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segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17940: Notas de leitura (1011): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

A investigação de María José Tíscar sobre as redes de informações da PIDA/DGS em África abre com um importante capítulo que nos dá em grande ecrã os serviços de informação na guerra colonial, nesse contexto aparece um jovem alferes na Guiné, António Fragoso Allas, que vive fundamentalmente na região de Bedanda, Tombali.

No regresso, tendo-lhe sido obstada a carreira militar, ingressa na PIDE e o seu trabalho ganhará notoriedade quando vai participar na restruturação das informações da PIDE em Angola. Spínola pretende os seus serviços logo em 1968, só depois do que aconteceu na operação Mar Verde é que recebeu assentimento da PIDE em Lisboa.

Neste texto abordar-se-á o assassinato de Cabral, Fragoso Allas montara uma rede de informação que conta com os djilas e atingia o PAIGC em pontos nevrálgicos, houve contactos com figuras guineenses, com destaque para Nino Vieira. E esclarece-se, creio que corretamente, que nem Spínola nem a PIDE tiveram algo a ver com o assassinato do fundador e líder máximo do PAIGC.

Um abraço do
Mário


De leitura obrigatória: o diretor da PIDE/DGS na Guiné, no tempo de Spínola, na primeira pessoa (2)[1]

Beja Santos

O livro intitula-se “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar, Edições Colibri, 201.

Já aqui se escreveu como Allas chega à Guiné para chefiar a delegação da PIDE/DGS em meados de 1971, depois de muita insistência de Spínola. Do seu depoimento, fica bem claro que o seu trabalho parecia praticamente ignorado pelos serviços centrais da polícia política, não se percebe muito bem se por azedume quando Spínola pretendeu prender o seu antecessor, Matos Rodrigues, de algum modo responsabilizado por deficientes informações que conduziram aos péssimos resultados da Operação Mar Verde. Por que teria sido Allas tão insistentemente solicitado por Spínola? O entrevistado responde:

“O objetivo do general era ter alguma sensibilidade para perceber melhor o que se passava no interior do PAIGC, sem provocar mal-estar. Eu sentia que ele tinha esse interesse em encetar conversações com o PAIGC, mas isso não pode ser feito sem tempo. O mais importante para ele era melhor a pesquisa de informação porque a queria aproveitar para as suas operações. Penso que ele queria chegar a contacto com Amílcar Cabral e, por outro lado, controlar a rede interna do PAIGC na própria província da Guiné, que existia e era importante”.

A conversa centra-se no assassinato de Amílcar Cabral. Spínola terá reagido com desalento à notícia de morte de Cabral: “bem, estamos tramados”. Revela que nunca teve instruções para preparar e mandar executar o assassinato de quem quer que seja: “Matar não tem interesse porque isso complica o problema. Mas nós fizemos muito para levá-los a negociar connosco. Isso é que tinha interesse”.

Nunca a PIDE/DGS em Bissau participou num plano secreto para matar Amílcar Cabral. Não deixa de ser ambígua a resposta que dá à pergunta de um qualquer envolvimento da PIDE em Lisboa: “Eu não sei o que se passava em Lisboa”.

Ambígua e seguramente sujeita a ressentimentos, Fragoso Allas sabia o suficiente para saber que era totalmente impensável montar-se uma operação em Lisboa até Conacri sem ele dispor de informações. Ambígua é também a resposta quanto ao facto dos assassinos de Amílcar Cabral se terem ido apresentar a Sékou Touré, é evidente que os sediciosos, todos guineenses, após terem prendido os quadros cabo-verdianos, teriam que ter um apoio, sem a bênção de Touré estariam perdidos, como ficaram, Touré tinha que dar prova de firmeza e não interferir no conflito entre guineenses e cabo-verdianos, colaborou na cortina de fumo da intervenção da Guiné Portuguesa e até se ficcionou que uma esquadra portuguesa aguardava no limite das águas territoriais a chegada dos sediciosos com os altos dirigentes do PAIGC.




O General Costa Gomes visita a Guiné em Julho de 1973, vive-se uma situação muito crítica. O general pede a Allas para procurar contactar os guerrilheiros guineenses.

“Respondi que depois da morte de Amílcar não tinha contactos válidos no órgão político para esse fim. Poderia contactar o Nino Vieira mas levaria tempo; não tinha peso político na cúpula, mas tinha influência numa parte grande dos guerrilheiros guinéus que já não queriam combater. Este era o nosso melhor trunfo e poderia ter sido aproveitado por nós no palco político internacional”.

Faz reparos críticos a não se ter aproveitado devidamente o contacto com Senghor nem a vontade dos guerrilheiros guineenses se entregarem. Informa que lançou um alerta a Lisboa acerca da possibilidade do PAIGC, em curto prazo de tempo, poder aniquilar algumas guarnições e estabelecer novas áreas libertadas. E mais: “Disse que tínhamos de contemplar a hipótese de se vir a abater um avião, mesmo a hipótese de ser atacado um avião da TAP”.

Como responsável pela PIDE em Bissau, propôs a Lisboa a Operação Safira, destinada a desestabilizar Conacri, isto em fins de 1972 ou princípios de 1973, era uma proposta para se criar uma rede para fazer distúrbios na Guiné Conacri, não obteve resposta, e a operação não chegou a funcionar. Acerca dos aspetos organizativos desta operação, Allas é interpelado sobre a participação de elementos do PAIGC:

“Eles já trabalhavam connosco. Havia um lá dentro que nos vinha dar informações e houve gente dessa que levou explosivos para colocar na Guiné Conacri, em Boké, em Kandiafara, naquelas povoações que mais nos complicavam a vida e onde o PAIGC tinha bases. Um dia punham explosivos numa bomba de gasolina, outro dia num posto de autoridade administrativa… desta maneira, as autoridades de Conacri tinham de tentar controlar a situação”.

O entrevistado deixa a Guiné em Setembro de 1973. “O Governador Bettencourt Rodrigues pediu-me para ficar na Guiné, mas eu já estava muito cansado de tantos anos, seis anos de serviço consecutivos, sem uns dias de férias, e de não ter apoio de Lisboa". 

Perguntado se na altura em que saiu havia alguma inércia nos militares portugueses ou se se continuava a combater como dantes, responde: “Notava-se inércia nos militares portugueses, mas também cansaço da guerra do lado do PAIGC”.

É agora altura de discorrer sobre a obra do princípio ao fim. María José Tíscar dedica o primeiro capítulo aos serviços de informação na guerra colonial, isto para introduzir Fragoso Allas que dedicou a quase totalidade dos seus serviços às informações em África. Este futuro estratega de informações nascido em 1934, que chegou a matricular-se na Faculdade de Medicina de Lisboa, depois de cursar Mafra, embarcou em Agosto de 1957 para Bissau, onde chegou nos primeiros dias de Setembro. Foi colocado em Bolama e mais tarde escolhido para comandar um pelotão que ia ser destacado para Bedanda, na península de Cubucaré, Tombali.

A questão da soberania portuguesa no Sul da Guiné surge em 1959, indicia-se subversão das populações. “Os cipaios diziam que as populações já não estavam tranquilas e que isso era consequência do trabalho dos doutrinadores. Fragoso Allas, não sei baseado em que elementos diz que Amílcar Cabral fez a politização das populações em 1956 e 1957, isto depois de Julião Soares Sousa já ter comprovado que Amílcar Cabral estava a trabalhar em Angola, fez curtas passagens por Bissau para visitar familiares próximos, nunca nesta época e até 1960 Amílcar Cabral fala na existência do PAIGC, certo e seguro esteve em Bissau em Setembro de 1959 onde o rudimentar PAI esboça uma estratégia subversiva para o interior da Guiné e para a sensibilização internacional".

Fragoso Allas escreve o seu trabalho em Bedanda, passou quatro anos nos matos da Guiné. É no seu regresso a Portugal que a sua vida muda, tendo reprovado a entrada na Academia Militar, aceitou o convite do Coronel Homero de Matos, então dirigente da PIDE, para entrar na corporação. Começa trabalhar em cifra e em 1963 vai ter um papel fundamental na reestruturação das informações da PIDE em Angola.

Continua
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Notas do editor

[1] - Poste anterior de 30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 3 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17928: Notas de leitura (1010): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (7) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16957: Notas de leitura (920): “O fim da guerra na Guiné”, por Carlos Alberto G. Martinho, Chiado Editora, 2015 (Mário Beja Santos)

Data de publicação: Maio de 2015
Número de páginas: 220
ISBN: 978-989-51-2877-8
Colecção: Bíos
Género: Biografia
Fonte: Chiado Editora (com a devida vénia...)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
Carlos Martinho estagiou em Angola como alferes em 1971, em Gago Coutinho e fez a sua comissão na Guiné entre Março de 1972 a Julho de 1974, comandou Os Fantasmas da Bolanha. Manifestou-se como opositor antes de partir para a guerra, rendeu Salgueiro Maia em Guidage, fez parte do cerco ao Palácio do Governador, depois de anunciado o 25 de Abril em Lisboa.
É uma narrativa que nos deixa um travo amargo na boca, de tão esquematizado e em estilo de relatório é o seu depoimento que arranca muito bem com descrições da sua infância numa aldeia na região do Fundão. Terá tido o privilégio de ver grandes mudanças, mas o seu esquematismo é tão rígido que nem lhe deve ter ocorrido que gostaríamos de saber mais da sua passagem por Binta, Guidage e Bigene, que teríamos também curiosidade em que ele escrevesse aquela atmosfera de Bissau com algumas explosões, no primeiro trimestre de 1974, e saber também mais sobre o clima explosivo das tais unidades que queriam imediatamente entregar os quartéis ao PAIGC, di-lo mas não desenvolve. Ora ele foi um protagonista e não mero figurante, perdeu esta ocasião única de deixar um depoimento para a História.

Um abraço do
Mário


O fim da guerra da Guiné, por Carlos Alberto G. Martinho

Beja Santos

O autor, formado em engenharia mecânica pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa, foi, entre 1972 a 1974, capitão miliciano e comandou a CCAV 3568, que atuou na Guiné. Chama à sua narrativa “Histórias de um capitão miliciano e do seu estágio em Angola e das suas origens em Silvares, na Beira Baixa”. Mas essencialmente “O fim da guerra na Guiné”, por Carlos Alberto G. Martinho, Chiado Editora, 2015, é um documento-relatório, que aparece esquematizado por etapas cronológicas, e onde a ênfase é posta no período de Abril de 1972 a Junho de 1974, vamos ver esta CCAV a operar no Olossato, em Quinhamel, em Binta, Bigene e Guidage.

Fala-se da sua infância em Silvares, concelho do Fundão, da pastorícia da região, da emigração da família para a Venezuela, onde ele passou uma parte da sua meninice. Depois do pai ter vendido os seus negócios em Caracas, a família instala-se em Lisboa. Conta episódios da sua juventude, do seu internamento no Colégio Outeiro de S. Miguel, na Guarda e esmiúça a vida e a situação de muita pobreza na aldeia de Silvares. Foi irregular na sua vida universitária e daí ter sido chamado para Mafra antes da conclusão do curso. Participou em manifestações contra o regime. Ainda pensou em desertar mas o pai pediu-lhe para o não fazer. Fez recruta e especialidade em Mafra, entre Outubro de 1970 e Março de 1971, e noutra fase o curso de capitães que concluiu em finais de 1971. Segue-se a descrição do estágio que entretanto fizera na região de Gago Coutinho.

Sempre minucioso na apresentação das suas sinopses, descreve a origem e a formação da CCAV 3568, a sua chegada ao Cumeré, a promessa feita por Spínola de que se acaso a sua companhia se portasse bem no Olossato, ao fim de um ano regressaria a Bissau, veremos adiante que a promessa não foi cumprida.

Estamos agora no Olossato, localidade muito próxima de Bissorã (sede de batalhão), a ligação era feita por picada, com todas as cautelas, atravessava-se um rio secundário, aí estava um destacamento na Ponte do Maqué, a cerca de 4 quilómetros. Descreve a população do Olossato e respetivas etnias. Ficamos a saber que os trabalhos agrícolas da população eram realizados principalmente na Bolanha de Fanjonquito a cerca de 3 quilómetros do Olossato. A primeira ocorrência é de índole disciplinar, o soldado Adão Teixeira embriaga-se repetidas vezes e sempre fazendo uns disparos para o ar com G3. Há também um primeiro-sargento que se mantinha diariamente alcoolizado. Ilustra a delicadeza da vida na Ponte do Maqué com as obrigações diárias de tirar e pôr minas e armadilhas. Em 18 de Maio de 1972, Marcelino da Mata e dois soldados adjuntos chegam ao Olossato vestidos e armados como guerrilheiros e partiram com as milícias para a zona de Suntuariá, regressaram cedo com dois homens, oito mulheres e três crianças. No Olossato iniciaram-se os interrogatórios. O capitão Martinho foi surpreendido com gritos e acorreu à sala do interrogatório, e explica assim a situação:

“Vi esta cena: no meio da sala, um dos homens capturados tinha o braço sobre um pedaço do tronco de uma árvore e Marcelino da Mata estava a bater com outro pau sobre este braço. Gritei imediatamente para pararem com aquilo e perguntei ao alferes o que se estava a passar. O alferes disse-me que aquele homem saberia onde estava o inimigo. Dei ordens para parar com esta situação e informei que não permitiria qualquer tortura. O primeiro-sargento Marcelino da Mata quando se despediu de mim na pista de aviação, para entrar na DO, disse-me: meu capitão, não costumo fazer estas cenas, porque nas operações que faço com os meus homens, por ordem do comando-chefe de Bissau, não trago prisioneiros”.

A população capturada foi entregue em Bissorã. Em 25 de Maio, numa flagelação ao Olossato, o capitão Martinho é ferido com gravidade, uma das mãos fora atravessada por estilhaços da RPG-7, corria o risco de perder dois dedos. Em Julho desse mesmo ano, na picada entre Olossato e Bissorã, explode uma mina anticarro numa Berliet. A cerca de 6 quilómetros de Bissorã a viatura foi pelos ares:

“Todos nós fomos cuspidos da viatura pelos ares, de tal forma que até o meu relógio e a Medalha de Nossa Senhora de Fátima que trazia ao pescoço se perderam para sempre no mato. Um dos soldados ficou gravemente ferido e foi evacuado".

E assim chegamos a 10 de Agosto em que Olossato sofre um ataque violentíssimo, durante cerca de 75 minutos, felizmente não houve acidente de maior. Dois militares morreram por acidente, tinha havido uma banalização dos procedimentos de minar e desminar diariamente perto de Ponte de Maqué, um furriel também morrerá mais tarde num destes tipos de acidentes. Em Maio de 1973, morre o soldado Carlos Viegas por falta de evacuação da Força Aérea, estava-se nesse momento a viver um período dramático na utilização dos mísseis terra-ar Strella. Deduz-se deste relato que a operação mais importante que esta companhia viveu foi a sua participação na Operação Empresa Titânica, entre 27 e 28 de Fevereiro de 1973, na região do Morés. Dá-se então a rendição da CCAV 3568 pela CART 6254, o capitão Martinho e os seus homens vão para Quinhamel, é sol de pouca dura, rapidamente são convocados por Spínola, têm que marchar rapidamente para Guidage.

Estamos em Junho de 1973, chega a Binta e começam os patrulhamentos e a recolha dos corpos das nossas forças, mortas em combate. Ocorre a operação “Abertura rutilante", de 16 de Julho a 17 de Agosto, para a abertura da picada Binta-Guidage. A sua companhia fica em Bigene. Descreve os factos relevantes em Bigene e Guidage. Comanda 250 homens, a sua companhia e a CCAÇ 19, formado essencialmente por tropa africana. Descreve Guidage:

“O quartel estava muito danificado. No meu gabinete tinha caído uma granada de morteiro 82 e o refeitório dos soldados também se encontrava num estado lastimável. Os soldados dormiam nos abrigos fortificados e até nas valas”. E escreve mais adiante: “Foi através dos militares da CCAÇ 19 e do pelotão de artilharia que se soube do local do enterro dos nossos militares, com a sua identificação inscrita num papel introduzido numa garrafa de cerveja. Na sequência do ataque, foi apenas improvisado um cemitério naquela localidade”.

Em Outubro saiu de Guidage e foi para Bigene, só em Dezembro é que é colocado na região de Bissau. Em 26 de Abril, é informado de que houve um golpe de Estado em Portugal. No dia seguinte, o comandante de COMBIS pergunta-lhe se aderiu ao espírito da revolução, responde afirmativamente. E diz mais: “Havia comandantes de batalhões do interior do território e capitães, sobretudo do quadro, que pressionavam para se entrar em negociações diretas com o PAIGC".

Faz parte das unidades que cercaram o palácio do governador Bettencourt Rodrigues, que não aderiu ao 25 de Abril. A sua comissão está praticamente no fim.
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Nota do editor

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16632: Notas de leitura (894): “Guerra e Paz, Portugal/Angola, 1961-1974”, pelo Brigadeiro-General Willem van der Waals; Casa das Letras, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Trata-se de um estudo muito bem documentado, a galeria dos protagonistas é servida com rigor e objetividade, o contexto da guerra angolana toma sempre em conta as outras frentes, no final da obra o autor diz que aquela guerra estava inextricavelmente ligada a conflitos não resolvidos nos outros territórios africanos. Fala-se da Guiné onde se sabia não seria possível para qualquer um dos lados uma vitória retumbante e a seu propósito escreve o autor: “A Guiné seria o teste crítico de resistência e de força de vontade das Forças Armadas e a razão principal para o colapso do governo em 1974”.
Outro autor por ele citado dirá mesmo que Caetano não podia ter aqui a sua batalha de Dien Bien Phu e prosseguir como se nada tivesse acontecido.

Um abraço do
Mário


Guerra e paz, Portugal/Angola, 1961-1974

Beja Santos

Não se trata propriamente de um olhar de um historiador estrangeiro, o Brigadeiro-General Willem van der Waals autor de “Guerra e Paz, Portugal/Angola, 1961-1974”, Casa das Letras, 2015, foi vice-cônsul da África do Sul em Luanda, entre Abril de 1970 e Dezembro de 1973. Conheceu na perfeição a UNITA e este seu livro tem por base a sua tese de doutoramento numa universidade sul-africana. Com o 25 de Abril de 1974, o autor, colocado na Namíbia, contactou a UNITA. Foi depois colocado no quartel-general sul-africano em Pretória, o dossiê Angola não mais o largou. E como ele bem diz, para se compreender totalmente a guerra civil Angolana, o envolvimento de África do Sul e a Angola de hoje é necessário compreender todos os acontecimentos luso-angolanos, sobretudo a partir de 1961.

O estudo de van der Waals aparece bem compartimentado, baseia-se numa tese de doutoramento, é multidisciplinar e tem ambições de enquadrar os múltiplos protagonistas desenvolvidos. Começa por nos dar o ambiente físico e humano e enquadramento histórico de Angola, a emergência do nacionalismo a partir da era de Salazar e o despontar de forças como o MPLA e a UPA. Recorda que o Acto Colonial previa uma maior dignificação do indígena e o fim do trabalho forçado, mas que nada se passou assim, como observa: “Um fazendeiro que requeria trabalhadores solicitava-os às autoridades governamentais, após o que se abordavam os líderes negros para preencherem a quota com gente das suas comunidades. Se não o faziam, a questão passava para a polícia, que realizava batidas arbitrárias arrebanhando homens até preencher a quota. Tais práticas laborais revoltantes tornaram-se no foco da atenção não só em Portugal mas também a nível internacional. Em 1947, o Capitão Henrique Calvão, na qualidade de Inspector-Chefe da Administração Colonial apresentou um relatório numa reunião secreta da Assembleia Nacional, alegando que a economia angolana explorava mão-de-obra negra barata comparando o trabalho do contratado ao da escravatura. Avisou o governo de que haveria uma catástrofe iminente caso as condições de trabalho não fossem rapidamente melhoradas”.

Temos seguidamente o ano crítico de 1961, correspondente ao início das sublevações, segue-se a luta revolucionária limitada entre os anos de 1962 a 1966 e a guerra prolongada entre os anos de 1967 a 1974. Não havendo qualquer surpresa na documentação apresentada, louva-se o autor pela capacidade de síntese na apresentação dos protagonistas e dos demais movimentos de libertação em colónias portuguesas. O mesmo se dirá da boa capacidade esquemática apresentada para os factos da luta revolucionária, inicialmente centrada na região Norte e posteriormente na frente do Leste. Fica-se com o entendimento dos altos e baixos na representação das três forças anticoloniais, as suas filosofias e até os seus aliados. Há muito que se sabe que o MPLA, no início de 1974, vivia precariamente e com destino aleatório. Em 18 de Abril de 1974, o comandante de esquadrão Manuel Muti rendeu-se às autoridades portuguesas, dando informações dentro das fileiras do MPLA, ficou-se a saber que havia duas fações distintas encabeçadas por Agostinho Neto e Daniel Chipenda. A figura-chave que leva à neutralização temporária da sublevação de Luana é Costa Gomes. Enquanto Comandante-Chefe de Angola, reformou a estrutura do comando e do controlo e assumiu o real comando das operações, africanizou as forças da ordem e colocou o General Bettencourt Rodrigues como Comandante da Zona Leste onde, em 1971, lançou uma ofensiva bem-sucedida. Van der Waals esmiúça com detalhe a evolução da FNLA/GRAE/ELNA, da UNITA e procura interpretar as razões do êxito temporário das forças portuguesas frente ao inimigo. E escreve: “Encarada isoladamente, a guerra em Angola redunda num excelente exemplo de luta contrarrevolucionária relativamente bem-sucedida. Em 1974, os movimentos de resistência que desafiavam a autoridade de Portugal em Angola encontravam-se exaustos e divididos. Do mesmo modo, o cansaço da guerra impregnara já a mentalidade portuguesa, muito em concreto no seio das Forças Armadas. Este sintoma, resultado de 13 anos de guerra, mostrava-se menos palpável em Angola mas viria, não obstante a determinar o seu destino. A guerra de Portugal e Angola, quando chegou ao fim, estava inextricavelmente ligada a conflitos não resolvidos nos outros territórios africanos e a tendências subterrâneas existentes na própria Metrópole”.

De leitura obrigatória para compreender a mais sangrenta sublevação contra o colonialismo na história de África a Sul do Sara.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16624: Notas de leitura (893): “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, organização de Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, Fernando Catroga; Temas e Debates; 1998, volume II (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16329: Notas de leitura (862): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
Porventura são estes testemunhos na primeira pessoa a matéria mais aliciante para o leitor que foi combatente, pela diversidade, pela sinceridade, pelo feliz entrosamento entre a memória e um distanciamento que não deixou rancores.
O livro de António Inácio Nogueira merecia andar pelas mãos de todos. Estes jovens capitães, salvo melhor opinião, são um inequívoco termómetro da atmosfera que se vivia em muitos pontos da Guiné, são testemunhos que não iludem a desmotivação, a descrença, o salve-se quem puder. A despeito deste estado de espírito, é impressionante como a generalidade destes jovens capitães sentiu a responsabilidade do mando e a vontade de trazerem todos os seus homens nas melhores condições físicas e psíquicas. E muitos não escondem o orgulho de isso ter acontecido, ou quase.

Um abraço do
Mário


Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (3)

Beja Santos

O livro “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016, é o mais minucioso olhar até hoje lançado àqueles a quem depreciativamente se chamavam os capitães proveta, naquele dado momento em que nos batalhões os oficiais do quadro permanente se cingiam ao comando e por vezes à CCS, aquelas centenas de jovens de oficiais que tinha sido aprovados nos cursos de comandantes de companhia, dados em Mafra passaram a ser os executantes operacionais por excelência.

Na análise que temos estado a efetuar, abordou-se a síntese que o autor nos dá sobre o enquadramento histórico e político da guerra, os modos de seleção e formação dos jovens capitães, passou-se em revista textos autobiográficos de cinco desses jovens capitães e entrou-se num importante capítulo abarcando cerca de três dezenas de testemunhos na primeira pessoa. Obviamente que nos cingimos ao que se escreve sobre a Guiné, sem prejuízo, é dito insistentemente, que o documento é suficientemente importante para ser lido do princípio ao fim por qualquer combatente de qualquer dos três teatros de guerra.

Vejamos o que nos diz José Fernando Real Magalhães Mendes que embarcou para a Guiné em Setembro de 1971 e deixou Bissau em Dezembro de 1973. Depois do 25 de Abril, ligou-se à LUAR e até se envolveu no assalto à Embaixada de Espanha. Teve pressão e recompôs-se, acabou os estudos e foi para advocacia. Ofereceu-se como voluntário, fez estágio em Angola na zona dos Dembos. Coube-lhe Bajocunda na Guiné. Investiu na população, andou nos trabalhos de reordenamento. Não esconde que de vez em quando investia pelo Senegal adentro para trazer vacas, pagava sempre, a contrapartida era o médico e o enfermeiro tratarem a população. “Um dia veio um sujeito muito atrapalhado dizer que tinha a mulher grávida e estava muito mal. Eu fui com o pelotão do alferes Sequeira ao Senegal. Fomos até lá, levámos o furriel enfermeiro e depois pedimos uma evacuação para junto da fronteira, o furriel enfermeiro disse que a mulher ia morrer se não fosse tratada. Veio um helicóptero e levou-a para Bissau, soube depois que ela se safou e o filho também, isso caiu muito bem na população”. Permaneceu em Bajocunda os 27 meses. Guarda na memória alguns aspetos chistosos:
“Quando saiu legislação que nos permitia entrar no quadro permanente, o comandante do batalhão chamou-me: 
- Ó Mendes, saiu agora uma lei… Você frequente lá aquilo não sei quanto tempo, é promovido ao quadro. Você tem capacidade, aproveite. 
Apresentou-me um papelinho e eu respondi: 
- Meu comandante, vou pensar. Nesse dia reuni os meus alferes todos, mandei vir uma garrafa de uísque, rasguei o papel e peguei-lhe fogo. 
Mais tarde disse: 
- O meu comandante desculpe, mas quero acabar o meu curso de Direito. 
- É uma pena para si, é uma boa carreira – retorquiu ele”.

Confessa que cometeu muitos erros, por ser muito novo.

José Manuel Nunes Marques fez estágio na Guiné, em Aldeia Formosa, era já licenciado em Engenharia Civil. Esteve em Cumbijã, depois Nhacobá. “Não me aconteceu rigorosamente nada, mas vi muita gente morrer”. Viveu uma situação disciplinar tumultuosa em Bolama, acabou por ir parar a Jemberém. Um dia, pelas três da manhã, chegou uma comunicação encriptada para abandonar Jemberém, foram para Cacine. A desmotivação era enorme, ninguém estava para arriscar a vida. Seguiu-se um alto de averiguações pelo modo como se tinha feito a desocupação de Jemberém, ficou tudo abafado, o castigo foi tirarem-lhe o comando da companhia. Nas novas funções, andou a fazer entrega de vários aquartelamentos ao PAIGC.

Há um capitão que foi depois coronel, Luís de Jesus Ferreira Marcelino, esteve na Guiné entre Junho de 1972 e Agosto de 1974. Ingressou na GNR mais tarde, terminou a sua carreira como coronel, Chefe do Estado-Maior da Brigada de Trânsito. No comando de uma companhia independente percorreu diversos sítios da Guiné: Aldeia Formosa, Mampatá, Colibuia. Não esquece a vida em tabanca, as missões humanitárias, o reordenamento das populações. Manuel da Silva Ferreira da Cruz teve uma vida difícil em Cobumba, antes da incorporação fez estágio como engenheiro técnico de química e depois de 1974 reiniciou a sua vida profissional numa empresa da indústria de plástico. Fez estágio no Leste de Angola, o IAO realizou-se em Bolama, seguiu-se Mansambo no Leste, participou numa operação gigantesca e depois seguiu para Cobumba, que o PAIGC classificava como zona libertada, houve inúmeros ataques. Dá relevo a um episódio passado durante uma visita do Comandante do COP 4 à sua Companhia. O oficial disse-lhe que “a companhia não apresentava ações e contactos significativos com o IN, que deveria ativar mais a companhia, já que os soldados deveriam estar preparados psicologicamente para morrer, se necessário fosse – tudo dito assim a frio”. Ao que Ferreira da Cruz retorquiu que iria chamar o pessoal e que ele, enquanto comandante, lhe transmitiria esta mensagem. Ao que o comandante do COP 4 respondeu: “Não, não é assunto urgente”.

Ainda há mais histórias, conto abreviadamente. Marcos António Blanch da Fonseca Dinis foi colocado em Piche, a seguir ao 25 de Abril a sua guerra foi de papel e polícia, a impedir roubos nas lojas. Nuno Álvares da Graça Matias Ferreira considera-se um privilegiado, não teve nenhuma experiência de guerra, era licenciado em Direito, foi delegado do procurador da República da Guiné, Fidélis Cabral Almada pediu-lhe para ficar até ao último dia. Óscar António Soeiro Soares andou por Caboxanque, Cadique e outras paragens. “No aquartelamento de Caboxanque, em 6 meses, sofri 14 ataques com artilharia. Tentava responder, mas os nossos morteiros tinham menor alcance que os canhões sem recuo deles. Era só para fazer barulho”. Em Bissau, participou na detenção do General Bettencourt Rodrigues. “Ouvi o Bettencourt nas telecomunicações, na noite de 24 para 25 perguntar ao chefe da PIDE: que unidades é que temos do nosso lado? E o da PIDE respondeu: que eu saiba nenhuma”. Raul Manuel Bivar de Azevedo andou pelo Chão Felupe. Rui Jorge Martins Pedro e Silva foi um dos capitães da operação “Grande Empresa”.

Há notas avulsas, o nosso confrade Vasco da Gama é um dos contadores. Aqui chegamos ao fim de um trabalho de doutoramento, alguém que andou à procura dos Capitães do Fim passados mais de 40 anos do seu regresso da guerra.

Uma história muito bem contada que deve ser por todos conhecida.
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Nota do editor:

Vd. postes anteriores de:

18 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16314: Notas de leitura (859): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (1) (Mário Beja Santos)
e
22 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16325: Notas de leitura (860): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16152: FAP (95): de Gadamael a Kandiafara… sem passaporte nem guia de marcha (António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)


Foto nº 2  > "Foto de  autor desconhecido mas já por várias vezes publicada,  refere-se à última missão do Cor Moura Pinto na Guiné, com os pilotos e mecânicos do FIAT G-91 (Co a devida vénia ao autor) 


Foto nº 2 A > 


Foto nº 2 B 

Cortesia do bogue Especialistas da Base Aérea 12 Guiné 65/74 > 25 de janeiro de 2009 > O fim de um grande homem, um grande comandante


 Foto e legenda de Arnaldo Sousa:  pessoal dos Fiat G91/R4 e alguns pilotos. O Comandante da Zona Aérea e da BA12, Coronel [Pilav] Gualdino Maria Moura Pinto (, já falecido [. por doença, segundo inmformação do AMM, e não no acidente  com avião da TAP, o TP 425, vindo de Bruxelas, ocorrido a 19/11/1977 no Aeroporto do Funchal]. 

Da esquerda para a direita: em pé: Sargentos Robalo, Antunes, Pinheiro, Gaudêncio; Cap Pilav Letras, Cor Pilav Moura Pinto, Major Pilav Pedrosa, Cabos Veríssimo, Pinto, Sousa, Sargento Duarte. 

Em baixo: Cabo Lopes, Furriel Pinheiro, Sargento Ramiro, Cabos Brás, Veríssimo (II). Na escada do avião o Ten Pilav Matos. 

Esta foto de despedida foi tirada dias antes da partida do Coronel Moura Pinto para a Metrópole. Pessoa muito educada e de poucas falas, passava com muita calma e esboçando um ligeiro sorriso, inspecção ao avião sem tecer comentários e sem encontrar ponta por onde pegar como se costumar dizer. Todos o admiravam.  [...]  Arnaldo Sousa,  MMA 1ª/72.



A. Mensagem, com data de 24 de maio, do nosso camarada António Martins de Matos [AMM]  [ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen pilav ref; membro da nossa Tabanca Grande]


Caros amigos

Quase chegados às datas importantes de Gadamael, aqui junto um texto que abarca o período de 1 de junho de 1973 até ao 25 de abril de 1974.

Se o acharem com “pés para ser publicado”, gostaria que o fizessem no 1 de junho, data em que os acontecimentos foram “complicados”.

Para adocicar o texto junto 4 fotos:

A 1ª, tirada por mim, é de Pirada, mostra a distância entre o aquartelamento e o marco da fronteira [Foto nº 1];

A 2ª (, de autor desconhecido mas já por várias vezes publicada, ) refere-se à última missão do Cor Moura Pinto na Guiné, com os pilotos e mecânicos do FIAT G-91:

A 3ª e 4ª foram tiradas da Internet, representam o MirageV e o Skyvan.

Abraço
AMM


B. De Gadamael a Kandiafara… sem passaporte nem guia de marcha

por António Martins de Matos

Numerosos são os textos, palestras, opiniões e até filmes sobre os acontecimentos em Guileje e Gadamael entre os meses de maio e junho de 1973, a maior parte das vezes descrevendo e prognosticando o principio do fim das nossas tropas (NT) e enaltecendo a manobra do PAIGC, no que alguns à posteriori e no sentido de valorizar o momento, denominaram de “Operação Amílcar Cabral”.

Inexplicavelmente os referidos textos, palestras e filmes só relatam os acontecimentos no brevissimo período de duas semanas, entre os dias 22 de maio e 5 de junho de 1973, ninguém se mostrou interessado em seguir a estória dos dias seguintes e saber o que realmente acabou por acontecer em Gadamael e em toda a zona sul da Guiné.

Quem se desse ao trabalho de analisar com maior profundidade os acontecimentos desse junho de 1973 acabaria por constatar que a grande ofensiva do PAIGC no sul da Guiné se resumiu apenas àquelas duas semanas e logo se volatilizou, tudo regressando à situação anterior a 1972.

Porquê? Que se passou?

O que travou o avanço do PAIGC e estancou o tão apregoado “efeito dominó”,propagandeado vezes sem conta por 'Nino' Vieira?

A explicação é simples e tem duas vertentes, por um lado a presença do Batalhão de Paraquedistas na área condicionou de imediato os movimentos dos guerrilheiros na zona, por outro lado a Força Aérea Portuguesa (FAP) bombardeou as matas à volta de Gadamael, silenciando várias bases de fogo, e em seguida entrou pelo território da República da Guiné-Conacri, destruindo a maior base de apoio do PAIGC, situada perto da localidade de Kandiafara.

Passados que são 43 anos e antes que o tema acabe por cair no esquecimento, aqui junto algumas considerações sobre a situação então vivida e factos ocorridos nesses dias.



Mirage V (Imagem, de origem desconhecida, recolhida na Internet, AMM)


1. O material em falta

Na Guiné e logo após a identificação do míssil Strela (6 de abril de 1973), os pilotos da FAP tinham pedido três melhoramentos urgentes.  a saber, pretendiam que: (i) fossem substituídas as metralhadoras 12,7 mm do FIAT G-91 por canhões de 20/30 mm: (ii) fosse instalado na aeronave um sistema de alerta anti-míssil:  e, (iii) na base de Bissalanca, necessitavam de um radar de busca/defesa aérea que os apoiasse em operações de dia/noite ou mau tempo.

Ainda que dispendiosos, todos estes requisitos eram fáceis de implementar, na Força Aérea Alemã havia aviões iguais aos nossos mas equipados com dois canhões de 30mm, sistemas anti-míssil já eram usados no Vietname, e Bissalanca até já tinha um radar de defesa aérea desde 1964, montado em torre metálica perto da cabeceira da pista, só que … não funcionava.

Em complemento a este pedido dos pilotos, o Comandante da Zona Aérea, Coronel Moura Pinto, tinha declarado em 15 de maio de 1973, durante a reunião de Comandos no Quartel-general do Comando Chefe, que, face à ameaça dos mísseis Strela e possível entrada no conflito de aviões MIG, para continuar a dar um apoio eficiente às NT precisava de  oito aviões SKYVAN, para substituir os DO-27, cinco helicópteros equipados com armamento axial, e doze aviões do tipo MIRAGE, com um raio de acção não inferior a 300 milhas náuticas.

Este requisito sobre o raio de acção não era inocente, no caso de um futuro ataque de MIG haveria necessidade de retaliar e destrui-los no solo e a única pista apta a receber os aviões, estava situada em Conacri, a uma distância de cerca de 200 milhas de Bissalanca.

Todos estes pedidos foram devidamente registados, logo os estados-maiores entraram na borbulhagem da burocracia e, de reunião em reunião, estudo em estudo e acta em acta, lá se foram adiando as soluções.

Esta inércia, ignorância, desleixo ou falta de respeito pelos militares que em 1973 combatiam na Guiné já há muito se tinha tornado por demais evidente, o Governo de Lisboa não sabia e/ou não estava minimamente interessado em resolver a situação no Ultramar, o seu lema pautava-se por um … “adiar é resolver”.

Tivessem lido os “Tratados sobre Guerra Subversiva” e deveriam saber que, com o passar do tempo, a situação iria evoluir da “tímida flagelação” para uma “guerra convencional”, onde a artilharia e a aviação acabariam por ter um papel fundamental.

No entanto, durante todos os anos do conflito e para além de alguns pequenos melhoramentos no armamento das nossas forças armadas, nada mais tinha sido feito.

Em boa verdade já não existia o capacete de ferro, cartucheiras a tiracolo e a Mauser mas os tempos da primeira mina encontrada (1963) já tinham passado, usávamos dilagramas e bazucas contra o RPG, obuses da 2ª Grande Guerra contra o canhão sem recuo e o FIAT G-91 contra uma previsível e futura aviação de MIG, de dono indefinido e, ao contrário do que muitos acreditavam, quase certamente pilotados por mercenários experientes, oriundos da Alemanha de Leste, URSS, Reino Unido, …como já anteriormente tinha acontecido na guerra Nigéria/Biafra.

Por outro lado e em termos de defesa aérea, a Guiné continuava totalmente desprotegida, não só contra aviões de combate mas também contra qualquer “avioneta” que, de noite, resolvesse vir largar sobre Bissau umas granadas, uns tijolos ou uns panfletos.

Ao chegar o 25 de abril de 1974, um ano depois do aparecimento do míssil Strela e depois de seis aviões terem sido abatidos, de todos os requisitos operacionais então solicitados e tidos como urgentes e imprescindíveis, nenhuma alteração/melhoramento tinha ocorrido.


Short Skyvan SC-7 (G-BEOL) of Invicta Aviation at the Cotswold Air Show at Cotswold Airport, Kemble, Gloucestershire, England. Later in the day it was used to drop a parachute team.
Date June 2010.  

[By Adrian Pingstone (Arpingstone) (Own work) [Public domain], via Wikimedia Commons ]


2. Estratégias

Entre 6 e 8  de junho de 1973 o então CEMGFA, General Costa Gomes, visitou a Guiné, trazendo a resposta/solução do Governo aos pedidos feitos a 15 de maio de 1973 no Quartel-general do Comando Chefe.

Segundo ele e por motivos não explicados, os pedidos de material militar dificilmente seriam satisfeitos, mas, em contrapartida, aceitavam/sugeriam a retracção dos aquartelamentos da fronteira.

Era a segunda visita de Costa Gomes nesse ano, desde logo se tornou evidente que, para transmitir aquelas decisões do Governo não teria sido necessário vir a Bissau, algo que poderia ter sido comunicado por mensagem, a razão da deslocação e a sua principal missão era a de tentar “amaciar” Spínola.

O General Spínola conhecia bem os textos de Clausewitz e Mao Tse Tung, sabia que a guerra na Guiné nunca poderia ser ganha pela força mas sim cativando as populações locais.  A sua estratégia há muito que estava definida, passava por não hostilizar as populações, criando ordenamentos auto-defendidos, com escolas e apoio sanitário, saudando o regresso dos que anteriormente tinham apoiado a guerrilha e deixando em aberto a possibilidade de, num futuro não muito distante, iniciar negociações com os líderes locais tendo em vista a oferta de uma autonomia negociada.

Interessante e quase nunca referido, durante o seu Comando, Spínola proibira terminantemente que alguém, alguma vez, efectuasse algum disparo na zona da Ilha do Como.

Spínola logo rejeitou a solução apresentada pelo CEMGFA, a estratégia da retracção autorizada pela Metrópole só iria conduzir a um beco sem saída, quando, de retirada em retirada e por falta de espaço, não mais pudessem retrair as forças, a saída acabaria por ser semelhante à que os americanos de Saigão vieram a adoptar em 1975, dos telhados da cidade em direcção aos navios fundeados na baía.

Por outro lado, uma retracção iria destruir pela raiz todo o esforço em que se empenhara, iria deixar vulneráveis todas as populações das áreas junto às fronteiras, e às quais tinha prometido protecção.

A estratégia de Spínola não agradava ao Governo, podia vir a ser um mau exemplo para Angola, e, para o Governo de Marcelo Caetano, só Angola era importante.

Desiludido, sentindo-se manipulado, Spínola desistiu, … outros que fizessem melhor…

Ninguém fez melhor.

Entretanto, o Comandante da Zona Aérea, Coronel Moura Pinto, que sabia de estudos na FAP desde 1971 para a compra de aviões MIRAGE V, ao constatar que o apoio urgente e pedido em 15 de maio de 1973 continuava adiado e a não fazer parte das prioridades do Governo e que, em vez disso e em jeito de consolação, ia recebendo equipamento variado mas sem qualquer utilidade, logo criticou as chefias de Lisboa.

Desta vez foram rápidos a reagir, de imediato foi destituído do cargo que desempenhava.


3. Gadamael

Fazendo parte do então criado COP5, juntamente com Cacine e Guileje, Gadamael era um aquartelamento sem grande estória ou posição estratégica, a sua importância resumia-se a uma missão do tipo entreposto, receber via fluvial os abastecimentos destinados a Guileje e …expedi-los.

Até 1968 o aquartelamento tinha-se mantido protegido de ataques vindos da fronteira pela existência dos destacamentos de Cacoca e Sangonhá e, apesar de entretanto estas duas posições terem sido desactivadas, pouco ou nada se alterou, o rio Cacine era um obstáculo natural para o PAIGC, bem mais interessado em utilizar o Corredor do Guileje.

Raramente Gadamael era atacada, como consequência, o plano de defesa do aquartelamento não era muito elaborado, uns mini-abrigos e algumas valas eram mais que suficientes.

Quando em 22  de maio de 1973 e sem qualquer aviso lhe entraram pelo aquartelamento cerca de 200 militares e 500 civis fugidos de Guileje, logo as coisas se complicaram, não havia espaço para acomodar tanto pessoal.

Em 25 de maio de 1973 e depois de se ter recomposto da surpresa de lhe terem oferecido de bandeja um aquartelamento das NT, ainda por cima cheio de víveres, o PAIGC logo procurou explorar o seu inesperado êxito, em cinco dias recolocou a sua artilharia pesada na direcção de Gadamael e passou a executar um “tiro ao alvo” contra o aquartelamento, bem mais intenso do que tinha feito contra Guileje.

Tudo o que depois aconteceu, resultou apenas da … falta de espaço.

A segunda pedra do dominó oscilou, tudo isso sem que os militares de Gadamael merecessem algum reparo ou reprimenda, apenas tinham sido surpreendidos por acontecimentos estranhos e inopinados, para os quais em nada tinham contribuído e eram completamente alheios.

Oscilou mas não caiu.

Entre 1 e 3 de junho de 1973 a FAP evitou fazer bombardeamentos na zona, nada a ver com desculpas de mau tempo, Strelas ou AA [, antiaéreas], mas sim por se saber haver inúmeros militares e população espalhados e em debandada por toda a área, só com a chegada dos paraquedistas em 3 de junho de 1973 a situação ficou mais ordenada.

A partir do dia seguinte as áreas suspeitas foram devidamente identificadas, as bases de fogo dos morteiros de 120 mm acabaram por ser bombardeadas e calaram-se de vez.

De seguida foi a busca das armas de maior alcance, situadas para além da fronteira, durante alguns dias ainda se tentaram encontrar as bases de fogos nas clareiras perto de Satiguia, mas a área era demasiado vasta, mereceu um pensamento apropriado:  “Em vez de andarmos à procura das formigas, o melhor será encontrarmos o formigueiro”.

Estava lançado o mote para destruir Kandiafara.


4. Kandiafara

No inicio do conflito na Guiné os “estrategas” de então terão pensado que o armamento da guerrilha se limitaria à “catana, canhangulo e arma fina”, tal ideia fez com que o dispositivo das forças portuguesas fosse planeado essencialmente de modo a controlar as fronteiras, espalhando os efectivos pelo terreno, alguns quartéis mesmo no limite do nosso território, em missão do tipo controlo de polícia, ver quem entra e quem sai.

Com a evolução da guerra tal aproximação revelou-se desajustada, a Guiné era um território pequeno, tendo por vizinhos o Senegal e a Guiné-Conacri, ambos hostis, e com as suas fronteiras altamente permeáveis a infiltrações.

Não obstante o dispositivo nacional estar espalhado por todo o território, o apoio logístico do PAIGC ao interior conseguia facilmente ser executado através de corredores de abastecimento mesmo nas vizinhanças dos nossos aquartelamentos, Jumbembem e Sambuiá no Norte, e Guileje no Sul disso eram exemplos.

A missão das NT de tentar impedir o fluxo e refluxo de colunas de abastecimento através desses corredores de infiltração sempre se revelou de êxito duvidoso, algumas colunas terão sido bloqueadas, mas o melhor que se conseguia fazer era atrasar o seu deslocamento, grande parte delas terá passado incólume.

Mas não era só o problema de conter as infiltrações que nos devia preocupar, alguns dos aquartelamentos tinham sido construídos a escassos metros da fronteira e por essa razão ao alcance de um simples tiro de arma ligeira disparado do país vizinho, casos de Guidaje, Pirada e Buruntuma.

Com o passar do tempo e o aparecimento na panóplia do PAIGC de artilharia mais potente, inúmeros outros aquartelamentos logo vieram engrossar a lista dos que podiam ser atacados a partir do “estrangeiro”, a saber,  Bajucunda, Copa, Canquelifá, Guileje, Gadamael.

O abandono do Guileje em 22 de maio de 1973 deu ao PAIGC uma nova perspectiva de como bastava posicionar a sua artilharia pesada na zona da fronteira para poder forçar as NT a recuar, tudo isto sem serem obrigados a grandes riscos ou movimentações.

Com a introdução no conflito de uma nova peça de 130 mm (M-46, de alcance superior a 20 quilómetros), a breve trecho outros quartéis iriam ficar em semelhante situação, Piche, Cacine e Aldeia Formosa certamente seriam os próximos alvos.

A não ser tomada uma decisão que contrariasse este tipo de ataques, o PAIGC preparava-se para nos obrigar a retirar de todos os quartéis próximos da fronteira, sem sequer necessitar de entrar no nosso território.

A única maneira de conter estes ataques passava por destruir os grandes centros de logística, ambos situados na Guiné-Conacri, Kandiafara a cerca de 20 quilómetros a oriente de Guileje, recebia o material de guerra desembarcado em Boké e, com a ajuda de Simbeli e Kambera, abastecia todo o sul, e Koundara a uma distância de cerca de 40 quilómetros a leste de Buruntuma que, com o apoio de Kumbamori, abastecia o norte e leste.


5. Os riscos

Portugal já tinha passado por uma má experiência quando da “Operação Mar Verde”.

A maioria dos objectivos tinha falhado, de positivo tínhamos recuperado os prisioneiros portugueses, mas Sekou Touré continuava a ser o presidente da Guiné-Conacri, a oposição ao seu regime tinha sido aniquilada e não estava resolvido o mistério sobre a presença ou não de aviões MIG no seu território.

No plano internacional, de imediato tínhamos sido acusados de um acto de guerra e violação das fronteiras contra um estado soberano, tendo o Conselho de Segurança das Nações Unidas logo aprovado duas resoluções contra Portugal.

Em termos militares pagámos igualmente a ousadia de tal operação, Sekou Touré pediu e obteve um maior apoio militar da URSS, material de guerra que veio engrossar a panóplia do PAIGC.

O Governo Português ainda se esforçou por tentar defender a ideia que nada tinha a ver com a invasão, mas a deserção de alguns elementos dos comandos africanos puseram a nu a nossa participação.

Em termos de lições aprendidas e para um eventual novo ataque dentro do território da Guiné-Conacri havia uma série de riscos que Portugal não podia voltar a correr, a informação sobre o objectivo tinha de estar precisa e actualizada, o alvo tinha de ser totalmente destruído e não podiam ser deixadas “pontas soltas” em território da Guiné Conacri.

Quanto à situação internacional…. logo se veria.


6. O armamento

Cada avião FIAT G-91 foi armado com duas bombas de demolição de 750 libras (cerca de 340 quilos por cada bomba) e 200 munições 12,7 mm em cada uma das 4 metralhadoras.

As bombas de 750 libras, de origem americana, eram de demolição e actuavam por sopro. Obrigavam a um cuidado redobrado na pilotagem, estava-se perto do peso máximo autorizado para a descolagem e, devido à pequena dimensão da asa, não era possível manobrar o avião numa situação de assimetria, as duas bombas tinham que ser largadas na mesma picada de bombardeamento, ainda que pudessem bater dois alvos distanciados de 500 metros.

De referir que este problema de assimetria nas asas custou-nos a perda de um avião em 1 de setembro de 1973 quando, num bombardeamento na área do Morés, o piloto largou uma das bombas e, por motivos não esclarecidos, conservou a outra. (FIAT G-91 5416).

Quanto às metralhadoras, elas apenas seriam usadas para defesa próxima, na remota hipótese de algum encontro imediato com um MIG que nos viesse atacar.


7. A execução

Nessa manhã estavam 8 aviões prontos para operações mas na Guiné e nesse período só havia 6 pilotos qualificados na aeronave.

Logo pela manhã saíram 2 helicópteros de Bissalanca em direcção a Gadamael, tinham como missão ficarem de alerta para uma tentativa de resgate de algum piloto que eventualmente fosse abatido em território da Guiné-Conacri, algo que encarávamos como muito provável, já que sabíamos Kandiafara fortemente defendida com antiaéreas ZPU-4 de 14,5 mm, peças AA de 37 mm e mísseis Strela.

Havia ainda a possibilidade de, caso existissem, sermos confrontados e perseguidos por aviões MIG.

Os de Gadamael ouviram-nos passar, ainda vieram ao rádio, estavam habituados a ver-nos bombardear as matas na zona da fronteira, queriam saber onde íamos, não respondemos, desta vez o objectivo não era na vizinhança mas sim … no estrangeiro.

Em 20 minutos chegámos a Kandiafara, íamos altos, a cerca de 3500 metros de altitude, o que nos dava grande vantagem, lá de cima podíamos ver a área do objectivo na sua totalidade, estávamos ao abrigo de disparos de Strela e, uma vez identificados os alvos, permitia-nos uma picada imediata sobre os mesmos.

Fomos recebidos com um fogo cerrado das peças AA de 37 mm, os projecteis rebentavam um pouco abaixo de nós, formando um tapete branco de pequenas explosões.

Logo de seguida os seis aviões picaram sobre os respectivos alvos e cada um largou as suas duas bombas de 750 libras.

Na recuperação do passe sentimo-nos a ser perseguidos pelo fogo das ZPU-4, o chamado “calor na nuca”; pela minha parte vi algumas tracejantes passarem perigosamente perto da cauda do avião que me precedia, até que ele, com uma manobra brusca, inverteu a direcção da subida.

Depois de, no rádio, verificarmos que todos estavam bem, o regresso a Bissalanca foi “cada um por si”, interessava regressar o mais rápido possível, de modo aos mecânicos reabastecerem e remuniciarem as aeronaves.

Uma hora depois de termos aterrado já estávamos de novo no ar, novamente 6 FIAT G-91, cada um com outras 2 bombas de 750 libras.

Sabíamos que, a haver MIG, esta segunda missão seria o momento indicado para nos atacarem.

A chegada a Kandiafara foi bem diferente da vez anterior, já não houve tapete de explosões de 37 mm, apenas algumas tracejantes de ZPU-4, o que até nos permitiu localizá-las e largar bombas nas suas posições.

Nova verificação de que tudo estava bem e regresso imediato a Bissalanca para mais um remuniciamento.

Mais uma hora de espera e iniciámos uma terceira viagem ao estrangeiro, mais 12 bombas de 750 libras, ao chegarmos a Kandiafara já não vislumbrámos qualquer reacção hostil, nada, …, a área estava cheia de fumo e pó e … parecia deserta.

Esta última largada de armamento já não teve alvos definidos, foi mais na zona, o que tinha de ser destruído já o fora anteriormente.

Ainda ficámos algum tempo a circular à vertical do objectivo, tentando vislumbrar alguma reacção vinda do chão ou do ar, nada aconteceu.

A mais famosa e importante base de apoio do PAIGC acabara de ser destruída.


8. Os resultados 

Em termos diplomáticos a missão acabou por ser um sucesso já que, inexplicavelmente, não houve qualquer queixa internacional.

Como justificação para esta “não queixa” poder-se-á afirmar que, sendo certo que o bombardeamento foi bem dentro do território da Guiné-Conacri, por outro lado foi dirigido apenas contra instalações do PAIGC.

Numa análise mais “elaborada” arriscar-me-ia a dizer que este bombardeamento terá mesmo agradado ao presidente Sekou Touré, o qual há muito que não se sentia seguro com o crescente potencial bélico do PAIGC dentro do seu território, por comparação com a debilidade das suas forças armadas.

Em termos operacionais a missão foi igualmente um sucesso, por um lado nenhum avião foi atingido, por outro lado a capacidade de abastecimento do PAIGC na região sul ficou seriamente abalada e o grande esforço que vinha realizando nessa área, diluiu-se de imediato.

Em resumo, em Kandiafara foram largadas 36 bombas de 750 libras, o equivalente a mais de 12 toneladas de explosivos, o maior bombardeamento da FAP nos 13 anos de guerra em África.

Para o êxito da missão muito contribuíram os mecânicos, tantas vezes esquecidos, por vezes maltratados e que, nessa manhã, tinham feito um esforço sobre-humano para prepararem as 18 saídas e o respectivo armamento.


Foto nº 1 > Guiné > Zona leste > Pirada b> 1973 > "Foto  tirada por mim, é de Pirada, mostra a distância entre o aquartelamento e o marco da fronteira".

Foto (e legenda): © António Martins de Matos (2016). Todos os direitos reservados.


9. O rescaldo 

Em novembro de 1973 e como a indiferença perante a necessidade de melhorar o equipamento militar se continuasse a manifestar, o novo Comandante da Zona Aérea, Coronel Lemos Ferreira, subiu o tom das criticas, “SUGERINDO” que, à semelhança do ocorrido na Índia doze anos antes, o Governo preparava-se para tentar encontrar um “bode expiatório”, algo que permitisse justificar o fim do Ultramar, uma maneira hábil de tentar ilibar os políticos e culpar os militares.

Os recém nomeados Ministros da Defesa e Exército, Silva Cunha e Andrade e Silva e o então CEMGFA, General Costa Gomes, engoliram o “sapo” e nada fizeram.

E continuaram a nada fazer.

Algum tempo antes da missão a Kandiafara a FAP já havia bombardeado Kumbamori (no norte) e Kambera (no sudeste), enfraquecendo a logística de apoio do PAIGC nas zonas norte e sul.

O passo seguinte seria atacar e destruir Koundara, a base que apoiava o leste.

Foi feita uma missão de ensaio onde se verificou que o FIAT G-91 com o armamento apropriado e partindo de Bissalanca, apenas conseguia chegar a Buruntuma, devido ao seu pequeno raio de acção.

Ainda assim, a missão podia ser realizada, mas os aviões tinham de, no regresso, aterrar em Nova Lamego para reabastecer, nada de difícil, apenas mais demorado.

Inexplicavelmente … não fomos autorizados.  Ficava no ar a impressão que “alguém, algures” … queria perder a guerra.

Entretanto o nosso sobrevoo na zona de Buruntuma alertara as NT, nunca se saberá como os identificaram mas, … descobriram aviões MIG no ar.

Em dezembro de 1973 o General Bettencourt Rodrigues ordenou uma vasta operação no Cantanhez.

A comparação com Spínola estava a revelar-se difícil, no seu currículo já tinha uma má nota, responsável pela “comemoração da independência”, ainda que a mesma se tivesse efectuado fora da Guiné.  Necessitava urgentemente de marcar pontos.

Em termos de estratégia, a sua decisão desde logo deixava algumas dúvidas sobre a razão e oportunidade, outrora o Cantanhez fora um santuário do PAIGC mas tudo isso se diluíra devido a três factores: (i) a construção dos aquartelamentos das NT na margem esquerda do rio Cumbijã; (ii) o ataque e destruição de Kandiafara;  e (iii) os posteriores bombardeamentos na área, só terminados quando, depois de termos atacado a tabanca nossa/deles de Santa Clara, a população tinha entrado pelo aquartelamento de Cadique a pedir auxilio.

Tínhamos bombardeado a tabanca e de seguida fomos buscar os feridos, tivesse o Fernando Pessa sabido do acontecimento e logo diria … “E esta, heim?”.

Aos olhos de qualquer piloto habituado a sobrevoar a Guiné era evidente que os apoiantes do PAIGC e habituais no Cantanhêz, há muito se tinham apresentado aos nossos aquartelamentos ou … atravessado o rio Cacine, direcção Guiné-Conacri.

Para a FAP e face à não destruição de Koundara, o novo ponto crítico da Guiné estava há muito definido, o leste, onde a protecção das NT continuava a ser descurada.

Em 1 de janeiro de 1974 e com a missão no Cantanhez ainda a terminar, foi o momento do PAIGC iniciar os ataques a Canquelifá, Bajocunda e Copá, com o apoio logístico da entretanto poupada Koundara e a estratégia já anteriormente usada em Gadamael, o chamado “tiro ao alvo”, desta vez utilizando foguetões de 122 mm.


10. O fim

Quando em janeiro de 1974 o PAIGC se retraiu no sul e norte para poder iniciar os ataques ao leste, os “estrategas” do QG/CTIG já não estavam minimamente interessados em estudar e discutir as tácticas e os planos da guerra, mas sim em como se livrarem dela.

Desde logo identificavam como culpados Marcelo Caetano, o seu Governo e os 50 aviadores de Bissalanca que, segundo as más línguas, em vez de apoiarem as NT, “já nem voavam”, ainda que, misteriosamente, continuassem a largar ferro por tudo o que era sitio e a serem abatidos por Strelas (31 de janeiro de 1974, FIAT G-91 5437).

A 8 de fevereiro de 1974 foi a vez das NT abandonarem Copá.

Os passos seguintes foi lerem o livro de Spínola “Portugal e o Futuro”, prepararem a “estratégia revolucionária para aplicar no 26Abril” e … aguardar.

Quando George Orwell escreveu …“A maneira mais rápida de acabar com uma guerra é perdê-la”... não adivinhava ter conseguido tantos admiradores em Lisboa e … arredores.

Dedicado ao meu mui mui grande Comandante Moura Pinto e aos meus amigos Pedroso de Almeida, Bessa e Gil, todos eles já a voarem por outros céus.

AMM
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segunda-feira, 25 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16013: Nota de leitura (833: “A descolonização da Guiné-Bissau e o movimento dos capitães”, por Jorge Sales Golias, Edições Colibri, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Já ninguém ignorava que o MFA da Guiné agira singularmente e por conta própria num processo de descolonização com inúmeros melindres. Na Guiné, a contestação dos militares formara núcleo próprio e tinha vida desde 1973. Como escreveu o investigador António Duarte Silva, o MFA local controlava todo o aparelho militar: o Batalhão de Comandos Africanos, o Batalhão de Paraquedistas, a maioria do pilotos, a Companhia de Polícia Militar, o Agrupamento de Transmissões e o Grupo de Artilharia da Guiné.
Em 26 de Abril, em Bissau, tornou-se irreversível o golpe do dia anterior na metrópole. É sobre todo este processo imparável, com compreensíveis ziguezagues, dores e apertos de alma, onde houve relações amistosas entre as tropas portuguesas e o PAIGC, onde se revelou também que o PAIGC estava impreparado e até enviou para Bissau um comissário político com falta de envergadura, tudo isto é contado com impressionante rigor por alguém que viveu todo este processo do princípio ao fim.
De leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


A descolonização na Guiné-Bissau e o movimento dos capitães (2)

Beja Santos

“A Descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães”, por Jorge Sales Golias, Edições Colibri, 2016, é o relato na primeira pessoa do singular de alguém que acompanhou na primeira fila a criação do MFA da Guiné e todo o processo de descolonização, descrevendo reuniões, relatórios, vicissitudes de vária ordem, negociações com o PAIGC, assembleias do MFA da Guiné, e muito mais. Jorge Sales Golias trabalhou diretamente com Mateus da Silva, primeiro Encarregado do Governo depois da partida do General Bettencourt Rodrigues e com Carlos Fabião.

Estamos em Junho, Spínola que insistira num referendo mudou de posição e começou a falar num Congresso do Povo em que ele apareceria como tutor da independência, fez chegar a Bissau 20 mil cartazes com a sua foto. A vida política deste período é suficientemente turbulenta para haver posições impensáveis enquanto o MFA da Guiné, reunido em Assembleia Geral, em 1 de Julho, aprova uma moção exigindo ao governo português não só o reconhecimento da República da Guiné-Bissau como o reatamento das negociações com o PAIGC. Ao mesmo tempo, começam a chover os ultimatos do PAIGC: logo no dia 1 de Julho um ultimato às tropas aquarteladas em Buruntuma, Fabião desloca-se ao local mas mais não conseguiu do que evacuar o quartel. Segundo Sales Golias, começa-se a observar discrepâncias e desorientações na hierarquia política e militar do PAIGC: no Sul, onde sempre se combateu a sério, negoceia-se com prudência, a retração do dispositivo ir-se-á fazendo sem sobressaltos nem humilhações para ninguém; no Leste, onde o PAIGC teve sempre problemas, houve comportamentos fundamentalistas, caso de Buruntuma e Pirada. Haverá uma eminência parda em todo este processo, o comissário político Juvêncio Gomes, colocado em Bissau, revelará imaturidade, duplicidade e comportamento grosseiro ao longo de todo o processo negocial até à independência de facto, com sérios prejuízos para ambas as partes.

Sales Golias pormenoriza as etapas da retração do dispositivo, a questão melindrosa de todas as tropas africanas e a procura de soluções mais avisadas para as tropas especiais. Ficou largamente escrito que se procurou providenciar segurança para as tropas especiais, inicialmente elas disseram que sim, que queria vir para a metrópole, o PAIGC deu garantias de tranquilidade, com raras exceções os membros das tropas especiais ficaram nos seus chãos. Todo o mês de Julho é uma permanente azáfama: as tensões com partidos como a FLING que procura disputar espaço ao PAIGC; em Lisboa, membros do MFA da Guiné procuram esclarecer os decisores políticos da evolução da situação na Guiné, em que a generalidade das tropas pretende partir o mais breve possível; os desencontros bem visíveis entre os comissários e comandantes militares do PAIGC, quadro que conheceu melhorias com os encontros que se realizaram no Cantanhez em 15, 16 e 18 de Julho; além de peripécias, acidentes e tensões entre as próprias forças portuguesas. Em 9 de Agosto, o MFA da Guiné alerta a Comissão Coordenadora do MFA para a gravidade da situação disciplinar nas unidades militares, era uma corrida contra o tempo em que se falava da retração, do pagamento de pensões, da passagem à disponibilidade e desarmamento do Batalhão de Comandos Africanos, o alívio vem com a notícia da assinatura do Acordo de Argel que reduziu muita da instabilidade existente. Porém sentia-se a insegurança da população branca, da cabo-verdiana e da guineense com laços culturais mais estreitos com Portugal, o PAIGC procurava desdramatizar pretextando que haveria reconciliação nacional e lugar para todos.

Estamos já em Setembro, o Comité Executivo de Luta ratificou o Protocolo de Acordo de Argel, a transferência de poderes acelera-se: o Emissor Regional da Guiné passou a designar-se Rádio Bissau, há uma comissão mista em permanente azáfama a resolver infindáveis problemas enquanto as tropas portuguesas vão abandonando o território. Foi preciso chegar a Outubro para se sentir que os quadros do PAIGC sentiam pressa em abordar questões de grande sensibilidade. A partir da independência: quadros no setor da educação, médicos, modo de pagamento até final de 1974 de vencimentos, comércio prioritário com Portugal, etc. É destes relatos que nos fica a imagem um tanto confrangedora que os quadros do PAIGC revelavam impreparação, desconhecimento e até mesmo insensibilidade para os problemas da administração de um território, foi revelador que deixaram para a última a apresentação de propostas de cooperação. Subjacente a estes ziguezagues estariam certamente duas correntes em conflito: os que pretendiam uma transição pacífica, com mais meses ou até anos de uma presença portuguesa e aqueles que pretendiam empurrar para os barcos e aviões os militares e os funcionários coloniais.

O autor releva o ambiente de grande cordialidade que existiu na generalidade dos encontros. Não deixa, porém, de deplorar procedimentos grosseiros como o de Juvêncio Gomes que já presidente da Câmara Municipal de Bissau e na presença portuguesa mandou apear as estátuas de Teixeira Pinto, Honório Pereira Barreto, Diogo Gomes. Em 14 de Outubro, as autoridades portuguesas ao mais alto nível retiraram-se, a bandeira nacional é arreada nas instalações navais de Bissau e a bandeira é entregue ao Comodoro Vicente Almeida d’Eça.

Que importância devemos atribuir a este relato da descolonização da Guiné: as notas pessoais de um oficial que acompanha as mudanças radicais no teatro de operações e que se apercebe com outros camaradas que se fechou a porta a qualquer negociação, a Guiné-Bissau passa a ser reconhecida a partir de Outubro de 1973 por mais de 80 Estados, os apoios político-militares previsivelmente ir-se-ão agravar, Marcello Caetano determina a Bettencourt Rodrigues que resista até à exaustão dos meios, no ar paira a ameaça da repetição da queda do Estado da Índia, forma-se o MFA-Guiné que irradia para a metrópole e deste recebem influxos; a 26 de Abril é na Guiné que se altera a situação político-militar que o autor descreve com uma grande riqueza de pormenores.

A historiografia da guerra colonial acaba de receber um apreciável documento que se deverá juntar a outros para ser compulsado com toda a documentação existente e depositada em arquivos, caso da Fundação Mário Soares. Como escreve no prefácio Carlos de Matos Gomes: “O processo que o núcleo dos militares do MFA na Guiné conduziu para dotar do caráter de anticolonialista o Portugal que iria emergir do 25 de Abril, essencial para a sua credibilidade, desenrolou-se com grande autonomia e, em boa parte, em contínua rebeldia. Primeiro contra o governo de Marcello Caetano, seguida contra as orientações da Junta de Salvação Nacional, finalmente contra as conceções do General Spínola quanto à descolonização”.

Insiste-se que toda esta autonomia, rebeldia e tensões com os poderes constituídos, a par do melindroso problema das negociações com o PAIGC numa atmosfera em que as nossas tropas já tinham afastado do horizonte a necessidade de combater, recebe neste livro um tratamento rigoroso que os estudos posteriores não poderão ignorar.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16001: Nota de leitura (832): “A descolonização da Guiné-Bissau e o movimento dos capitães”, por Jorge Sales Golias, Edições Colibri, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16001: Nota de leitura (832): “A descolonização da Guiné-Bissau e o movimento dos capitães”, por Jorge Sales Golias, Edições Colibri, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Atenda-se ao que Carlos de Matos Gomes escreve no prefácio desta narrativa que possui os requisitos para fazer parte da investigação histórica indispensável:
"Os relatos das reuniões de militares na Guiné desmontam pela base as calúnias que por vezes surgem sob a forma de interpretações históricas, atribuindo à contestação dos militares que roubaram a ditadura a uma mera e mesquinha motivação corporativa. O livro de Jorge Golias expõe a desonestidade desses adeptos do antigo regime e do colonialismo".
Em boa hora Jorge Sales Golias passou a escrito e deu sequência a factos históricos que a generalidade do povo português, e mormente as novas gerações precisam de conhecer para clara certidão da verdade de um teatro de operações que se encaminhava para uma tragédia do tipo de Índia.

Um abraço do
Mário


A descolonização na Guiné-Bissau e o movimento dos capitães (1)

Beja Santos

Oportunidade única de conhecer pela boca de um dos seus protagonistas o que foi o processo de descolonização da Guiné encetado formalmente a 26 de Abril de 1974, com a tomada do poder pelo núcleo do MFA da Guiné. A narrativa é de um capitão de Operações de Transmissões que acompanhou a génese do MFA da Guiné e terá um papel preponderante nos acontecimentos que antecedem o reconhecimento da independência da República da Guiné-Bissau: “A descolonização da Guiné-Bissau e o movimento dos capitães”, por Jorge Sales Golias, Edições Colibri, 2016.

Jorge Sales Golias chega a Bissau em Junho de 1972, viaja na companhia do Capitão Miliciano José Manuel Barroso, jornalista do “República”, que irá desempenhar relações de funções públicas no Gabinete do General Spínola e do Capitão (Comando) Carlos de Matos Gomes que ia para a sua terceira comissão. Ficará colocado no Agrupamento de Transmissões, explica-nos as suas missões, a sua relação com o Comandante do Agrupamento Tenente-Coronel Mateus da Silva, outra figura preponderante no 26 de Abril de 1974 em Bissau e período seguinte. Em pinceladas grossas, descreve a situação militar na Guiné, ao tempo da sua comissão: a reocupação do Cantanhez, a perda da supremacia aérea, os acontecimentos de Guidage, Guileje e Gadamael e o estado de desmoralização das tropas, cada vez mais acantonadas aos seus destacamentos. Com detalhe, menciona a reunião dos Altos Comandos de 15 de Maio de 1973 e a perceção de tragédia que lhe está subjacente.

A narrativa inflete para a origem do Movimento dos Capitães, reuniões que passam a ter lugar a partir do final do ano de 1972 e que têm o seu pico alto em 12 de Agosto de 1973 quando se discute, no Clube de Oficiais de Bissau, o decreto-lei n.º 353/73, reunião que dá lugar a outra e pela primeira vez ouve-se a palavra revolução, a 28 de Agosto surge uma carta que irá recolher 52 assinaturas, aquela que, segundo o autor é a carta fundadora do Movimento dos Capitães. Os contactos extravasam para Lisboa, e depois para o país. Alguns dos subscritores da carta dos 52 passam a participar nas reuniões na metrópole. Começa a evoluir-se para um golpe de Estado que apeie Marcello Caetano e derrube o seu regime. O MFA da Guiné, por sua conta e risco, preparou o Plano B do MFA, no caso de falhar o golpe em Lisboa, seria a vez dos militares em Bissau.

Em 25 de Abril, os serviços de escuta das Transmissões trouxeram as primeiras notícias pelas 5 de manhã, começam então em Bissau reuniões no Batalhão de Caçadores Paraquedistas, estão presentes o seu Comandante e oficiais de outras Unidades, como Raúl Folques, Matos Gomes, Zacarias Saiegh, Sosua Pinto, Pessoa Brandão. À tarde delineiam-se os planos de operações para controlar todos os pontos sensíveis e chegar à fala com o Governador Bettencourt Rodrigues e outras figuras preponderantes das Forças Armadas. Sabe-se que Bettencourt Rodrigues não só não reconheceu a Junta de Salvação Nacional como deu instruções à PIDE para seguir os movimentos dos oficiais do MFA.

Na manhã de 26, estes militares do MFA Guiné dirigem-se à Amura e entram no gabinete do Governador e Comandante-Chefe. Ocorre uma altercação que envolveu o Brigadeiro Leitão Marques, mas tudo acaba corretamente, fazem-se detenções formais e o Tenente-Coronel Eduardo Mateus da Silva é convidado pelo MFA da Guiné para encarregado do Governo, o Comodoro Almeida Brandão só aceitou desempenhar as funções de Comandante-Chefe. Jorge Sales Golias é nomeado Chefe de Gabinete de Mateus da Silva. Entra-se em conversações com os representantes da sociedade civil, procede-se à libertação de presos políticos, tiveram lugar alguns desacatos tanto em Bissau como no interior, caso de assaltos a casas comerciais. Procede-se à primeira organização de estruturas de apoio ao Governo até que em 7 de Maio o Tenente-Coronel Carlos Fabião foi designado por Spínola para novo encarregado do governo. Traz instruções precisas de Spínola: negociar o cessar-fogo; tratar o PAIGC como um partido igual aos outros; promover um referendo com vista a uma solução federativa. Mas Carlos Fabião apercebe-se rapidamente que tudo mudara, no contexto internacional, na evolução da guerra, no próprio estado de espírito das Forças Armadas Portuguesas. A especificidade do MFA na Guiné garante a sua presença na estrutura executiva do Governo, Mateus da Silva vai a Lisboa com uma agenda que inclui em todos os pontos entrar em negociações com o PAIGC. Spínola revela-se dramático, vai criando a sua própria agenda, pensa mesmo ir a Bissau a um Congresso do Povo, seria aclamado e subverteria os propósitos de independência do PAIGC. Enquanto tudo isto ocorre, a diplomacia move-se em Dakar, Londres e Argel, as nossas tropas começam a conviver com as forças do PAIGC, logo em 19 de Maio o Capitão Silva Ramalho, da Companhia de Sare Bacar, convive com as forças de Quemo Mané, é patente uma grande desorientação entre os comissários políticos e os comandantes militares do PAIGC.

É um período de intensos boatos, de reagrupamento de forças políticas, conflitos de trabalho, de greves. É neste contexto que se institucionaliza o MFA na Guiné e Jorge Sales Golias pormenoriza a orgânica da Estruturação Democrática do MFA.

Encetam-se conversações com as forças do PAIGC, disciplinam-se os relacionamentos hierárquicos, travam-se exageros e radicalismos. As tensões políticas metropolitanas refletem-se na Guiné-Bissau entre moderação e extrema-esquerda. No centro político estava o Alferes Miliciano João Ferreira do Amaral, na extrema-esquerda o Alferes Miliciano Celso Cruzeiro, dinamizador do Movimento para a Paz que reivindica à cabeça o cessar-fogo imediato, sem condições. Sales Golias comenta: “Oportunistas que na altura eram mais revolucionários do que os capitães do MFA. Consequência de o MFA na metrópole não ter ainda definido as linhas principais de atuação e estar dependente da vontade de Spínola e do governo”.

E em 1 de Julho de 1974 realizou-se a primeira Assembleia-Geral do MFA na Guiné. O ponto alto da Assembleia foi a aprovação por aclamação de uma moção em que se apelava para o Governo português reconhecer a República da Guiné-Bissau, para que se reatassem as negociações com o PAIGC, após o impasse de Argel, e apelava-se para que os militares portugueses encarassem a sua presença atual e futura na Guiné como forma de prestar a sua cooperação desinteressada ao povo da Guiné.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P15987: Nota de leitura (831): “As guerras coloniais portuguesas e a invenção da História”, por Luís Quintais, Imprensa de Ciências Sociais, 2000 (Mário Beja Santos)

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15777: (In)citações (86): Opinião sobre os Governadores e Comandantes-Chefes das Forças Armadas da Guiné - 3 (Coutinho e Lima, Cor Art Ref)

1. Em mensagem do dia 5 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Reformado (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), enviou-nos um trabalho com a sua opinião sobre os Governadores e Comandantes-Chefes da Guiné, durante a sua permanência naquela Província: Arnaldo Schulz, António de Spínola e Bettencourt Rodrigues. 
Terceira e última parte.

Aceitando o repto do Tabanqueiro-mor Luís Graça, entendi apresentar algumas considerações sobre o tema.
Por ter cumprido 3 Comissões, por imposição, na Guiné (tenho a convicção que não haverá muitos militares nestas condições), eis a minha opinião resultante, fundamentalmente, das funções que desempenhei em cada um dessas comissões.

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Opinião sobre os Governadores e Comandantes-Chefes das Forças Armadas da Guiné - 3


4.5 – REUNIÃO DE COMANDOS EM 15MAI73 

Em 15MAI73, realizou-se, no Quartel-General do Comando Chefe em Bissau, uma reunião de Comandos, presidida pelo Sr. General Spínola, estando presentes o Sr. Comandante Adjunto Operacional, os Senhores Comandantes dos 3 Ramos das Forças Armadas (Exército, Marinha e Força Aérea), o Sr. Chefe do Estado-Maior do Comando Chefe e os Senhores Chefes das Repartições de Operações e Informações do Comando Chefe. Dessa importante reunião foi feita a respectiva ACTA, com 62 páginas. Tendo obtido uma fotocópia desta, no Arquivo Histórico Militar do Exército, vou fazer algumas transcrições da mesma. Este documento deveria ser objecto de uma análise e comentário mais alargados, que não cabem no âmbito deste texto. Oportunamente voltarei a este assunto.


4.5.1 – Intervenção inicial do Sr. Comandante-Chefe, Sr. General Spínola

O Sr. Comandante-Chefe, a iniciar os trabalhos, afirmou:

“...Encontramo-nos, indiscutivelmente, na entrada de um novo patamar de guerra, o que necessariamente impõe o reequacionamento do trinómio missão-inimigo-meios. Começaremos esta reunião pela consideração da análise da situação no T.O. face ao inimigo actual e à sua evolução futura, análise a apresentar pelo Chefe da Repartição de Informações a que se seguirá a apresentação do estudo das incidências da evolução do In na situação das NT, no seu potencial, capacidade de manobra, liberdade de acção e suficiência para o cumprimento da missão em termos de prosseguimento da manobra de contra-subversão. Apresentará esse estudo o Chefe da Repartição de Operações em cujo âmbito se projectam em pleno os condicionalismos actuais. Solicitarei, em seguida, aos Senhores Comandantes-Adjuntos a sua impressão sobre o In e a situação das Nossas Forças, bem como sobre o reflexo da situação actual e futura na sua esfera de responsabilidade; e ainda a definição das necessidades cuja carência se reflicta no cumprimento das respectivas missões.”… 


4.5.2 – Intervenção do Sr. Comandante Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro Leitão Marques

Entre outras considerações, o Sr. Brigadeiro disse:

“...No mínimo, e disso não restam quaisquer dúvidas, o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldades de acesso (GUIDAGE, BURUNTUMA, GUILEJE, GADAMAEL, etc), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e manobra psicológica – isto está já ao alcance das suas possibilidades militares. 

Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir à captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa. A dar-se este facto e aceitando que a orientação comunista prevalecerá, tal elemento será aproveitado ao máximo para desmobilizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU. Assisti ao pressionamento psicológico do povo americano por causa dos seus prisioneiros no Vietnam do Norte durante quatro anos; e senti em toda a sua profundidade o efeito desmoralizador desse pressionamento, o qual, em larga medida, juntamente com o elemento económico, levou à agitação interna das massas e à capitulação, apesar de todo o poderio militar americano. 

O que acontecerá se tivermos de enfrentar situação semelhante? O In não perderá a oportunidade e tem experiência técnica para a aproveitar ao máximo. É aqui na Guiné onde o problema é mais agudo e o In sabe isso; o seu esforço será aqui realizado.”...


4.5.3 – Intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Informações, Sr. Ten. Cor. de Inf.ª Baptista Beirão Da intervenção do Sr. Chefe da REP/INFO, transcreve-se: 

“Esta actividade incidirá, mais provavelmente, nas guarnições de fronteira, em especial nas mais vulneráveis às acções com carros de combate, pelo que se consideram áreas de preocupação: 

- o eixo NOVA LAMEGO-BURUNTUMA e em especial a guarnição de BURUNTUMA, particularmente ameaçada;

- a região de ALDEIA FORMOSA e, em especial, as guarnições de GADAMAEL e GUILEJE, expostas a uma acção de carros de combate irradiando da REP GUINÉ; 

- a fronteira Norte da ZONA LESTE, com particular incidência para a faixa tradicional de infiltração (GUIDAGE/BIGENE/FARIM/CUNTIMA). 

No imediato, julga-se que o IN: 

- mantenha a actividade generalizada e dispersa de fixação e desgaste às NF em todo o T.O.; 

- intensifique o seu esforço de implantação de um forte dispositivo militar no BOÉ, em ordem a materializar a sua ocupação, aliás já iniciada conforme se refere no decurso desta análise; 

- mantenha a sua pressão sobre GUIDAGE/BIGENE/BINTA, continuando a concentrar sobre GUIDAGE violento potencial que imediatamente desviará para qualquer outro ponto menos protegido pelo nosso eventual reforço de GUIDAGE; 

- passe à ofensiva no “Chão MANJACO” visando recuperar a área subtraída à subversão, através de acções violentas e sistemáticas contra as populações e NF em especial a Sul dos rios COSTA e BABOQUE; 

- intensifique a sua actividade de resistência à reocupação do Sul pretendendo impedir o desenvolvimento da nossa manobra no CANTANHEZ e TOMBALI;

- intente uma acção tipo convencional com carros de combate contra GADAMAEL, GUILEJE e/ou BURUNTUMA, tirando partido da vulnerabilidade destes pontos a esse tipo de acções e visando o aniquilamento ou captura das guarnições; 

- incremente a sua actividade contra meios navais, em especial a partir do momento em que disponha dos especialistas em preparação. 

Num futuro próximo, prevê-se que o In, partindo do clima de denso agravamento que a sua actividade imediata proporcionará:

- tente a eliminação sistemática das guarnições mais expostas sobre a fronteira, em acções de tipo convencional;

- amplie progressivamente esta manobra da periferia para o interior; 

- estabeleça no BOÉ a fisionomia de novo estado a proclamar conforme sua intenção declarada;

- consolide as bases de uma ulterior evolução do conflito para a fase convencional com directo empenhamento externo. 

Resta referir, a finalizar, que o quadro dispersivo do largo potencial referenciado e a elevada capacidade de manobra do In não permitem, como se desejaria, uma melhor objectivação das zonas preferenciais de esforço do In atenta a fluidez com que se revelam e o quadro geral que se desenha; e apenas pode concluir-se por uma situação na qual todo o T.O., sem qualquer exclusão, acaba por constituir um vasta área de preocupação, na qual dificilmente se podem, no momento, visualizar priorizações. 

Este quadro agravar-se á extraordinariamente caso venha a verificar-se a intervenção da OUA no conflito por iniciativa de SEKOU TOURÉ, que não se terá ainda materializada atenta a posição de não-alinhamento do SENEGAL, a todo o momento susceptível d ser alterada, como atrás se referiu.” 


4.5.4 – Intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Operações, Sr. Ten. Cor. do CEM Pinto de Almeida 

O Sr. Chefe da REP/OPER disse, entre outras considerações:

“3. Se não forem concedidos os reforços solicitados e as armas que permitam às NF enfrentar o In actual, para lhe evitar, a breve prazo, a obtenção de êxitos de fácil exploração psicológica e graves efeitos tácticos da maior influência no moral das NT, julga-se que será necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista militar se considere essenciais e que permitam, à luz de outras concepções da manobra, desencadear mais tarde acções ofensivas com forças de grande envergadura para recuperação das posições enfraquecidas, ou estruturar uma manobra de feição caracterizadamente defensiva baseada na implantação de um certo número de pontos de apoio a sustentar a todo o custo. Mas neste caso, as missões actualmente dadas às NF, em termos de protecção das populações e apoio ao esforço principal da manobra de contra-subversão centrado na manobra sócio-económica, teriam de ser revistas. E além disso, ficariam também altamente prejudicadas as missões de contra-penetração e de detenção do alastramento da subversão, comprometendo-se dessa maneira, a missão das Forças Armadas no TO.

4. A intenção do In de instalar-se fortemente no BOÉ, já em via de concretização, e de que resultam efeitos psicológicos desastrosos, impõe-nos a ocupação daquela região com Forças Terrestres caso o controlo não possa ser efectuado pela FA. Neste caso haveria que abrir estradas que permitissem a instalação e o reabastecimento das FT a implantar e a sua movimentação. No mínimo seriam necessários 2 Batalhões que, não podendo ser retirados do actual dispositivo do TO, pelas razões já arás indicadas, teriam que ser fornecidos pela Metrópole. 

O esforço de Engenharia a desenvolver exigiria o reforço de, pelo menos, 1 Companhia de Engenharia equipada com material adequado. 

Como apoio de fogos, tornar-se-ia necessário ainda o reforço com 1 Comando de Bataria de Artilharia e 3 Pelotões de Artilharia (14 cm). Para permitir a segurança das colunas de reabastecimento para e no BOÉ seria ainda conveniente o reforço de, pelo menos, 1 Esquadrão de Reconhecimento.

5. A ameaça de utilização, pelo In, de carros de combate, mesmo em acções de reduzida amplitude, em golpes-de-mão sobre as guarnições mais isoladas da fronteira, aconselha a, desde já, dotar, pelo menos as guarnições indicadas pela Repartição de Informações como mais susceptíveis de ataques deste tipo, de meios que permitam a sua defesa anti-carro. Com o armamento que possuem e com o pessoal treinado para o tipo de guerra que temos enfrentado até ao presente, as guarnições apresentam-se impotentes e inaptas para fazer face à nova ameaça. As necessidades em subunidades adaptadas à luta anti-carro são, como é óbvio, dependentes do tipo e eficiência do material com que forem equipadas.”… 


4.5.5 – Intervenção do Sr. Comandante do CTIG, Sr. Brigadeiro Silva Banazol 

Da intervenção do Sr. Comandante do CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné), transcreve-se:

“Se do que acabo de expor a V. Ex.ª me é permitida uma conclusão que tudo resuma, eu direi, como se faz nos estudos de situação: 

- O CTIG está em condições, desde que reforçado, de apoiar logisticamente a manobra do Comandante-Chefe nas ZONAS LESTE e OESTE, com algumas limitações a N do RIO CACHEU e desde que assegurada a ligação, por meios navais, BISSAU-XIME, condição essencial que impõe sublinhar; 

- O CTIG não está em condições de apoiar logisticamente a ZONA DO BOÉ; 

- O CTIG depende totalmente dos meios navais para o apoio da ZONA SUL e não o poderá manter se aqueles meios se revelarem insuficientes ou não puderem operar.”


4.5.6 – Intervenção final do Sr. General Comandante-Chefe 

Para terminar a reunião, o Sr. General Spínola afirmou:

“De tudo quanto aqui foi dito conclui-se, com clara evidência, que nos encontramos em nova fase de evolução da guerra, à qual temos que fazer face com um mínimo de afectação do curso normal da manobra de contra-subversão traçada... 

Chega-se assim à conclusão da impossibilidade de economizar meios com recurso à manobra. E se na concepção inicial da nossa manobra foi possível desguarnecer áreas desabitadas cuja ocupação se não justificava, em ordem a recuperar meios em proveito do esforço que se impunha realizar nas zonas Oeste e Leste para deter o alastramento da guerrilha a áreas densamente povoadas, de forma alguma a situação actual admite semelhante balanceamento de meios, dado o facto de o Inimigo, invertendo a sua concepção face ao desequilíbrio das populações a nosso favor, visar agora a ocupação de uma área territorial com fins exclusivamente políticos. 

O crescente potencial do In conjugado com as nossas limitações; as restrições no apoio de fogo da Força Aérea resultante do aparecimento dos mísseis terra-ar; a necessidade de empenhamento de mais meios e mais forças na protecção dos fluxos de reabastecimento, que aqui foi bem claramente acentuado; e o imperativo de defesa e enquadramento das populações que se desequilibrarão em favor do In perante a constatação de qualquer abrandamento na protecção que lhes é dada ou na política de protecção em curso – todos estes factores obrigam, taxativamente, não só à manutenção do actual dispositivo em superfície como até ao seu reforço. Além disso, as intenções do In em relação a áreas pretensamente libertadas obriga ainda ao substancial reforço dos meios de intervenção do Comando-Chefe, ampliado pelas limitações impostas à liberdade de acção aérea. Deste modo afiguram-se-nos manifestamente insuficientes os meios actuais face à evolução verificada, pois considero demonstrada à evidência a impossibilidade de alterar a manobra para economizar meios, sem grave compromisso da missão. Salienta-se que a ocupação do Sul só foi possível à custa do enfraquecimento do dispositivo das Nossas Tropas no Oeste e no Leste, com todos os graves riscos inerentes. 

[...]

Neste quadro geral impõe-se tomar medidas em dois planos distintos: o interno, com reflexo imediato nas adaptações aos novos condicionalismos determinados pela nossa quebra no potencial relativo de combate, e o externo, que se traduz no reforço de meios, equipamento e armamento a obter para o prosseguimento da missão. 

Quanto ao primeiro plano, já foram tomadas medidas parcelares que vão ser reunidas numa directiva operacional a difundir imediatamente. 

Quanto ao segundo, devem os Senhores Comandantes-Adjuntos estudar e apresentar-me, dentro de 48 horas, uma estimativa dos meios necessários ao cumprimento das respectivas missões para serem enviadas ao Escalão Superior, juntamente com a Acta desta reunião. 

As implicações resultantes da carência de meios para enfrentar a presente ofensiva do In e o previsível agravamento da situação, conduzem a opções que ultrapassam a minha esfera de responsabilidade, pelo que serão expostas superiormente em ordem a uma tomada de posição de que oportunamente os Senhores Comandantes-Adjuntos tomarão conhecimento.”


Comentário 

Esta Reunião de Comandos foi realizada no dia 15MAI73, como consequência do aparecimento e utilização, por parte do IN, de uma nova arma – os mísseis terra-ar STRELA, de fabrico soviético.

O Sr. General Comandante-Chefe concluiu que:

”… nos encontramos em nova fase de evolução da guerra, à qual temos que fazer face com um mínimo de afectação do curso normal da manobra de contra-subversão traçada.”

Outra das suas conclusões foi:

“ Deste modo afigura-se-nos manifestamente insuficientes os meios actuais face à evolução verificada, pois considero demonstrada à evidência a impossibilidade de alterar a manobra para economizar meios, sem grave comprometimento da missão.”

A Acta desta Reunião de Comandos, acompanhada das estimativas, apresentadas pelos Senhores Comandantes Adjuntos, dos meios necessários ao cumprimento das respectivas missões, foi enviada ao Escalão Superior (leia-se Governo de Lisboa).

A propósito dos reforços necessários, refiro como exemplo (Anexo D à acta da reunião) o que o Sr. Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné apresentou como meios aéreos e de defesa aérea necessários:

- 8 aviões SKYVAN, para substituir os DO-27 (transporte ligeiro);
- 5 helicópteros equipados com armamento axial, para substituir os AL-III armados;
- 12 aviões MIRAGE, ou de tipo semelhante, para substituir os T-6 e FIAT G-91;
- Radar de detenção, planimétrico e altimétrico, de longo alcance (não existente);
- Mísseis terra-ar do tipo REDEYE (não existentes).

Mesmo que houvesse meios financeiros suficientes (e muito provavelmente não havia), para adquirir estes meios aéreos, bem como o armamento e equipamento apresentados pelos Senhores Comandantes Adjuntos, o Governo Português, teria grande dificuldade em encontrar quem os fornecesse. Estou convicto que, quer o Sr. General Spínola, quer os participantes nesta Reunião, estavam cientes da dificuldade ou mesmo impossibilidade da obtenção, em tempo oportuno, dos reforços solicitados.

As transcrições do Sr. Comandante Adjunto Operacional, Senhores Chefes das Repartições de Informações e Operações e do Sr. Comandante do CTIG, levam-me às seguintes conclusões:

- Ocupação do BOÉ

Para esta ocupação, de acordo com a intervenção do Sr. Chefe da REP/OER, eram necessários os seguintes meios de reforço, vindos da Metrópole:

- 2 Batalhões
- 1 Companhia de Engenharia
- 1 Comando de Bataria de Artilharia
- 3 Pelotões de Artilharia (14 cm)
- 1 Esquadrão de Reconhecimento

O Sr. Brigadeiro Silva Banazol, na sua intervenção, declarou:

“ O CTIG não está em condições de apoiar logisticamente a ZONA do BOÉ.”

A ocupação do BOÉ, não se realizou.

Recordo que o Sr. General Spínola, no início do seu mandato, mandou retirar as NT da região do BOÉ: 1 Companhia em Madina do Boé e 1 destacamento em Beli. Faça-se a comparação entre estes efectivos e os necessários para a ocupação, apresentados em 15 MAI 73.


- Guileje

Refiro que a acção em força do IN sobre Guidage teve início em 8 MAI e o ataque a Guileje começou em 18 MAI; isto significa que a Reunião de Comandos (15 MAI), teve lugar entre aquelas duas acções inimigas.

Na sua intervenção, o Sr. Comandante Adjunto Operacional (Sr. Brigadeiro Leitão Marques), declarou:

“…No mínimo, e disso não restam quaisquer dúvidas, o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruições de guarnições... GUILEJE... isto está já ao alcance das suas possibilidades militares.”

O Sr. Chefe da REP/INFO referiu:

“...Esta actividade incidirá, mais provavelmente, nas guarnições de fronteira, em especial as mais vulneráveis às acções com carros de combate, pelo que se consideram áreas de preocupação: 
- ...

-...e, em especial, as guarnições de... GUILEJE... 

No imediato, julga-se que o In: 
- ...

- intente uma acção tipo convencional com carros de combate contra...GUILEJE...e visando o aniquilamento ou captura das Guarnições... 

Num futuro próximo, prevê-se que o In... 

- tente a eliminação sistemática das guarnições mais expostas sobre a fronteira, em acções isoladas de tipo convencional”… 

O Sr. Chefe da REP/OPER, na sua intervenção, declarou:

“ 3. Se não forem concedidos os reforços solicitados e as armas... julga-se que será necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista se considerem essenciais” ...

Atendendo às transcrições anteriores:

- O Sr. Comandante Adjunto Operacional considerou que já estava das possibilidades militares do IN, a conquista e destruição da guarnição de Guileje.

- O Sr. Chefe da REP/INFO afirmou julgar que, no imediato, o In levaria a efeito uma acção com carros de combate contra Guileje e num futuro próximo, tentaria a eliminação sistemática das guarnições mais expostas sobre a fronteira.

- O Sr. Chefe da REP/OPER, considerou que seria necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições essenciais. É de supor que Guileje seria uma delas.

Conjugando as 3 considerações supra, penso que é lícito poder concluir que, em coerência, o Sr. Chefe da Repartição de Operações, deveria, no final da Reunião, propor o REFORÇO IMEDIATO da guarnição de Guileje, impedindo a sua conquista e destruição pelo IN, como declarou o Sr. Comandante Adjunto Operacional.

Continua por desvendar o MISTÉRIO que foi a não atribuição de qualquer reforço a Guileje, muitíssimo mais difícil de explicar, face ao que foi referido na Reunião de Comandos de 15MAI73. Quando tomei a decisão de efectuar a retirada - 22MAI, mal sabia eu que, 7 dias antes – 15MAI, ao mais alto nível, em Bissau, tinha sido debatido o assunto, exaustivamente, e as conclusões acabaram por ser, por mais inverosímil que pareça, o sancionamento à minha decisão.

O Sr. Brigadeiro Leitão Marques, na sua intervenção (reunião de 15 MAI), afirmou:

“Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir à captura de prisioneiros tal que possa constituir um elemento de pressão sobre a Nação Portuguesa. A dar-se este facto... tal elemento será aproveitado ao máximo para desmoralizar a retaguarda...” 

O mesmo Sr. Brigadeiro, quando me interrogou, em 31 MAI (isto é, 16 dias mais tarde), no âmbito do processo que me foi instaurado, fez-me a seguinte:

“25ª. Pergunta: Quando decidiu retirar tinha ponderado os altos prejuízos para a Nação resultantes desse procedimento?”

Confrontando aquela afirmação e esta interrogação: estamos perante um bom exemplo de HIPOCRISIA.


4.6 – Fim de mandato do Sr. General Spínola 

Em 72, o Sr. General Spínola participou em algumas reuniões na Rep. do Senegal, a última das quais teve lugar em 18MAI72, em Cap Skiring, na qual esteve presente o Sr. Presidente Senghor. Estas reuniões tinham a finalidade de tentar uma outra saída para a guerra, baseada no diálogo. Tais encontros foram interrompidos por ordem do Sr. Primeiro-Ministro de Portugal, Sr. Prof. Marcelo Caetano, que terá dito que era preferível um desaire militar na Guiné do que estabelecer conversações com o inimigo.

Entretanto, em 25MAR73, foi abatido, na região de Guileje, por um míssil terra-ar STRELA, o primeiro Avião FIAF G-91 da nossa Força Aérea, tendo o respectivo Piloto conseguido ejectar-se e recolhido pelas NT. O aparecimento destes mísseis provocou grandes condicionamentos à actuação da nossa Força Aérea, com prejuízo flagrante ao apoio às Forças Terrestres e Marítimas.

Em MAI73 o PAIGC, modificando radicalmente a sua maneira de actuar, levou a efeito operações de grande envergadura, empenhando grandes efectivos, apoiados por poderosas bases de fogos. Fez ataques em força, sucessivamente contra Guidage (fronteira Norte), Guileje e Gadamael, com início em 08MAI, 18MAI e 31MAI, respectivamente.

Para descrever a última parte do mandato do Sr. General Spínola, como Comandante-Chefe das Foças Armadas da Guiné, socorro-me do livro “MARECHAL COSTA GOMES – No centro das tempestades” (A Esfera dos Livros – 1ª. Edição: Março de2008), da autoria de Luís Nuno Rodrigues. Nas páginas 101 a 103, pode ler-se:

“...Foi neste contexto que, em Junho de 1973, o CEMGFA Francisco da Costa Gomes se deslocou à Guiné. Ao chegar ao território, presidiu, de imediato, a uma reunião com os principais comandos militares com o objectivo de proceder a uma “profunda análise da situação”. A posição de Costa Gomes relativamente à situação no teatro de operações da Guiné era bastante clara. Na sua opinião, “o desenvolvimento da manobra em curso” e a “manutenção do actual dispositivo” só seria possível mediante a “disponibilidade de volumosos meios adicionais que permitissem o reforço adequado das guarnições de fronteira”. Nisso concordava com Spínola. No entanto, nas condições existentes em Portugal, tanto humanas como materiais, a Guiné não poderia contar com o “reforço adequado de meios por absoluta impossibilidade de os fornecer actualmente”. A solução, sob o ponto de vista militar, passaria pela “ adopção de uma manobra visando o encurtamento de área efectivamente ocupada, evitando-se desse modo a contingência de aniquilamento das guarnições de fronteira que se impõe a todo o transe evitar, atentas as repercussões militares e políticas externas e internas”

[...]

Apesar da oposição de Spínola, Costa Gomes transmitiu a sua ideia a Marcelo Caetano uma vez regressado a Lisboa. Na opinião, a Guiné era “defensável” caso o “dispositivo” fosse modificado, retirando para o interior as guarnições militares que estavam a defender as povoações localizadas junto à fronteira. 

Conhecida a posição de Costa Gomes, Spínola escreveu ainda uma carta ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, manifestando-se crítico em relação às propostas avançadas pelo CEMGFA. Na sua opinião, “a redução do espaço efectivamente ocupado com vista à concentração de meios que permita aumentar a capacidade de resistência das nossas forças, evitando paralelamente a contingência do total aniquilamento das guarnições de fronteira” era uma manobra que obrigava a abandonar áreas geográficas e, o que é bem pior, a entregar à sua sorte populações a que não podemos fornecer meios adequados de defesa. Ou seja, um conjunto de medidas que “frontalmente se opõem à linha política a que me vinculei, criando-se assim uma situação incompatível com os compromissos que claramente assumi perante as populações”. Ora Spínola não estava disposto a “abandonar áreas e as correspondentes populações em cuja protecção, justa administração e desenvolvimento socioeconómico” se tinha empenhado “pessoalmente”. Apesar de, enquanto comandante-chefe, considerar “absolutamente necessária” a referida manobra, não se mostrava disposto a efectuá-la, uma vez que tal lançaria o “rótulo amargo de demagogia” sobre a sua acção na Guiné até ao momento. Por isso solicitava a sua substituição “ a tempo de possibilitar a alteração do dispositivo militar que é mister fazer”. Spínola regressa a Lisboa no início de Agosto, inicialmente em licença de férias, mas já não voltaria ao território onde granjeara fama.” 

O Sr. General Spínola regressou a Lisboa em 6 de Agosto de 1973, terminando assim o seu mandato.


Sr. General Bettencourt Rodrigues (1973/74) 

O Sr General Bettencourt Rodrigues iniciou as funções de Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, em 21 SET 73. Regressou a Lisboa pouco depois de 25 de Abril de 1974.

Quando o Sr. General Bettencourt Rodrigues chegou a Bissau, estava eu preso preventivamente; regressei a Lisboa em 12MAI74. Sem acesso a qualquer informação, naquela situação, não me sinto confortável para fazer qualquer consideração sobre a actuação deste Sr. Comandante-Chefe. O Sr. General Bettencourt Rodrigues não teve nenhuma intervenção no auto de corpo de delito que me foi instaurado, como consequência da minha decisão de retirar de Guileje, que já estava em fase adiantada quando o Sr General chegou à Guiné.

Nota – Os elementos sobre Gandembel, foram recolhidos do livro “ A CCAÇ 2317, NA GUERRA DA GUINÉ - GANDEMBEL/PONTE BALANA” da autoria de Idálio Reis (Edição do Autor), que foi Alferes Miliciano da CCAÇ 2317, a única Companhia que ocupou as guarnições de Gandembel/Ponte Balana.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2016

Alexandre da Costa Coutinho e Lima
(Cor. de Art.ª, Reformado)
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Nota do editor

Postes anteriores de:

17 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15759: (In)citações (84): Opinião sobre os Governadores e Comandantes-Chefes das Forças Armadas da Guiné - 1 (Coutinho e Lima, Cor Art Ref)
e
19 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15768: (In)citações (85): Opinião sobre os Governadores e Comandantes-Chefes das Forças Armadas da Guiné - 2 (Coutinho e Lima, Cor Art Ref)