada um tem direito em exprimir-se no seu próprio idioma. Com tempo tão severo, a despeito dos cocktails oferecidos a todas as delegações e às equipas de interpretação, vim cedo para este meu pequeno hotel, avancei um pouco mais com as notas do teu romance e tenho várias interrogações a pôr-te. Como me disseste no último telefonema que gostavas muito que eu visitasse o Rijksmuseum, a nossa conferência é mesmo ali ao lado, aproveitei a hora do almoço, houve sempre durante os dois dias quase duas horas para almoçar, procurei satisfazer o teu pedido e contemplei com grande satisfação o conjunto de obras sobre as quais tu emitiste uma opinião, são quadros que te emocionam muito e eu procurei partilhar dos teus sentimentos, vou enviar-te imagens com pequenos comentários, de um modo geral coincidentes com os teus.

Recebi os teus papéis avulsos a que tu denominas os preparativos da operação Beringela Doce, encontrei alguma analogia na meticulosidade que tu pões nas tuas diligências com os preparativos da operação Rinoceronte Temível: a discrição das conversas com os teus camaradas responsáveis pelas viaturas e pelas transmissões; o teres forjado uma convocatória inócua para reunir nos Nhabijões com os comandantes das milícias de Amedalai, Taibatá e Demba Taco, a todos lembraste que a fuga de informação custaria caro, os guerrilheiros, se adivinhassem o itinerário, ficariam em condições de preparar ciladas mortíferas; o teres angariado munições, equipamentos, e dinheiro para carregadores em conversas havidas na via pública com o responsável, como se estivesses a falar de banalidades; o teres convocado o picador do Xime, Seco Indjai, que seria o vosso guia, mandando-lhe a informação de que precisavas da colaboração dele em Amedalai para descobrirem todos os recantos possíveis onde se escondiam as canoas da população afeta à guerrilha; e o verdadeiro espetáculo da deslocação até ao Xime já contou do dispositivo militar, para gerar a ideia de que a operação será no Poidom ou na Ponta do Inglês, ora o que tu foste lá fazer foi discutir com os artilheiros um plano de fogo. Vou inserir toda esta documentação no lugar certo, correspondente à operação Beringela Doce.

Já tenho todos os teus esclarecimentos sobre as obras do porto do Xime, que ficara pronto em novembro do ano anterior, li com a devida atenção as cartas que mandaste para Teixeira da Mota e Ruy Cinatti, achei imensa graça ao pedido feito por Teixeira da Mota sobre uma pesquisa a sonôs, os cetros reais dos Beafadas, e como ele faz a descrição: ferros com mais de metro e vinte de altura, com braços laterais, que terminam habitualmente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando figuras humanas, são sempre símbolos de realeza, tu bem inquiriste toda a gente, ninguém sabia da existência de sonôs.

Tomei igualmente nota de um apontamento teu retirado de um livro que a professora primária de Bambadinca te emprestou, tem a ver com uma citação de um antigo governador da Guiné, Carlos Pereira, cujo nome ficou ligado ao derrube dos muros que protegiam Bissau, na década de 1910: “No regulado do Cuor, situado na margem direita do Geba, defronte de Bambadinca, habitavam até 1908, Beafadas cujo chefe era Infali Soncó, que nesse ano foi destituído. Após a sua destituição, os Beafadas abandonaram o Cuor, indo uns para o Oio e outros para Quínara. O governador dessa época investiu como régulo do Cuor Abdul Indjai. Era Serua, portanto de colónia francesa, vinha de um grupo étnico diferente, não pôde conseguir povoar o Cuor com gente do seu grupo étnico. E como o território é pobre, foi abandonado por Abdul e ocupado imediatamente pelos Oincas”. Acho que faltam informações complementares sobre a presença deste grupo étnico, traria um melhor esclarecimento ao leitor.

Meu adorado amor, bem procuro entender as razões desse ódio ou de permanente suspeita que os guineenses dedicam aos cabo-verdianos. Lembro-me de várias histórias anteriores que tu contaste, logo aquele encontro no que tu chamas a Tasca do Zé Maria com o chefe de posto de Bambadinca que te pediu para que, sempre que houvesse castigos aos teus soldados, os remetesses para ele, seriam zurzidos com um chicote de pele de hipopótamo, que tu apuraste ser uma bestialidade, arrancava facilmente a pele às primeiras chicotadas; o comportamento dos seus soldados quando se feriu o Paulo Ribeiro Semedo, aquela frase que jamais esqueceste “não pego em cabo-verdianos”; e agora o calafrio que sentiste na conversa havida com um engenheiro da TECNIL em dia de almoço inusitado na messe de oficiais de Bambadinca, devo dizer-te que a leitura do teu texto me deixou arrepiada.

Começas por sublinhar a época das chuvas, como ela muda a natureza, os solos alagados, todos aqueles cursos de água transformam o piso que a TECNIL quer macadamizar em toalhas de lama, escorre água no solo, nos rios, pelas ribeiras, bolanhas, estradões, picadas, é uma desolação. No dia em que ocorreu esta terrível conversa, a pedido de Fodé Dahaba, foste tirar fotografias à sua noiva da tabanca de Bambadinca, manhã cedinho, ainda com muitos cinzentos no céu, eram fotografias que iriam para Lisboa para alegrar aquele noivo a adaptar-se à sua prótese. E segues prontamente para junto dos teus homens, estão entre Ponta Coli e Amedalai. Viajaste numa aberta de chuva, parece que o dia se vai recompor, até há sinais de quentura na manhã, no meio daquele macadame espezinhado as máquinas resfolegam, é uma azáfama contínua, tudo indiciava que seria um dia de trabalho ameno. “Mas não, deu-se uma travessura no tempo, quando todos se preparavam para mordiscar o que traziam no bornal, o tempo imprevistamente arrefeceu e foi-me dado observar algo que eu já vivera em pleno Cuor, o céu chumbou-se, o ar esfriou, estoirou um relâmpago, parecia iluminação de teatro ou aquelas cenas de filme que se chamam a noite americana, e depois desabou um dilúvio, não enganava ninguém, era chuva espessa, o saibros tornou-se escorregadio, houve mesmo quem se estatelasse enfiando o armamento dentro da lama, eu estava confuso, tinha pensado que íamos viver um tornado com aquela semiescuridão, a chuva não abrandava, nisto o engenheiro dirigiu-me a palavra, as obras não podiam continuar, íamos levar toda a maquinaria para Amedalai. Prontamente disse que sim, e fomos cavaqueando pelo caminho, e soltou-se-me o convite, se o senhor engenheiro está de acordo, hoje não se come do bornal, permita-me que o convide para a messe de Bambadinca, alguma coisa se há de arranjar, tomamos um duche para tirar este lamaçal, há de se arranjar roupa seca, olhe, se o tempo não se compõe vamos ficar ali abrigados, já basta andarmos aqui todos os dias sem tempo para dar dois dedos de conversa, é uma ocasião propícia para pôr a escrita em dia”. E assim foi. Chegaram a Bambadinca, encomendaste uns bifes e uns ovos, houve higiene e mudança de roupa, tudo respirava amenidade. Não te passava pela cabeça uma conversa infernal que te deixou sem pinga de sangue.

Meu adorado, também chove horrivelmente lá fora e estou ensonada, prometo dar notícias ou daqui de Amesterdão ou da tua miraculosa Rua do Eclipse. Como te disse pus notas nas fotografias, tem a ver com o meu gosto, espero que os meus comentários às mesmas não te desagradem. Foi de propósito, repito, foi mesmo de propósito, que não falei da tua próxima viagem a Bruxelas para ouvires as propostas de Gottfried Scholtak. Será que a minha vida se encherá da plena alegria de te ter sempre a meu lado? Como tu costumas dizer, faço figas, bisous milles, j’insiste, milles et plus milles, Annette.

(continua)


Ruy Cinatti, retrato pintado por Maluda
A Ronda da Noite, por Rembrandt, porventura o quadro mais célebre do Rijksmuseum de Amesterdão

Nota: Título mais inexato para um quadro não pode existir: estamos em pleno dia, todo aquele grupo nada tem a ver com uma operação de vigilância militar. Foi ao limpar-se a tela, em 1946, em que se fez desaparecer uma camada de verniz escurecido que apareceu uma luz radiosa, sempre o contraste entre o claro e o escuro, parece uma cena de teatro em que os personagens se prestam ao papel de uma evacuação militar. Não falta um cão e crianças, a menina que vemos ao lado de um presumível arcabuzeiro leva uma galinha à ilharga. Se é facto que a primeira impressão é de que estamos perante uma milícia que procede a uma ronda, a observação atenta leva-nos à convicção de que toda aquela gente está a pousar para um quadro como poderia pousar para uma fotografia, Rembrandt exige-nos um olhar ainda mais atento às duas figuras centrais, banhadas pela luz.

Lamento de Jeremias pela Destruição de Jerusalém, por Rembrandt

Nota: Todo aquele rosto está marcado por uma infinita tristeza. O profeta refugiou-se numa gruta solitária, limita-se a ver à distância quem combate, Jerusalém incendiada e muita gente em fuga. Pôde salvar um vaso em ouro do Templo e os textos sagrados. Rembrandt deslumbra-nos pelos seus banhos de luz, há as sombras e a obscuridade e o que fica na luminosidade é o espelho da desgraça, a postura de pesar, as linhas perfeitas da indumentária, um pé descalço perfeitamente delineado e as riquezas do Templo. É no contraste entre o claro e o escuro que temos o dramatismo para a aflição do profeta. Anotei que é a tua segunda preferência, depois da Ronda da Noite.

Retrato de Tito, o filho de Rembrandt, pelo pintor

Nota: Li numa publicação que o único filho de Rembrandt jamais foi monge, vestiu o hábito monástico exclusivamente para a pintura, o genial pintor seguramente que queria um quadro que assegurasse a polarização do olhar do espetador naquele rosto: há como que um holofote que destaca a palidez do rosto, bem enquadrado pelo capuz do hábito religioso. É um jovem melancólico, entregue à meditação. Porventura o pai pretendia que observássemos o filho com uma concentração total, este retrato parece soltar uma doçura amena e temos uma segunda leitura sobre a excecional paleta de Rembrandt que nos dá um vestuário em castanho-quente, como se enfatizasse a intimidade que é devida ao amor de um pai pelo filho, neste elo pictórico.

Lendo a carta, por Vermeer

Nota: Vermeer conquista prontamente a nossa adesão pela forma com que nos obriga a entrar nos conteúdos dos espaços iluminados, neste caso o pretexto é a leitura de uma carta, jamais saberemos se a mesma é uma manifestação amorosa, informação de negócios ou recados de família. Está tudo polarizado na figura central e há um cuidado muito subtil nos tons azulados que se atravessam. O importante é que o espetador fique agarrado à genialidade da forma e procure interpretar o enigma daquele conteúdo, o que encerra a carta.

O bebedor feliz, por Frans Hals

Nota de Annette: é uma pasta de óleo quase transparente, todo o seu semblante e encenação corporal irradiam a felicidade a que corresponde o título. Surpreende as cores claras, ele que é useiro e vezeiro nos tons enegrecidos. É um retrato muito comunicativo, parece que quer brindar connosco, já deve estar um pouco alegrete, a termos em conta as cores das maçãs do rosto. O único senão que eu posso apontar é aquela sua mão direita levantada, parece-me um tanto artificiosa. O rendilhado da gola impressiona-me muito, e como tu observaste não há uma crítica a pôr a toda a indumentária.

O Charlatão, por Jan Steen

Nota: O charlatão operou um camponês, extraiu-lhe um tumor, a razão de muito sofrimento. Mas aqui reside uma das genialidades de Steen, fazer sobressair o grotesco, a imagem da crendice, há algo de Bruegel na organização da massa humana, o homem que vem no carrinho tem a aparência de bem bebido, é toda esta cenografia com o povoado ao fundo, aquela mesa à direita onde constam os instrumentos pseudocirúrgicos que definem uma atmosfera flamenga de beatitude, de crendice e até de uma enorme alegria de viver.
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Nota do editor

Último poste da série de29 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22669: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22688: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XVI: Aurélio de Mendonça e Pinho, ten art (Celorico da Beira, 1891 - França, CEP, 1918)


Aurélio de Mendonça e Pinho (1891 - 1918)


Nome : Aurélio de Mendonça e Pinho

Posto: Tenente de Artilharia

Naturalidade: Celorico da Beira

Data de nascimento: 12 de Junho de 1891

Incorporação_ 1911 na Escola de Guerra (nº 33 do Corpo de Alunos)

Unidade:  1º Grupo de Baterias de Artilharia, Regimento Artilharia n.º 2

Condecorações:  Cruz de Guerra de 2ª classe (a título póstumo)

TO da morte em combate : França (CEP)

Data de Embarque:  31 de Março de 1917

Data da morte:  9 de Abril de 1918

Sepultura:  França, Cemitério de Richebourg l'Avoué

Circunstâncias da morte:  Na batalha de 9 de Abril, quando ficou sem ligações às tropas apoiadas, saiu do seu Posto de Comando e, a descoberto, continuou a orientar os fogos da sua Bateria até ser mortalmente atingido pelos fogos da artilharia alemã.

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António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa

Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de outubro de  2021 > Guiné 61/74 - P22639: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XV: António Madeira Montez Júnior (Santarém, 1885 - França, CEP, 1918), cap inf

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22687: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XX: Pitões das Júnias, serra do Barroso, Portugal, 2014





Portugal > Parque Nacional da Peneda-Gerês > 
Serra do Barroso > Montalegre > Pitões das Júnias


Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de 
António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. 

Texto e fotos recebidos em 28 de  outubro último.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 290y referências no blogue.


Pitões das Júnias, serra do Barroso, 
Portugal, 2014

por António Graça de Abreu


Ano de 2014. Venho subindo, subindo, até tocar as nuvens.

O pequeno mosteiro de Santa Maria, de finais do século IX, mais velhinho do que Portugal -- a igrejinha permanece de pé, o resto meio arruinado --, recorda monges beneditinos que por aqui passaram, exorcisando pecados, pacificando a alma. Há resmas de lendas e mistérios levantando-se, à solta, por estes lugares.

A 1.200 metros de altitude, entre os pináculos do Gerês e do Barroso, a magia agreste da paisagem, os tectos esquecidos da pátria portuguesa. Tudo aberto para o respirar inteligente das montanhas.

Entro na aldeia, quase vazia de gentes. As casas de granito, a igreja matriz de S. Rosendo, o relógio de sol, o forno comunitário, os espigueiros. Muitos habitantes escaparam-se rumo a outras paragens, franças e araganças, onde a vida será mais fácil. Mas em Pitões da Júnias o ar é mais puro, os horizontes mais vastos, tão alvoroçado o recorte pedregoso do cume dos montes. E descobrem-se cascatas abrigadas na rocha, a paz completa.

Outrora, aconteceram por aqui grandes batalhas entre camponeses galegos e portugueses. Gentes destas terras, de ambos os lados da raia, roubavam cabeças de gado, na extrema fronteiriça. Os lusitanos costumavam ganhar em ardilosas pelejas e traziam as vacas, e os vitelos, para requintados repastos, a boa carne barrosã desfazendo-se em bocas esfomeadas.






Hoje, há ainda na povoação, três restaurantes onde se cozinham uns tantos primores, cabrito, feijoada à transmontana, a posta barrosã, um cozido divinal com enchidos da terra.

Avanço pela estrada mais a norte. Passo Tourém e chego a Espanha. Do outro lado da raia, acalma-se a paisagem, prados a perder de vista, uma aldeia galega, um posto de gasolina. O carburante mais barato, encho o depósito do carro. Regresso às terras do Gerês, é tempo de abastecer o estômago, borrego assado, um exuberante vinho verde Alvarinho proveniente de uvas douradas de Melgaço. O automóvel também bebeu bem, tem gasolina espanhola mais do que suficiente para os 450 quilómetros até Lisboa.

António Graça de Abreu

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Guiné 61/74 - P22686: Agenda cultural (787): Mamadu Baio Trio, sábado, dia 6, 20h00, no Camones CineBar, Graça, Lisboa... Música autoral afro-mandinga, um novo projecto dos nossos grã-tabanqueiros João Graça e Mamadu Baio, a que se junta o Avito Nanque


Cartaz do concerto do Mamadu Baio Trio, a realizar no próximo sábado, dia 6 de novembro, às 20h00 no Camones CineBar, na Graça, em Lisboa.


Reservas: camoneslisboa@gmail.com | Contribuição livre

1. É no sábado este espectáculo musical, a cargo do Mamadu Baio Trio, grupo de música afro-mandinga qie tem a extraordinária particularidade de incluir dois membros da nossa Tabanca Grande, o João Graça e o Mamadu Baio.

O João Graça (músico e médico) tem  124 referência no blogue, e o Mamamdu Baio 16. Fonheeram-se em meados de dezembro de 2009, quandoo João foi à Guiné-Bissau e esteve na mítica tabanca de Tabatô. O outro elemento do grupo é o Avito Nanque que veio recentemente da Guiné-Bissau para Portugal.


(...) É já no próximo sábado - Mamadu Baio Trio - o melhor antídoto para este frio invernal. Quem se junta?

(...) Sábado haverá música da Guiné-Bissau em Lisboa. Mamadu Baio , Avito Nanque e moi-méme. Vinde daí!

(...) Olá! Para quem quiser espreitar pelo meu novo projecto musical - música autoral afro-mandinga - venha até à Graça no sábado, dia 6, as 20h, no Camones. Ate lá! 

O nosso blogue faz questão de lembrar que apoia a música e os músicos da Guiné-Bissau. Daí o destaque que damos a este evento cultural. Sobre a música afro-mandinga temos 14 referências.

2. O que diz a Viral Agenda (a seguir, com a devida vénia):

Mamadu Baio Trio apresenta-se:

  • Avito Nanque - guitarra eléctrica
  • João Graça - violino
  • Mamadu Baio - guitarra acústica e voz

Originário da Guiné-Bissau, Mamadu Baio nasceu em Tabatô, uma pequena aldeia de griots (trovadores), onde todos os habitantes são músicos. Esta aldeia é reconhecida como o berço de vários artistas afro-mandingas, descendentes do Império do Mali, bem como da longa prática de construção de instrumentos tradicionais, como o balafon, o kora, o dundumbá ou neguilim.

O primeiro instrumento que aprendeu a tocar foi o djambé que lhe permite comunicar com crianças e adultos em muitos ritmos diferentes, inspirados pelas suas raízes. Foi através do djambé que Mamadu organizou vários intercâmbios entre jovens artistas de diversas origens, resultando em múltiplos workshops com distintas influências e sonoridades.

Mamadu tem uma vasta experiência como professor de percussão e deu aulas em centros culturais e escolas primárias, organizadas em níveis de conhecimento e idades. As oficinas têm como ponto de partida as histórias dos griots, para a aprendizagem do djambé, assim como a sua construção e afinação.

A sua curiosidade por diferentes sonoridades nasceu cedo. A principal fonte de inspiração para compor novas melodias surge no dedilhar da sua guitarra. Este jovem artista, reconhecido como um talento promissor da música afro-mandinga, está atualmente em Lisboa a promover o seu trabalho, que resulta da mistura de sons afro-mandingas, reggae, jazz e afro-beat.


Desde 2009 que partilha a sua estadia entre África e Europa, em particular Portugal, onde participou em vários festivais e concertos de solidariedade, realizou ainda vários concertos em
diversos espaços

3. Sobre o Camones CineBar, que fica na Graça, na R. Josefa Maria 4B, 1170-195 Lisboa (uma perpendicular à Rua Senhora do Monte, a que vai dar ao Mirador da Senhora do Monte, o  mais espectacular e deslumbrante de Lisboa):

(...) O Clube do Bairro Estrela D'Ouro, criado há mais de 110 anos pelo galego Agapito Serra Fernandes, surgiu para albergar os encontros sociais e culturais dos operários residentes neste Bairro. A vida do Clube foi interrompida algures no tempo para se transformar num casino clandestino, onde, à porta fechada, e durante quase 40 anos os homens (e só os homens...) jogavam a dinheiro. Antes de ser "Camones", e até 2017, o espaço acolheu as noites semanais Estrela Decadente, com jantares vegan, concertos, exposições e DJ sets.

Desde 2018, e pela primeira vez na sua já longa vida, as portas abrem-se ao público em geral para Concertos intimistas, noites de Stand-Up Comedy, Festivais de Curtas e noite de Open-Mic sob o lema "Todas as Artes, Todas as Idades". (...)
 


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Nota do editor:

Último poste da série > 4  de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22597: Agenda cultural (786): Convite para a apresentação do livro "Nunca Digas Adeus às Armas (Os primeiros anos da Guerra da Guiné)", por António dos Santos Alberto Andrade e Mário Beja Santos, dia 18 de Outubro de 2021, pelas 18 horas, no Pálácio da Independência - Largo São Domingos, 11 - Lisboa

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22685: Historiografia da presença portuguesa em África (288): A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (3): "A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné", por Maria Luísa Esteves; edição conjunta do Instituto de Investigação Científica Tropical e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Lisboa, 1988 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Janeiro de 2021:

Queridos amigos,
Não será despiciendo de novo referir a demonstrada insensibilidade dos negociadores que aprovaram o conteúdo da chamada Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, provocaram a prazo uma tensão interétnica que parece não ter fim à vista, nos tempos de hoje. É bem curioso, lendo a evolução das diferentes missões verificar a grande hostilidade das populações locais que guerrearam as diferentes equipas, houve que encontrar contingentes militares para as proteger, mas não faltaram emboscadas, intimidações e incêndio de povoações. Mesmo depois de 1905 houve que afinar certos aspetos da delimitação das fronteiras, pode-se dizer que só em 1931 acabaram os problemas. A obra de Maria Luísa Esteves é incontornável pelo estudo das fontes, pela documentação carreada e pela franqueza da linguagem: acabara formalmente a Senegâmbia, Portugal ficava reduzido a uma possessão colonial, os franceses tinham imposto limitações e quebraram a quimera de que ainda éramos influentes nessa mítica Senegâmbia. Mas ambos pagaram caro ao separar comunidades, de que o Casamansa é a que continua a dar mais que falar.

Um abraço do
Mário



A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Prossegue a saga em torno das sucessivas etapas em que missões luso-francesas procuraram ao longo dos anos delimitar as fronteiras também numa ótica de defender interesses comerciais e limitar os estragos introduzidos em comunidades que tinham seculares formas de coesão que as linhas de fronteira romperam. Na missão que permaneceu na Guiné de 1904 a 1905, ao tempo do Governador Sobral Martins estiveram Oliveira Muzanty e José Proença Fortes, respetivamente Chefe e Adjunto da Comissão de Delimitação. A situação na Guiné era muito instável, havia guerra no Oio que envolveu operações militares. As duas missões concordaram que os pilares utilizados na balizagem seriam feitos em tijolo e cimento, era extremamente difícil encontrar a pedra apropriada. A construção ficaria a cargo da missão francesa e os encargos seriam suportados pelas duas partes, trabalhou-se entre os marcos n.º 112 a 155, os pilares numerados de 113 até 132 puderam ser construídos em pedra e os restantes em tijolo e cimento. As duas missões estiveram permanentemente protegidas por 30 soldados. É nesta circunstância que a missão francesa sugeriu que a linha a adotar desde o marco 155 até ao Cabo Roxo fosse alterada, propunha-se modificar a cláusula, sugeria-se a Ponta Varela como ponto final da delimitação sobre o Oceano Atlântico.

Muzanty recusa-se a admitir esta alteração à letra do acordo e não aceita a afirmação de que os franceses ocuparam alguma vez a região entre o Cabo Roxo e Ponta Varela. Vendo a intransigência do delegado português que ameaçava interromper os trabalhos, a missão francesa aceitou a marcação da linha mas ressalvando futuras reivindicações. Definiram-se as linhas de atuação futura, Muzanty tinha pedido a formação de um posto militar em Cassolol, o que veio a acontecer, mas a hostilidade das populações à volta era enorme. Houve que proceder a operações com auxiliares armados para intimar as autoridades gentílicas a deixar trabalhar as missões, houve escaramuças, travaram-se combates, incendiaram-se povoações. Foi neste clima de permanente intranquilidade que se concluiu a tarefa da missão. Muzanty irá escrever no seu relatório não ser “pequeno o resultado obtido pela coluna mista, pois quebrando o grande prestígio do chefe Fodé Cabá, que se exercia numa área grande, em território nosso e francês, garantindo-se a ocupação da região por pequenos postos, o que me parece de inadiável urgência, sem necessidade de novos e pesados sacrifícios de vidas e dinheiro”. Fizera-se a delimitação entre o marco nº 155 e o Cabo Roxo. As cartas, portuguesa e francesa, desenhadas pelas duas missões, foram consideradas exatas.

Procede-se igualmente à troca de territórios, depois aprovou-se a fronteira norte. Estamos chegados às considerações finais, a autora recorda que foi extremamente hábil a forma como os franceses de apoderaram do Casamansa, explorando os escassos recursos de Portugal e a ingenuidade do seu governo. O plano gizado pela França englobava também o Rio Nuno. Mas não se pode atribuir só aos franceses a estagnação da vida económica da região, pesou também a abolição da escravatura, como a autora observa:
“Portugal, ao ajudar os Fulas-Pretos a sair da escravidão, concitou contra si o ódio dos que os dominavam, os Fulas-Forros. As lutas tribais que se seguiram prejudicaram enormemente a agricultura e desviaram o comércio do sertão das rotas tradicionais, fazendo-o afluir às feitorias francesas. Buba e o Rio Grande perderam a sua grandeza comercial e o Rio Nuno viu chegar às suas margens, cada vez em maior quantidade, os mercadores indígenas atraídos pela qualidade e baixo preço das fazendas. Estas lutas internas vão provocar a fuga de populações que se refugiaram em locais mais propícios, dando origem a novo xadrez étnico acompanhado da natural rutura das formações políticas e sociais”.

E, mais adiante:
“As fronteiras políticas saídas da Convenção reduziram as possibilidades de comércio da Guiné Portuguesa, porque a limitaram quase a uma faixa litoral sem permitir a penetração do interior, o protetorado do Futa Jalom deu à França uma posição invejável para o seu projeto do domínio interior (…) Com a posse dos rios Casamansa e Nuno e dominando a região do Futa Jalom, os franceses absorveram toda a vida comercial, atraindo a si, mercê de uma hábil política, os negociantes indígenas, desviando-os dos mercados portugueses (…) Não foi menos funesto o seu significado social, porque as duas Guinés, a Francesa e a Portuguesa, foram criadas sem ter em conta, muitas vezes, não só os limites naturais como as realidades étnicas, sociais e económicas existentes. Só mais tarde, quando já não era possível emendar os erros cometidos, se verificou que os povos com história e cultura comuns foram separados e entregues a países diferentes sem respeito pelo seu passado. Não era para admirar que assim tivesse acontecido quando as negociações se fizeram longe dos locais a delimitar por pessoas mal informadas sobre a história dos povos e sem conhecimento suficientes de geografia e utilizando cartas topográficas pouco rigorosas. Apenas se procurara satisfazer os interesses dos países colonizadores e destes o mais forte teve sempre a última palavra”.

Vamos terminar esta digressão sobre a delimitação das fronteiras referindo uma comunicação feita ao tempo da Convenção Luso-Francesa pelo Capitão Francisco António Marques Geraldes, veio a ser publicada no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, VII série, N.º 8, 1887.

(continua)

Guiné Portuguesa e possessões francesas vizinhas, carta editada em Lille, em 1890
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22664: Historiografia da presença portuguesa em África (287): A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (2): "A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné", por Maria Luísa Esteves; edição conjunta do Instituto de Investigação Científica Tropical e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Lisboa, 1988 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22684: A nossa guerra em números (1): os soldados do recrutamento local, de 1ª e 2ª classe, as milícias, os soldados básicos e o patacão que recebiam (Valdemar Queiroz / Fernando Sousa Ribeiro / Luís Graça)


Capa (, de resto pouco feliz,) do livro


1. Saiu recentemente, mas está por fazer a sua recensão aqui no nosso blogue, o livro do ten cor Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 379 pp.). Já o tenho e estou a lê-lo, "na diagonal"... 

É muita informação em números, direi mesmo que é uma "indigestão" de números: não há praticamente uma página (das 379), em que não haja um quadro, ou um gráfico... O autor optou, de resto, por não numerar os quadros e os gráficos que surgem ao correr do texto. 

O que deixo escrito escrito atrás, não  impede de considerar que é um livro obrigatório na biblioteca de quem quer se interesse pelo estudo da "guerra de África"  (ou "guerra do ultramar" ou "guerra colonial", como cada um quiser).  Enfim, um dia alguém teria que escrever uma "calhamaço" destes, de consulta obrigatória, com informação estatística, básica, mas exaustiva,  sobre tópicos como: I. Recrutamento e mobilização: II. Os mortos e os feridos; III. Acções e meios de combate; IV. As despesas da guerra; e V. Os movimentos independentistas. 

A bibliografia é sucinta, é verdade, o mais importante são as fontes (oficiais e oficiosas) que o autor teve a oportunidade de consultar, fornecendo-nos por exemplo preciosas informações estatísticas sobre "o outro lado do combate" (os movimentos nacionalistas). Pode faltar-lhe informação mais fina, qualitativa, em cada um dos capítulos, mas nesse ponto o nosso blogue ajuda a colmatar algumas lacunas.

Muitos dos nossos leitores não terão tempo nem pachorra para ler livros como este. A pensar neles, iremos de vez em quando citá-lo e reproduzir um ou outro número  que nos pareça relevante para nos ajudar a compreender melhor a guerra que nos calhou em sorte, e em especial a que teve a Guiné como teatro de operações...

Neste primeiro poste vamos revisitar o  extenso e interessante capítulo, o IV (pp. 259-330), sobre "As despesas da guerra", incluindo os encargos com pessoal e logística, mesmo só tendo  lido o capítulo na diagonal.

A par disso, iremos reproduzir comentários, muito interessantes (e que "não se pode perder", menos acessíveis  nas respetivas caixas)  ao poste P22671 (*)... Falaremos dos nossos camaradas do recrutamento local (classificados em soldados de 1ª e 2ª classe, em função das habilitações escolares), respetivos vencimentos, mas também das "escolas de cabos", do pessoal das milícias, sem esquecer essa figura, em geral objecto de chacota ou de piedade, que era o "soldado básico" (normalmente, metropolitano).


(i) Valdemar Queiroz:

As velhas licenças «à bife» e os impressos que eram feitos para durar dez anos (196_).

Como curiosidade. Quem fosse incorporado na Guiné, Angola ou Moçambique tinha o mesmo vencimento mensal dos militares da metrópole ou passavam a ganhar o mesmo valor dos mobilizados para esses territórios? Por ex. Luanda não era considerado zona de guerra mas os metropolitanos mobilizados tinham o vencimento superior ao da metrópole, e os naturais/recrutados/incorporados em Luanda?. Nem me refiro à Guiné por ser toda zona de guerra.

A haver diferenças, até estou a pensar, quanto maior fossem as incorporações locais mais baratinha ficava a guerra. (...)

(ii) Fernando Ribeiro:

Caro Valdemar: Em relação a Angola, só posso referir o caso dos primeiros-cabos e dos soldados, porque os angolanos que pertenceram à minha companhia só tinham estes postos.

Os primeiros-cabos incorporados em Angola ganhavam tanto como os que tinham sido incorporados na Metrópole, incluindo os 100%. 

Já no caso dos soldados, havia diferenças. Enquanto na Metrópole só existia o posto de soldado (era-se soldado e mais nada, quer se fosse doutor ou analfabeto), em Angola havia dois: soldado de 1.ª e soldado de 2.ª. 

Os soldados de 1.ª tinham a 4.ª classe ou mais, enquanto os de 2.ª não, apesar de desempenharem exatamente as mesmas funções. Os soldados de 1.ª de Angola ganhavam tanto como os soldados da Metrópole. Os soldados de 2.ª ganhavam incomparavelmente menos; não sei ao certo, mas deviam ganhar qualquer coisa como 1/10 do que ganhavam os outros, o que era escandaloso.

Todos os soldados angolanos da minha companhia eram alfabetizados, quer fossem de 1.ª ou de 2.ª, o que não deixa de ser surpreendente. Aqueles que tinham sido analfabetos à data da incorporação no serviço militar frequentaram as aulas regimentais no RI 22, em Sá da Bandeira, durante a recruta e a especialidade. Fizeram-no com tanto êxito e tinham tanta vontade de aprender, que praticamente já sabiam ler, escrever e contar quando vieram para a minha companhia.

Quanto aos que já eram escolarizados antes da tropa, havia aqueles que tinham a 4.ª classe e eram oriundos das cidades; eram os soldados de 1.ª. Os já escolarizados oriundos das zonas rurais só tinham a 3.ª classe, porque as escolas do mato não ministravam a 4.ª classe. Eram as chamadas "escolas rurais", que em tudo eram semelhantes aos "postos escolares" que existiam nas aldeias mais remotas da Metrópole. Tal como nos "postos escolares" metropolitanos, o ensino nas "escolas rurais" não ia além da 3.ª classe, porque o professor, a maior parte das vezes, só tinha a 4.ª!

O comandante do meu batalhão pode ter sido o sujeito mais abominável do mundo, mas não descansou enquanto os soldados de 2.ª não fizeram o exame da 4.ª classe e passassem a ser soldados de 1.ª. Ele foi a Luanda tantas vezes quantas as necessárias para conseguir falar pessoalmente com o secretário provincial da Educação do Governo-Geral de Angola (o "ministro" da Educação da Província de Angola), a fim de chamar a atenção deste para a necessidade de submeter todos os soldados de 2.ª ao exame da 4.ª classe com a máxima urgência possível. Ao fim de três ou quatro meses, deixou de haver soldados de 2.ª em todo o batalhão.

Para terminar, quero chamar a atenção para a vontade dos militares angolanos em aprender, independentemente de passarem a ganhar mais ou não. Enquanto os militares metropolitanos só liam A Bola e quase só preocupavam em saber os resultados dos jogos de futebol, os militares angolanos tinham uma insaciável vontade de saber coisas novas, em múltiplos campos do conhecimento. Várias vezes eu pensei: «Se os africanos em geral forem como estes, então a civilização do futuro será africana». Ou então não haverá mais civilização, porque os "civilizados" darão cabo dela.

31 de outubro de 2021 às 01:31

(iii) Valdemar Queiroz:

Caro Fernando Ribeiro fiquei esclarecido.

Realmente os naturais também eram mobilizados para a guerra, mas a minha dúvida seria quanto aos que estavam fixos nos Quarteis da cidade p.ex. de Luanda. Por cá os 100% era aumentado quando eram mobilizados, diferente de estarem fixos no Quartel da RAP3 na Figueira da Foz.

Essa dos soldados de 1ª. e 2ª. devido a serem analfabetos, julgo que por cá havia os soldados básicos nessas condições, não tenho a certeza. Na minha CART11 de soldados fulas havia os soldados arvorados que andavam na escola "de Cabos" dada por mim e não sei, não me lembro, se por mais alguém. Julgo que depois estes arvorados passaram a Cabos.

É natural os analfabetos quando aprender a ler gostar de ler tudo o que tenha letras. É como ver uma bela paisagem que nunca viu e olhar com admiração para a mais pequena desinteressante imagem. (...)

31 de outubro de 2021 às 02:36

(iii) Tabanca Grande Luís Graça:

No livro do ten cor Pedro Marquês de Sousa,"Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021), há um extenso e interessante capítulo, o IV (pp. 259-330), sobre "As despesas da guerra", incluindo os encargos com pessoal e logística, que só li na diagonal.

Um estudo do Ministério do Exército, realizado em 1965, com base nos encargos suportados desde o início da guerra em Angola, estimava o custo de cada militar em 115 escudos (45,2 euros / dia, em valores de hoje), assim desagregado:

(i) vencimento e subsídio de campanha: 35$00 (30,4%);

(ii) alimentação: 23$00 (20,0%);

(iii) fardamento: 5$00 (4,3%);

(iv) transporte (via marítima): 10$00 (8,7%);

(v) outros encargos: 42$00 (36,6%) (inclui a despesa com armamento e munições, equipamento, combustível, água, luz, alojamento e manutenção)...

As percentagens são calculadas por nós...

Uma primeira conclusão é que se tratou de uma guerra, de baixa intensidade,  onde os encargos diretos com os combatentes (vencimento, alimentação e fardamento) representavam cerca de 55%...O essencial da guerra foi feita pelo homem com a sua arma, a "canhota"... Portanto, com escass0s meios tecnológicos (e poucos sofisticados, tirando a Força Aérea).

Há informação sobre o vencimento mensal base (mais subsídio de campanha ou vencimento complementar) relativamente aos anos de 1963/64, ao ano de 1971 (Guiné), ao final de 1972 (em que passou a ser pago, aos servidores do Estado, incluindo militares, o 13º mês ou "subsídio de Natal") e ainda ao final de 1973.

31 de outubro de 2021 às 18:16


(iv) Tabanca Grande Luís Graça:

Sobre o pré dos soldados do recrutamento local e das milícias, a informação é parcial...O autor, Pedro Marquês de Sousa, com base nos dados de 1964, um soldado do exército (metropolitano), na Guiné, ganhava 600$00 (vencimento mensal base: 30$00; vencimento complementar: 570$00).

Por sua vez, um milícia recebia 450$00 mensais (valor este que eu desconhecia). Ou seja, cada milícia recebia 15$00 diários (8 de alimentação e 7 de vencimento). A valores de hoje, eram 185 euros en 1964...Mas apenas 138 euros em 1969.

No meu tempo, os soldados de 2ª classe (só tinhamos um 1º cabo com o exame da 3ª ou 4ª classe) da CCAÇ 2590/CCAÇ 12) ganhavam os mesmíssimos 600 escudos, mais 24$50 por dia para a alimentação (uma vez que eram desarranchados). No total ganhavam cerca de 1350$ / mês, o que dava para comprar 225 quilos de arroz na loja do Rendeiro (1 saco de 100 quilos custava 600 pesos). Com famílias numerosas, não era muito, mas sempre era melhor do que andar a lavrar mancarra... Com o fim da guerra, foi o colapso da economia familiar...e pssou a rapar-se fome, apesar da ajuda sueca e outras...

31 de outubro de 2021 às 18:37 

(v) Tabanca Grande Luís Graça:

Valdemar, não tenho ideia nenhuma de haver, no meu tempo,em Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70, e BART 2917, 1970/72), "escola de cabos"... Nenhum dos nossos soldados arvorados chegou a 1º cabo, no meu tempo. A CCAÇ 12 foi usada como "carne para canhão", foi "esmifrada" pelo comando dos batalhões do setor L1...

Dei explicações ao 1º sargento para frequentar a Escola Central de Sargentos, em Águeda, mas nunca fui requisitado para dar aulas aos nossos pobres soldados fulas... Sei que alguns mais tarde chegaram a 1ºs cabos, graças sobretudo ao seu esforço e sacrifício pessoais... Caso do Umaru Baldé, por exempplo, que no fim já era capaz de escrever uma carta em português acrioulado...

31 de outubro de 2021 às 18:47 

(vi) Fernando Ribeiro:

Prezado Valdemar, os soldados básicos eram geralmente analfabetos e até atrasados mentais. Eles costumavam ser os soldados que tinham reprovado nas provas finais da especialidade, qualquer que ela fosse, ficando sem especialidade. Em geral, eram indivíduos completamente incapazes, que só serviam para varrer a parada, limpar as casas de banho, lavar as panelas e tachos na cozinha e outras tarefas semelhantes.

Contudo, havia exceções, uma das quais foi o impedido do comandante do meu batalhão. Este impedido também era básico, mas de parvo não tinha absolutamente nada. Eu não me lembro do nome dele; só sei que tinha a alcunha de "Paraquedista". 

«"Paraquedista", porquê?», perguntarás. Porque ele tinha sido mesmo paraquedista na Força Aérea! Um dia, em Tancos, ele e mais dois ou três resolveram dar um passeio de helicóptero à socapa, julgando, talvez, que seria fácil pilotar um aparelho daqueles. A aventura correu-lhes mal, o helicóptero caiu e eles foram parar ao hospital. A seguir foram punidos e expulsos da FAP. Foram parar ao Exército, que era o destino de todos os que a Força Aérea rejeitava. 

Ora não existia no Exército alguma especialidade chamada "paraquedista". Logo, o nosso homem ficou sem especialidade, como soldado básico. Na verdade, ele era um militar perfeitamente operacional, que poderia ter sido feito soldado atirador ou soldado comando, mas não foi isso o que lhe aconteceu. O comandante do meu batalhão nomeou-o seu impedido, para ele lhe fazer a cama todos os dias, engraxar as botas, lavar a roupa, etc.

1 de novembro de 2021 às 01:42

(vii) Valdemar Queiroz:

Luís, desconhecia esses valores dos vencimentos dos soldados fulas desarranchados, manga de patacão. Também seria assim com outros soldados de recrutamento local, no "fim" pudera não quererem vir para a metrópole e vem o 'paguem-nos até Dezembro e ficamos cá'.

Agora, não sei explicar bem se as aulas (instrução primária) que eu dava eram verdadeiramente a "escola de cabos", lembro-me deles fazer exame e haver uma chatice por eu escolher um dos "putos" e os mais velhos comentarem 'rapaz não pode ser cabo e mandar nos mais velhos'.

Por acaso, também, fui eu que dei umas lições de matemática/álgebra ao nosso 1º. sargento que também veio a meio da comissão para Águeda.

Fernando Ribeiro,  é como dizes, alguns básicos, coitados, tinham 'uma pancada', mas como eramos um país poupadinho aproveitávamos tudo. O básico da nossa CART11 era o homem da cantina. (...)


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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 30 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22671: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte VII: O meu percurso militar (I): Região Militar de Angola: EAMA, CICA, Companhia de Transportes nº 2560, QG-4ª Rep, Depósito de Adidos (1967/68)

Guiné 61/74 - P22683: Parabéns a você (1999): Ten-General PilAv Ref António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA 12 (Bissau, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22676: Parabéns a você (1998): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513/72 (Aldeia Formosa, Cumbijã e Nhala, 1973/74)

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22682: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVIII: A ração de combate


Foto nº 2


Foto nº 1 > 
Ração de combate tipo E n.º 20. (Na parte de baixo lê-se: "Não deite fora o saco exterior. Servir-lhe-á para guardar os alimentos ainda não utilizados").

Foto nº 2 >  A ração de combate tipo E nº 20 continha; 1 tubo de leite condensado, 1 lata de atum, 1 lata de sardinhas, 2 latas de carne/carne com feijão /tripas, 1 lata pequena de compota, 1 lata de fruta em calda / sumo de fruta, 1 torrão nougat (amendoim). 1 pastilha de sal, uma saqueta de café instantãneo / comprimido e duas bolachas.

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 3 >  Ração individual de combate ( Individual comba ration / Ration individuelle de combat... NATO approved.  Era utilizada pelas nossas Forças Armadas em 2011. Foto de José Marcelino Martins (2011), com a devida vénia (*)




O ex- furriel mil Joaquim Costa: natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Tem quase pronto o seu livro de memórias (, a sua história de vida), 
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (**)

Parte XVIII - A Ração de  Combate


A maior parte das nossas refeições,  ao longo dos quase dois anos de Guiné,  foram Ração de Combate.

Convenhamos que eram mais saborosas e nutritivas do que o arroz com estilhaços (arroz com minúsculos bocados de carne), à moda do vago mestre Ferreira.


O arroz com estilhaços, à moda do Furriel Vago Mestre Ferreira, fez-me lembrar as noites passadas na mítica tasca em Famalicão (Vai ou Racha) cujo proprietário era um benfiquista doente, pai do extraordinário jogador de futebol dos lampiões, Vítor Paneira.

Nesta tasca entre as muitas especialidades destacavam-se os bolinhos de bacalhau preparados pela sua simpática e esmerada esposa. Uma certa noite, já bem bebidos, ao comer um dos bolinhos de bacalhau, viro-me para o Vai ou Racha (,era assim como o tratávamos) e digo-lhe: 
− Ó Sr. Vai ou Racha! Este bolinho de bacalhau está cheio de espinhas! 

Resposta pronta do homem: 

− Como assim,  se estes só levaram batatas?!

Assim nos respondia o Vago Mestre Ferreira quando reclamavamos que a carne era pouca: 
−Como assim  −  retorquia  ele  − se  só coloquei arroz na panela?!

As rações de combate,  tipo E (Fotos nº 1 e 2), tinham várias nuances, diferindo de remessa para remessa. A remessa que me ficou na memória era composta por:

  • uma lata de conserva (geralmente sardinha/cavala?);
  • uma lata com carne;
  • uma lata de leite;
  • um sumo;
  • uma pequena lata de queijo e/ou marmelada;
  • uma bisnaga (espécie de pasta de dentes) de leite condensado;
  • um pacote de bolachas;
  • e, imaginem!, um comprimido de café para desfazer na boca.

Eu, como era alérgico ao leite (por alguma razão o querem tirar da roda dos alimentos), cedia ou trocava com outro camarada por um  sumo e despachava o leite condensado que me sabia ao óleo fígado de bacalhau que me deram na escola primária (a disputa pela minha bisnaga era dura e compreendia quase todo o pelotão). Metia-me impressão a forma como “mamavam” aquela coisa.

Mais tarde surgem umas latas de chispe e feijoada/tripas que era como fazer uma refeição num restaurante com estrela Michelin.

Sempre que aparecia o chispe e a feijoada, tinhamos problemas com o furriel enfermeiro porque lhe gastávamos todo o algodão e álcool para aquecer a iguaria.

Depois de “deitar abaixo” a respetiva ração, chegava o momento mais esperado e importante do dia, o momento do cimbalino (não confundir com o momento coca-cola!).

Fechava os olhos e transportava-me para uma esplanada de praia do picadeiro da Póvoa de Varzim, a contemplar o mar... e saboreava, com estilo, o melhor da ração – o comprimido de café.

Depois, era o clímax com as fumaças do cigarro oferecido (quase roubado) pelo Machado ou pelo Gouveia. Se fosse numa emboscada noturna, o ritual das fumaças contemplava o retirar do tapa chamas da G3 com a introdução do cigarro no cano para um gajo se tornar  um alvo fácil  de "tiro ao boneco”, por parte do IN.

Por uma questão de curiosidade,  fiz uma pesquisa sobre as rações de combate utilizadas hoje nas nossa forças armadas e fiquei com água na boca (Foto nº 3):

Pois, as rações com certificação NATO e utilizadas hoje (pelo m,enos, em 2011) pelas nossas forças armadas, incluiam as seguintes iguarias:
  • Pequeno almoço: Cacau com açúcar, 18 gramas; leite em pó, 15 gramas; bolacha doce, 125 gramas; geleia de fruta, 2 embalagens de 20 gramas cada;
  • Almoço: Jardineira de feijão, 145 gramas; paté de fígado, 65 gramas; doce de maçã, 50 gramas;
  • Jantar: Massa Bolonhesa, 400 gramas; sardinhas em óleo, 115 gramas;
  • Complementos alimentares: Bolachas de água e sal, 2 embalagens de 120 gramas; sumo de fruta em pó, 2 carteiras de 20 gramas; açúcar, 2 pacotes de 10 gramas; sal, pacotes de um grama; chocolate, 2 barras de 25 gramas; chiclete, 2 unidades; caramelos, 4 rebuçados;
  • Complementos não alimentares: Comprimidos purificadores de água, 4 unidades; pastilhas inflamáveis, 6 unidades; dispositivo de aquecimento, uma chapa moldável; carteira de fósforos; talheres de plástico; saco para lixo.
Mesmo assim, reconhecendo as significativas melhorias, não trocava estas nutritivas rações de combate pelas do meu tempo. A esta ração “modernaça” falta-lhe o essencial: O cimbalino!…

(Continua )
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(**) Último poste da série > 11  de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22621: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVII: a minha "bigodaça”... que tanto incomodou os senhores da guerra