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quarta-feira, 27 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23464: Historiografia da presença portuguesa em África (327): O arquiteto Luís Benavente e o restauro da Fortaleza da Amura no número que a revista Oceanos de outubro/dezembro de 1996 dedicou às Fortalezas da Expansão Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se regressa à história da Fortaleza de S. José da Amura a pretexto das intervenções propostas por um arquiteto de nomeada, Luís Benavente, alguém que deixou nome em importantíssimos trabalhos de reedificação e construção. Entendia que a Amura corria o risco de ter "coisas a mais", era entendimento, desde o início da guerra da independência, que a fortaleza devia ter um importante desempenho militar, ali se colocou o Comando-Chefe, ali tinham estado unidades militares, garantiu-se a solidez dos panos de muralha, mas Luís Benavente era contrário a uma excessiva ocupação daquele espaço, havia que respeitar a consagração do monumento nacional. Era no seu interior que o Governador e Comandante-Chefe António Spínola reunia diariamente com os seus Altos Comandos, a Amura viveu outro momento histórico em 26 de abril de 1974, as unidades militares em peso tinham aderido ao MFA, daqui partiram para depor, no Palácio do Governo, o General Bettencourt Rodrigues, que no dia seguinte seguiu para Lisboa.

Um abraço do
Mário



O arquiteto Luís Benavente e o restauro da fortaleza da Amura

Mário Beja Santos

Luís Benavente é um nome sonante da arquitetura portuguesa no século XX. No número que a revista Oceanos de outubro/dezembro de 1996 dedicou às Fortalezas da Expansão Portuguesa, o professor José Manuel Fernandes dedicou um artigo a este insigne arquiteto e ao seu trabalho nas fortalezas de África. E escreve: “Durante 17 anos – nas décadas de 1950, 60 e 70 – o arquiteto Luís Benavente esteve ligado às fortificações da costa africana, com especial relevo para os monumentos nas ilhas de S. Tomé e Príncipe e de Cabo Verde, mas também na Guiné-Bissau, em Angola, em Moçambique e até no Gana. Destacado do Ministério das Obras Públicas, onde era Diretor dos Monumentos Nacionais, Luís Benavente pôde dedicar-se com certa continuidade a visitar, estudar, fotografar e desenhar inúmeras fortalezas, executando propostas de restauro ou de reconstrução para vários desses vestígios militares da Expansão Portuguesa em África. O seu espólio profissional está depositado na Torre do Tombo”. A revista Oceanos mostra imagens do Forte de S. Sebastião em S. Tomé, a Fortaleza de S. José da Amura em Bissau, a Fortaleza Real de S. Filipe na Ilha de Santiago e o Forte de S. Pedro da Barra em Angola.

Luís Benavente visita a Guiné de 12 a 15 de julho de 1962, visita o Fortim de Cacheu, que entende como uma “reconstrução com possibilidades dentro do que de facto deveria ter sido” e visita uma pequena mas interessante igreja nas suas proximidades, “provavelmente do início do século XVII”. Segue para Bissau e visita S. José da Amura que considera “obra notável pelas suas proporções e dimensão”. Recomenda o levantamento destas duas obras militares com proteção urbanística da de S. José e com medidas para restauro e controlo da intervenção arquitetónica no seu interior. E é ao restauro de S. José que irá dedicar-se nos anos seguintes, conhecendo-se uma sua proposta desenvolvida com data de 25 de fevereiro de 1969 e despachada positivamente por Rui Patrício em 18 de março de 1969. Num ofício do Ministério do Ultramar, com data de 18 de junho de 1970, o arquiteto discorda da hipótese de “pôr coisas a mais” no interior da fortaleza, sugerindo que novas funções militares sejam resolvidas em outro edifício, alheio à fortaleza. Neste mesmo ofício refere o desejo, expresso em conversa com António de Spínola, de que “… à Fortaleza fosse dado através do seu restauro um aspeto de acordo com a sua importância e mérito”.

No relatório de 1962, Luís Benavente mencionava a construção inicial de S. José da Amura (em 1696, pelo Capitão-mor José Pinheiro) e a sua primeira construção (em 1753, segundo planos de Frei Manuel de Vinhais Sarmento, continuada em 1766 com traçado pelo Coronel Manuel Germano da Mata).

Não é a primeira vez que o nome Luís Benavente é invocado no blogue. Em 13 de janeiro de 2015, a então doutoranda Vera Mariz aludia à remodelação de 1968/69 da fortaleza da Amura para passar a receber o Comando-Chefe, a Companhia de Polícia Militar e o Comando-Chefe do Agrupamento de Bissau, de que o arquiteto notoriamente discordava, eram coisas a mais dentro de um monumento nacional, propunha que tais serviços militares fossem incorporados em edifício à parte. (Vd. postes P14145 e P14147)

Bem curiosa me parece a intervenção do arquiteto guineense Fernando J. P. Teixeira que no VII Encontro do Conselho Internacional dos Arquitetos de Língua Portuguesa se referiu à evolução histórica da fortaleza. Recorda que as datas da construção desta fortaleza não são coincidentes nas diversas fontes consultadas e não deixa de citar uma observação do Visconde Sá da Bandeira: “… e o cimento da cantaria bem podia ser amassado com sangue; porque mais de dois mil dos nossos que morreram nesta edificação, e não foi senão sob o fogo de canhões de uma esquadrilha que se conseguiu elevar a praça de guerra S. José de Bissau”. Criada a Companhia Geral de Comércio e Navegação do Grão-Pará e Maranhão, com estatutos em 1775, uma das deficiências notadas pela administração nos portos de Bissau e Cacheu era a fragilidade das suas fortalezas. As edificações anteriores tinham sido o Forte de Cacheu, construído em 1589 e os fortes de Guinala e Biguba, no Sul, tinham sido construídos de adobe e pouco duraram. A Companhia reclamava trabalhos de defesa em Bissau e Cacheu para se garantir o comércio. Esta mesma Companhia negociou com o régulo de Intim a compra de uma porção de terra para erguer a fortaleza. E assim se traçou um quadrado de pedra com mais de uma centena de metros por fachada, com doze metros de altura, flanqueado por quatro bastiões. O interior esteve permanentemente em reparação, estava destinado a residência do governador de Bissau, a ter casernas para 200-300 soldados, uma igreja e um poço. Os seus baluartes passaram a ser conhecidos por Bandeira, Balança, Onça e Puana.

Os Papéis hostilizavam a presença de quem vivia dentro dos muros de Bissau, eram muros de pedra e cal, com quatro metros de altura, fora achava-se a povoação com centenas de palhotas e meia dúzia de casas onde residiam negociantes e agentes de firmas francesas, de Gorée e inglesas, da Gâmbia, estavam sujeitos a todos os ultrajes, razão pela qual havia quem defendesse a ideia de transferir os armazéns e estabelecimentos para o Ilhéu do Rei.

É na visita de 1962 que Benavente aconselha o levantamento e a proteção urbanística do forte e medidas para o restauro e controlo de intervenção arquitetónica no seu interior. Já se sabe que em 1970 Benavente discordava de pôr coisas a mais dentro da Amura. Seguramente que se referia às instalações do Comando-Chefe, da Polícia e do Comando-Chefe do Agrupamento de Bissau.

A dinâmica de Bissau contribuiu para que S. José da Amura ganhasse respeitabilidade. Em 1914 Bissau foi elevada à categoria de cidade. O engenheiro Guedes Quinhones traçou-lhe o risco que de certo modo veio a conhecer execução. Apareceram as grandes casas comerciais, o Banco Nacional Ultramarino, surgiu a primeira fábrica de gelo acionada por um locomóvel. Em 1923 o governo concede foral ao município de Bissau, dois anos depois foi inaugurado o novo mercado e o cemitério municipal, em 1935 lançou-se a primeira pedra da futura Catedral de Bissau. No ano seguinte, o antigo bairro indígena passou para Santa Luzia e passou a fazer parte integrante da cidade. De 1936 a 1939 a cidade cresce e surge o bairro Portugal com casas destinadas a funcionários. Em 4 de dezembro de 1939 a Amura é considerado monumento nacional. E em 1941 é inaugurado o Monumento ao Esforço da Raça, que tinha sido começado a construir em 1934 (as pedras tinham vindo do Porto, onde fora feito o projeto da autoria do arquiteto Ponce de Castro).

A cidade transformara-se, a Avenida da República ganhou vida com a Catedral e o Palácio do Governo. E as muralhas do baluarte de Puana, em S. José da Amura, que haviam ruido, foram reerguidas em 1946. Dentro erigiu-se um Monumento aos Heróis da Ocupação.

É esta em síntese a história do principal monumento que a presença portuguesa legou à República da Guiné-Bissau.

Três imagens retiradas do trabalho do arquiteto Fernando J. P. Teixeira sobre a evolução histórica da Fortaleza de S. José da Amura publicado no site didinho.org
Entrada chamada do Pidjiquiti
Fortaleza da Amura, imagem de 1962, de Durval Faria, já publicada no blogue
Pormenor do Monumento ao Esforço da Raça, hoje na Praça dos Heróis Nacionais
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quarta-feira, 1 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23318: Historiografia da presença portuguesa em África (319): “História das Colónias Portuguesas, Obra Patriótica sob o Patrocínio do Diário de Notícias", da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa; Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade, 1933 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Escapara-me esta obra de divulgação saída do punho de um jornalista cheio de pergaminhos. Não foi por acaso que surgiu em 1933, estamos numa época em que se procura a todo o transe publicitar os valores imperiais. No que toca à sua narrativa sobre a Guiné, Rocha Martins deu provas de grande probidade, não foi aos arquivos mas consultou a melhor bibliografia da época, não ilude a pressão exercida pelos franceses e ingleses para reduzir a presença portuguesa na Senegâmbia e descreve sumariamente a vida atribulada dos três primeiros governadores. Não se trata, pois, de obra de consulta imperativa para investigadores, era um puro exercício de divulgação, acontece que muito bem redigido. No seu todo, Rocha Martins podia dar-se por satisfeito com o seu libelo patriótico, ao mostrar que aquelas parcelas do Império sobrantes de tanta procela eram um motivo de orgulho pátrio, e a elas devíamos rapidamente atender, começando por as habitar, e fazê-las progredir.

Um abraço do
Mário



História das colónias portuguesas, por Rocha Martins

Mário Beja Santos


"História das Colónias Portuguesas, obra patriótica sob o patrocínio do Diário de Notícias", é da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa, reputado jornalista e plumitivo admirado, a edição é de 1933, Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade.

Como é óbvio, circunscrevemos as apreciações à colónia da Guiné. O autor faz um esboço histórico, refere as etnias, a natureza das selvas e dos rios, fala-nos nas companhias de tráfico de escravos e deixa o seguinte comentário: “Enorme e estranho território, nuns lugares fertilíssimo, noutros selvático e adusto, era habitado por tribos de caráter guerreiro, havendo, todavia, algumas que muito se compraziam em viver com os portugueses. O principal tráfico que se fez foi o da escravatura. Os Mouros, desde há muito, se entregavam àquele negócio, tendo em suas terras de Marrocos não só cativos negros mas brancos e cristãos. Os primeiros convertidos foram Fulas e Mandingas”.

Refere com detalhe a figura dos lançados, dos conversos ao Islamismo, observa usos e costumes: “Vestiam calção e camisola curta, usavam sandálias e barrete de algodão, à mourisca. Possuíam cavalos muito bem adestrados; as armas de guerra eram constituídas por zagaias, couraça de algodão empancado para lhes cobrir o peito e o ventre".

Enuncia as informações apresentadas por André Álvares d’Almada no seu Tratado Breve dos Rios da Guiné, dizendo que a mercadoria mais preciosa nesta época era o sal, que os Jalofos e os Mandingas transportavam. Era monopólio régio – trocavam o sal por oiro, escravos e estojos finos. Na esteira de André Alvares d’Almada faz a descrição do reino de Budamel. Relaciona Cabo Verde com a Guiné: “Na ilha de Santiago, onde se tinham instalado, em que os mercadores partiam e estabeleceram-se em Cacheu na Aldeia de Buramos ou Papéis de Cacanda e ali os portugueses viviam em comum com os indígenas. Manuel Lopes Cardoso, sem dúvida judeu, conseguiu, em 1588, uma concessão régia, podia construir em Cacheu uma fortaleza. Na margem direita do rio de S. Domingos estabeleceu outra feitoria em território Banhum, duas léguas abaixo de Cacheu”. É um autor que se sente dotado para contar histórias que sejam inclusivamente apreciadas por leitores de jornais. “Houve um português que se tornou marido da filha do rei Foulo, o grande soberano. Chamava-se João Ferreira e nascera no Crato, houve um filho deste matrimónio. Os indígenas alcunharam-no de Ganagoga – um homem que sabia todos os dialetos da negraria”. Os géneros que os portugueses levavam aos guinéus eram vinho, panos da Bretanha, vidros e moedas de dois reis.

Dá-nos também preferência do Mandimansa e depois foca-se em Cacheu. O primeiro Capitão-Mor de Cacheu foi António de Barros Bezerra, que trouxe criados, escravos, foragidos, vadios. Fortificou a povoação, rodeando-a de altíssima escadaria, abriu-se um fosso onde entravam as águas e se podia navegar. Artilhou o forte, feito de adobe e coberto de colmo, tal como a Igreja de Nossa Senhora do Vencimento. No período dos Filipes, o comércio dos portugueses continuava a ser o dos escravos, marfim e algum oiro. Vassalos de outros países penetravam à vontade em território onde primeiramente se manifestara só a presença portuguesa. Dá-nos igualmente a saber que com a restauração foi nomeado Capitão-Mor de Cacheu Gonçalo Gamboa de Ayala, que fundou Farim. Inevitavelmente, fala-nos das companhias do tráfico de escravos, da Companhia de Cacheu que introduziu na Nova Espanha dez mil toneladas de negros; não deixa de mencionar a Companhia de Grão Pará e Maranhão e das dificuldades sentidas, sucedeu-lhe a companhia de comércio exclusivo das ilhas de Cabo Verde e Cacheu, extinta em 1786. E começa o apertado cerco à Senegâmbia Portuguesa, a cobiça francesa, pretendia o porto de Bissau. É referido a demolição da fortaleza de Bissau, no reinado de D. João V, virá a ser refeita no reinado de D. José. Rocha Martins refere o período anárquico que se viveu durante as invasões francesas em que a Corte for para o Brasil. E depois de nos dar um quadro da vida em Bissau, Geba e Bolama e da Ilha das Galinhas refere a tentativa dos Franceses e dos Ingleses para os expulsar da região. A intensidade da intervenção francesa no princípio do século XIX, fala-se da questão do Casamansa, das diligências de Caetano Nozolini e António Pereira Barreto e como se conseguiu impedir a presença britânica em Bolama. Refere a política de Latino Coelho, Ministro da Marinha e Ultramar que aprovou uma nova divisão administrativa da Guiné em 1869. Ao Conselho de Cacheu juntavam-se Farim, Ziguinchor, Mata e Bolor; a Bissau pertenciam Geba, Colirna, Orango e Bolola.

Depois do chamado desastre de Bolor, dá-se autonomização da Guiné em 1879, e é nomeado como primeiro Governador o Coronel Agostinho Coelho. Este relatou para Lisboa que a situação era tremenda, exercia-se um certo domínio em Ziguinchor, Cacheu, Farim, Geba, Bolama e sobre meia légua de terra denominada Colónia do Rio Grande. “Portugal exerce um simulacro de soberania, tem vindo a abandonar lugares como Bolor, no rio de S. Domingos onde havia um destacamento de três praças com o fim único de içar a bandeira quando passa o navio. Em S. Belchior, Viena, Fá e Corubal não há bandeira nem autoridade portuguesa. Os negociantes de Buba pagam além de presentes isolados a um outro rei a respeitável soma de oito contos de reis a título de imposto. Franceses e indígenas de Buba não reconheciam o domínio nacional. As fortalezas caíam em ruína. Para policiar todas as regiões havia duzentos e tantos soldados e para os rios uma velha escuna A Bissau”. É neste quadro que vai atuar o primeiro governador com um pequeno efetivo a que se irão juntar 142 praças do batalhão de Moçambique: obrigando o régulo de Orango a pagar a austríacos 6 mil francos que lhes tinham roubado; os Fulas atacaram Buba que foi defendida por 200 portuguesas; os Beafadas atacaram os Fulas. Rocha Martins refere ainda a atividade do segundo e terceiro governadores.

O segundo, Pedro Inácio de Gouveia, recebeu espingardas do governo central, nesse tempo os franceses intervinham escandalosamente no Casamansa, declaravam que Portugal só possuía Ziguinchor. Os Fulas atacavam no Rio Grande, foi necessário enviar um contingente que os obrigou a fazer a paz. Rocha Martins refere o papel do tenente Francisco Marques Geraldes e como Bakar Kadali derrotou os rebeldes no Forreá, obrigando Mamadi Paté a pedir a paz. O terceiro governador foi o oficial da Armada Francisco Gomes Barbosa, e Rocha Martins escreve: “Os Franceses iam apertando o cerco do seu território, encravando a Guiné. Tinham Senegal e queriam Casamansa, ocuparam ilhas sob o título de Riviera do Sul. A Inglaterra dominava na Gâmbia e na Serra Leoa. Ia porém chegar o momento em que se inaugurava o período contemporâneo da vida colonial com a Conferência de Berlim, onde se decidiu os destinos das possessões em África. Os portugueses tinham ido à descoberta; nenhum povo os precedera nessa obra; depois, mercê do domínio espanhol, das suas lutas indestinas, da grandeza das suas possessões, que as cobiças maldeixavam, iam ver-se em situação de que lhe era difícil defender o que lhe pertencia. Conseguiu-se, porém, à custa de um novo esforço. Ressuscitaria, em parte, a sua velha epopeia”.

Notas bastante curiosas de alguém que se afadigou em tempos de Ditadura Nacional a fazer uma radiografia do Império, num texto cheio de motivação e onde houve o cuidado de procurar dar informações idóneas à luz dos conhecimentos da época.

Mapa de África datado de 1572
Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History
Sonô, a escultura guineense mais disputada nos leilões internacionais
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23290: Historiografia da presença portuguesa em África (318): “Por Terras da Guiné, Notas de um Antigo Missionário, Padre João Esteves Ribeiro” publicado em "Portugal Missionário, reunião havida no Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim em 1928"; edição da Tipografia das Missões em Couto de Cucujães em 1929 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23286: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (25): Cacheu, restos que o império teceu... - II (e última) Parte


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu > O que resta do Monumento em homenagem do "V Centenário da Morte do Infante Dom Henrique [1460-1960]... Nas proximidades fica a antiga Casa Gouveia, agora comvertida em Memorial da Escravatuar e do Tráfico Negreiro.


Foto nº 2 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Cacheu > "Este monumento ...em que a pedra não está a aguentar...como nós", escreve o Patrício com fina ironia...


Foto nº 3 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu > Forte de Cacheu (séc- XVIII) > Aspecto parcial, com alguns dos 16 canhões de bronze...


Foto nº 4 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu >  Forte de Cacheu (séc. XVIII): exterior e porto


Foto nº 5 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Chacheu > Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro >  O museu foi inaugurado em 8 de julho de 2016... mas já apresenta sinais de degradação (manchas de salitre nas paredes interiores, por exemplo, visíveis nesta foto...) > O grande mentor deste projeto museológico foi o nosso amigo Pepito (1949-2014) que já não viveu para poder assistir á sua inauguração. É aqui lembrada por uma foto (da autoria de Luís Graça: Lisboa, Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade de Lisboa, 2006...e tal como o retratado, a palmeira também já não existe...)... Na foto à sua direita, o antigo edifício da Casa Gouveia, em ruínas, que foi recuperado para nele ser instalado este museu. 

O projeto da construção deste memorial, dando continuidade ao projeto Percurso dos Quilombos, recebeu um financiamento da União Europeia e  resultou dos esforços e colaboração da ONGD guineense Ação para o Desenvolvimento (AD), da Associazione Interpreti Naturalistici (AIN), de Itália, da COAJOQ, Cooperativa Agropecuária de Jovens Quadros e a Fundação Mário Soares.

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segunda (e última) parte de um conjunto de fotos que nos foram enviadas recentemente pelo nosso colaboador permanente Patrício Ribeiro (Bissau), sobre a cidade do Cacheu e os restos da presença portuguesa (*). Fotos tiradas no domingo, dia 15 de maio, no Cacheu onde esteve em trabalho.

Sobre o Mmeorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro, em Cacheu, ver aqui um excerto de página da UCCLA:

 Guiné-Bissau, Cacheu > Inaugurado memorial de escravatura em Cacheu

A cidade de Cacheu (Membro Efetivo da UCCLA), no norte da Guiné-Bissau, conta, desde o dia 8 de julho, com um memorial dedicado à escravatura e tráfico negreiro, erguido num edifício em ruínas cujas obras de reabilitação foram custeadas pela União Europeia.

O memorial consiste num pavilhão multiusos, salas de formação, residência para investigadores e um museu que preserva alguns artefactos que marcavam o dia-a-dia dos escravos. A população de Cacheu contribuiu com os artefactos - colheres de cozinha, tachos, correntes, ferros que serviam para marcar os escravos depois de passados em lume, chicotes - que podem ser contemplados no museu.

A iniciativa é da organização guineense Acão para o Desenvolvimento (AD), com apoios de várias organizações locais e internacionais, nomeadamente a Fundação Mário Soares de Portugal que forneceu técnicos para a reabilitação arquitetónica do antigo edifício da Casa Gouveia hoje transformado no memorial.

O memorial foi apresentado como sendo um espaço que visa "valorizar a memória de uma realidade que marcou profundamente os países africanos e ainda hoje permanece com grande acuidade nas sociedades dilaceradas pelo tráfico negreiro".

A ideia da construção do memorial foi iniciada pela AD em 2010, no âmbito do projeto Percurso dos Quilombos, sempre contando com o apoio financeiro da União Europeia, dai que o representante desta comunidade na Guiné-Bissau, Vítor dos Santos, tenha enaltecido o trabalho realizado até aqui. "O memorial inicia hoje um longo caminho representando um elemento de união entre o presente e o passado e o futuro da comunidade em seu território bem como uma ligação com outros territórios (...) Estados Unidas, o Canada e o Brasil na perspetiva da compreensão da própria historia e da construção da memória histórica".

O ministro guineense da Cultura, Tomas Barbosa, disse que o memorial deve ser usado como um chamariz para os descendentes de escravos para que possam voltar à terra dos seus antepassados. (...)

Fonte: Excertos de UCLA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa > Guiné-Bissau, Cacheu > Inaugurado memorial de escravatura em Cacheu. Publicado em 09-07-2016 (com a devida vénia...)
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Nota do editor:

terça-feira, 17 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23271: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (24): Cacheu, restos que o império teceu... - Parte I


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > Uma das 16 peças de artilharia que defendiam a entrada do rio Cacheu.

"Os trabalhos de recuperação do antigo forte colonial foram desenvolvidos de Janeiro a Março de 2004, com recursos da ordem de cem mil Euros, disponibilizados pela União das Cidades Capitais de Língua Oficial Portuguesa (UCCLA). Visando assegurar a sua utilização como área de lazer e cultura, além de promoção do turismo, foram promovidas a reurbanização de seu interior, onde foram instalados diversos equipamentos de lazer e recolocadas as estátuas dos navegadores portugueses Gonçalves Zarco e Nuno Tristão, os primeiros europeus a atingir as costas da Guiné, no século XV. Nas antigas edificações de serviço foram instaladas uma biblioteca e salas de convívio." (Fonte: Wikipedia)


Fpto nº 1A > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > "O forte, de pequenas dimensões, apresenta planta na forma de um rectângulo, com 26 metros de comprimento por 24 metros de largura, com pequenos baluartes nos vértices. As muralhas, em pedra argamassada, apresentam cerca de quatro metros de altura por um de espessura. Encontrava-se artilhado com dezasseis peças. O Portão de Armas, com mais de um metro e meio de largura, é o seu único acesso." (Fonte: Wikipedia)


Foto nº 2 > Guiné -Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI)    > Hoje funciona como depósito de alguma estatuária colonial... como é o do que resta da estátua, em bronze, do governador Honório Barreto... Veio de Bissau, ficava justamente no centro da Praça Honório Barreto, perto do Hotel Portugal, hoje Praça Che Guevara.


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > Restos da estátua de Teixeira Pinto, o "capitão-diabo" ...Estátua, em bronze, da autoria do professor de Belas Artes, o escultor Euclides Vaz (1916-1991), ilhavense. Encontrava-se no  Alto do Crim, antigo parque municipal, onde agora está a Assembeleia Nacional. (*)

 

Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) >   O que resta da estátu, também em bronde, do Nuno Tristão:  erigida por ocasião do 5º centenário do seu desembarque em terras da Guiné (1446), a estátua ficava no final na Av da República, hoje, Av Amílcar Cabral... Esta artéria, a principal avenida de Bissau no nosso tempo, vinha da Praça do Império ao Cais do Pidjiguiti, tendo no final a estátua de Nuno Tristão; no sentido ascendente, ou seja, do Pidjiguiti para a Praça do Império, tinha à esquerda a Casa Gouveia, por detrás da estátua, e mais à frente, à direita, a Catedral.


Foto nº 5 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Forte de Cacheu (séc- XVIII) >  Restos da estátua de Diogo Gomes, que até à Independência, estava em Bissau,  frente à ponte cais de Bissau...


Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segundo Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura colonial do Estado Novo, o pedestal na ponte cais de Bissau (agora vazio) da estátua do Diogo Gomes ainda lá estava em há meia dúzia de anos, tal como a inscrição, um exerto do canto VII dos Lusíadas, "Mais mundo houvera"... 

O pedestal é obra do Gabinette de Urbanização do Ultramar (GUU). A estátua, entretanto removida em 1975 para o forte do Cacheu, deve ser da autoria do escultor Joaquim Correia, autor de monumento análogo que ainda hoje está de pé na cidade da Praia, Cabo Verde. 

Esta e outras estátuas (Honório Barreto, Nuno Tristão, Teixeira Pinto) faziam parte de "um escrupuloso programa de 'aformoseamento' do espaço público", integrado nas comemorações do 5º centenário do desembarque de Nuno Tristão. na altura do governo de Sarmento Rodrigues (1945-48). 

No entanto, a colocação das estátuas destas figuras históricas da colonização só será efetuada na segunda metade da década de 1950 [Vd. Ana Vaz Milheiro - 2011, Guiné-Bissau. Lisboa, Círculo de Ideias, 2012. (Coleção Viagens, 5), pp. 32-33].

Obrigado ao Patrício Ribeiro, o "nosso último africanista" que resiste, desde 1984, à usura (física e mental)  do tempo, da história, dos trópicos, no país, a Guiné-Bissau, que ele escolheu para viver e trabalhar,  e que se lembra, de vez em quando,  de nós e realimenta as nossas "geografias emocionais"  do tempo de soldadinhos de chumbo do Império... 

As fotos acabaram de chegar, ainda estão frescas, mas há mais para uma segunda parte. (***). O Patrício diz-me,  sempre dsicreto e  lacónico, que "sim, todas a fotos, foram tiradas no domingo passado, em Cacheu onde estive a trabalhar. Umas são  sobre o porto do Cacheu e outras sobre a "fortaleza do Cacheu". 

Eu que não sou especialista em arquitetura, muito menos militar e colonial, confesso que são sei distinguir um forte, uma fortaleza e um fortim...Com cerca de  624 metros quadrados de área total, e muros "altos de 4 metros", aquilo parece-me mais um "castelo de areia" do meu tempo de praia, quando eu era menino e moço e construía "castelos de areia"... Mas, enfim, lá cumpriu a sua missão, mal ou bem, não podendo nós, todavia, esquecer que o seu passado "esclavagista"  como tantos outros pontos da costa africana ocidental... 

PS - Patrício, fico feliz por teres trabalho (tu e os teus "balantas"), mas preocupado por teres de trabalhar ao domingo, como, de resto, muito boa gente... Em primeiro lugar, também precisas de descansar. Por outro, não respeitando o Dia do Senhor, ainda corres o risco de seres transformado, como o ferreiro, em "dari" (o nome afetuoso que os guineenses chamam ao nosso "primo" chimpanzé). Nestas coisas, é bom estar com Deus, Alá e os bons irãs...

2. Faça-se a devida pedagogia destas fotos, para os iconoclastas de todo o mundo, e de todos os quadrantes político-ideológicos, mas também para os nossos "saudosistas do Império", leitores do nosso blogue...  Aproveito para citar um comentário do nosso querido amigo Carlos Silva (a quem desejamos rápidas melhoras), e que é um dos nossos camaradas que melhor conhece (e ama) a terra e a gente da Guiné-Bisssau (****):

(...) "A estátua de Teixeira Pinto estava situada no Alto de Crim, onde actualmente está situada a Assembleia Nacional.

O monumento com o busto de Teixeira Pinto creio que situava-se na baixa de Bissau, próximo da catedral e foi inaugurado em 1929 pelo Governador Cor Leite de Magalhães. (...)
 
Quanto às estátuas que refere o Armando Tavares da Silva, presentemente estão as 3 dentro da Fortaleza do Cacheu. Pelo menos estavam em Abril de 2019, mas antes estiveram fora da fortaleza, mas próximo da mesma,  das quais tenho fotos dos anos 90 e de 2001 e de outros anos.

Falei com vários altos dirigentes, incluindo com o falecido Presidente Interino Manuel Serifo Nhamadjo sobre este tema e todos concordam que as estátuas fazem parte da História do país, mas não há vontade política para fazer seja o que for.

Para mim, os pedaços das estátuas estão lá na fortaleza de castigo e para lembrar o colonialismo.

E duas estátuas já foram à vida, a do Comandante Oliveira Mozanty que estava em Bafatá, da qual tenho fotos de 1997, toda partida, mas que já foi para a sucata, embora continue por lá o pedestal em granito preto com relevos e muito bonito.

A outra era a de Ulisses Grant, presidente dos EUA que arbitrou o caso de Bolama entre Portugal e os Ingleses. Esta também foi para a sucata." (...)


(***) Último poste da série > 7 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23238: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (23): Bafatá... e as nossas "geografias emocionais"

(****) Vd. poste de 8 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21747: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (80): busto do capitão Teixeira Pinto, em Bissau, c. 1943 (Armando Tavares da Silva)

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23255: Historiografia da presença portuguesa em África (316): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Revelou-se bastante esclarecedora a leitura do livro de Marcello Caetano O Conselho Ultramarino, Esboço da sua História, Agência Geral do Ultramar, 1967. O investigador explica-nos de forma iniludível como Fontes Pereira de Melo criou um órgão de grande autoridade e abrangência, escolheu mesmo vogais efetivos e extraordinários de gabarito, e daí dizer-se que de 1854 a 1868 o Conselho Ultramarino viveu um período distintíssimo, obviamente que suscitando invejas políticas e muitas tensões pelos pareceres emanados e a legislação que sugeria. Como sempre acontece, os seus inimigos assim que chegaram ao poder puseram-no em coma induzido. E é por isso que dá gosto folhear estes volumes cheios de memórias, pareceres, estudos, a generalidade deles direcionados para Angola mas também percorrendo as diferentes parcelas do Império, aqui se encontram surpresas que qualquer investigador da área imperial não pode ficar indiferente, basta ver esta Guiné, seguramente a colónia mais pobrezinha de estudos, pareceres e memórias.

Um abraço do
Mário



Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Perguntará o leitor que importância se pode atribuir às matérias constantes nestes anais. A primeira parte da resposta passa por atribuir importância ao Conselho Ultramarino, um órgão que iniciou a sua vida em tempos de Filipe II, teve interrupções, e mesmo com outras designações chegou a abril de 1974. As obras que estão em consulta na Biblioteca da Sociedade de Geografia referem-se concretamente ao período encetado na governação de Fontes Pereira de Melo e que irá durar até à década seguinte. Iniciei a consulta na série 1.ª, vai de fevereiro de 1854 a dezembro de 1858, a edição é da Imprensa Nacional, 1867. Tem-se a sensação quando se folheia estes anais que têm qualquer coisa a ver com o Diário da República Colonial, o Conselho Ultramarino funcionava junto do Paço, refere nomeações, condecorações, composição de comissões, autorização de despesas… No artigo anterior, detetei agora, cometi o erro ao considerar que a parte oficial destes anais incluíam pareceres e até estudos, é redondamente falso, a parte oficial contempla a legislação, toda a outra matéria é versada na parte não oficial. E agora, uma breve explicação sobre a vida neste período do Conselho Ultramarino que os investigadores consideram um dos mais brilhantes e dinâmicos da sua história. Ele insere-se no período da Regeneração, este Conselho teve este período áureo entre 1851 a 1868. Deve-se a quê?

Em julho de 1851, tendo triunfado a Regeneração, Fontes Pereira de Mello decretou um novo Conselho Ultramarino, a fonte inspiradora terá sido Almeida Garrett. Era composto por sete vogais efetivos e sete extraordinários. No seu trabalho sobre a história do Conselho Ultramarino, Marcello Caetano, em publicação da Agência Geral do Ultramar datada de 1867, fala das suas amplas competências: tinha de ser necessariamente ouvido sobre importantes matérias legislativas, governativas e da administração, e tinha poder para emitir consulta nos recursos contenciosos entrepostos para o Governo dos atos dos governadores coloniais; podia tomar a iniciativa de estudar e propor providências a adotar pelo governo, fiscalizar e recrutar o funcionalismo ultramarino. Missão especial era a de velar pela execução das leis sobre o tráfico da escravatura e de estudar a colonização, dirigindo para o mundo ultramarino a emigração que se encaminhava para o estrangeiro. As resoluções do Conselho eram convertidas em consultas, provisões ou portarias, conforme os casos. Em 1854, iniciou-se a publicação do boletim e anais do Conselho Ultramarino. Os anais eram a parte oficial contendo os atos do Governo e da administração, consultas do Conselho, resoluções dos tribunais superiores, relatórios, etc., e a parte não oficial era constituída pelo acervo de memórias, notícias, narrativas e quaisquer estudos sobre matéria colonial. Como é evidente, este órgão deverá ter provocado imensos engulhos e reticências, em setembro de 1868 foi extinto e criado em sua substituição a Junta Consultiva do Ultramar. Com a I República, surgirá o Conselho Colonial (1911 a 1926).

Esclarecido o que é a parte oficial da não oficial, dá-se agora conta de alguma matéria que possa ser considerada útil para o estudo da Guiné, e que não venha noutras fontes documentais.

Em 22 de dezembro de 1857, João Severiano Duarte Ferreira, Diretor da Alfândega de Bissau, dirige-se ao Sr. Visconde de Sá da Bandeira que o encarregara de apresentar algumas reflexões relativas ao comércio da Senegâmbia Portuguesa, causas da sua decadência e meios a empregar que obstem à sua completa aniquilação. Diz ele:
“No tempo em que de Bissau e Cacheu se exportavam escravos, pouca ou nenhuma importância se dava naquelas localidades ao comércio lícito, porque dois ou três negociantes que ali residiam só tratavam de obter dos estrangeiros a maior soma possível de mercadorias próprias para a compra de escravos, com o fim de embarcar estes por sua conta para a ilha de Cuba e para os portos do Brasil, ou para os venderem aos navios que iam ali buscá-los. Os lucros resultantes deste tráfico inumano eram enormes, e aumentavam na razão direta das dificuldades no transporte dos negros. Em 1842, cessou completamente a exportação de escravos de Bissau e Cacheu, e foi então que os negociantes olharam com mais alguma circunspeção para o comércio lícito que até ali tinham, por assim dizer, desprezado. O Governo da Província ignorava completamente quanto dizia respeito a Bissau, Cacheu e dependências, porque poucos dos governadores ali iam, e os que iam, tão pouco tempo ali se demoravam, que retiravam tão instruídos das coisas da Guiné como tinham ido; e eis por que nem propunham ao Governo da Metrópole as medidas que convinham adotar para o desenvolvimento comercial e agrícola daquela parte dos domínios de África.

Quando o comércio lícito entrou a chamar a Bissau e a Cacheu maior soma de navios estrangeiros, e exportação, que até ali tinha sido clandestina, por ser de escravos, se tornou patente e visível, por ser de produtos do país, o Governo Provincial fixou para ali com mais cuidado a sua atenção. Mandou a Bissau empregados da sua confiança e orientou-se quanto lhe foi possível na importância comercial daqueles pontos; mas no desejo de remediar o mal até ali feito, de conceder por quatro o que vali pelo menos doze, caiu no extremo oposto exigindo mais do que realmente se podia e devia exigir pelos direitos de exportação e consumo.

Fala-se geralmente em comércio português de Bissau e Cacheu, quanto a mim aquele comércio é mais estrangeiro do que nacional, porque os negociantes portugueses residentes naqueles pontos não são outra coisa mais do que caixeiros das casas comerciais e inglesas, americanas, francesas e belgas, que autorizam os seus agentes a deixarem a crédito a diversos os carregamentos que para ali mandam”
.

Nesta detalhada memória para o Visconde de Sá da Bandeira, o Sr. João Severiano Duarte Ferreira tudo faz para ser minucioso: como se processa o comércio de Bissau, Cacheu e dependências; a natureza do crédito dos negociantes estrangeiros, em que os negociantes de Bissau e Cacheu chegam a dar como garantia as casas das embarcações, os escravos, tudo o que possuem; as enormes despesas inerentes ao comércio ao longo da costa correm todas por conta e risco dos negociantes portugueses ali residentes, são um sorvedor dos lucros; e temos a exorbitância dos direitos de exportação e consumo, que coloca os comerciantes portugueses em desvantagem com os comerciantes estrangeiros das colónias vizinhas, etc.

E em jeito de despedida, faz sugestões a Sá da Bandeira:
“No meu entender, a mancarra devia não só ser livre de direito de saída, mas ainda estabelecer-se um prémio honorífico para aquele negociante que maior porção dela exportasse nos portos de Bissau e Cacheu. Uma pauta ou tabela de direitos, tal qual deve ser, não é trabalho de poucos dias, nem talvez de um só indivíduo, deve ser muito estudada e meditada, devem-se consultar documentos oficiais e ouvir as pessoas competentes. Talvez este trabalho, entregue a uma comissão em Bissau, vindo os trabalhos dela relatados pelo governador-geral da Província, e finalmente vista e examinada aqui por pessoas entendidas na matéria e conhecedoras das localidades, desse o resultado que se deseja. Deus guarde a Vossa Excelência por muitos anos”.

Não deixa de ser curioso observar que esta situação comercial de ultra dependência é também observada e documentada por outros autores que por aqui andaram um pouco antes e muito depois. Estamos perto de nos despedir, há só mais dois documentos muito curiosos de que vos daremos conhecimento no texto seguinte, o último sobre estes anais do Conselho Ultramarino.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23227: Historiografia da presença portuguesa em África (315): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 1 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23217: 18º aniversário do nosso blogue (9): Carvalhido da Ponte, Rádio Alto Minho, 29/7/2021: em louvor de Otelo, e em memória do Manuel Bento, ex-fur mil, CART 3494, Xime e Mansambo, 1971/74 (Ponte Sor, 1950 - Xime, 1972)


José Luís Carvalhido da Ponte. 

Foto: Rádio AltoMinho (com a devida vénia...)


1. Por mão do Sousa de Castro (historicamente o membro nº 2 da Tabanca Grande,  editor do blogue CART 3494 & Camaradas da Guiné) chegou-nos este texto, da autoria do José Luís Carvalhido da Ponte,  ex-fur mil enf, CART 3494 (Xime e Mansambo,  1971/74)-

O Carvalhido da Ponte é também membro da nossa Tabanca Grande desde a primeira hora.  E tem colaborado na Rádio Alto Minho,  de Viana do Castelo,  com crónicas ou artigos de opinião como ele, que abaixo se reproduz com a devida vénia. Incluído na série "18º aniversário do nosso blogue", é também uma homenagem ao 25 de Abril de 1974 e aos homens que arriscaram a vida e a liberdade para nos devolver a democracia.

Opinião: Por Otelo!



"Em dada altura simpatizaste com a violência dos que não se compaginavam com as ameaças de regresso do 24 de abril, é verdade. E não o devias ter feito. Mas, sabes, um dia, Cristo 'passou-se dos carretos' e chicoteou todos os vendilhões do seu templo."

Recordar é, etimologicamente, o ato (-ar) de voltar a trazer (re-) ao coração (-cord-). Recordar é, pois, um exercício de memória. Mas este como que regurgitar emotivo é uma mentira. Na verdade, o coração atraiçoa-nos a memória. Se o que recordamos nos foi, no ato do desenlace, agradável, revivê-lo-emos com uma prazerosa e, não raro, aumentada nostalgia. Se, pelo contrário, nos magoou, remastigá-lo será sempre um momento de agigantado masoquismo. A mesma praia será morada dos deuses para quem nela pela primeira vez amou, e amaldiçoado inferno para quem no seu mar perdeu um ente amado.

Vem isto a propósito das reações contrárias que a morte de Otelo provocou em todos nós. Uns recordam, tão só, o estratega de Abril; outros aplaudem a justiça, ainda que tardia, de Cronos, que tornou possível a nossa liberdade, reconhecendo-lhe, muito embora, os momentos menos felizes, que até acabou por pagar à sociedade, na prisão.

Faço parte desta plêiade. Reconheço que Otelo foi um homem de excessos. Polémico, pois. Mas pagou, com a prisão, e foi amnistiado pelo estado português em 2004. Mas, mesmo que assim não fosse, foi o Atlas da nossa liberdade. Arriscou. Planeou. Convenceu. Liderou. Conseguiu. E fomos livres, e somos livres e tão livres que todos nós podemos, publicamente, expressar-nos e até podemos opinar sobre o comportamento do Governo e do atual Presidente da República, na gestão deste processo.




Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2012). Todos os direitos reservados.
 [Edição:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mas eu tenho inúmeras outras razões. Hoje partilho uma.

Era o dia 22 de abril de 1972. Eu não tinha ainda 22 anos e estava na Guiné-Bissau, como enfermeiro, desde o início de janeiro desse ano, integrado na Companhia de Artilharia 3494 (CART 3494).

Manhã cedo, o 4º Grupo de Combate partiu para a mata de Ponta Coli, para garantir a segurança à estrada Xime­-Bambadinca. Aguardava-os uma emboscada dos guerrilheiros do PAIGC.

Alguns de nós, que ainda dormíamos, acordamos com os estrondos das rebentações e, logo-logo o Capitão Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques, que nada me era, mandou avançar reforços em, salvo erro, duas unimog’s militares. E que o enfermeiro também teria de ir. Naturalmente.

Chegamos à ponta Coli. Que desolação. Tantos feridos! Mas grave mesmo era o Furriel Manuel Bento, meu companheiro de abrigo, natural de Ponte de Sor, onde deixara uma jovem esposa e uma bébé que nunca mais veria. Ainda gemia, sabia lá eu porquê, de tão desfeito que estava. A cabeça esventrada. Juntei-lhe os bocados e aconcheguei-os no que restava da caixa craniana. Para que nada se perdesse e regressasse ao húmus, o mais inteiro possível. 

Éramos grandes amigos e falava-me da esposa e da filha, que terá hoje 50 anos, e da esperança de as rever, logo que pudesse gozar algum tempo de férias. Não chorei. Só à tardinha, no silêncio ocasional da barraca, que ambos partilháramos, sob uma imensa mangueira. Só à tardinha, ou às vezes, nestes 50 anos, quando o coração me prega a partida e permite a memória.

Abençoado sejas,  Otelo! A tua coragem livrou da morte muitos outros jovens e deu-nos a capacidade de sonharmos para além dos impossíveis. Em dada altura simpatizaste com a violência dos que não se compaginavam com as ameaças de regresso do 24 de abril, é verdade. E não o devias ter feito. Mas, sabes, um dia, Cristo “passou-se dos carretos” e chicoteou todos os vendilhões do seu templo. Ele, que falava de paz e mandava que nos amássemos uns aos outros, não quis pactuar com os que prostituíam os seus espaços sagrados. Disse que um dia voltaria para nos resgatar. Espero que demore um pouco mais a vir, não vão os doutores da lei da nossa modernidade mandar que o prendam, porque um dia foi violento.

Como me magoou a fraqueza titubeante dos nossos governantes que não souberam dar-te as honras devidas, no momento da tua última aventura.


Meadela, 28 de julho de 2021
José Luís Carvalhido da Ponte

Rádio Alto Minho (com a devida vénia)

[Fixação / revisão de texto / negritos e realce a amarelo: LG]

 
2. Nota biográfica, da autoria do Sousa de Castro, sobre o José Luís Carvalhido da Ponte:

(i) ex-fur mil enf, Cart 3494/BART 3873, sediada no Xime e mais tarde em Mansambo (Guiné, dezembro 1971 a abril 1974);

(ii) foi professor e diretor da Escola Secundária de Monserrate, Viana do Castelo;

(iii) tem vários trabalhos literários publicados:


 (iv) membro da Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau e contando com o apoio do Rotary Clube de Viana do Castelo, é responsável pelo trabalho desenvolvido no Cacheu, cidade geminada com Viana do Castelo: muito dedicado à causa humanitária na Guiné-Bissau, para onde se desloca regularmente, tem procurado contribuir para o bem-estar daquele povo, nomeadamente na área da saúde.
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Nota do editor:

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23183: Historiografia da presença portuguesa em África (313): Informações da Guiné na Memória do Tenente Bernardino de Andrade (1777) (Mário Beja Santos)

Carta da Costa Ocidental de África, feita em Amesterdão, 1705


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
É mesmo para ter em conta o que aqui relata o Tenente Bernardino António Álvares de Andrade, a viver há dez anos e oito meses na Praça de S. José de Bissau, escreve uma Memória para um Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor que não sabemos de quem se trata, e dá-lhe informações preciosas sobre a nossa presença na ilha de Bissau, nas nossas relações com os Felupes e o comércio de Cacheu, desce depois a Tombali e ao rio Nuno, sobe à povoação de Geba e dá-nos a saber que um tal José Lopes ofereceu a Sua Majestade domínio senhorio que tinha na Serra Leoa. Várias ilações podemos extrair deste texto: referências a régulos déspotas nas cercanias da ilha de Bissau, pouca lealdade à soberania portuguesa, algum tráfico negreiro; uma admirável descrição dos Felupes de Bolor e da sua lealdade com Cacheu; negócios concorrenciais de Tombali e em Rio Nuno, na Serra Leoa tinham chegado os ingleses recentemente e hostilizavam às claras a presença portuguesa; considerar a povoação de Geba como a de melhores negócios e de plenos recursos, por ali andou acompanhado de administradores da Companhia de Grão-Pará e Maranhão; e a doação de José-Lopes dos seus bens na Serra Leoa ao rei de Portugal (D. Maria I), que seguramente não teve efeitos práticos. Somando estas parcelas caleidoscópicas que podemos ir formando uma certa ideia do que era a nossa presença na Guiné no último quartel do século XVIII.

Um abraço do
Mário



Informações da Guiné na Memória do Tenente Bernardino de Andrade (1777)

Mário Beja Santos

No Arquivo das Colónias, Volume I, Julho-Dezembro de 1917, encontra-se um bem curioso documento que é a Memória que o Tenente Bernardino de Andrade elaborou em 1777 para informar o Governo da Guiné e dos seus recursos. Um dos aspetos mais curiosos do texto é ele revelar como foi cedido a Portugal o território da Serra Leoa. Em rigor não sabemos a quem se dirige, fala sempre no Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor a quem expõe sobre a ilha de Bissau, a terra firme da Guiné, Serra Leoa e Cacheu:

“Divide-se a ilha de Bissau da terra firme da Guiné por um pequeno rio chamado o de Balantas”. Refere algumas das frutas próprias do país (banana, mamão ou papaia e limão azedo). Fala numa viagem de três horas de Bissau a um outro porto chamado dos Brames onde vivem Balantas: 

“Nação indómita, muito traidores, cruéis nos seus procedimentos, vendem poucos escravos, raras vezes marfim e nenhuma vez cera”. Alude ao porto de Bejamita, na ilha de Bissau, onde se compra sal, arroz, algum milho, azeite de chabéu, diz ser povoada de muita madeira boa, para obras navais e de edifícios, aqui se vendem alguns escravos, é abundante dos frutos próprios do país, tem abundância de peixe, caça de toda a qualidade e produz bem a mandioca. “Deste porto para a Praça de Bissau há caminho por terra, em que se gasta pouco menos de um dia, é governada por um fidalgo despótico no seu governo, mas quando este morre herda o sobrinho filho do irmão, e para herdar dá certos donativos ao rei da ilha de Bissau”

Refere igualmente outros lugares como Safim, porto antes de chegar ao de Bejamita.

Está agora a caminho de Cacheu e refere Felupe do Bote, porto abundante de arroz, milho, galinhas, peixe, porcos, azeite de chabéu, diz ser gente de muito má fé, revoltosos, inimigos declarados de franceses e ingleses, admitem nos seus portos as embarcações portuguesas, neles se fazem negócio de mantimento para a praça, mas com muita vigilância, “e cuidado por amor da sua traição”

Fala igualmente de Felupe de Bolor, dizendo que é gentio manso e que se intitulam vassalos do nosso soberano, praticam as mesmas cerimónias que se veem usar na praça de Cacheu, onde vão levar escravos, mas caros, muitos bons porcos e em bom preço. 

“Esta nação tem por costume ser obrigada, nem lhe ser penoso, quando sucede haver alguma diferença em Cacheu com o gentio do seu continente, logo que ouvem a peça de rebate largam as suas casas e nas suas próprias embarcações, e com as suas armas, nos vêm auxiliar e ajudar à defesa da Praça. Esta nação pouco cultiva, mas são as que mais vendem e aonde se acha mais abundância de mantimentos; porque até as próprias mulheres metidas em embarcações, sem decência alguma em seu corpo, andam comprando de porto em porto; elas são as mesmas que remam nas suas embarcações, as que limpam o arroz, e os maridos só servem para o venderem, e para lhe defenderem a terra dos invasores de outros bárbaros, que lhe acometem”.

O Tenente Bernardino António Álvares de Andrade refere agora a terra firme de Guiné e o caminho de Serra Leoa. Começa em Tombali e fala na venda de escravos, cera e marfim, esta nação Beafada vai vender aos ingleses e franceses que frequentam o rio de Nuno. O porto de Tombali tem abundância de arroz, milho, galinhas, peixe e frutos do país, tem muita caça e muita vaca. Ficamos a saber que o rio de Nuno é povoado pela nação Beafada e alguns Fulas. Nalguns portos deste rio se faz negócio abundante em escravos e marfim, mas caro, pela frequência dos navios estrangeiros. Um deles chama-se porto de Santa Cruz e ainda há alguns vestígios de uma população portuguesa, e nela se adora uma cruz, há cristãos dispersos sem pasto e espiritual. Deste porto faz-se caminho por terra tanto para a Serra Leoa como para Geba. O Tenente Andrade refere o Porto dos Ídolos, povoado de gentio mouro preto, aonde vão carregar franceses e ingleses os seus escravos. No princípio do ano de 1775 principiaram os ingleses de Liverpool a fortificar uma casa de negócio neste porto, para o que tinham levado artilharia e materiais precisos. E adverte na sua memória: 

“Os ingleses não querem dar passagem às nossas embarcações, e quando veem que os capitães são frouxos, e lhe não sabem dizer que aquele continente é conquista descoberta pela nação portuguesa e a esta doado pelos nacionais do mesmo país o direito, que tinham dele ao nosso soberano”.

Fala da viagem da ilha de Bissau para a povoação portuguesa de Geba, demora de quatro a cinco dias sem perda de tempo. 

“Todo o gentio deste sertão estima a correspondência dos nossos nacionais que a eles vendem os escravos, cera e marfim que têm. A povoação de Geba é grande, tem um só padre. O governo desta povoação intitula-se capitão Cabo que se costuma dar este governo aos filhos da terra, e os nacionais do mesmo país, ainda que cristãos, são muito revoltosos, levantados, sem fé além de Deus e sem obediência à de Sua Majestade. É esta a melhor povoação de negócio de Guiné, farta de mantimentos da terra, muito povoada de matos de boas madeiras, cercada de muitas povoações e aldeias de mouros pretos, Soninqués e Fulas. Segue-se o mesmo rio Geba sempre caminhando a leste oito dias de viagem, no fim destes se dá em uma cachoeira por onde não pode passar a embarcação, mas em pouca distância é navegável, e dizem os naturais daquele país que, caminhando-se pela margem daquele rio, se dá em uma grande lagoa, e que desta despede outro rio também de água doce. Esta é a informação mais comum, e certa, que achei em as repetidas jornadas que fiz por terra, e pelo mesmo rio em serviço de Sua Majestade, acompanhando aos administradores da Companhia de Grão-Pará e Maranhão na condução das remessas que se lhe faziam para a dita casa”.

E despede-se do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor referindo a doação que fez José Lopes da Serra Leoa: 

“No ano de 1760 do feliz reinado do fidelíssimo rei D. José, doou José Lopes em presença de todos os seus parentes e cabeças daqueles povos e de todo o povo e por parte do nosso soberano o Capitão Cabo António Godim Sanches e Frei Fernando da Feira e outros se celebrou a escritura de doação para todo o sempre do domínio e senhorio que ele tinha da Serra Leoa, para que Sua Majestade houvesse por bem fortificá-la e fundar nela igreja e convento e tudo mais que fosse do seu real agrado. Tomou posse em nome de Sua Majestade António Godim Sanches e foi remetida a esta Corte pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. É do que posso informar a Vossa Excelência pelas notas que tenho adquirido em dez anos e oito meses de actual serviço na Praça de S. José de Bissau”.
Capturados e vendidos numa feitoria do litoral
Sónó de bronze com braços laterais e figura de um cavalo na extremidade superior, atribuído ao grupo soninquê. 1,23m. Acervo do Museu Nacional de Etnologia (Lisboa)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23164: Historiografia da presença portuguesa em África (312): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23146: Historiografia da presença portuguesa em África (311): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
António Carreira é um investigador incontornável, esta obra sobre as Companhias Pombalinas é absolutamente indispensável para o estudo de uma época. Enquanto lia quer o conteúdo da investigação quer o precioso acervo documental em anexo, a mente voava para um dos mantras do PAIGC referente à unidade Guiné - Cabo Verde, quase um dogma de fé, seriam povos afins, com a mesma proveniência. Hoje sabe-se (e na época igualmente já se suspeitava) que esta argumentação era por demais duvidosa. Como se lê no livro de Carreira, o tráfico de escravos proveniente da costa africana abarcava uma enorme região, e ponho já de parte o tráfico negreiro angolano que usava Cabo Verde como ponto de passagem. Fica igualmente claro que a vida nestas praças (Cacheu, Farim, Ziguinchor e Bissau, sobretudo) era um tumulto permanente e daí a citação que Carreira faz de pareceres do Conselho Ultramarino em que se diz claramente que sem o tráfico de escravos da Guiné não se podia manter Cabo Verde e que quanto ao título usado por Sua Alteza de Senhor da Guiné, ele fazia-se à custa da reputação do monarca, havia que pagar um tributo ao rei negro de Cacheu. Se subsistissem ainda dúvidas sobre a precariedade da presença portuguesa nesta costa de África, no século XVIII, tome-se em conta o que dizem os documentos.

Um abraço do
Mário



Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (2)

Mário Beja Santos

Numa fase de últimas pesquisas para dar por concluído o trabalho de investigação de um próximo livro que terá o título de Guiné, bilhete de identidade, senti curiosidade em folhear publicações sobre temas que à partida me pareceram pertinentes. É dessa relação de leituras espúrias que aqui procedo a alguns comentários. Chegou a oportunidade de ler uma boa investigação de António Carreira intitulada As Campanhas Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro, a edição é do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1969. Dá-nos generalidades sobre as companhias portuguesas de comércio e tráfico de escravos.

Na continuação da leitura do livro de António Carreira, e depois de já termos a génese e o enquadramento socioeconómico em que decorrer a criação de tais companhias, o autor avança um conjunto de informações sobre a Companhia de Grão-Pará e Maranhão, por exemplo o número de escravos saídos da Costa Africana, a frota utilizada, como se processava o transporte de escravos e quais as mercadorias e géneros na viagem de retorno. Faz também uma análise da escravidão como instituição natural nas sociedades africanas e os diferentes modos como se obtinham os escravos nestas micro-sociedades. A Companhia do Grão-Pará e Maranhão foi construtora da fortaleza de S. José em Bissau, tinha ali enormes armazéns para escravos, e Carreira diz que ainda ali viu grossas argolas de ferro embutidas na parede e nas quais acorrentavam os escravos, enquanto aguardavam embarque. E diz que noutras casas de Bissau, nos primeiros anos do século XX, ainda se viam argolas desse tipo colocadas nas paredes dos armazéns.

As suas notas sobre a concorrência estrangeira no tráfico de escravos são relevantes, ficamos a saber as suas proveniências e os seus destinos. Lembra-nos que a partir de 1641-1642 quase todas as informações, pareceres e comunicações do Conselho Ultramarino aludem a uma decadência das Praças de Cacheu e Ziguinchor, Farim e Bissau, sobretudo. Reconhecia-se a gravidade da situação e as possíveis consequências, como lembra num parecer o Conselho Ultramarino em 1 de junho de 1647: “Faltando Guiné, não há que fazer conta de Cabo Verde nem de todas aquelas ilhas, por Cabo Verde se não pode sustentar sem Guiné”.

A vida nestas Praças era atribulada, persistiam as tentativas de assalto. Por exemplo, Cacheu resistia com 420 vizinhos, era defendida por uma fraca tabanca de estacaria de mangue, constantemente atacada pelo gentio. O Conselho Ultramarino dirige-se ao monarca em termos duros e concretos: “E ultimamente Vossa Alteza intitula-se Senhor da Guiné, não tendo em toda aquela costa mais que uma pequena parte de terra e o pior é que a conserva Vossa Alteza à custa da sua reputação, porque pagam tributo ao feudo ao rei negro por mão do Capitão de Cacheu”. Carreira procura fazer a contabilidade do tráfico de escravos e diz que dos comprados 19.935 saíram da área compreendida entre o rio Casamansa (talvez alguns mesmo da Gâmbia) e a Serra Leoa. Guiné – Cabo Verde – Serra Leoa (71%) e 8.143 dos reinos de Angola – Luanda – Benguela (29%).

Em 1759 foi criada uma outra companhia, a de Pernambuco e Paraíba, associada à de Grão-Pará e Maranhão, aglutinando estas duas empresas todo o comércio geral e de escravos para o Nordeste brasileiro. Os escravos das ilhas de Cabo Verde, escreve Lucas de Senna em Dissertação sobre as Ilhas de Cabo Verde, Manuscrito azul nº 248, da Academia das Ciências de Lisboa, vêm todos da costa da Guiné, Bissau, Cacheu, Serra Leoa e outros. A compra deles faz-se com pólvora, espingardas, espadas, aguardente, panos, missanga e outros géneros. É avaliado cada escravo ou escrava por certo número de vacas. Estas ou são gordas ou são magras. Cada vaca gorda computa-se por certo número de pólvora, espingardas, etc.

Carreira procede a uma descrição da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba e dá-nos um curiosíssimo quadro das etnias de escravos levadas para o Brasil. Diz que entre o rio Gâmbia e o rio Casamansa existiam as seguintes etnias: Felupes, Mandingas e Soninqués, Jalofos e Fulas. A partir da Gâmbia para sul, era a zona ótima para a compra de escravos. Esta abundava e o negócio tinha tradições muito antigas. Entre o Casamansa e o Cacheu deveriam ter embarcado para o Brasil Banhuns, Cassangas, Felupes, Baiotes, Balantas, Brames, Papéis e Caboianas. Pelo porto de Bissau devem ter embarcado Papéis da própria ilha, Balantas, Manjacos de Pecixe e da zona continental, também Bijagós, Beafadas, Nalus e presumivelmente Mandingas, Soninqués e Pajadincas, trazidos do interior. Diz Carreira que para termos um melhor entendimento da organização socioeconómica, política e cultural destas etnias, as devemos classificar em dois grupos. No primeiro, há que situar Felupes, Baiotes, Papéis, Brames, Manjacos, Caboianas ou Cobianas, Balantas, Banhuns, Cassangas e Bijagós, dotados de economia de subsistência, aproveitando frutos da palmeira, criadores de gado bovino, alguns deles ligados à tecelagem de panos de algodão, todos eles habitando num território em chãos, uns dependentes do poder do régulo, outros não, algumas dessas etnias têm na direção uma sacerdotisa, os Balantas dependem do Conselho dos Grandes, são praticamente todos animistas, posteriormente ao século XVIII os Banhuns e os Cassangas iniciaram um processo de islamização. Num segundo grupo Carreira coloca Jalofos, Mandingas, e os subgrupos Soninqués e Pajadincas, Fulas, Beafadas e Nalus, têm em comum a economia do milho, arroz e palmeira do azeite, criação de gado bovino, praticam artesanato e dedicam-se ao negócio ambulante.

Diz Carreira que a influência decisiva da cultura e da religião muçulmanas só se veio a concretizar em meados do século XVIII e daí por diante de forma avassaladora. Quanto ao problema linguístico, há etnias como os Jalofos, Mandingas e Fulas que se enquadram nas línguas sudanesas e os outros nas línguas aglutinantes definidas pelo uso de prefixos. Carreira também refere o tráfico de escravos nas rias do Sul, do rio Nuno à Serra Leoa, refere as etnias, perspetivas.

Chama-se a atenção do leitor que existe no Boletim do Arquivo Histórico Colonial, volume I, 1950, um importante artigo intitulado Companhia de Cacheu, Rios e Comércios da Guiné, documentos para a sua história, por Cândido da Silva Teixeira, António Carreira refere-o na sua bibliografia. E de seguida vamos ver o que é que o Arquivo das Colónias nos oferece sobre a Guiné, e assim termina esta expedição a fundos de gaveta.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23126: Historiografia da presença portuguesa em África (310): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (1) (Mário Beja Santos)