Mostrar mensagens com a etiqueta Comandos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Comandos. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14965: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (14): Contos da Guiné: Ansumane, o caçador de crocodilos (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando)

1. Publicamos hoje o conto "Ansumane, o caçador de crocodilos", enviada, a nosso pedido ao Blogue, pelo camarada Virgínio Briote (ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67), em mensagem do dia 28 de Julho de 2015:

Contos da Guiné

Ansumane, o caçador de crocodilos*

A inquietação que sentia contrastava com a calma daquela noite de lua cheia nas margens do rio. Boa noite, patrão, o Braima, camisa a arrastar pelo chão, gorro de lã na cabeça, cachimbo há que tempos nos dentes. Braima Dáfé, pés grandes, seco, resistência incomum, dia a dia a remar a canoa entre as margens, levando a mancarra que os nativos tinham para vender aos comerciantes. Patrão, tem canoa ali na margem, quer passar?


Rio acima, a brisa fresca e mansa a dar-lhes, o chlap chlap do remo, a agitação a dissipar-se, pouco e pouco a vida a ficar para trás até desaparecer, dobrada a curva do rio. E logo ali, entre os tufos das palmeiras, duas árvores despidas, encostadas uma à outra, ramos entrelaçados de tal forma que àquela distância, lhe pareciam duas pessoas abraçadas uma à outra, uma delas com um braço erguido como se pedisse auxílio ao céu. O que é aquilo, Braima? Eh, patrão, aquelas árvores são pessoas! Sim, patrão, há muito tempo.

Nem tinha ainda nascido o avô do meu avô. Quando as mulheres adúlteras eram castigadas com o desprezo, às vezes até com a morte. No tempo em que havia respeito pela honra, não era como agora. Pois nesse tempo, uma bajuda chamada Kadi foi prometida ainda menina ao poderoso Bacar Seidi, um velho rabugento já com oito mulheres.

Kadi a crescer, o coração fraco a palpitar começou a inclinar-se para Ansumane, caçador de crocodilos, o mais famoso da região. Ansumane correspondia, queria mesmo casar com ela, mas o pai já a tinha prometido a outro, mais dotado que o caçador, a coragem como único dote. Olhavam-se com aqueles olhos que toda a tabanca via, nos batuques Kadi a dançar, seios para cima e para baixo, as ancas fartas, os olhos de Ansumane. Ele bem gostava de satisfazer o seu corpo, ela de casar com ele, ai dela, tinha que cumprir a palavra de seu pai, casar com Bacar Seidi.

Passaram tempos, muitos mesmo até que um dia, com grande desgosto de Ansumane, Kadi foi entregue a Bacar Seidi, e outras luas passaram. Ansumane sem conseguir desviar-se para outra, rodeava a morança, procurava nem que fosse só vê-la, os dias a passarem-se, ele sempre a magicar como a havia de convencer a ser dele, a vontade de caçar crocodilos a passar. O homem dela, conhecedor da amizade que os unia, vigiava as redondezas, nunca se sabe. Até que um dia as febres tomaram conta de Bacar Seidi. Ansumane, na sua ronda nocturna como era costume, viu a adorada Kadi, ao ar fresco da noite na varanda. Kadi, como um assobio baixo, ela a correr, o impulso do coração mais forte que o chamamento dele, para os braços do amado. Tens que ser minha, não posso Ansumane, eu sou do Bacar, ele é o homem a quem Alá me entregou! Mas ele é velho e tu não gostas dele, tu gostas de mim, eu sei! É verdade, Ansumane, mas ele é o meu homem e eu a sua mulher, Ansumane a apertá-la mais contra o seu peito, mãos nervosas nos redondos de Kadi, aquele corpo jovem, ela a estremecer, um delírio, ele a insistir Kadi, vem comigo, fujamos, tenho a canoa na margem, se atravessarmos pela bolanha depressa chegamos! Vamos Kadi, para um lugar que ninguém nos conheça, onde o teu homem nunca nos alcance. Kadi mesmo junto ao coração dele, a tentação mais forte, o corpo a palpitar, Ansumane sim, é um homem jovem, viçoso, meu homem é velho.

Mão na mão, a passos largos na estreita vereda, a serpentear pelas palhotas, a bolanha, a seguir a margem do rio. Junto à sebe da purgueira, o sussurrar da brisa agitou as ramagens do arbusto. Não contavam, estremeceram, abraçaram-se como se estivessem mais protegidos. Acharam que não podiam esperar mais. E no silêncio da noite, deram-se um ao outro, as estrelas a brilharem como testemunhas. Ficaram esquecidos, a onda de loucura passara, Kadi em si, o erro agora sem remédio, não podia voltar para o seu homem, tinha mesmo que fugir com Ansumane. Vamos depressa antes que Bacar dê pela minha falta, vamos.

Na morança, Bacar há muito que despertara a arder em febres, se tomasse um chá de buco talvez ficasse melhor, diria a Kadi que lho preparasse. Kadi, Kadi, a voz dele a voltar para trás. Ergueu-se um pouco para ver a esteira de Kadi, devia estar a repousar, não a viu, Kadi, outra e outra vez, o eco sem resposta. Onde estaria Kadi a esta hora que ninguém está fora das moranças, obra de Ansumane, seria? A cólera deu-lhe forças, levantou-se, a espada de gume curto na mão enrugada, correu para o rio, o que as pernas deixavam, um pressentimento estranho.

Não queria acreditar, as febres, Kadi mão na mão de Ansumane a caminho do rio a dois passos. Não conseguindo alcançá-los, Kadiii, um grito áspero de gelar a chegar até eles. Estacaram, tolhidos sem poder mexer-se! Que Alá os livrasse da vingança no fio da espada, tão cortante como a voz que os fizera deter, incapazes de mais um passo que fosse! Morrer! Não, ela não queria morrer às mãos de Bacar, os braços a rodear o corpo forte de Ansumane, mais protegida da fúria de Bacar. Morrer! Não, ele não queria, nem a morte de Kadi que agora mais que nunca era sua. E erguendo-se para o céu pediu a Alá que os protegesse.

A prece foi ouvida. Quando Bacar já a curta distância, a espada no ar prestes a abater-se sobre as cabeças, Alá livrou-os da morte, transformou-os em árvores! Foi assim que um pedaço de pau encontrou a espada de Bacar! Dizem que hoje, tantas luas passadas, em noites de tempestade ainda escorrem gotas de sangue daquele lanho já seco pelos tempos!

Quando Braima acabou a história, fixou melhor as estranhas árvores, a ver se via nelas a infeliz história de Ansumane, o caçador de crocodilos, a fantasia das palavras de Braima ainda no ar. O silêncio daquela noite brilhante foi subitamente quebrado por um uivo, sinistro de um cão. Braima respondeu com um prolongado eh! eeeeh! E estalou repetidamente com a língua… Quando os cães uivam é sinal que algum mal está para acontecer! Vamos embora, patrão, é melhor! Duas remadas fundas viraram a canoa em direcção à vida.

Uma lenda que ouvi lá.

VB
____________

Notas do editor

(*) Este conto havia já sido publicado, na I Série do nosso Blogue, em 17 de Outubro de 2005 no poste > Guiné 63/74 - P223: Tabanca Grande: Virgínio Briote (ex-Alf Mil Comando, Cuntima e Brá, 1965/67) e a história de Ansumane, caçador de crocodilhos (conto tradicional)

Último poste da série de 1 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14957: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (13): O meu amigo e camarada Joaquim Jorge, da CCAÇ 616 / BCAÇ 619 (Empada, 1964/66), que vive hoje em Ferrel, Peniche, e que eu não vejo há 50 anos (João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66)

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14951: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VIII Parte): "Hotel Portugal"; "Um guia" e "Artigo 4.º do RDM"

1. Parte VIII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 11 de Julho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - VIII

Hotel Portugal


A comunidade cabo-verdiana estava muito presente na Guiné, não só em número como também na posição social que ocupavam. Evitavam misturar-se com a tropa e distinguiam-se do resto da população guineense, embora muitos estivessem envolvidos no processo de insurreição, uns mais activamente que outros naturalmente. Tinham os seus pontos de encontro, quase exclusivos, normalmente em casas de familiares ou amigos e gostavam de se manter assim.

A casa da Dora, chamemos-lhe assim, nas margens do bairro do Cupilom, a caminho de Santa Luzia, era um exemplo desses. Apareciam frequentemente recém-chegados de Santo Antão, de S. Vicente e das outras ilhas. Juntavam-se lá, qualquer coisa servia de pretexto para conversarem e enquanto bebiam umas cervejas abanavam-se ao ritmo das mornas e coladeras1 do gira-discos.
Conheceu a Dora por intermédio de um amigo comum cabo-verdiano e, de vez em quando, passava por casa dela, encarando os olhos desconfiados de alguns dos presentes.

Bissau não tem nada para fazer, só sarilho, mais nada, dizia o empregado de mesa do restaurante do Hotel Portugal. Com a sua idade quem não estava aqui, sei eu quem era!

Senhor Gabriel, acho que vou até ao cinema, à UDIB2, tenho que me despachar senão já não vejo o princípio do filme. Contas feitas, o cinema logo ali, bilhete na mão, escadas acima que gostava de ir para o balcão, ver o filme e lá de cima via-se melhor.

Documentários, as inaugurações no Império Português com o Pedro Moutinho, o Fernando Pessa, uma curta antiga para cumprir programa, e começa Zorba, o Grego, com o Anthony Quinn a estrelar.

O filme a decorrer, sempre a mesma música, uma seca, se calhar até é um bom filme, o movimento um bocado para o lento, a madeira da cadeira incómoda de mais para as costas, os joelhos todos encolhidos, nem podia estender as pernas, no intervalo se isto não acelera vou mas é embora. Não esperou pela segunda parte, recolheu a Brá arrependido de não ter ido até à casa da Dora.

Da metrópole chegara há poucos dias a Brá um batalhão, um dos primeiros de fardas verdes.
Nessa noite do Zorba ouviam-se explosões ao longe, para os lados de Jabadá, do outro lado do Geba, flagelações que se estavam tornar diárias e que não despertavam qualquer interesse, para além da curiosidade inicial, tipo que estrondos são estes, a quem estivesse em Bissau.

Quando estava a entrar no sono acordou com ruído de vidros a partirem, barulhos de vozes logo a seguir e minuto depois mais nada, o silêncio. Deixou-se estar, afinal não era nada com ele.

Na manhã seguinte, como era hábito os comandantes de grupo reuniram-se no gabinete do Capitão Rubim. Esta noite, em frente aos quartos dos sargentos, alguém lançou uma granada ofensiva para a frente de um jeep que passava, começou o capitão. Alguém sabe quem foi? E por que havia de ser alguém nosso, meu capitão?

Tempos depois veio a saber que um dos jovens comandos, talvez com insónias e farto da paz podre dentro do aquartelamento, mexia-se e remexia-se na cama, dormir é que não conseguia. Sabe-se que as insónias nem sempre são boas para as ideias. Às escuras tirou uma granada ofensiva que tinha debaixo da cama, pegou num fio da mesa de cabeceira e, sorrateiro, saiu para a rua. Olhos para um lado e outro, rastejou para a valeta, entre o passeio e a rua pouco iluminada. Deitado, colocou a granada com o fio atado na cavilha, por baixo de uma pedra solta na sarjeta. Ao atravessar a estrada para prender a outra ponta do fio, viu faróis de viatura a aproximarem-se. Escondido na valeta, esperou que passassem. Depois, completou o serviço. Regressou ao quarto, fechou os olhos e esperou que alguma coisa acontecesse.

Minutos depois, um jeep com oficiais do jovem batalhão foi sacudido por uma explosão. Vidros das janelas voaram em estilhaços, saltou pessoal de todos os lados, houve quem visse um capitão de cuecas com capacete na cabeça e Walter na mão a dizer que Brá estava a ser atacado. Mantinha-se assim tudo bem, o jovem batalhão desperto para as incertezas da guerra bem com o mau ambiente entre eles.

Era no Hotel Portugal que se juntavam para jantar, desde há uns tempos. O esforço era muito e a comida na messe não abria o apetite. Tinham uma mesa reservada para os quatro, o Vilaça, o Toni Ramalho, o Gião, o narrador desta história, e por vezes um ou outro camarada.


Alf Mil Vilaça (de costas), Fur Mil Valente de Sousa, ??, Alf Mil Gião, Alf Mil V. Briote, Fur Mil Marques de Matos e Alf Mil António Ramalho. Hotel Portugal.


Quando havia vaga naquela mesa do restaurante do hotel, Carlos3 sentava-se com eles, fazia grupo. Carlos nascera de um parto prematuro, um nascimento difícil, tinha ido lá cima e vindo outra vez, o obstetra a explicar, orgulhoso do serviço, com as notas numa mão e a outra a fazer festas na carita do recém-nascido.

Infância e adolescência protegidas, a mãe sempre ao lado dele, o pai a ganhar dinheiro para manter a mulher viçosa, bem tratada, limpezas de pele num instituto lisboeta com fama para massagens nas pernas, coxas, cintura, tudo a pagar ao mês, o filho delicado nas mãos para se entreter, quando o bebé abria as goelas passava-o para a ama.

Nunca foi um aluno famoso, mas andara para a frente, até ao 7.º ano. E o pai ganhara experiência, com o decorrer dos anos evoluíra de vendedor de tecidos na praça de Lisboa para um industrial respeitado, arranjara conhecimentos e, sabe-se como as coisas são, conseguiu incorporá-lo na Força Aérea, já que livrá-lo da tropa não tinha sido possível.

Apreciador do belo sexo, o respeitável papá conhecera numa tabacaria do Rossio uma jovenzinha a rondar os 18, magra, engraçadinha, a prometer melhorar com o tempo. Iniciada uma relação mais íntima, alugou-lhe um pequeno estúdio na Infante Santo e arranjou-lhe um emprego, melhor que o da tabacaria, ao balcão de um estabelecimento novo, muito conhecido no fabrico e comércio de todo o tipo de artigos para bebés.

Com o novo emprego, ganhou uma alimentação mais cuidada, outros cuidados também, as últimas novidades em cima e dava nas vistas, o corpo arredondara onde era preciso e, claro, parava os atentos e também muitos distraídos.

Carlos evoluiu normalmente, embora com algum atraso num ou noutro aspecto que o pai, atento ao seu único filho, achava estar na altura de corrigir. Dias depois do Carlos ter feito os 18 anos levou-o a jantar ao Estoril, ao casino, fizeram a digestão pela Rua Direita de Cascais, e depois meteram-se no Alfa Romeo, de regresso a Lisboa.

Pelo caminho foi-lhe contando como se iniciou. A mim aconteceu-me uma boa.
No Bairro Alto, tinha 16, não é coisa que se esqueça, num salão enorme, elas todas sentadas à volta, umas a ler revistas, outras a fazer malha, sentei-me, envergonhado, elas todas a olhar para mim, aquela é mais nova, mais jeitosa, não sabia como fazer, sem eu saber como, ela pôs-se a pé, pegou-me na mão, um corredor sombrio para um quarto, comecei a tirar a roupa, ela também, só ficou com o sutiã, deitou-se, eu ao lado dela, encosta-te a mim, estás à espera de quê, eu sem saber bem o que fazer, lá me cheguei, a renda a fazer-me cócegas na cara, o trabalho foi todo dela, puxou-me para cima, abriu as pernas, que pena eu não estar de fora a ver, lembro-me de pensar, a mão dela em mim, toda molhada, parecia que tinha posto manteiga, gargalhadas do pai e do filho. Não somos de pau não é Carlos?

Almirante Reis acima, estacionou na Gomes Freire, um prédio de vários andares, subiram no elevador, dedo na campainha, uma menina de gosto a abrir-lhes a porta, a jovem a preparar-lhes um uísque, o sapato de tacão alto, a racha da saia, um piscar de olho, desenrasca-te Carlinhos, agora é contigo, vai correr tudo bem, a menina à frente a abrir-lhe a porta, Carlos de pé também, até logo, paizinho!

O Carlos, acabado o curso na Força Aérea foi mobilizado para Guiné, para a Base Aérea de Bissalanca4, nos arredores de Bissau. O pai e a mãe despediram-se dele no aeroporto com as cenas do costume. Telefonavam-lhe uma vez por semana, queriam saber tudo, como era a guerra, se era tão mau como alguns diziam, se era bem tratado, se tinha muitos amigos, como se chamavam, o Carlinhos, cheio de saudades, estou morto por te ver, mamã! Mal o deixaram foi de licença à metrópole.

Mais de um mês depois, quando regressou ao Hotel Portugal, os quatro da mesa pararam os garfos e facas, ficaram-se a olhar para aquela moça branca, de cabelo louro de fogo pelas costas abaixo, a fazer-lhes lembrar a Brigitte Bardot, amarrada ao braço do alferes Carlos Morais5.
____________

Notas:
1 - A coladera é uma morna mais rápida. Se se tocar uma morna e acelerar fica uma coladera. Melodicamente são a mesma coisa, embora falem de coisas diferentes. A letra da morna fala de amor perdido, a coladera fala de alegria. O funaná fala de mensagem. Conta-se que o termo vem do século IX e deve o nome a dois músicos, um chamava-se Funa e o outro Naná. Alguns relatam que não era muito bem vista pelas autoridades coloniais de então, que a chegaram a proibir.
2 - União Desportiva Internacional de Bissau
3 - Nome fictício
4 - Base Aérea 12
5 - Nome fictício

************

Um guia

Tinha sido apanhado numa emboscada que a tropa fizera junto a Mantida.
Ouvira um tuga, branco de barba preta, dizer a outro, amarra o gajo, amarra-o já, eu vou-me àquele. Nem sentira as cordas que lhe prenderam nas mãos, que as pernas não precisavam. Deitaram-no numa maca, camisa e calças em sangue, atordoado, só se lembrara que caíra para trás, sem forças.

Deram-lhe uma injecção no braço, nem sentira, só vira a seringa na mão do soldado de cigarro na boca, a cinza a cair por ele abaixo. Adormecera logo, mal o transporte arrancou. Em Mansoa, os olhos fitos no tuga, não dava respostas às perguntas, um capitão a dizer, que venha outro, e agora?

As barracas de Uália foram reconstruídas a nordeste da antiga, estão lá 50 guerrilheiros mais ou menos assim: Maonde tem 12, José Camala 13, Imbunhe 13 também e Bacar Seidi tem 12 homens.

Exausto de febres e dores no corpo todo, fugia com os olhos de vergonha dos dois brancos da polícia e do balanta traidor que falava a língua dele. Ele percebia o que falavam, sabia português, andava na escola de Morés, fazia ditado e até já escrevera redacção. Armas, cada guerrilheiro tem uma. No acampamento tem mais 2 metralhadoras ligeiras, escreve Picão6, deixa o cigarro para depois, temos mais que fazer, escreve lá, têm mais 2 bazucas, não, escreve antes, 2 lança granadas-foguete e 1 morteiro, é de 60, de 80 ou quê pergunta ao tipo anda! De 82, de 82 escreve Picão.

Vergonha na cara, tens que ter, não mereces estar agora com os camaradas, deixaste para trás o Baldé, o Camará, o Injai, todos os do acampamento. Que vais fazer agora que falaste? Tinhas aprendido com os outros a contar coisas verdadeiras, as que menos importavam, com muitas outras falsas, de assuntos mais importantes do Partido.

Mas não aguentara, nunca pensara que pudesse ser deste modo, se os camaradas soubessem haviam de lhe perdoar. Mesmo assim, não estava certo, o melhor agora é contar tudo direito, fazeres-te amigo deles, talvez até mais tarde ficar milícia ou tropa, quem sabe?

Dispõem, escreve Picão, de alguns abrigos individuais, a toda a volta, mas para homem deitado, no cruzamento de caminhos uma sentinela, uma armadilha no trilho Bambaia-Gussará, que o prisioneiro sabe evitar, escreve, já está, Picão?

Continua, a população está afastada das casas de mato, para Oeste, está desarmada.

Com menos dores, um dia pusera-se a pé na enfermaria. Mal o viram a andar, pegaram nele, outra vez, muitas viaturas a caminho. Falara antes de partir com um tuga, com outro balanta a fazer de intérprete, repetira tudo direito.

O comandante tuga disse que se os leva direito ao acampamento tudo vai correr bem, se não leva não vai ser bom.

Tinham partido nos carros de Mansabá quase até Demba Só, meteram para dentro a pé, sempre a andar até à bolanha, passaram o sítio mais estreito e pouca água também, andaram outra vez muito até se sentir fraco e pedir para parar. O comandante tuga veio ver. A olhar, mexeu nas cordas, a perguntar ao soldado, tão baixo que mal se ouviu, parar?

Desconfiado, sempre a olhar, os olhos dentro dos óculos amarrados com uma fita à cabeça, coisa boa não deve ser. Mas ele foi lá para trás, o que foi fazer não vi. Chegou outra vez, falou no crioulo dele, se estava melhor, sim, já pode andar outra vez, começámos a caminhar até chegar lá, ao acampamento. Deixaram-me cá fora, amarrado ao soldado, abrigado numa palmeira. Depois, a tropa entrou a fazer fogo nas casas.

Na volta, a corta mato, rebentamentos muito grandes em Uália, disseram que era da artilharia dos tugas, quase no mesmo trilho da caminhada para o acampamento. Quando pararam, sol alto, os aviões a brilharem ao sol, a abanarem as asas, a irem embora, o outro avião pequenino, quase branco não saía de cima, o tuga com quico grande, com um rádio, como uma banana grande, a falar.

Depois retomámos o caminho até Demba Só onde estavam muitas viaturas, sempre a andar até Mansabá.
____________

Nota
6 - Nome fictício

************

Artigo 4.º do RDM

Os acontecimentos na Associação Comercial alteraram o ambiente na cidade. A desconfiança entre a população negra, cabo-verdiana e a tropa, os nervos crispados, a porcaria mais ou menos submersa, subiu tudo. Levava-se uma vida normal, mas por toda a cidade irrompiam pequenos incidentes e à noite viam-se poucos civis. A PM aumentara os patrulhamentos. O PAIGC, como lhe competia, aproveitava e tirava dividendos.

Nos dias a seguir ao sucedido choveram exposições no Palácio, sete, dissera, todo cheio de importância o Ajudante de Campo do Governador. O General Schulz recebera individualidades civis, apresentara desculpas formais à Associação Comercial, e aos finalistas prometera pagar os prejuízos e tomar providências enérgicas, o habitual nestes casos.

Dias antes, a PM fez o relato dos acontecimentos e endereçou ao Comando Militar a participação contra o Alferes Godinho e um grupo de militares que não conseguiu identificar. Inquirido o Godinho por um capitão, responsável pelo levantamento do “competente auto de averiguações”, sobre quem foram os militares que o acompanharam na perturbação da ordem pública, o mesmo terá respondido que tinha bebido várias cervejas, que mal se lembrava do que tinha ocorrido e que mesmo que se lembrasse não denunciaria ninguém.

Quando tiveram conhecimento desta participação, os camaradas do Godinho decidiram responsabilizar-se e, individualmente, em dias diferentes, dirigiram-se ao QG, procuraram o capitão e declinaram as respectivas identificações.

O Capitão Rubim interrompeu os desenhos que estava a fazer. Começou por lhe dizer que as saídas para a cidade estavam proibidas. Depois, pediu-lhe explicações.

Que se tudo tinha acontecido como se contava, não tivesse dúvidas que haveria consequências. O Governo da Província estava a ver o programa de pacificação a andar para trás, que aguardasse o auto de averiguações, que era tudo, chutara o capitão, cada vez mais longe dele e dos outros.
Naquela mesma tarde deu-lhe ordem para preparar o grupo para ir para o Xitole. Para quê? Bater a zona, procurar o IN, dar-lhe caça, para que é que havia de ser? Mantém-se lá e aguarda instruções. Mais alguma questão?

Grupo antes de embarcar no Dakota, rumo a Bafatá

Embarcaram num Dakota até Bafatá, uma coluna auto levou-os para Fá Mandinga, onde passaram a noite e no dia seguinte apanharam uma coluna de reabastecimentos para o Xitole.
Até Bambadinca o percurso foi-se fazendo. Depois, até ao Xitole foram sempre debaixo de chuva, os quilómetros nunca mais acabavam, as viaturas civis que integravam a coluna metiam-se na lama até à carroçaria e as viaturas militares GMCs, Mercedes e Unimogs atolavam-se constantemente.


De Bambadinca para o Xitole, atascamentos sucessivos.
Fotos de Torcato Mendonça, com a devida vénia.

Chegaram ao rio era noite cerrada. O Corubal7 parecia o Atlântico quando o atravessaram. Quando entraram no Xitole deitaram-se. No dia seguinte começou o inventário dos reabastecimentos. Estavam reduzidos a metade, alguns destruídos pelas águas, outros desapareceram ninguém sabia ou queria dizer como.

Escreveu, nessa altura, no seu diário, um dos participantes:

"Em 11 de Outubro, o nosso grupo deslocou-se de Bissau para Bafatá num Dakota. Depois, em coluna auto, para Fá, onde dormimos. No dia seguinte para Bambadinca onde apanhámos uma coluna de reabastecimentos para o Xitole.

Interminável a viagem, nem me lembro de quantas horas. Era época das chuvas, água por todo o lado, as viaturas atascavam-se, nunca mais lá chegávamos. A operação ao Galo Corubal era no dia seguinte. Estava tudo marcado, apoio aéreo, PCA8, companhia de apoio. Passámos o dia a desatascar viaturas, militares e civis. Chegámos ao Xitole com o dia fechado há horas. Ainda nos estávamos a sentar por ali, soubemos que havia uma mensagem radio a informar-nos que a operação tinha sido adiada 24 horas.

Dormimos, descansámos o dia e ao cair do sol pusemo-nos a caminho do Galo Corubal. Noite fechada, chuva sempre a cair, o rio a deitar por fora, noite sem luar, um caminho de desafios a ver quem caía mais, até esbarrarmos, já de madrugada, com uma sentinela que estranhou tanto movimento perto dela.

Resposta pronta do primeiro homem do grupo, o Marcelino, o ataque entusiasmado, a queda da equipa da frente nas águas de um ribeiro que ninguém tinha visto, a G3 de um que lhe escapou das mãos, a luta para a recuperar, o fogo sobre nós, o dia que surgiu quando não devia, um milícia com uma crise de nervos que parecia um ataque epiléptico, uma retirada muito difícil.

Quando a parelha de T6 nos sobrevoou, estávamos atolados na bolanha a servir de alvo a pontarias altas, só sentíamos as chicotadas. Depois foi a retirada para o Xitole com o pelotão de apoio a proteger-nos com fogo de morteiro.

O alferes tomou a decisão de reincidir na noite seguinte, contra a vontade do comandante da companhia que lhe respondeu na minha frente que não podia dar-nos apoio, que se quiséssemos ir que fôssemos. E fomos outra vez.

Noite igual às anteriores, água e mais água, parecia que a água estava do lado deles, andar difícil, chegámos outra vez à mesma zona da noite anterior.

O guia conhecia a área do Galo Corubal, só isso. Em cima daquele ourique descobrimos a cambança e entrámos num trilho que nos levou a um acampamento sem ninguém. Não conseguimos pegar fogo às casas de mato porque as duas granadas incendiárias que lançamos nem chegaram a pegar, só fumo é que saía delas. No regresso, quando passávamos em cima do ourique voltámos a servir de alvo à pontaria.

Distinguia-se bem das PPSHs e das Kalashs e barulho ritmado de uma metralhadora-pesada. Atirámo-nos para a bolanha, água quase pelo peito. Apoio aéreo fora no dia anterior, o capitão comandante da companhia que, afinal e ainda bem, resolveu apoiar com um pelotão, começou a bater as margens com fogo de morteiro e, pelo AN-PR C10, dizia para retirarmos, o que acabámos por fazer equipa por equipa.


Depois foi o regresso à estrada Bambadinca-Xitole. O pelotão reforçado de apoio e recolha esperou por nós, retirou para o Xitole, despedimo-nos, e nós continuámos até Bambadinca. A pé, como se fosse a penitência por uma operação mal concebida. Íamos parando de vez em quando, como se fosse um exercício. Uns bons quilómetros andados, ouviu-se um deles perguntar ao chefe de equipa, o Furriel Azevedo, se íamos a pé até Bissau.

Derreados por tanta chuva, por tantos quilómetros em tão poucos dias, uma coluna encontrou-nos e recolheu-nos em Bambadinca no dia a seguir, sentados e em boa ordem, apesar de tudo".

Dias depois em Brá, um capitão procurou o alferes, queria ouvi-lo para o tal processo que estava a decorrer, já tinha ouvido os outros, só faltava ele. O que tinha acontecido, como, quando, porque é que, quem fora o cabecilha, leia, assine aí em baixo, se estiver de acordo, claro.
À noite fora até Bissau, encontrar-se com os companheiros do costume.

Passaram-lhe para as mãos a "Plateia", uma revista de cinema que saía em Lisboa. Folheou-a, parou numa página. Crónica da Guiné na Plateia!


Um bando de energúmenos influenciados pelos tedies de Birmingham e Liverpool? Olharam uns para os outros, calados. Quem é o tipo que escreveu isto, perguntou.

Num daqueles dias, seguiram as indicações que o Capitão Rubim lhes tinha dado, os 5 sujeitos ao auto apresentaram-se no QG, ao Comandante Militar da Guiné. Vamos receber uma medalha cada um, disse o Godinho.

Entraram no gabinete, fizeram-lhe a continência e puseram-se em linha, aprumados. O Brigadeiro Gaspar Sá Carneiro mexia nuns papéis em cima da secretária, não encontrava, abriu gavetas, ah, estão aqui, satisfeito. Quando levantou os olhos para eles, mudou de cara.
Ora bem, antes de mais, devo manifestar-lhes o profundo desagrado que sinto em tê-los aqui nestas circunstâncias. Já tive convosco manifestações de apreço, quando o mereceram, o que não é o caso desta vez, bem antes pelo contrário. Relatar aquilo que ficou apurado, é desnecessário.
Depois, foi um por um. Tirando o caso do Alferes Godinho que teve uma redacção e uma pena diferentes, aos outros foram aplicadas as mesmas penas com a mesma redacção.

“Puno com 3 dias de prisão simples o Sr. Alferes Milº/Furriel Milº fulano de tal, porque fez parte dum grupo de militares que, trajando de modo não correspondente ao estipulado para as circunstâncias, penetrou no baile dos finalistas da Escola Técnica de Bissau, vencendo a oposição da autoridade policial de serviço no local. Infringiu os n.ºs 22.º, 41.º e 51.º do art.º 4.º do RDM.
____________

Notas
7 - Rio da Guiné. Nasce no maciço do Futa-Jalon, Guiné-Conacri e encontra-se com o estuário do rio Geba, a cerca de 50 km a montante de Bissau.
8 - Posto de comando aéreo (PCA) normalmente montado numa Dornier.

(Continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior de 23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles

1. Parte VII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 11 de Julho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - VII

Clara

Boas notícias da metrópole! Corriam bem as coisas para quem lá estava. Mini-saias, calças à boca de sino. Calças largas assim como lhe estavam a contar só as tinha visto nos marujos, no pessoal civil nunca reparara, mas tudo bem, acreditava. Diziam que o comércio prosperava, que a têxtil e a construção disparavam. Que havia emprego. Que se construíam casas, se arranjavam outras, estradas novas, um pandemónio, espantados os que vinham de férias.
E mais não se fazia porque, diziam, havia falta de mão-de-obra.
Pudera, mais de 100.000 em África e mais os que se tinham pirado claro, nada para admirar.

Emigrantes portugueses nos “bidonvilles” dos arredores de Paris. 
Foto da net.

Por cá tudo bem, obrigado. Estava com 21 anos. Deixara Lisboa com o peito para fora, ia defender a pátria dos terroristas a soldo de Moscovo. De vez em quando sentia uma ligeira dúvida sobre os resultados do esforço que lhes estavam a exigir, mas o futuro é sempre uma dúvida, não é?

Calor húmido, o suor a escorrer pelo corpo todo, um chuveiro vem mesmo a calhar. Procurou roupa para se vestir. Só tinha um camuflado, o que trazia vestido. O Sany1 tinha lavado as camisas, cuecas, calças, toda a roupa que tinha, que não era muita que também não precisava, depois do Vilaça numa fúria que mais uma vez lhe deu no quarto, ter quebrado a caixa de Gin que foi do furriel Morais2. No quarto nem pensar entrar, cheirava-lhe a Gordon’s até em Bissau.

Para espairecer nada melhor que uma volta. Toca, Alegre3, que se faz tarde ponha o ME-14-04 no piche(*) para Bissau, acelere essa chocolateira.


Vento quente na cara, curva do Hospital Militar, onde se dizia que quem entrar lá ferido, safa-se, já não morre, chiça que não fosse ele, recta para o bairro indígena de Bissau.

As primeiras casas, gente, cães, cabras, tudo em câmara lenta. Que pressa danada, Alegre, páre aí, olhe para aquilo, o quê meu alferes, aquela morena ali, não vê? Ah? Está a vê-la bem, Alegre? Não quero nada que faça marcha atrás, qual atrás, Alegre, abra mas é os olhos e páre aí! Ponha-se à sombra.
Onde se meteu? Perdeu-a de vista, mas uma beleza daquelas não pode desaparecer assim! Aí está ela outra vez, um encanto a surgir de trás de uma árvore, dança a andar, onde terá aprendido? Não acreditas, ela está a olhar para ti, deve estar à tua espera, ou não? É contigo, não disfarces, estás a olhar para onde? Está espantada, sem saber bem o que fazer. E agora? Vai ter com ela, pode precisar de alguma coisa, nunca se sabe, estamos aqui uns para os outros, não foi isso que te ensinaram em Mafra, ajudar a população civil, a voz dentro dele não se calava, não foi? Pergunta-lhe o caminho, que te dê a mão e te leve, que interessa para onde?
Chegou-se a ela, a ferver. Boa tarde, como está? Que pergunta! Estava boa, via-se bem, bastava ter olhos.
Olá! O Joaquim já não mora aqui? Que Joaquim? Então, o Joaquim de Brá, não conhece? E o seu nome qual é? Clara? Fica bem consigo! Não gosta do nome porquê? Então não conhece o Joaquim? E a mim também não? E não me deixa conhecê-la? Não podemos estar aqui a falar? Onde então? Hoje não, Clara, porquê? Esta semana também não?
Só nãos, Clara, não mereço um sim? Quando, Clara? Domingo às 2 da tarde aqui? Tanto tempo, Clara? Aqui não, junto àquela casa? Clara...

Cerca de um mês depois de muita conversa, era também um domingo lá para o fim da tarde. Uma velha negra sentada à porta. Clara está lá, passa roupa a ferro.
Fresca, cabelo molhado a escorrer, vestido às flores, botões costas abaixo, pernas morenas, sandália rasa, até os pés pareciam ter levado pedra-pomes!
Olá, Clara, uma mão nas flores e a outra nem sabia aonde. Chegou-se a ela, um cheiro a fresco, tinha acabado de tomar banho, via-se.
Porque quer falar comigo? Estou comprometida, você sabe, alferes. Ele também, aliás estavam todos!
Clara, não resisti, enfim, quero conhecer-te melhor, faz mal?
Estremeceu quando o sentiu encostar-se. Que está a fazer, alferes? Não podemos ficar assim só um bocadinho, Clara? Não, não pode, sabe que não! Mas por que não, Clara? Não pode, alferes! Clara, não sou de pedra, o desejo não deixa, é grande demais, ela arrepia-se ao contacto dos dedos, os lábios dele no pescoço dela, ah, não posso, alferes, não posso, não…
O ferro pousado, a Clara ofegante, de costas, as mãos dele nem acreditavam, os mamilos a quererem fugir das mamas inchadas. Ah, Clara, a tua pele, o teu cheiro, o vestido a abrir-se, os dedos dele a descer, ela toda arrepiada a dizer não, não posso, podes Clara, não estás bem? Está, alferes, mas não posso mais, vai embora, faz favor, alferes, não posso mais!

Duraram quase dois meses estes encontros, quase sempre à mesma hora na casa da velha. Um prazer, um ritual obrigatório também, antes de uma saída para o mato e depois de um bom banho que prémio à chegada!
Até um dia em que, em má hora, passou e a viu pendurar roupa no arame. Não pares, não olhes para mim, vai-te embora! Vais-te arrepender! Não me toques, ele está cá.
Viram-se todos ao mesmo tempo, ele, o sócio e a irmã dela. Então é você quem anda por aqui e eu é que pago as despesas, reponta. Oh amigo, fique com a Clara! Já que come, pague a despesa!

Meses depois numa rua de Bissau, ouviu chamarem pelo seu nome. Parou, olhou para trás. Clara! Sorriso triste.
Envergonhado, baixou os olhos. Foi a última vez que viu a Clara.
____________

Notas do autor:
1 - Infamara Sany, o impedido que, juntamente com o quarto, a cama, a G-3 e restantes apetrechos de guerra tinha herdado do Cap. Saraiva. Morreu, mais tarde, em combate.
2 - Morto em combate no decorrer da operação ‘Ciao’, em Catunco, no Sul, em Maio de 1965 na que foi a última operação do grupo Fantasmas.
3 - Soldado Condutor ao serviço do Grupo.

Nota do editor:
(*) - Piche - o mesmo que alcatrão

************

Apanhado à mão

Alternava períodos no mato com uns dias em Brá. Aproveitava-os para se manter em forma, praticava tiro, mantinha o Grupo em instrução diária, ao fim do dia ia até Bissau, dava uns passeios a pé. No fim de jantar, quando tinha vontade, punha a escrita em dia e lia pela noite fora.
Não havia muito para fazer na cidade. O hotel Portugal onde se reunia ao jantar com os conhecidos, ou o Fonseca de vez em quando para comer frango assado com batatas fritas aos paus, enormes, ou beber cerveja cá fora com um cesto de ostras ao lado.
Parava na esplanada do Bento, quase sempre a abarrotar de fardas, obrigatório para quem queria encontrar camaradas destacados no mato, em trânsito por Bissau, para consultas médicas, tratar de assuntos dos destacamentos ou à espera do avião para o mato depois das férias na metrópole.
Ouvia-os falar dos dias que lá tinham passado, das famílias, amigos, namoradas, do cinema que tinham visto, do ar diferente que respiraram. E do desinteresse e ignorância sobre o que se passava na Guiné.
Era um entusiasmo ouvi-los falar da metrópole e das férias. As dele estavam à porta, um ou dois meses se tanto, ia descontando os dias.


Em fase fotográfica, ia para o Cupilão4, negras com os bebés às costas a pilarem o arroz, mancarra a secar, crianças a brincar, velhos negros de barbas brancas, curvados, a cortar as unhas dos pés com a catana enorme na mão, outros sentados em fila, encostados às casas, olhos vermelhos de doenças, clicava tudo.

O conflito sentia-se em todo o lado, em Bissau também, embora não houvesse relatos de episódios violentos dentro da cidade. Claro que via o que se passava, ouvia os helis5 pousar no Hospital, perto de Brá, eram quase vizinhos, tinha acesso por vezes a citreps e perintreps6, frequentava quase diariamente a 2.ª e a 3.ª Rep, almoçava com este e aquele, estava a par do que se passava em todo o território.

O Leite era companheiro das mesmas lides desde há anos. De baixa estatura, magro, enfezado, aparência tímida e muita lábia, via-se que era desenrascado há muito. Estiveram no mesmo curso em Mafra, seguiram juntos no navio “Carvalho Araújo” para os Açores e separaram-se no cais de Ponta Delgada.
Encontraram-se, de novo no mesmo navio, no regresso ao continente.
Mobilizados para a Guiné, apanharam o comboio em Santa Apolónia, para o norte, para gozarem os dias de licença a que tinham direito e reencontraram-se em Campanhã para o regresso a Lisboa. Passaram os dias na capital, despedindo-se da vida boa que lá se vivia, até embarcarem no “Alfredo da Silva”. Na véspera do embarque fizeram questão de mandar vir lagosta e champanhe francês, no “Solmar”, ali nas portas de Santo Antão.
Davam-se, nem sempre ligavam às mesmas coisas, nem eram muito parecidos mas entendiam-se bem. O acaso fizera com que se juntassem nesse percurso. Já em Bissau, com o Capitão Marques, o Black e outros companheiros da viagem, separaram-se, até um dia destes.

Numa dessas visitas ao QG soube que o Leite tinha desaparecido.
A comunicação oficial era confusa, não se sabia ao certo se tinha desertado ou sido apanhado. Certo é que tinha sido levado para Dacar.
O Leite estava a comandar um pelotão reforçado em Sare Bacar, no norte, um pouco a leste de Cuntima, encostado ao Senegal, uma zona calma. O PAIGC, na altura, servia-se das fronteiras do Senegal como corredores de passagem para o interior que o Shenghor7, problemas já tinha que chegassem.
Levava uma vida tranquila, mantinha boas relações com a população local. Terá sido abordado pela polícia, em território senegalês, quando, sentado a uma mesa, defrontava um frango de chabéu que lhe tinham preparado. Puseram-lhe as algemas e meteram-no num jeep a caminho de Koldá.
Depois de ouvido foi para a cadeia de Ziguinchor e por lá ficou umas semanas, enquanto se desenvolviam negociações, por intermédio da família, que o Estado Português não se meteu. A Igreja interessou-se, a Cruz Vermelha Internacional intercedeu, levaram-no para Dacar, onde foi presente a um juiz que decidiu recambiá-lo para Lisboa. Mas ele não queria, temia represálias, queria voltar a Sare Bacar. Semanas depois, acabou por ser entregue na fronteira às autoridades militares portuguesas. Soube isto da boca dele, dois ou três meses depois, na esplanada do tal Bento, momentos depois de ter sido chamado ao Governador-geral.
____________

Notas:
4 - Cupelon, Cupilão, Pilão: grande bairro popular atravessado pela estrada para o aeroporto
5 - Helicópteros Allouette-II e III
6 - Relatórios militares periódicos
7 - Presidente da República do Senegal.

************

Entre eles

As relações entre eles eram as mesmas que se viam entre jovens de 20 e poucos anos. Alcunhas, anedotas sobre acontecimentos no mato, ciúmes, coisas pequenas que ocorrem, sempre que um grupo de jovens se vê obrigado a partilhar tudo. Entre alguns havia acordos tácitos de não-beligerância, entre outros, acordos havia que não previam isso.
Os furriéis dos grupos viviam em dois quartos seguidos. Oito em cada, quatro camas frente a frente.
Num daqueles quarto o cristo era o Marques. É um doente, coitado, uma doença incurável, Canjambari não tem tratamento, dizia um a cada passo.
O Marques tinha vindo de Canjambari, um buraco muito falado. Qualquer coisa servia para se meterem com ele. Tinha poder de encaixe, fora praticante de luta greco-romana, lá na Amadora dele.
Mas havia um ou outro que exagerava no gozo, tanto que o Azevedo, se começou a chatear também, estava a ser gozo a mais com o camarada do grupo dele. Se fosse comigo o assunto resolvia-se a murro.
Lá para os meus lados, nos Arcos de Valdevez, as mãos também servem para bater nas trombas dos gajos atrevidos. Treta, terá dito outro.
No regresso de uma saída, ansioso por um banho e pela cama, o furriel Azevedo entrou confiante no quarto. Camuflado, meias, botas, tudo directo para lavar, banho a seguir. Quando abriu o mosquiteiro da cama teve uma surpresa, em cima do lençol só se viam beatas de cigarro, uma ainda largava fumo. E os camaradas de quarto, a lerem e a escreverem, como se não fosse nada com eles.
Quem foi o cabrão que fez isto? Ninguém se acusa? Houve um, claro, por coincidência o tal da treta, que se adiantou, mal se levantou teve que tentar levantar-se de novo, de uma saraivada de socos que o tinham levado às cordas, neste caso ao cimento.

Eram muito diferentes. O furriel Azevedo tinha ossos, músculos, uma melena a cair-lhe para os olhos e um dente partido a meio por um murro. Rebelde, olhos de águia, andar felino.
O furriel Marques, ruivo, sardento, pele clara, olhos azulados, ar um pouco místico, era um sonhador. A tendência para mandar no quarto nem sempre era bem vista pelos outros e nunca pelo Azevedo.
Numa rua em Bissau, uma pequena troca de palavras e de olhos entre os dois deu lugar à marcação de um encontro nas traseiras dos quartos, logo que chegassem a Brá. Sem testemunhas. Deram as voltas todas que tinham a dar, até que regressaram ao quartel.
Depois, nas traseiras do edifício dos quartos, encontraram-se os dois, frente a frente, sem testemunhas, sem camisas e sem palavras mas, pelos resultados, com abundância de outros meios. Breves e tão eficazes que dali para a frente nunca mais tiveram problemas de comunicação.

A guerra espalhava-se a todo o território. Via-se que faltava muita coisa, armas mais compatíveis com o tipo de conflito. Mas não só, talvez até as armas fossem menos importantes. O que se via era falta de liderança, de crença, de um projecto que os unisse, na metrópole e na Guiné. Dizia quem vinha de férias, que, em Lisboa, ninguém sabia ou queria saber o que se passava na Guiné e isso tocava-lhes.
Para quê, estarem aqui, rodeados de arame farpado, se não tinham qualquer tipo de ligação àquela terra? Um sentimento de paragem, de perda de vidas e de projectos. Via-se neles todos, em todo o lado, estivessem em Suzana, Madina, Guilege ou em Cameconde. E mais, viam com desconfiança e até com mal disfarçada hostilidade aparecerem-lhe os comandos, na zona deles. A chegada destes implicava sempre sarilho, enquanto lá se mantivessem ou depois de abandonarem a zona.

Os Comandos levavam uma guerra limpa, higiénica, como se dizia. Saíam, faziam o serviço e regressavam na primeira oportunidade, deixando para trás a carga de sarilhos que vinha a seguir. Era a desvantagem da quadrícula, estarem fixos em povoações transformadas em quartéis, presos dentro do arame farpado, primeiro sem quererem sair e depois, em alguns casos, já sem poderem. Deixavam o mato para o PAIGC, em várias zonas dono e senhor daquelas florestas e dos caminhos.
Em Brá, outra vez para mais uns dias de descanso os comandos tratavam de se manter operacionais. Nas horas de lazer, iam para a cidade, para os conhecimentos que tinham adquirido. Eram tão disciplinados entre eles no mato, como insurrectos na cidade. Por isso, não era de admirar as queixas da Polícia Militar, nem as reclamações dos camaradas das outras unidades que repartiam com eles as instalações de Brá.
Para eles que faziam a guerra, que viam não só as caras como também as armas dos guerrilheiros, a questão estava reduzida a pormenores técnicos. A componente moral, a mais importante, ia-se gastando também com o tempo, a que não era nada alheia a convivência em Brá com batalhões recém-chegados e especialmente com os Adidos.
Estavam assim reduzidos às armas e aos divertimentos. Uma combinação explosiva, como se foi vendo ao longo daquele tempo.

(Continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 14 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14876: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VI Parte): A nossa causa é uma causa justa

terça-feira, 14 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14876: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VI Parte): A nossa causa é uma causa justa

1. Parte VI de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 10 de Julho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - VI

A nossa causa é uma causa justa

"Esta é a voz do comando, a voz que ireis ouvir ao longo do curso e durante a vossa permanência neste Centro de Instrução.
Numa guerra clássica, a moral tradicional militar defende a ideia de que a luta se trava exclusivamente entre os contendores, os que pegaram em armas para disputar a posse de um território, não sendo as populações envolvidas no combate. A guerra seria sobretudo uma luta entre os militares de ambas as partes.
A guerra que travamos é diferente. Em primeiro lugar, é uma luta pelo domínio das populações e estará em vantagem aquele que as tiver do seu lado.

A água e o lodo são os nossos campos de batalha. O terreno é plano e alagadiço, há muitos rios, pântanos e bolanhas, que são as terras alagadiças, que tu já conheces, e que servem para as populações cultivarem o arroz. Há grandes alterações das marés. Vais palmilhar matas e florestas densas.
Aqui, na Guiné, não existem mais de 60 quilómetros de estradas pavimentadas, o resto são cerca de 1500 quilómetros de terra batida. Os outros meios de comunicação são picadas e caminhos sujeitos às marés, às vezes intransitáveis.

A população é constituída por etnias das mais variadas origens. Têm hábitos próprios e cada uma tem as suas características, às vezes muito diferentes umas das outras.
Os mais numerosos são os Balantas, depois os Fulas, os Manjacos, os Mandingas e os Papéis. Depois há outros: os Brames, também chamados Mancanhas, os Beafadas, os Bijagós. Os outros, com menos gente, são os Felupes, os Baiotes, os Nalus e os Sossos.

Nem sempre tem sido fácil ganhar estas populações. Muita desta boa gente tem sofrido forte mentalização do IN e albergam guerrilheiros, a quem fornecem apoio alimentar.
Esta população mantém grande discrição sobre a presença da guerrilha, que a obriga a colaborar, escondendo as armas.
O IN tem-se aproveitado destas populações. Bem armado, tem um forte espírito guerrilheiro e exerce acção psicológica sobre elas, apoiado em emissões radiofónicas diárias, a partir de Conacri.

Relembremos o que aconteceu aqui, na Guiné. A vida decorria normalmente, o ambiente era de paz e só este é propício ao trabalho, ao bem-estar e à riqueza. Nem tudo estaria feito, nem tudo seria perfeito, mas existia bom ambiente social. O inimigo que hoje nos combate em Angola e aqui na Guiné, vem desde há muito procurando convencer os povos africanos portugueses de que só com a saída dos brancos a vida dos negros poderá melhorar. Seria essa a maneira mais eficaz e mais rápida de conseguir melhoria de nível para os africanos. O branco ao mar!
Deram início à luta armada, apoiados por potências com pretensões à posse destas terras com quem mantemos ligações há séculos. Foram elas que lhes forneceram armamento e foram elas ainda que treinaram os primeiros chefes guerrilheiros no combate. A guerra foi assim imposta por um IN comum, em Angola e aqui na Guiné, e obrigou-nos a pegar em armas para defender as nossas gentes, o nosso património.

Nem toda a população aderiu prontamente ao IN. Talvez que a grande maioria do povo preferisse a paz e dentro dela trabalhar para um futuro melhor. Isto não interessou ao IN que, aterrorizando as gentes, matando, levando-as a fugir e a fixar-se em novas zonas de mata onde facilmente as pudesse controlar e obrigar a trabalhar para si, ficou em posição de melhor poder resistir ao nosso esforço armado para restabelecer a ordem e a paz.
Todos conhecemos casos concretos aqui, exemplificativos do terror que o IN lançou nas populações. Foi este o sistema de mentalização adoptado por eles e do mesmo modo continuam. Quem lhe não obedece, sofre represálias, morre!

Como é sabido, o guerrilheiro não pode combater um exército sem o apoio da população. É ela que lhe dá o dinheiro, comida, informações a nosso respeito e o refúgio de que ele necessita. O guerrilheiro infiltra-se nas tabancas consideradas pacíficas. Abandonada e escondida a arma, ele aparece novamente aos nossos olhos como um elemento simpatizante e acolhedor porque saúda a tropa afavelmente e procura mostrar-se prestável. E mais, sabendo que como militares somos levados apenas a ver um terrorista no homem emboscado que contra nós dispara e, por conseguinte, a não desconfiar das mulheres, dos velhos, dos rapazes novos.
Utiliza precisamente estes como agentes de ligação, de informação e como cadeia de reabastecimento de víveres, medicamentos e munições. Esta é a situação actual. O que deveremos fazer?
Poderemos ver apenas o IN que contra nós dispara? Deveremos tratar como soldado prisioneiro um homem sem farda que não nos combate francamente e ataca sempre pelas costas? Ou tratá-lo como desordeiro e assassino, responsável por tantas desgraças? O que é que pensas? Qual a tua opinião?

É preciso controlar a população! Convencê-la a abandonar as áreas onde o ambiente é mais propício à guerrilha e fixá-la em zonas em que lhe possamos garantir protecção e segurança. Há que dar a possibilidade àqueles que não quiserem a guerra de se acolherem à paz. Assim o guerrilheiro ficará isolado, identificado e sem o apoio de que necessita. Quem não vier, é porque não quer! Pertence ao bloco IN que nos combate da mata.

A guerra é um mal, mas não fomos nós que a começámos. Uma vez começada, temos que a ganhar. Não viemos cá passar dois anos de comissão, viemos para ganhar a guerra. A nossa missão é conquistar a população e destruir o IN, para que em todo o mundo português se possa viver em paz, trabalhando para um futuro melhor. A nossa causa é uma causa justa!

Comando!

A tua guerra vai começar!
O resultado da acção do grupo depende de ti!
Finalmente estás pronto para combater!
O curso foi útil, violento e cansativo. Podes pensar que a tua tarefa terminou.
Não! Até agora nada fizeste, ainda nada provaste!
A ocasião está aí. O teu contributo vai ser notado!
Comando! Confia em ti, não esperes pela sorte!
Vai, cumpre a tua missão.”

************

O Grupo

Ainda durante o curso de instrutores, os futuros comandantes dos grupos com alguns sargentos, reservaram uma semana para conhecerem os futuros instruendos, dispersaram-se pela Guiné, um para Bula, outro para Farim, outro para Tite, num ou noutro caso viram soldados e graduados em acção no mato, ouviram comandantes de companhia e de pelotão, falaram-lhes de uma forma diferente de fazer a guerra, puseram-nos a pensar no assunto, que se quisessem concorrer o podiam fazer, um ou outro comandante da companhia a empurrarem-lhes asmáticos e problemáticos, este gajo é que é bom para vocês, é rápido no gatilho, quando está de sentinela passa as noites aos tiros.
Juntaram-nos todos em Brá, recambiaram logo três ao fim de dois dias. Em Julho deram início ao Curso de Comandos para praças que durou até 3 de Setembro de 1965.

Bom atirador, ouvido e olhos apurados, pisteiro experiente, sentido de orientação, experiência de sapadores, desconfiado até de si próprio, há aqui alguém de cá, com estas condições? Para todo o lado, olha para o chão, para a frente, para a esquerda e para a direita. Quem é que havia de ser o primeiro homem da 1.ª equipa? Cabo Marcelino da Mata, claro, já vem com a experiência toda, tem sido sempre o primeiro homem da 1.ª equipa.
Quem é o amigo do Marcelino que é canhoto? És canhoto mas não és amigo dele, tu também és canhoto, não és amigo dele também? Para a direita, o teu espaço de visão é a direita, fazes parelha com o Marcelino, não podes ir para todo o lado com ele, porquê? Tem três mulheres? Melhor para os dois, primeira parelha arrumada.
O terceiro homem do grupo1 sou eu, comandante do grupo e da equipa, a esquerda está por minha conta também. Quem é o melhor em rádios, o melhor lançador de granadas, para mais longe e sobretudo mais certeiro nos lançamentos, afinal quem é o mais diferente de todos? Como sabes que não há cá disso? Para as árvores que estão lá em cima a olhar para ti, para quem haviam de olhar?
O quinto tem que ser o melhor especialista em primeiros socorros, estás a olhar para mim porquê, tu claro, olhas para a esquerda, nunca percas a ligação com a equipa de trás! És canhoto, essa agora? Mas és voluntário, ou não? Ah, o "Ligaduras" não é canhoto. Fechado! Ora bem, a 1.ª equipa do grupo, a equipa de comando está feita, prá frente!
A 2.ª, a 3.ª e a 4.ª são equipas de manobra. Bons atiradores e bons referenciadores de tiro, o quarto homem de cada uma delas tem que ser bom sapador, vamos para a frente que se está a fazer tarde. Furriel Azevedo, faça a 2.ª equipa!
3.ª Equipa. O número 4 é o Albino, apontador da MG-42, tu és a parelha dele, fazes também de municiador. Como fica a sua equipa então, sargento Valente?
Black com a 4.ª Equipa, o quarto homem protege...
5.ª equipa, a apoiar....

Cinco carregadores, granadas, os números 5 de cada equipa, excepto da última, levam duas incendiárias, rádios Nationals para os números 4 de cada equipa, toda gente leva punhal, os números 5 de cada equipa, excepto o maqueiro, são portadores de filtros individuais, o número 4 da 4.ª equipa leva o lança-roquetes Vacci2, os dois primeiros homens levam nylon, todos de mangas arregaçadas, excepto o primeiro, a lanterna eléctrica quem é que a deve levar, o maqueiro, claro! Duas bússolas, uma carta junto ao comandante do grupo, e pronto, alguma dúvida? Então, vamos lá ouvir!
Equipas lá para fora, para a fotografia enquanto está sol, em coluna por um como se fôssemos para o Oio.

Um grupo na fotografia

Click, click, formar o grupo agora, sentido, Caeeeirooo, mãos fechadas, que lindo, Albino endireita-me essa corcunda, peito para fora, direita volver, em frente marche, Silva para onde vais com os braços, à altura do ombro só, que não é preciso mais. O pé, porra, assenta pelo calcanhar, assim, todos a olhar para ver como é, perna estendida.

Comandante do grupo e chefes de equipa com o 1.º homem do grupo, 1.º Cabo Marcelino da Mata

“Nas conversas com os teus amigos nunca digas para onde vais, um comando é para ser admirado por toda a gente, o comando deve tratar a sua espingarda com todo o jeitinho, deve escrever semanalmente à sua família, à bajuda também, os comandos não choram os seus mortos, vingam-nos, para onde quer que olhe para lá tem virada a arma, comandos ao ataque, ó da guarda, vivam os comandos da Guiné, um comando não é melhor nem pior, é diferente, ó meu sargento, temos tão pouco que fazer, queremos mais instrução, estou mortinho para ir para a porrada, plano de refeições, ao pequeno-almoço, granadas fritas em trotil, um petardo P4 com molho de plástico, para o almoço, para o jantar cartuchos 12,7 salteados com pólvora de caril, uma ceia em Morés, meninas não saiam de casa, o Benfica e os comandos estão sempre na final, não há pai para eles, o Eusébio com a taça na mão, um comando com um morteiro 82 made in URSS.”
Viam-se dísticos por todo o lado, no edifício do comando, no refeitório, na sala de luta, nas camaratas. E durante a noite, também nos altifalantes ligados aos quartos e às camaratas.

“Repara em ti próprio, comando, faz um exame de consciência e diz francamente se já não te sentes outro, se já não estás tão diferente daquele maçarico que aqui entrou há 5 semanas? Nessa ocasião só tinhas vontade, só tinhas o querer de seres um comando, tudo o resto te faltava, a energia, a decisão, o espírito de sacrifício, a certeza de seres um bom combatente. E só passaram 4 semanas de instrução, 4 semanas em que aprendeste unicamente os princípios básicos de um bom combatente. Mas, nestas semanas aprendeste bastante e, muito especialmente, formaste sobre ti próprio uma ideia bem diferente daquela que inicialmente tinhas.
Ganhaste um apreciável espírito de sacrifício e a atestá-lo estão as noites mal dormidas, a fadiga física pronta a vencer-te, mas sempre a ser dobrada pela tua força de vontade. Depois destas semanas, já tens espírito de sacrifício. Mas tens mais, ganhaste decisão, tens energia e especialmente, tens o orgulho de vires a ser um comando! Atingiste metade do caminho, e se esta metade não for mais dura, mais leve não vai ser! Continuarão a pedir-te tudo, a tua vontade, o teu interesse, a tua atenção e a instrução continuará, quer chova impiedosamente quer faça um calor escaldante. Tudo com uma finalidade: fazer de ti um combatente decidido, consciente, sabedor e capaz de sozinho sobreviver às dificuldades. Mas tu nunca estarás sozinho, terás sempre o apoio da tua equipa. Por isso vive com a tua equipa e para a tua equipa, porque ela representa para ti a condição da tua sobrevivência.
Estás a viver perigosamente, mas todo o perigo, por maior que pareça, poderá ser reduzido se o enfrentares com consciência. E é essa consciência que neste Centro de Instrução, os teus instrutores procuram que tu obtenhas. Então sim, então serás um comando!
Dedica-te, corrige as tuas deficiências, repete cada exercício, tantas vezes quantas as necessárias, para atingires automatismos. Não te esqueças que muitos dos teus camaradas, por não terem as tuas qualidades, ficaram pelo caminho. Tu continuas e basta isso, para teres a certeza que virás a ser um bom comando. Ouviste a Voz do comando".
____________

Notas:
1 - Quando havia efectivos disponíveis, o que só aconteceu nas primeiras operações, os GrsCmds eram constituídos por 5 equipas com 5 homens cada: 1 equipa de Comando (Cmdt do GrCmds, 1 operador de rádio, 1 socorrista e 2 atiradores); 3 equipas de Manobra (cada uma constituída por 1 Sargento/Furriel/Cabo, 1 apontador de ML, 1 municiador de ML e 2 atiradores) e 1 Equipa de Apoio (1 Sargento/Furriel/Cabo, 1 apontador de LGF, normalmente o Lança-rockets "Dante Vacci", 1 municiador de LGF e 2 atiradores).
2 - Dante Vacchi, Jornalista e fotógrafo da revista francesa Paris-Match, que dizia ter experiência em conflitos militares, terá estado de alguma forma envolvido no modelo de treino das tropas Comandos, criadas nos princípios dos anos 1960, para combater a guerrilha, inicialmente em Angola. Cesare Dante Vacchi, antigo sargento da Legião Estrangeiro, "afirmava ter uma grande experiência de guerra, porque tinha vivido alguns conflitos. Nunca cheguei a perceber muito bem se todos como jornalista ou alguns como combatente. Ele também não era muito claro nisso", lembra o então tenente Caçorino Dias, instrutor dos dois grupos de operacionais que deram origem (em 1963/64) às tropas Comandos.

************

Tambores, cornetas, caixão

A companhia de comandos estava pronta. Tinham vindo de todo o lado, até da banda de música do QG, dos cerca de 200 que começaram terminaram cerca de 100, entre sargentos e praças.
Com elementos dos grupos antigos, já bem experimentados, formaram quatro grupos a que deram os nomes Apaches, Centuriões, Diabólicos e Vampiros.
Os grupos eram constituídos por 5 equipas de 5 elementos, a primeira comandada pelo chefe do grupo, cada uma das outras por um furriel ou sargento, e as equipas eram formadas por duas parelhas, escolhidos entre eles, pelas afinidades. Durante o curso, sempre que um dos elementos da parelha se deslocava fosse para onde fosse, o outro teria que o acompanhar.
A arma que usavam era a G3, num caso ou noutro a FN. Nalgumas operações mais tarde, usaram Kalashs3 capturadas ao IN. Cada grupo levava um lança-rockets “Dante Vachi”4, com 10 rockets, as mesmas munições dos T6 e uma MG-42 de fita, a tal com que o Albino desenhava figuras com os impactos, uma cadência de tiro até aos 1300 por minuto, pena é que as culatras davam o estouro com alguma facilidade. Era a arma mais pesada que levavam, um pouco mais de 10 kg. O camuflado era a farda de trabalho, o uniforme de caqui amarelo esverdeado, pago por eles, reservavam-no para as saídas.

Os grupos a prepararam-se para a cerimónia da imposição dos crachás.


No final do curso, numa cerimónia em Brá, receberam em mão os crachás dos comandos, o escudo nacional sobressaindo com um punhal envolto numa ramo de oliveira e os dizeres “Audaces Fortuna Juvat”5 . No ombro esquerdo, a insígnia do grupo, bordada em pano, encimada por um dístico “comandos”.

Capitão Saraiva apresenta a Companhia de Comandos do CTIG ao Governador-Geral

General Schulz rodeado do Comandante Militar e de Chefes de Repartições do QG.

O único ronco que lhes era permitido era o lenço que usavam ao pescoço, cada grupo com cor diferente. Os Apaches punham lenço amarelo, os Centuriões lenço vermelho, os Diabólicos lenço negro e os Vampiros usavam um azul claro.

O General Arnaldo Schulz, passando revista à Companhia de “Comandos”

Desfile da Companhia Comandos do CTIG finaliza a cerimónia

Todos os grupos tinham chefes de equipa experimentados. Nos Diabólicos, a 2.ª equipa era chefiada pelo Furriel Mil. Azevedo, o Sargento Mil. Valente, casado com uma senhora libanesa da Guiné, e já na segunda comissão, comandava a 3.ª, o Furriel Mil. Marques de Matos a 4.ª e o Cabo Faria, conhecido por “Black”, que no recrutamento declarara a 4.ª classe como habilitações, a 5.ª e última.
Numa manhã apresentaram-se ao General Schulz, Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné.

Comandos fazem guarda de honra ao Palácio do Governador

Formaram na Praça do Império, frente ao Palácio. Cerimónia militar, tambores, Hino, bandeiras, populares e o inevitável desfile. Estavam oficialmente prontos os Grupos de Comandos totalmente formados no Centro de Instrução da Guiné, agora sob o comando do Capitão Rubim.
Depois almoçaram bacalhau à Brá6, a quantidade que quiseram, até os panelões ficarem rapados, e vinho tinto a acompanhar, com cheiro a cânfora, uma garrafa para cada parelha.

Durante os últimos dias do curso, os alferes comandantes dos grupos passaram a vida a correr para o QG, às vezes mais que uma vez por dia, para a 2.ª e 3.ª Rep, indagando sobre acampamentos referenciados, localização, número de guerrilheiros previstos, armamento, existência de guia, acessos. Estudaram as indicações da Repartição de Operações, escolheram os objectivos para o golpe de mão, que era o que mais os atraía, ouviram os guias recentemente capturados ao IN e começaram a tratar dos meios de transporte, aéreos nalguns casos, marítimos noutros.

Em Brá, J. Parreira, Cap. Saraiva, V. Briote e Marques de Matos. Setembro de 1965.

Os grupos arrancaram, um em cada semana. O Capitão Saraiva fez questão de participar em todas as saídas. Os Apaches foram para a zona de Bula, encontraram-se com o IN no mesmo trilho, houve ligeiro contacto que não passou disso, a guerrilha perseguida retirou. Na semana seguinte os Centuriões, os Diabólicos na outra.
Os Vampiros fecharam o primeiro mês de operações, com a primeira baixa dos novos Comandos. Um trilho na zona de Cutia, Oio, tinha uma bailarina preparada para dançar com o Soldado Florêncio.
Com a perna arrancada, foi-se em minutos, não sem antes se ter voltado para o Alferes Vilaça, comandante de Grupo que colaborava nos primeiros socorros, e lhe dizer com a voz já muito fraca, não há problemas, meu alferes, prá semana já devo estar operacional.

O Comandante Militar entrega os crachás ao 1.º Cabo Tudela e ao Soldado Florêncio Terêncio

Só tiveste uma oportunidade, Florêncio, disse um.
____________

Notas:
3 - Espingarda Automática AK 47 usada pela guerrilha.
4 - Nome de um jornalista estrangeiro dado a uma arma, depois desenvolvida pelas forças portuguesas. Leve e causando grande efeito psicológico no inimigo foi fabricada nas OGMA até 1975.
5 - Locução latina que significa "a sorte protege os audazes”. Fonte: Virgílio, Eneida, X, 284.
6 - Bacalhau à Brás

************

Iusse, Oio

Final de tarde em Mansoa, o Grupo pronto para a estreia. Dentro das Mercedes tapadas com as lonas, aguardaram que o Capitão Saraiva e o comandante do Grupo acertassem os pormenores com o comandante e o oficial de operações do Batalhão. Para matar a espera, meteram-lhes lá dentro pão, queijo, marmelada e água. As viaturas da coluna para Bissorã já se tinham posto em movimento quando as deles arrancaram rápidas até se chegarem às outras.
Andaram uns quilómetros, poucos, até receberem a indicação para se aprontarem para saltar. Teria que ser muito rápido, as viaturas em que iam abrandariam só, as da frente continuariam no sentido de Bissorã.
Internados no mato esperaram o reagrupamento, a noite a fechar-se não lhes prometia tempo seco. Puseram-se em movimento, como lhes ensinaram.
O capitão, uma vez ou outra, saía do trilho, ficava-se a vê-los passar, surgia-lhes por trás, G3 apontada, era uma vez um comando, assim não vais longe, pá, vai antes para a manutenção. À frente o Marcelino segurava o guia, um guerrilheiro apanhado há mais de um mês, rédea curta nos pés, braços esticados nas costas, bem atados com uma corda preta de nylon, lenço preto entre os dentes, que todos os cuidados eram poucos.
O pelotão de apoio seguiu atrás até o trilho bifurcar, emboscou-se aí a aguardar o desenrolar dos acontecimentos. No caso de lhe ser pedido, veria a melhor maneira de os recolher. O grupo deveria progredir até Biambe, procurar as casas de mato, tentar apanhar uma sentinela, explorar rápido e retirar a seguir.
Noite escura, sempre a chover, progressão lenta, paragens e mais paragens, guia a dizer que é lá, onde, ali já, nunca mais era.

Dois tiros. Detectados num trilho, mesmo junto à tabanca de Iusse.
Responderam à voz do Saraiva, atiraram e atiraram-se lá para dentro. No meio da escuridão esbarraram com 2 barracas, ninguém lá dentro.
O capitão não queria sair da zona, nem a tiro. A primeira operação a seco, nem pensar. Vamos aguentar aqui, dentro da mata, até o dia clarear. Os gajos sabem que nós estamos cá, nós sabemos que eles estão na mata aqui à volta. Vão acabar por se mostrar.

Não foi preciso esperarem que fosse dia. De um momento para o outro, começaram a ser alvejados. Fogo alto, a bater nas copas das árvores.
Uns minutos depois, começaram a ser flagelados com fogo de morteiro, do lado de onde tinham vindo. Das matas em redor, flagelavam-nos com tiros de armas automáticas e, para "compensar", recebiam morteiradas, do lado da bolanha.
Ao AN PRC/107, o Capitão Saraiva queria saber o que era feito do pelotão de apoio, mas este não dava sinal.

Esquadrilha de T6. Imagem da net.

Chegou uma parelha de T68. Um espectáculo seguido com expectativa. Pelo AVF9 ficaram a saber que era verdade o que julgavam. Do pelotão de apoio subiam granadas, viam o fumo atrás, confirmava um dos pilotos, a trajectória delas quase a pique, o estardalhaço a cair-lhes quase em cima, com a chuva. Estavam bem abrigados, dali não sairiam tão cedo a não ser que o morteiro da tropa amiga se calasse. A parelha dos T6 despejava rockets e rajadas de metralhadora sempre que via fumos a sair da mata. O fogo IN abrandou e o morteiro do pelotão calou-se.
O apoio aéreo ajudou-os, pareceu-lhes mais demorado que o que deveria ser, mas, por fim, retiraram em ordem, com o fogo inimigo, disperso mas mais ajustado, a dar-lhes algum trabalho, obrigando-os a percorrer, bem colados à água, as duas centenas de metros da bolanha, largamente distanciados uns dos outros10.
Respiraram fundo quando alcançaram a mata. E depois, nem bom dia nem boa tarde, quando passaram pelo pelotão, deixado para trás como se tivesse lepra, que regressassem sozinhos, connosco não, que temos pressa. A esgalhar, no goss-goss11, como diziam os guineenses, pelas margens do trilho.
A paragem era para descansarem um pouco, recuperavam a respiração, sentados, costas com costas. Ouviram-se palavras em crioulo, ásperas de um, suaves as do guia, que afinal não fora grande camarada para a tropa. Amarrado com cordas a uma árvore, olhos misteriosos, indefinidos, uma frase, duas ou três palavras, sempre baixas e doces.
____________

Notas:
7 - Rádio normalmente usado para comunicações terra-terra. O AN/PRC-10 estreou-se, em Março de 1951, na guerra da Coreia, ao serviço do Exército Norte-Americano. Fez parte da família de rádios AN/PRC-8 e AN/PRC-9, diferindo apenas na frequência e dos componentes que a determinavam.
8 - Aviões monomotores de hélice utilizados pela FAP no ataque ao solo, dispondo de suportes debaixo das asas para bombas, metralhadoras e ninhos de foguetes.
9 - Rádio para comunicação terra-ar.
10 - Do relatório da acção: "8/09/65, sector O3, Op. 'Flecha', Oio. Objectivo: golpe de mão a um acampamento a oeste de Cambajo Dando, chefiado por Augusto Pequim, segundo informação de um guia capturado. Avistado um elemento IN em fuga. Encontradas 2 barracas. Ataque e reacção do IN com rajadas de armas automáticas. Escuridão completa, retirada do grupo para um local a cerca de 200 metros, aguardando o clarear do dia. Por volta das 5 da manhã, nova entrada no acampamento, com vista à limpeza das barracas. O IN abriu fogo para dentro do acampamento. Encontrado um cunhete com granadas de mão, guias de marcha, documentos e peças de roupa. Destruídas cerca de 15 casas de mato."
11 - Andar rápido, depressa.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14857: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (V Parte): Brá, SPM 0418

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14857: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (V Parte): Brá, SPM 0418

1. Parte V de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 5 de Julho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - V

Brá, SPM 04181

Inferno na mata em frente a Brá. O sol queimava ainda não eram 9 da manhã.
Quicos à legionário pelo pescoço abaixo, trinta e tal tipos desapareciam pelo chão.
A cento e tal metros, Saraiva, Miranda, Moita, Mário Dias e outros, estrategicamente colocados, vigiavam-lhes os movimentos.

Um rabo mais levantado, pau pau nos troncos das palmeiras. Aqueles filhos da puta quase que me acertavam, viste? Cuidado com os gajos, pá! E vim eu de Guileje, grita o Vilaça! Pau pau, para o gajo que piou. Sai, sai daí, Vilaça, os tipos agora não te largam! Saio como, pá? Que merda!

Mata em frente a Brá

Quico a espreitar por um lado da palmeira, pau pau, outra vez no tronco.
Vão ali dois gagos aos esses, não os largue, assape-lhes, o Saraiva para um dos outros. Projécteis a bater no chão, lascas da terra a saltar, buum buum, granadas ofensivas a cair-lhes aos lados.
Olhos a cuspirem ódio no meio da poeirada. Estes cabrões não me largam! Um dos desesperados, localiza a palmeira onde se abrigava o capitão. Levanta suavemente o cano da G3 e tira a folga ao gatilho lentamente até a bala ir por ali fora e desaparecer no tronco, a pouco mais de dois metros do chão, talvez.

Um silêncio a durar minutos, ninguém se mexia. Estão à espera de quê, meninas? Nada, nem um pio.

Tinha acabado de jantar no hotel Portugal com o Toni, com quem matara saudades do Porto. O Toni Ramalho tocava no conjunto do Toni Hernandez que fizera e ainda fazia furor entre a malta nova, a animar as festas em Santo Tirso, Riba d’Ave, Vizela, Guimarães, um pouco por todo o Norte. Viera de férias, e claro, falava da metrópole. Ora então, Toni, abre lá!



Hotel Portugal, Bissau

Com os olhos brilhantes, ouvira-o cantarolar o "Calhambeque" e "E que tudo o mais vá pró inferno", do Roberto Carlos, Love me Tender do Elvis the Pelvis, a Sylvie Vartan, pá, o Johnny Holliday, Les garçons et les filles da Françoise Hardy, já ouviste? Les Quattre-cents coups, grande filme do Truffaut! Qual filme de guerra, pá, é a história de um miúdo, de 14 ou 15 anos para aí, que passa a vida no desenrascanço, os pais não querem saber dele, passa a vida a golpar para ir ao cinema. Duas horas para aí, sempre a ouvir!

O curso de comandos chegara ao fim. Segunda-feira começava a preparação dos novos grupos. Os nomes já estavam escolhidos, os Centuriões herdavam os sobreviventes dos Fantasmas do Saraiva, os Apaches os dos Camaleões do Godinho, os Vampiros o 4.º grupo que não existia anteriormente e os Diabólicos ficavam com o pessoal dos Panteras do tenente Pombo.

Quatro semanas cheias, com muita emoção, actividade física até mais sim, andar na mata de noite e de dia como deve ser, aprender a assobiar de noite, como pôr a arma a olhar, tentar distinguir os sons à noite e de dia, ligar disparos a armas, sentir ricochetes, chicotadas altas e baixas, projécteis a bater nas árvores, exercícios, repete, outra vez, táctica no terreno, sempre com fogo real. Trabalho nocturno todas as noites, granadas a toda a hora e em todo o lado, até debaixo da almofada da cama, montagem e desmontagem de minas e armadilhas, travessia de bolanhas, tiro de todas as posições, instintivo para alvos móveis, tiro-a-tiro, rajadas curtas de 3 a 5, disposição para emboscadas e golpes de mão, uso e manutenção dos rádios AN PRC/10, AVF, Hitachi, National, prática de primeiros socorros, injecções nas veias, intramusculares, intradérmicas até.

Nos intervalos da instrução no mato faziam por praticar uma alimentação rica em proteínas. Pão, se tivessem, e se não tivessem mais nada que se desenrascassem, que arranjassem na natureza. Apanhavam moscas e gafanhotos, tiravam-lhes as asas, pão fechado depressa, para aproveitar tudo.

As tribos da Guiné, Fulas, Balantas, Mandingas, Papeis, Manjacos, Felupes, Bijagós e o que se sabia da posição deles face ao conflito, utilização de guias, tudo embrulhado com muita mentalização, tanta que quando estavam a dormir eram acordados pela Voz, precedida de música alta, ritmada, intensa. Depois da Voz, música suave ajudava-os a adormecer.
Ao fim de semana descansavam. Iam para o mato executar golpes de mão a acampamentos do PAIGC que o Saraiva tratava de lhes arranjar nas 2.ª e 3.ª Repartições

De uma das vezes voaram num Dakota para leste, Canquelifá, foram procurar uma base da guerrilha no Piai, na fronteira com a Guiné-Conacri e em duas outras vezes foram para o triângulo do Oio, um na área de Bissorã, o outro entre Mansoa e Mansabá. O pessoal, à volta de 20 oficiais e sargentos enquadrados por comandos naturais da Guiné, Mamadú Jaló, Marcelino, Kássimo, o Tomás Camará e poucos mais, portara-se bem.

Sentia-se bem preparado, tinha a consciência que estava mais forte, já que tinha que ser, podia fazer uma guerra como devia ser.

Porta de armas do quartel de Brá. 
© Foto do autor.

O quartel de Brá era enorme. Era melhor que estivessem sós, mas repartiam sem grandes problemas as instalações com os Adidos e com o Batalhão de Artilharia 733. As instalações eram boas, limpas todos os dias. Os quartos seguidos, num edifício térreo de frente para a messe, uma rua de alcatrão bem tratado no meio, um campo de volei ao lado.


terior do aquartelamento de Brá. Messes em frente, à direita. 
© Foto de Mário Dias.


No edifício à direita pernoitavam os oficiais dos comandos. Para lá da mata em frente ficava a base aérea e o aeroporto de Bissau.


As traseiras davam para terra batida, capinada uns dias antes que ainda cheirava a fresco, o arame farpado a pouco mais de 200 metros, junto à estrada alcatroada que ligava Bissau a Mansoa e que se ramificava depois em estradas de terra batida, picadas como lhe chamavam, para Bissorã uma, para Mansabá a outra, formando os dois lados do famoso triângulo do Oio, albergando pequenos mas numerosos acampamentos Inimigos em volta da base de Morés, destruída e logo de novo levantada noutro lugar próximo.


O aeroporto de Bissalanca a escassos quilómetros era um entretimento, iam lá tomar café, ver as chegadas dos voos semanais da TAP, as hospedeiras de saia travada a descerem as escadas do avião, o pessoal novo a chegar, chamavam-lhes maçaricos, periquitos meses depois, quase todos em rendição individual, as caras deles, coitados, e as jovens mulheres recém-casadas ao encontro dos maridos, corações descontrolados, mortos por as apertarem, beijos envergonhados, os olhares invejosos dos outros nas pernas delas.

No bar do aeroporto, o Paul Anka, às vezes, fazia o fundo, Only you. No quarto que repartia com o Vilaça, herdado do Saraiva e do Godinho, adormeceu embalado com a música ritmada da ventoinha do tecto.
____________

Nota:
1 - Serviço Postal Militar e nome de código atribuído à CªCmds.

************

Incidentes em Bissau

Nada de admirar, estamos na época das chuvas. O chumbo do céu a bater no alcatrão, até fumo subia! Voltou ao quarto a correr, no gravador a Rita Pavone "Perché, perché, la domenica mi lasci sempre sola"... Vilaça na cama, olhos no tecto, cantava com ela, oh Rita, grande Rita, canta, sua desgraçada, abre-me bem essas goelas!

Sem saber o que fazer, voltou a deitar-se, os Centuriões2 outra vez na mão. As coisas não andavam famosas em Brá, nem tudo estava a correr bem. O capitão Rubim ameaçava demitir-se, pirar-se deles. Acima de tudo estava farto, cansado de ver por um canudo as promessas do Comando Militar.

Do Porto nada de notícias. A última carta que tinha recebido não lhe deixara muitas esperanças. Que não sabia se a coisa ia dar certo, que estava com dúvidas, que se calhar era melhor fazer uma pausa na escrita. A retaguarda ameaçava ruir, sentia falta de pé. Nestes meses todos, habituara-se a vê-la como se fosse a boa consciência que tinha deixado lá. Recebia cartas regulamente, todas as semanas, era um ritual pegar nelas, retirar-se para o quarto, abri-las, cheirá-las, pô-las por data, deitar-se na cama, ouvi-la.

Já há tempos que mantinham essa correspondência. Escreve para aqui, escreve para acolá, conheceu-a já nem se lembrava bem como. Gostou dela desde o início. A figura batia com o que escrevia. Foi para os Açores até que acabou por ser mobilizado.

Nos dias de férias da mobilização, antes do embarque, foi despedir-se. Daquele turbilhão de acontecimentos em tão poucos dias recordava o momento em que se separaram na Avenida dos Aliados, na paragem dos eléctricos, frente à Arcádia. Se um dia viesse a casar, era com ela que gostaria. Interessado, escrevia-lhe com regularidade, dava-se a conhecer melhor. Ela dava-lhe notícias, geralmente optimistas, do trabalho, da faculdade, da vida no Porto.
Mantinha-o ligado à vida real.

A Guiné estava a ser uma coisa estranha, um trambolhão de acontecimentos absurdos, uns atrás dos outros. Ia abatendo os dias para as férias cada vez mais próximas, mantinha-se mais ou menos equilibrado, parecia ter ganho até uma imagem de bom senso naquela barafunda.
Escrevia para alguns amigos e para um conhecimento de Angra. Esporádicos, do género como tens passado, vai correr tudo bem, o tempo passa depressa, nós por cá vamos andando.
De Angra, a correspondência era diferente, trazia-lhe recordações daquela liberdade, daqueles meses loucos, de Setembro quase até ao Natal do ano passado. Tanta liberdade, meu Deus, tanta asneira, nem sabia como saíra dali incólume, manchado saíra de certeza.

Todos, mas todos os regulamentos do Exército tinham ido para o tecto. O trabalho que teve para arranjar aquele conhecimento, quase que desistira, chegou até a pensar oferecer-se voluntário para sair dali, nem que fosse para a Guiné. O tempo que gastou atrás dela, a chuva que apanhou à noite a subir a pé para o Monte Brasil3, sem nada, nem uma esperança. Mais de 15 dias seguidos, ela sempre com cara de pau, conversa só se fosse para chamar a polícia. Amanhã é dia de última tentativa, andava a repetir há dias.

Ao fim de duas semanas, o tempo que se perdeu, ela lá se dispôs a conhecer o quartel. Ele, feito burro, acreditou que estava perante uma santa, mostrou-lhe a relíquia da capela do quartel, uma igrejinha dos tempos de um Filipe de Espanha, as muralhas, até o dístico "Antes mortos livres que em paz sujeitos", tão ingénuos como ele afinal.

Finalmente conseguiu convidá-la para uma partida de bilhar na sala de oficiais. As portas fechadas, que o comandante ainda não saíra, taco na mão, puseram-se a jogar bilhar livre.

Ela, quase do tamanho dele, mas muito melhor proporcionada, que vistosa nem se fala, a cor da pele que as açorianas têm, quando pegava no taco, o vestido a subir por ali acima. Meu Deus. As bolas difíceis, então aquele tripé ou lá como se chama, não está aí? Nem associava nada, aquela maravilha toda estendida em cima do pano verde, e ele definitivamente arrumado no jogo.
O taco na mão dela, o cabelo comprido em cima dos olhos. Perdeu o sentido do jogo, de oficial de dia também, ia até perdendo a compostura se ela não lhe diz, hoje não. Hoje não, porquê?
Ora porque não, nem hoje nem amanhã, depois de amanhã vamos a ver, ele sem perceber, mais burro que nunca, ela a sorrir. Nem um beijo, nem nada? E ela, mas quem pensas tu quem sou? Tudo a ruir, o castelo também se calhar, tanto esforço para nada. Hit the road, Jack, o Ray Charles a estrear a grafonola comprada dias antes no PX4.

E subitamente, dois dias depois, ficou a saber quem ela era, o jogo todo aberto. Uma loucura dali para a frente. Por acréscimo, nem é bom falar nisto, pusera-se a poupar dinheiro à tropa, dando prémios aos melhores recrutas. Quem fizer 20 flexões, quem correr os 100 metros antes dos 20 segundos, quem se apresentar melhor, quem fizer isto tudo, dois dias de dispensa!
Num dia, lá para as 11 da manhã, estava a despachar o pequeno almoço e o expediente, tudo ao mesmo tempo, o 1.º sargento disse-lhe, talvez não seja má ideia, meu aspirante, avisar o pessoal do rancho, quase metade da companhia de recrutas está de licença estes dias todos.
Uma vergonha, nem lembrar quanto mais para contar. Tributo à gente boa daquelas ilhas, que terra tão abençoada!

As cartas desse conhecimento traziam-lhe os cheiros da Ilha, o capacete da humidade daqueles dias em Setembro, a vontade de preguiçar, os banhos sem roupa no mar dos Biscoitos5, naquelas manhãs e tardes em que as ondas iam e vinham, mansas, embrulhadas na bruma. O gosto da areia na boca, as mordidas naqueles seios minúsculos, os bicos enormes, o beijo até sentir as coxas dela a apertar-lhe o pescoço. Cartas perturbadoras, claro, de esquecer.

"Morreu um tipo de um país qualquer6, o Salazar decretou 3 dias de luto e lá estamos nós a ouvir música de mortos com a nossa bandeira a meia haste. Custa-me engolir estas histórias quando os nossos mortos estão a ser ignorados.

Fala-se no próximo baile de finalistas, que vai ser uma festa de arromba. Alguns dos nossos vão roncar com as namoradas ou com os arranjinhos. O Parreira anda todo satisfeito, até o Quintanilha, aquele alferes dos páras mandou vir da metrópole um fato de cerimónia! Quando estive de férias em Lisboa logo a seguir à formação dos grupos, os Fantasmas accionaram uma mina e foi o que se sabe, 9 dos nossos já lá estão. Entre eles o meu grande amigo Artur. Morrem-nos 9 homens e a Emissora Nacional continua a twist e a ié-ié. É isto que me custa engolir. E ainda por cima, cabo-verdianos e alguns guineenses não vêem com bons olhos a nossa presença nas festas deles”, descarregava o Miranda, mais que irritado.

Mas que raio estava aqui a fazer? A Guiné não lhe estava a dizer nada, não a sentia como sua, sentia-se um intruso. Até com os civis brancos, poucos, talvez três dúzias, se calhar nem tanto, para além da cor da pele, de comum não sentia nada. E até lhe parecia que a sua presença era bem vinda como comprador, só isso.

Na esplanada do Bento7, a 5.ª rep. como também era conhecida, bebia cerveja com mancarra, num grupo de meia dúzia de alferes e furriéis comandos. Um terá dito, depois, que naquela noite, na Associação Comercial de Bissau, havia o baile dos finalistas da Escola Técnica. Outro lembrou-se de perguntar se alguém recebera convite. Eu não, tu não, aquele também não. Ninguém se lembrou de nós, como pode ser? Queres ir? Vamos.

Edifício da Associação Comercial e Industrial de Bissau. 
© Foto do autor.

Dentro da Associação, no enorme salão de baile, finalistas e professores da Escola Técnica de Bissau, familiares e convidados, todos animados a dançarem ao ritmo da orquestra do maestro Reis Pereira, viram alterado o programa por volta da meia-noite.

Os poucos elementos policiais, que se espalhavam pelas escadas de acesso ao andar de cima, tentaram barrar-lhes a entrada. Não conseguiram. Quando os dançantes os viram entrar em fila, fizeram alto e o baile parou. Depois, ninguém soube bem como tudo começou.

A princípio, as frentes pareciam bem delimitadas, a maioria dos participantes em festa de um lado e a meia dúzia de intrusos do outro. Com o decorrer das hostilidades, as duas partes em confronto clarificaram-se ainda mais. Quando se começaram a ouvir vivas ao camarada Presidente Amílcar o conflito alargou-se para a via pública, até que um pelotão da PM entrou em acção. Trinta e tal tipos com escoriações para o hospital, a polícia civil e a PIDE também metidas, vidros e loiças em cacos, cadeiras e mesas partidas, uma noite que nunca mais acabava.
Mesmo em frente ao Palácio do Governo, onde, soube-se depois, da janela, o Governador via aqueles gajos darem-lhe cabo da psico. Uma vergonha!
____________

Notas:

2 - Jean Lartéguy, escritor panfletário das acções da Legião Estrangeira na Indochina e na Argélia Francesas.
3 - Castelo de S. João Baptista, antiga fortaleza, onde estiveram presos muitos oposicionistas ao regime que vigorou em Portugal até ao 25 de Abril.
4 - Armazém da USAF na Base Aérea da Terceira.
5 - Freguesia do Concelho da Praia da Vitória
6 - John Kennedy, presidente dos E. U. América.
7 - Cervejaria com esplanada na baixa de Bissau, muito frequentada por militares.

************

Nino? Sentido!

Nove horas da noite, grupos em sentido na parada. Porta fechada num gabinete. O capitão pergunta aos comandantes dos grupos os porquês de tanto atraso da formatura. Para que horas estava marcada a instrução dos grupos? Às 21? E que horas têm? 21h02? Às 21h00, 1 ou 2 minutos depois são outras horas, ou não? Um minuto, meu capitão, resmunga baixo um! Uns bardamerdas é o que vocês são, os gajos fazem o que querem de vocês!

O meu grupo estava pronto às 5 para as nove, diz-lhe outro. Saraiva pára, vira-se de frente, olha-o de baixo para cima, dispara, ouça lá seu alferesinho de merda, você acha que não sou capaz de o pôr daqui para fora ao murro e pontapé?

Não devia ter falado, meu capitão, agora já estou avisado. a raiva tira a boina, o alferes não lhe larga os olhos. O capitão passa a mão pelo cabelo, três afastam-se ligeiramente a olharem para o lado, o outro segue-lhe os movimentos.

Esta, suas meninas, esta, martela o capitão, com a mão virada para o tal, é a única, a única atitude que um comando pode ter! Falamos mais tarde, alferesinho, agora todos à minha frente, 20 flexões para cada um, grupos incluídos.


Capitão Maurício Saraiva, com os "Apaches" ao fundo. Brá, Setembro de 1965.


O capitão Maurício Saraiva, promovido a capitão por distinção, até então o único vivo com a Medalha de Valor Militar em Ouro, depois de duas cruzes de guerra, tinha metido o chico8, estava em Lisboa na Academia Militar.

Aproveitara as férias para vir a Bissau dar-lhes instrução operacional, e sair com eles para o mato durante o curso de comandos para oficiais e sargentos do CTIG.

Foi um dos fundadores dos comandos da Guiné. Tinha estado em Angola, com o Godinho, os irmãos Roseira Dias, o Miranda e outros. Depois formou o grupo dos Fantasmas e com ele percorreu a Guiné de uma ponta a outra.

Deixou fama pela forma como fazia a guerra, por vezes parecia encará-la como se fosse uma brincadeira. Fazia que retirava, dava às vezes até sinais de fuga descontrolada, como se quisesse animar o IN a mostrar-se confiante. Escondia-se com o grupo, paciente, uma ou duas horas se fosse preciso. E depois, Fantasmas ao ataque! Uma série de êxitos coroavam-no e era objecto de mal disfarçada homenagem, numa altura em que a regra era ver as NT recolhidas a posições defensivas.

Mas nem sempre as coisas correram bem. Tanta intrepidez e desafio também lhe trouxeram sérios problemas.

Novembro de 64, dia 28. Perto da fronteira com a Guiné-Conacri, na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro.

Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros. No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou o resto do grupo no Unimog maior atrás. A primeira viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. A viatura incendiou-se, as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto e do depósito de combustível saía fogo. Quase todos os homens foram projectados a arder. Sete mortos logo ali e três feridos graves. Regressaram doze a Bissau. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação.

Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul. No diário do furriel João Parreira, um deles, podia ler-se:
 
“6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação “Ciao”, num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Rubim foi connosco. Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Isna, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo Comandante Nino.

Já na madrugada do dia 7, a poucos quilómetros do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário. Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a sudoeste de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga. Oito armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.

Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão de recolha. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro, até então ainda não apreendido na Guiné.

O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Saraiva chamou o Amadú e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadú. Ofereci-me bem assim como o capitão Rubim, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.

De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo. Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.

Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me. Deitei-me e reagi ao fogo, mas passado pouco tempo fiquei sem força no braço, a G-3 ficou muito pesada, e depois já nem o gatilho conseguia apertar. Passei a espingarda para o braço esquerdo e fiz fogo, mas julgo que não fui nada eficaz. Os outros 8 camaradas, embora ligeiramente, foram todos atingidos. Depois os restantes elementos do Grupo foram lá buscar-nos. Junto do pelotão de apoio, injectaram-me morfina. Tinha perdido muito sangue. Prestaram-me os primeiros socorros em Cacine.

Fomos evacuados para Bissau. Eu de barriga para baixo, bem atado, com mais uma injecção de morfina, e o Morais, morto, cada um em macas de lona, encaixados no exterior do heli9. Durante o trajecto, e em duas localidades diferentes, na minha sonolência ouvi rajadas de metralhadora que me pareceram passar rente ao helicóptero. Pareceu-me uma eternidade a viagem até ao hospital de Bissau, onde, depois de me terem operado, fiquei internado.

8 Maio. O Marcelino foi o primeiro a vir ver-me ao Hospital. O crucifixo que eu trazia ao peito era uma crosta, uma grande cruz de sangue seco. Pedi-lhe que o lavasse.

9 Maio. Muitos camaradas me visitaram hoje, o major Dinis, o tenente Saraiva, o alferes Pombo, os furriéis Matos, Moita e o Miranda, claro. Da parte da tarde vieram a D. Beatriz Sá Carneiro, mulher do Comandante Militar e a D. Mariana do MNF10.

O Morais era órfão de pai. No caso dele correu tudo no mesmo sentido. Mal. Não era necessário a presença dele nesta operação, já tinha acabado a comissão. Em Brá tentaram persuadi-lo, mais que uma vez, a não ir. Tantas vezes, que diferença vai fazer sair mais uma, insistia. Não embarcou com o Batalhão a que pertencia, por ter combinado que esperava que o tenente Saraiva e os furriéis Matos, Moita e Ilídio acabassem a comissão. A estes faltavam-lhes apenas 15 dias. Imaginava o regresso à Metrópole, todos juntos num navio, como se regressassem de um cruzeiro de férias.

O Miranda recebeu o corpo no Hospital. Foi ele com o Mário Dias, o Fabião e o Ilídio que o lavaram, vestiram e deitaram no caixão. Fizeram uma colecta para a compra do caixão de chumbo. E coincidência, morreu no mesmo dia em que o seu Batalhão de origem desfilava em Lisboa, com a missão cumprida.”

Claro que, fosse para onde fosse, o Saraiva trazia com ele esses e outros acontecimentos, como se uma auréola o enfeitasse.

Quando reentrou em Brá, para passar o tal mês de “férias”, apresentaram-lhe os novos que estavam a frequentar o curso e pessoal já bem conhecido dele, o capitão Rubim, o sargento Mário Dias, os furriéis Miranda, Moita, Matos, Fabião, o João Parreira, o cabo Marcelino, os soldados Kássimo, Tomás Camará, o Adulai Jaló e outros.

Dos novos conhecia um ou outro, e aos que não conhecia tinha algum tempo à frente para os ver trabalhar no mato e depois veria a quem entregaria o crachá. Passava a vida a pô-los em sentido. Uma volta na conversa e lá vinha o Nino à baila. O Nino, estão a olhar para mim?

O Nino11, que porra, estes gajos são todos surdos? O Nino, ele a insistir e os alferes com falta de entendimento. Sentido, porra! Aqui nos comandos quando se fala no Nino, toda a macacada, vocês também, saltam como uma mola, estejam onde estiverem, não interessa, põem-se a pé! Em sentido!

E foi assim que se fez escola, dali para a frente, sempre que alguém pronunciava o nome do Nino, os outros punham-se em sentido.

Uma vez, em Biambe, na zona do Oio, uma tempestade como não havia na memória deles, tinha partido o grupo em dois, aí pela uma da madrugada, noite negra como só em África quando o céu está todo tapado. Um, sozinho, lá encontrou o trilho depois de andar a tactear o chão. Daqui não saio, vou-me mas é sentar!

A chuva não parava, pareciam pedras a cair, faziam tanto barulho no camuflado que receou que o denunciassem. Ainda bem que só tinha as cuecas debaixo, menos peso para carregar. Nada de sinais, nem de trás nem da frente. Esta é boa, onde é que os gajos se meteram, que merda, assobiou baixo, a imitar o pássaro que afinaram no curso. Nada de respostas, minutos a passar, chuva em barda. Estou frito, estou mesmo perdido, o coração como um cavalo a galope, até sentia calor, olhava para todo o lado e só via escuridão, pirilampos nem vê-los, nada, só ouvia o barulho da água a bater. E agora, o que faço? Eles hão-de dar pela minha falta, não me vão deixar aqui. E se não derem?

Calma, esperas pelo nascer do dia, viras as costas ao Sol, cortas mato, nada de trilhos, sempre em frente, até à estrada Mansoa-Bissorã, escondes-te, há-de aparecer uma coluna um dia destes, quase todos os dias passam. Depois é só saltar para a estrada e pronto. E se a guerrilha te vê, o que é que fazes? Pois. Minutos a durarem horas, o coração outra vez.

Um pequeno som, pareceu-lhe, serão eles, ou estarei a sonhar? Um assobiar baixinho. É isso, são eles, nunca mais vinham, assobia também, assobio cada vez mais próximo, uma mão, o Kássimo, o Saraiva atrás. Então e os outros? O capitão, danado, a bufar, e os outros? Kássimo à frente a assobiar, dentro do trilho, foram andando para trás, mãos no cinturão do da frente. Encontraram o capitão Rubim e o alferes Vilaça, os dois sentados, costas com costas. A dormir na forma, ah?

No outro sábado o Saraiva encontrou os quatro alferes sentados, tinham acabado de almoçar na messe de Brá. E o programa para hoje, qual é, perguntou. Vou até Bissau espairecer, diz um, outro vou mas é dormir com a cama, a correspondência a preocupar o terceiro, o quarto, sei lá? Ele arranjava um melhor, têm 5 minutos para se equiparem para sair.

Levou-os para o aeroporto, os motores já quentes do Dakota pronto para descolar. Foram para leste, Nova Lamego até Canquelifá, perto da fronteira com a Guiné-Conakri. Chegaram com o Sol quase a ir-se. Esperaram fechados dentro do avião, os motores parados.

Abriram-lhes as portas, entraram directos para uma GMC com as lonas corridas. Meteram-lhes lá dentro queijo partido aos bocados e pão. O Saraiva, gargalhada baixa, a pedir os cantis, para encher de água fresca, disse. O meu não precisa, está cheio até cima, nem se ouve, mesmo que o abane, diz um. Passe, o capitão a insistir. Que a marcha ia ser longa, cerca de 20 km, e a água vai ser decisiva.

Ouçam bem, só bebem quando eu der sinal, todos a beber ao mesmo tempo.

© Foto do Júlio Abreu. Com a devida vénia.

Carvão negro na cara e nos braços, pareciam manjacos e mandingas. Pôs-se o sol, meteram-se no mato, dois a dois, trilhos fora, quilómetros e quilómetros, a noite toda.

Comandos ao ataque, o Saraiva desalmado a gritar, como gostava de começar o dia. Fizeram-se a eles, por ali dentro, as casas de mato com 2 ou 3 gajos que nunca lhes tinham sido apresentados a pisgarem-se. Depois, um dos intrusos passou à história. Da gargalhada. Quando sentiu os projécteis de uma metralhadora pesada inimiga a bater lá em cima nas árvores, até disse para os outros, olha a NT a apoiar! Os outros a rirem-se, uma força danada dentro deles. No caminho do regresso lembraram-se da genica que sentiram, estamos numa forma do caraças, não estamos?
Nunca souberam de onde tinha vindo tanta gana, se calhar tinha sido quando o capitão,

 finalmente, autorizou meterem água, devia ter vitaminas. A certa altura do caminho de retirada, começaram a ficar sem forças. Estranharam, nunca lhes tinha acontecido, não acertavam com o trilho, não era só um, eram todos. Menos o capitão. Alguns paravam, encostavam-se às árvores, queriam sentar-se, os olhos para cima. Quem parar fica para trás, o Saraiva lá à frente, na esgalha. Em pequenos grupos foram chegando. Em Canquelifá, uma cerveja gelada, boca abaixo, duma vez só. Alguns só acordaram com os motores do Dakota e um ou dois nem assim. A caminho do avião, pareciam zombies, em coluna por um, pelo campo fora.

Da outra vez, mandou tapar-lhes os olhos com algodão, fita adesiva e um lenço negro por cima. Só tiram os lenços e o adesivo quando eu mandar. É para ver se adivinham para onde vamos passar o fim-de-semana. Viaturas pela estrada fora, para onde havia de ser, para o Oio. Quando entraram em Mansoa, pararam. Então, quem é amigo? Para onde vamos então? Toca a tirar os lenços, olhos e ouvidos bem abertos agora. Foram por ali fora até Bissorã. A mesma história do queijo e do pão, uma cerveja para cada um, cantis cheios de água, por aqueles trilhos, a noite toda.

Um cigarro agora é que sabia bem. Pois, também a mim me apetecia estar na praia de Carcavelos, ao sol com a miúda, os ouvidos dele em todo o lado. Fumas no fim do fogo. O dia clareou, estavam no sítio certo, as casas de mato em frente. Os guerrilheiros é que faltaram à chamada naquela altura. Não saímos daqui enquanto os gajos não aparecerem, o capitão a provocá-los. Vieram mais tarde, quando já não dava muito jeito, mas arranja-se sempre qualquer coisa, que remédio. Um daqueles alferes integrado na equipa do furriel Moita, apanhado num campo de mancarra, com nada para se abrigar, ou estava com pressa de regressar a Bissau, ou tinha visto no cinema uma cena parecida, chateou-se, aqui vou eu, quem quiser que venha. Quis lá saber da parelha e da equipa, meteu-se por aquelas casas de mato dentro. Depois ficou lá dentro sozinho, sem saber bem o que fazer. Os companheiros daquele fim-de-semana encontraram-no a olhar para o ar, para os ramos das árvores a abanarem com as balas. Estes gajos nunca mais aprendem, porra, 20 flexões aí já, o Saraiva oportuno como sempre. Agora sim, podem fazer fogo com o isqueiro, toca a fumar!
____________

Notas:

8 - Dizia-se dos milicianos que passavam ao Quadro Permanente.
9 - Allouette II
10 - Movimento Nacional Feminino.
11 - Considerava o Nino como um verdadeiro chefe militar e, apesar de inimigo, merecedor de respeito.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14845: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IV Parte): Comandos do CTIG