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quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23619: Lembrete (42): Convite para o lançamento de "O Gémeo de Ompada", de Carlos Vaz Ferraz, que se realiza no dia 20 de Setembro, às 18h30, na Sala de Âmbito Cultural (piso 6) do El Corte Inglês de Lisboa

C O N V I T E


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Matos Gomes, Coronel Cavalaria Reformado (ex-2.º CMDT Batalhão de Comandos da Guiné, 1972/74), escritor e historiógrafo da guerra colonial, com data de 15 de Setembro de 2022:

Meu caro Carlos Vinhal,
Junto envio o convite para a apresentação do meu novo romance O gémeo de Ompanda.
Teria o maior prazer na companhia dos camaradas da tertúlia e das aventuras da Guiné, do Luís Graça e Camaradas.

Aqui fica o convite com o antecipado prazer de ver e rever as gentes de África

Contracapa do livro

Um abraço amigo
Carlos Matos Gomes
Dia 20, às 18.30 no El Corte Inglês, piso 6.

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Notas do editor:

Vd. poste de 25 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23554: Agenda cultural (820): "O Gémeo de Ompanda - e as suas duas almas", por Carlos Vaz Ferraz. No dia 27 de agosto, às 17:00, o autor vai estar em sessão de autógrafos no Espaço Porto Editora | Bertrand Editora da 92.ª Feira do Livro de Lisboa e, no dia 20 de setembro, pelas 18:30, na sala de Âmbito Cultural (piso 6) do El Corte Inglés de Lisboa, sessão de lançamento da obra com apresentação de Augusto Carmona da Motta e Fernando Alves

Último poste da série de 20 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23372: Lembrete (41): 37º Encontro Nacional do Pessoal do BENG 447, Brá, Bissau, sábado, 25 de junho, Restaurante O Paraíso do Coto, Caldas da Rainha: há autocarros a partir do Porto e de Lisboa

domingo, 28 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23564: Agenda cultural (822): Convite para a apresentação do livro "O Amor que veio da China e outros contos", da autoria do nosso camarada de armas Paulo Cordeiro Salgado, a levar a efeito no próximo dia 4 de Setembro de 2022, domingo, pelas 15:30h, na Biblioteca Municipal Almeida Garret - Sala Multimédia - Jardins do Palácio de Cristal, Porto

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 28 de Agosto de 2022, com o convite para a apresentação do seu último livro "O Amor que veio da China e outros contos", a levar a efeito no próximo dia 4 de Setembro de 2022, domingo, pelas 15:30h, na Biblioteca Municipal Almeida Garret - Sala Multimédia - Jardins do Palácio de Cristal, Porto:

Caros Camaradas,
Vivam, todos.
Parar é morrer. Continuo a escrever. Sina de escritor serôdio, mas ainda rico em memórias. Raízes e vivências muitas, por África. Mas olhar para o futuro. Partilhar é preciso.

Agradeço-vos a divulgação, no nosso blogue, do meu último livro - O amor que veio da China e outros contos.
Podereis, camaradas, visitar o stand D-20 da Feira do Livro de Lisboa, onde está o António Lopes, editor que certamente, terá gosto em conversar com os interessados. Este editor tem o mérito de estar localizado na periferia - aldeia de Carviçais, concelho de Torre de Moncorvo - uma forma corajosa de descentralização.

Recordo, passe, o orgulho deste vosso camarada, que escrevi:
Guiné-Crónicas de Guerra e Amor
Milando ou Andança por África
7 Histórias para o Xavier (a África - a Guiné está lá) - infantil.
4 Fábulas para o Pedro - infantil
A Revolta dos Animais - (fala da ecologia, do ambiente) - juvenil (para todos, claro

Agradeço a divulgação e... vamos ler. A literatura, a pintura, a arquitetura, a dança, a música, sem esquecer a poesia - aquelas que contribuem para o humanismo.

Uma saudação, Camaradas.
Paulo Salgado


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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23558: Agenda cultural (821): Filme a não perder: "Montado, o Bosque do Lince Ibérico", realizado pelo naturalista Joaquín Gutiérrez Acha, uma podrução luso-espanhola (2020, 94 minutos). Em exibição nos cinemas.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23554: Agenda cultural (820): "O Gémeo de Ompanda - e as suas duas almas", por Carlos Vaz Ferraz. No dia 27 de agosto, às 17:00, o autor vai estar em sessão de autógrafos no Espaço Porto Editora | Bertrand Editora da 92.ª Feira do Livro de Lisboa e, no dia 20 de setembro, pelas 18:30, na sala de Âmbito Cultural (piso 6) do El Corte Inglés de Lisboa, sessão de lançamento da obra com apresentação de Augusto Carmona da Motta e Fernando Alves


A busca da identidade num mundo de diferenças

Em O Gémeo de Ompanda – e as suas duas almas, Carlos Vale Ferraz convida-nos a fazer uma viagem épica com partida numa pequena localidade do sul de Angola

Com mestria, Carlos Vale Ferraz dá uma vez mais vida a personagens memoráveis em O Gémeo de Ompanda – e as suas duas almas. Um romance indispensável sobre a busca da identidade num mundo de diferenças, que decorre entre Portugal e Angola. O tempo dos missionários laicos portugueses em Angola e a Guerra Civil neste país africano servem de pano de fundo a uma história feita de escolhas. Nela, os protagonistas lutam não só contra os estigmas de duas sociedades, como também contra si próprios.

O livro já se encontra em pré-venda e estará disponível nas livrarias a 25 de agosto.

Conheça a obra nas palavras do próprio autor:



No dia 27 de agosto, a partir das 17:00, o autor vai estar em sessão de autógrafos no Espaço Porto Editora | Bertrand Editora da 92.ª Feira do Livro de Lisboa.

A 20 de setembro, pelas 18:30, na sala de Âmbito Cultural (piso 6) do El Corte Inglés de Lisboa, decorre a sessão de lançamento da obra, com apresentação de Augusto Carmona da Motta e Fernando Alves (TSF).



SOBRE O LIVRO:

O Gémeo de Ompanda – e as suas duas almas

Castor e Pólux, duas das estrelas mais brilhantes do firmamento, gémeos mitológicos que, não conseguindo viver um sem o outro, optaram por repartir a eternidade entre o Céu e o Inferno. Mas nem toda a salvação vem dos céus… Para Atsu, gémeo negro sobrevivo a uma maldição, padecendo do sentimento de culpa por ser o que escapou, surge na figura de um amaldiçoado como ele, seu reflexo branco. Nos céus de Ompanda, terra das avestruzes e pátria dos cuanhamas, entre o sul de Angola e o norte da Namíbia, há momentos em que as estrelas mais brilhantes de Gémeos são visíveis. Nos de São Pedro de Moel, terra de navegantes e pátria dos portugueses, também. Entre Angola e Portugal, as vidas de Aliene (a cuanhama branca), Francisco Boavida (o branco criado por negros) e Atsu (o negro europeizado) – três lados de um triângulo de amor, ainda que não amoroso – vão-nos sendo desvendadas à luz da sua busca pela identidade. Uma demanda pela essência do ser, entre dissemelhanças pessoais e soci! ais, dinheiro e política, que culmina com o regresso a casa, a África.


Título: O Gémeo de Ompanda – e as suas duas almas
Autor: Carlos Vale Ferraz
Páginas: 192
PVP: 16,60€

Ver primeiras páginas


SOBRE O AUTOR:
Carlos Vale Ferraz

Pseudónimo literário de Carlos de Matos Gomes, nasceu a 24 de julho de 1946, em Vila Nova da Barquinha. Foi oficial do Exército, tendo cumprido comissões em Angola, Moçambique e Guiné. Investigador de História Contemporânea de Portugal, publicou como Carlos de Matos Gomes e em coautoria com Aniceto Afonso Guerra Colonial, entre outros. No catálogo da Porto Editora figuram ainda os seus romances A Última Viúva de África, Prémio Literário Fernando Namora 2018, Nó Cego, Que fazer contigo, pá? e Angoche.

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23507: Agenda cultural (819): No passado dia 2 de Julho de 2022, foi apresentado, na Casa Pia de Lisboa, o livro "Alfredo Ribeiro – História, Memória, Saudade - O Universo Casapiano", da autoria de Luís Vaz. Alfredo Ribeiro foi Furriel Miliciano na CCAÇ 4150/73 (Albano Costa)

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23248: Notas de leitura (1444): "Histórias da História da Guiné-Bissau", por Manuel Grilo, obra financiada pela Fundação do BCP para o Comissariado-Geral da Guiné-Bissau da Expo 98, 1998 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Mais uma agradável surpresa, a consultar os escritores da Guiné-Bissau na Biblioteca Nacional, suscitou-me a curiosidade este título, aqui se procura compendiar o que de essencial versa uma obra que terá sido distribuída na Expo 98, no pavilhão da Guiné-Bissau, com o apoio da então Fundação do BCP. Desconheço inteiramente se este autor é o mesmo que escreveu vários livros policiais de uma coleção que fez história na Editorial Caminho, não há dados biográficos na obra. O importante é que é uma obra muito bem organizada, útil e apelativa a quem tem curiosidade pela aventura guineense. Das pesquisas feitas, constatei que o livro não está à venda em nenhum alfarrabista. Mais uma vez somos levados a questionar porque é que obras tão úteis não são reeditadas e atualizadas. Coisas da vida.

Um abraço do
Mário



Histórias da História da Guiné-Bissau, por Manuel Grilo

Beja Santos

Esta obra de Manuel Grilo foi financiada pela Fundação do Banco Comercial Português para o Comissariado-Geral da Guiné-Bissau da Expo 98, 1998. Obra sumamente didática, recorre a uma trama engenhosa em que um português, João, que vem dos tempos da conquista de Ceuta, se encontra e faz profunda amizade com Mamadu, que vê chegar as caravelas portuguesas à Senegâmbia, em meados do século XV.

Tudo começa com a descrição de uma caravana que avança para Bilad-Ghâná, na costa do Senegal, nos confins da Blede-es-Sudan (parte do continente africano que se estende depois do Sara). A caravana tinha trazido sal, panos de algodão, sabão, cavalgaduras, recebera um estupendo carregamento de malagueta, marfim, cera e ouro. E também escravos. Estamos num ponto indefinido do que fora o império do Mali, já em gradual desagregação, dividido em reinos, o Mandimansa é já uma figura quase lendária.

E temos o maravilhamento dos navegadores que depois de avistarem uma costa árida dão com um extenso arvoredo, enseadas, chegara-se à Terra dos Negros que para muitos é interpretado como o termo Guiné. Os relatos de viagem irão referir estes novos povos, até então desconhecidos, os Azenegues, os Jalofos, lá nos confins da Guinahua, é assim que João começara a sua história na aventura de Ceuta e agora era navegador, faz o ponto da situação, como se estivesse a escrever literatura de viagens. Mamadu entra em cena, vê chegar esta gente desconhecida. Irão conversar os dois, João explicará que já não vive em Ceuta, que veio de Lagos, que passara o Cabo Branco, depois Arguim, o Cabo Verde e o rio Gâmbia. Fala-se do imperador do Mali, a presença portuguesa situa-se na foz do rio, talvez o rio de S. Domingos, começam as trocas, ao sabor dos interesses recíprocos: os portugueses entregam sal, panos de algodão, sabões, cavalos e burros, recebem escravos, malagueta, marfim, seda, couros e algum ouro.

João transforma-se em lançado ou tangomau. Fica-se a saber que D. Afonso V deu o monopólio da exploração e comércio de todo o território da Guiné aos habitantes de Cabo Verde, ilhas que pertencem ao infante D. Fernando, sobrinho e herdeiro do infante D. Henrique. A história prossegue, o Império do Cabo fez surgir os Farins, na região a presença portuguesa é alvo de intensa concorrência com ingleses, franceses e holandeses, os espanhóis estarão mais presentes no período filipino. É criada a Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné, a quem foi entregue o monopólio do comércio e resgate de escravos.

Tenta-se a aproximação da Coroa e os reinos locais. Incinha Té, filho de Bacompolo Có, que era o rei de Bissau, considerava-se cristão e familiar de Pedro II de Portugal, no entanto, irá revoltar-se contra os abusos praticados pelo capitão-mor de Bissau, José Pinheiro. O comércio de Bissau passa a ser intenso. Em 1707, é demolido o forte de Nossa Senhora da Conceição de Bissau, muito tempo depois aparecerá, a custo de muito suor e sangue, o que é hoje a fortaleza da Amura.

Estas histórias sobre a presença portuguesa dão-nos agora conta da criação de Bolama, por onde passaram franceses e se instalou uma colónia britânica chefiada por Philip Beaver, acabou num verdadeiro cemitério. Nos longínquos primórdios do século XVII, conta este livrinho didático, Geba era uma das mais importantes povoações da Guiné, com quase 3 milhares de cristãos e assimilados.

Estamos agora já no século XIX, a batalha de Kansala marca a chegada do predomínio fula sobre os Mandingas. Tudo começara quando os Fulas-Pretos do Gabu apelaram a Almany Soriya, rei do Futa-Djalon, para os libertar do jugo mandinga, o rei reuniu mais de trinta mil guerreiros, o rei Mandinga suicidou-se.

As relações entre os portugueses e os régulos guineenses eram extremamente difíceis. As negociações de paz, os protocolos e os acordos, eram rápida e unilateralmente rasgados. Devido à importância de Bissau tentam-se as negociações entre os portugueses e os régulos de Intim, Bandim e Antula, incluindo os aliados Balantas e Beafadas, processo que começou em dezembro de 1844, e que se prolongou com muitos altos e baixos até às operações de pacificação de Teixeira Pinto.

Mamadu e João recordam Honório Pereira Barreto, figura primordial que deu coesão territorial à colónia, ele negociou habilmente com diferentes régulos, comprou territórios que ofereceu à Coroa.

Com a queda do Império do Cabo (ou Kaabu), os Fulas aspiraram a tomar posse do Forreá. Só que a aliança dos Fula-Forros e os seus antigos escravos, os Fula-Pretos, rapidamente se desmoronou, tudo irá descambar numa sanguinária guerra civil. Ora o Forreá era o centro comercial e agrícola de toda a Guiné, nestes finais do século XIX.

Em Geba, reinava Mussá Molo, um déspota que granjeou inúmeros inimigos. Nos finais de 1886, mais de quatro mil Fulas e Mandingas, cerca de duzentos Beafadas, soldados portugueses e uma centena de Grumetes atacaram a tabanca de Fancá, Mussá Molo foi derrotado e refugiou-se no Casamansa – assim se desintegrou o reino de Fuladu.

A conversa entre os amigos retorna ao Forreá. A região é fertilíssima, como se disse. E o comércio de amendoim, algum ouro, marfim, couros, ceras e panos é de tal maneira intenso que se pensou mesmo em que Buba deveria ser a capital da Guiné. Instalaram-se numerosas pontas que se dedicavam sobretudo ao cultivo da mancarra. Com a sanguinolenta guerra entre os Fulas, o comércio paralisou. Então Portugal resolve apoiar a revolta dos Fulas-Pretos. Com o auxílio dos Mandingas, as forças conjuntas conseguem derrotar Mamadu Paté.

Os amigos falam também do contencioso felupe: os de Jufunco atacam Bolor, destroem a povoação e o régulo proclama-se rei Bolor. As forças portuguesas intervêm, aproximam-se com um elevado contingente de tropa cabo-verdiana. Dá-se o chamado Massacre de Bolor que irá levar à desafetação da Guiné de Cabo Verde. A situação em geral deteriorou-se na colónia e o governo de Lisboa respondeu com a criação de um Distrito Militar Autónomo para a Guiné.

Estamos já no século XX, as revoltas, insurreições, insubordinações e escaramuças não param. Foi necessário constituir uma grande força para reprimir a revolta de Infali Soncó, régulo do Cuor que ameaçava paralisar a navegação do Geba. Mais tarde, em plena I Guerra Mundial, ocorrerão campanhas decisivas de pacificação lideradas por João Teixeira Pinto. Vem depois o tempo em que a Guiné passa a ser uma potência exportadora de arroz.

E este primoroso livro didático termina com a ascensão nacionalista, cujo prenúncio foi a criação do MING, em 1954. Com discrição, aqui acabam estas engenhosas Histórias da História da Guiné-Bissau, cuja capa recorda a belíssima panaria manjaca. É de lamentar que este livro seja praticamente desconhecido.

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23236: Notas de leitura (1443): Comandante Hussi, por Jorge Araújo e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a história do menino-soldado que não perdeu a capacidade de sonhar, é edição do Clube do Autor, 2011 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23236: Notas de leitura (1443): Comandante Hussi, por Jorge Araújo e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a história do menino-soldado que não perdeu a capacidade de sonhar, é edição do Clube do Autor, 2011 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Há livros que merecem uma regular revisitação, não só por terem consagração pública, por constituírem peças literárias do melhor cristal, mas porque nos transportam a vivências que guardamos para toda a vida, nós, que conhecemos os malefícios da guerra a par de uma camaradagem partilhada como em nenhum outro cenário da vida. Jorge Araújo maquinou com base num acontecimento real, o menino Hussi, um menino-estafeta que correu todos os riscos naquele demencial conflito político-militar que abanou pelos alicerces a Guiné entre 1998 e 1999, uma história de encantar em que um objeto, uma bicicleta, ocupa um lugar central, pois é uma bicicleta que fala, pintada de lama e com os raios das rodas a contorcerem-se de dor. Mensagem de ternura num mundo em que coisas tão simples fascinam uma criança incansável por reencontrar aquela bicicleta com que irá pedalar até à eternidade. Pois se convida o leitor a tonificar-se com este perdurável "Comandante Hussi".

Um abraço do
Mário


Revisitar uma obra-prima da literatura luso-guineense: Comandante Hussi[1]

Beja Santos

O jornalista José Vegar, no posfácio desta obra prodigiosa, questiona se o leitor se deslumbrou com uma história para crianças que é uma crónica de guerra para leitura dos adultos de hoje, ou uma crónica adulta de guerra esmagada por uma luminosidade só para crianças. A máquina literária de Jorge Araújo, reforçada pelas belas ilustrações de Pedro Sousa Pereira, é de um tratamento alegórico em torno de uma bicicleta que conversa com o seu dono, bicicleta temida por um feiticeiro que influi numa terrível decisão de um tirano que é o Comandante Trovão que manda destruir todas as bicicletas do país tal como Herodes mandou matar as crianças.

É tudo alegoria naquela Guiné-Bissau que vai viver um conflito sangrento que se prolongou de 1998 a 1999, deixando o país mais comatoso. Hussi é um membro da família Sissé, a residir em Porto dos Batuquinhos, na margem de um rio que a seca engoliu. É tudo pobre, mais do que elementar, mas muito rico em convivência. Pobre porque a casa tem paredes de cartão, uma alcatifa de terra batida, as camas são esteiras, a cozinha não passava de meia dúzia de pedras calcinadas e a casa de banho um buraco aberto no quintal. A única mobília era o calendário de Nossa Senhora de Fátima. Tudo paupérrimo, mas tudo nobre na vida de relação, ali vive Hussi com Abdelei Sissé, o pai herói, Dona Geca, os três irmãos de nome Totonito, Tuasab e Doskas. “Viviam felizes, porque a felicidade também se faz de pequenos nadas. Um sorriso, uma palavra de conforto, uma mão de arroz para embalar o estômago, um pedaço de pano para embrulhar o corpo”. Convém que o leitor não se esqueça que está a ler um livro único, aquela petizada adora jogar à bola, o senhor do apito era o brigadeiro Raio de Sol, um velho militar na reserva.

Naquele dia não apareceu, todos estranharam. Como tudo decorre sob o manto diáfano da fantasia, temos que adivinhar quem era o brigadeiro Raio de Sol, diz o autor que era mais alto do que uma girafa, mais magro do que um antílope. “Porte altivo, olhar intenso, sorriso discreto, carnes secas e barba cor de marfim”. Homem recatado, como Catão, entregue à semeadura e às leituras. Viu tanto despotismo, tanta criança com a barriga em forma de balão, tanto desemprego, tanta falência quanto aos ideais por que tinha lutado, que um dia se lançou na Guerra do Balão. Instalou-se o caos, caia ferro e fogo sobre a cidade do asfalto, o pai de Hussi mandou a família para a terra dos antepassados, ele foi combater com a gente do brigadeiro Raio de Sol, a Hussi foi recusado levar a bicicleta, ele teve que a esconder, enterrou-a, mas antes encetou com ela uma certa conversa:
- Mal a guerra acabar, venho buscar-te.
- Prometes?
- Prometo – respondeu Hussi, enquanto deitava mais uma pazada de terra e cruzava os dedos atrás das costas, para dar sorte.
A bicicleta podia finalmente hibernar descansada. Sabia que Hussi era um menino de palavra. Que não ficaria enterrada até ao final dos tempos.
- Vai com Deus – disse com a voz empoeirada de emoção.


Está na altura de dizer ao leitor que Hussi é de carne e osso, será a mascote dos rebeldes capitaneados pelo brigadeiro Ansumane Mané, foi descoberto pelos jornalistas, exatamente com aquela faixa tricolor com as cores da França, que ele apanhou no rescaldo da derrota do Comandante Trovão, quando todos os mercenários, os aguentas e os adeptos do tirano deram às de vila Diogo. Hussi foge da aldeia dos antepassados, põe-se ao serviço da rebelião. Como não há história para crianças sem passos de mágica e clarões de fantasia, o Comandante Trovão não é somente um déspota sanguinário que mata a torto e a direito os seus próprios sequazes, é supersticioso, acredita piamente nos vaticínios e predições do professor Bambara, “uma criatura minúscula, roliça, óculos de lentes espessas que nem fundo de garrafa, colar de conchas à volta do pescoço”. É ele quem faz saber que os revoltosos possuem uma arma secreta, uma bicicleta mágica, furioso, o tirano exige ver essa bicicleta viva ou morta, à cautela arranjou-se uma bicicleta qualquer e levou-se o selim ao Comandante Trovão, sobre uma bandeja de prata. Em boa hora, a feitiçaria entrou neste conto de fadas cheio de gente de carne e osso. Hussi teve notícia da morte de uma bicicleta, pediu ajuda a uma força expedicionária, encontrou a casa destruída e nem rasto da bicicleta, chorou amargamente. É nisto que vai ocorrer o dia do assalto final. O Comandante Trovão pediu ao professor Bambara que o transformasse em mosca-tsé-tsé. O professor preparou umas mezinhas à base de asas de morcego e olhos de cobra, o Comandante Trovão nunca mais foi visto em carne e osso. Dá-se o assalto final, Hussi anda feliz entre os vencedores. Hussi só sonha em voltar a ver a sua bicicleta.

E toda esta história ternurenta com tantos adultos em conflito, levam a que este menino, que gosta do Luís Figo, volte às ruínas da sua casa. É um momento de encanto, para adultos e crianças:
“Foi então que teve uma visão. O talismã – que colocara sobre as cinzas, para proteger a bicicleta na altura da fuga, e que desaparecera quando regressou a Porto dos Batuquinhos com Capacete de Ferro, a fim de confirmar o infortúnio – repousava por ali. Lágrimas de esperança iluminaram-lhe o rosto. Desatou a cavar, as mãos entranhadas na terra avermelhada, desatou a cavar, as mãos à procura do seu tesouro valioso, desatou a cavar, o buraco cada vez mais profundo, desatou a cavar, e nada, nada de bicicleta, nem mesmo um parafuso de consolação.
- Está frio. – Uma voz ecoou das profundezas da terra.
Hussi não prestou muita atenção, estava demasiado concentrado na sua tarefa.
- Agora está morno. – O mesmo ruído de fundo, só que mais audível.
Hussi continuou a busca. A cavar com as mãos cada vez mais avermelhadas, as entranhas da terra cada vez mais esburacadas.
- Está quente, a arder.
Os dedos tropeçaram num objeto metálico, de contornos indefinidos. Bastou, porém, um pequeno movimento do polegar para compreender que o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. Todo pintado de lama, os pedais amputados, o selim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de alegria. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta.”


É conto de fadas, é máquina literária ternurenta, de água cristalina, só podia acabar assim:
“Hussi e a sua bicicleta ainda tinham muito que falar. Era toda uma guerra para partilhar. Algumas coisas boas, muito más. À luz do dia, olhos nos olhos, sem transmissão de pensamento. Hussi limpou o retrovisor com o seu velho lenço amarelado, sacudiu o pó que asfixiava o cachecol do Barcelona, colocou a fitinha tricolor do outro lado do guiador, ajustou os pedais com a sola das sandálias. Quando se sentou no selim, sentiu-se outra vez dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternidade”.

Comandante Hussi, por Jorge Araújo e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a história do menino-soldado que não perdeu a capacidade de sonhar, é edição do Clube do Autor, 2011. De leitura obrigatória.


Fotografia de João Francisco Vilhena no semanário “O Independente”, maio de 1999.
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 24 DE SETEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10428: Notas de leitura (409): "Comandante Hussi", de Jorge Araújo (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23220: Notas de leitura (1442): "Pedaços de Vidas", por Angelino Santos Silva; Mosaico de Palavras, 2010 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23220: Notas de leitura (1442): "Pedaços de Vidas", por Angelino Santos Silva; Mosaico de Palavras, 2010 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Há que confessar que nada me fora dado a ler como esta encruzilhada de vidas em que somos levados de meados do século XX até ao princípio deste século, tudo começa no meio rural, talvez na Freguesia de Recarei, Concelho de Paredes, percorre Caldas da Rainha e Santarém, Lamego e uma intensa atividade operacional na Guiné, no centro da trama estão dois amigos fraternos; mas como temos aqui uma encruzilhada de vidas, muito provavelmente se conta a história de alguém que se conhece bem que levou uma vida conjugal infernal e que tudo vai contar, desde os primeiros episódios de um ciúme obsessivo até à tentativa de espoliar o marido e viver em permanente quezília com os filhos, temos aqui uma galopada de episódios pintalgados de dramatismo, seguramente que Angelino Santos Silva ganhou coragem para este desnudamento em que expõe a sua vida, recorrendo ao escudo da malha ficcional.

Um abraço do
Mário



Pedaços da vida de um antigo Comando na Guiné e em Portugal, obra singularíssima

Mário Beja Santos

Convém, antes de mais, justificar no título o uso de “obra singularíssima”. Angelino Santos Silva dá-nos conta do seu currículo, fez parte da 26.ª Companhia de Comandos, combatendo na Guiné de 1970 a 1972, levou uma vida de trabalho, introduz no seu currículo casamento e divórcio e orgulha-se de ter sido um competente diretor de vendas. Homenageia os camaradas e execra os praticantes do ciúme, veremos adiante que a singularidade desta obra assenta em duas histórias entrelaçadas, uma envolve dois jovens, amizade inquebrantável, António e Augusto, que combaterão juntos na mesma Companhia de Comandos; e a outra a de um casal que, de peripécia em peripécia, como iremos assistir, descobrirá o inferno relacional, tudo começa em obsessões de ciúme, culminará num golpe de baú e num divórcio litigioso onde iremos presenciar, a toda a largura, o lavar da roupa suja.

Como, nestas coisas da literatura da guerra colonial, acabamos sempre de falar de nós, mesmo com recurso aos artifícios de entrepostas pessoas e até de lugares e tempos tidos por convenientes numa tentativa de afastar suspeitas de incursões autobiográficas, há que conferir coragem a Angelino Santos Silva por esta memória e esfrangalhada diatribe familiar levado ao caos. Tudo começa pela história de António Daborda e Augusto Marques, furriel e primeiro-cabo dos Comandos, e do infausto casal Mário Oliveira e Maria Carolina. Os jovens vão às sortes, apurados para todo o serviço, o Mário e a Carolina casam quando ele regressou de África. A família de Augusto socorre-se de um pilantra, o Arnaldinho, a quem entregam 50 contos, na tentativa de safar o filho de África, mal sabe Ti João que o Arnaldinho é doido por jogo e por passear com meninas, não houve cunhas nem o Augusto queria. Iremos acompanhar a vida dos jovens em Lamego, cenas de brutalidade não faltarão, tudo justificado pelos instrutores em nome da resistência que é indispensável para as tropas especiais. E as páginas vão-se sobrepondo com os primeiros anos da vida do casal Mário e Carolina e as brutalidades em Lamego, não faltarão cantis com água e urina, tudo para beber e começam os ciúmes na vida familiar, a intromissão das irmãs de Carolina na vida do casal, surgem os primeiros delírios da Carolina, forja amantes para o marido, em Lamego António Daborda revela as suas competências, tem suficiente força de caráter para todos aqueles aturdimentos e gritarias durante a noite, altifalantes e ordens para formar na parada, é a vez de Augusto chegar a Lamego, se aquela amizade feita na aldeia já era sólida vai ganhando a consistência do aço; Mário leva uma vida amargada, acaba sempre por arredar a ideia de se separar daquela mulher errática, quer ver os filhos a viver em meio familiar, sujeita-se aos caprichos de Carolina, cada vez mais dominada pelas manas e exigindo ao marido um sem-número de excursões, que tanto podem ser a Cuba, como à República Dominicana, como a Tenerife; os dois grandes amigos reencontram o meio familiar sempre que há férias, o Arnaldinho reaparece como um fantasma, os filhos de Mário e Carolina vão crescendo e, para seu espanto, a mão maltrata-os, chega a inventar envenenamentos.

O romance segue o seu curso, mais brutalidade em Lamego, vamos ter agora uma Companhia de Comandos, no meio de trabalho de Mário começa a haver inquietações, Carolina não faz outra coisa que dizer mal do marido, começa-se a duvidar da sanidade mental da senhora.

Chegou a hora do embarque, chega-se à Guiné naquele estranhíssimo período de março/abril de 1970 em que parecia que se ia chegar a um acordo de paz, havia para ali umas negociações secretas, tudo redundou, em 20 de abril, num selvático retalhamento de vários oficiais e seus acompanhantes, caíram numa cilada, a guerra recomeçou, e a vida operacional de 26.ª Companhia de Comandos seguiu o seu rumo. Carolina consegue induzir o marido para um negócio de um ginásio onde vão também participar os sobrinhos, filhos de uma muita amada irmã, Carolina disparata a toda a hora com as empregadas e vai preparar o golpe do baú, retira os dinheiros da conta comum, leva as joias e outros bens, anuncia para quem a quer ouvir que o marido a espanca e ela sofre a mais terrível das crueldades mentais daquela besta. Os filhos do casal questionam como é que o pai aguenta aquela mãe tão disfuncional, entretanto monta-se a estratégia do divórcio, António e Augusto vão com a sua Companhia até Bula, parece estar tudo calmo, ainda não se deu a tragédia do 20 de abril, estas duas histórias que andam a par vão ganhar eletricidade quer na sala do tribunal, quer na atividade operacional da 26.ª Companhia de Comandos que percorre a Guiné, assaltando bases, apoiando colunas, intervindo para resolver encrencas.

E se o julgamento clarifica que Mário está inocente de todas as acusações, a vida de Augusto e António tem outro desenlace, a Companhia tem dado apoio ao alcatroamento de uma estrada entre Mansabá e Farim, o tapete vai chegar ao K3. Há necessidade de bater uma zona, procurar uma base de morteiros, os helicópteros não conseguiam localizá-la, tal a camuflagem, vai também tropa africana. A tragédia surge no terceiro dia de operação, na mata tudo parecia calmo, está-se perto do objetivo, pede-se apoio a um helicóptero, o seu canhão mete respeito. O furriel António está a dar ordens, mas não acaba a frase, uma violenta explosão atira-o a uma distância bem folgada, não ouve nada, não sente as mãos, não sente as pernas, tenta dar alguns passos, mas volta a cair, vê alguns camaradas estendidos no chão e outros a correr, descarregando as suas armas. Deitado no chão sente a correntes de ar das pás do helicóptero, é para ali transportado, ali desmaia, acorda no hospital militar de Bissau, está intacto, apenas com umas ligeiras queimaduras nas costas, tal como aconteceu a Angelino Santos Silva, na guerra que ele viveu. Mas Augusto, o seu amigo fraterno, sucumbiu. Em janeiro de 1972, António vê-se novo no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, com os seus camaradas segue para Lamego, metem-se à estrada num táxi de Lamego a caminho de casa, viagem acidentada até ao Porto. Em São Bento toma o comboio para casa, a sua aldeia espera-o, aparece enregelado à família, tem o aspeto de desenterrado. Mete-se na cama e durante três dias esteve em silêncio, contabiliza ganhos e perdas, isto enquanto no tribunal a advogada de defesa dá os parabéns a Mário que confessa que não está feliz: “Não é uma sentença em papel, ainda que justa, que sossega a besta que em mim foi despertada por duas bestas que me infernizaram a vida e marcaram para sempre a minha e a dos meus filhos”.

Como nada até hoje li como estes pedaços de vidas, de gente que chega ao destino com todas as convicções abaladas a classifico como “obra singularíssima”.

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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23211: Notas de leitura (1441): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (4) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 22 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22307: Agenda Cultural (773): Convite para ver a entrevista de Carlos Vale Ferraz a Mário Carneiro, no programa da RTP-África, Mar de Letras, onde o autor fala do seu romance "Angoche - Os fantasmas do Império", uma abordagem ao misterioso caso ocorrido há 50 anos na costa de Moçambique e ainda hoje não resolvido


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Matos Gomes, Coronel Cavalaria Reformado (ex-2.º CMDT Batalhão de Comandos da Guiné, 1972/74), escritor e historiógrafo da guerra colonial, com data de 21 de Junho de 2021:

Minhas amigas e meus amigos,
Junto anexo o link de uma entrevista ao Programa da RTP "Mar de Letras" a propósito do romance "Angoche".
Há a realidade e há o romance. Eu procurei contar uma história verosímil a propósito deste mistério. Quem esteve por detrás do que aconteceu? Quem realizou? É o enredo e são as personagens. Se tiverem paciencia.

Entretanto recebam o cumprimentos do
Carlos Vale Ferraz.

O programa dura cerca de 30 minutos.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22246: Agenda Cultural (772): Convite para a apresentação online do romance "Angoche - Os fantasmas do Império", por Carlos Vaz Ferraz; Porto Editora, 2021

terça-feira, 1 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22246: Agenda Cultural (772): Convite para a apresentação online do romance "Angoche - Os fantasmas do Império", por Carlos Vaz Ferraz; Porto Editora, 2021



1. Mensagem do nosso camarada Carlos Matos Gomes, Coronel Cavalaria Reformado (ex-2.º CMDT Batalhão de Comandos da Guiné, 1972/74), escritor e historiógrafo da guerra colonial, com data de 31 de Maio de 2021:

Minhas amigas e meus amigos,
Tenho o prazer de vos convidar para a apresentação do romance "Angoche - Os Fantasmas do Império", da Porto Editora.

Esta apresentação será feita online, através dos links que constam deste email. Terá lugar amanhã, dia 1 de Junho, das 21 às 22 horas. Será moderada pelo editor Vasco David, desenrolar-se-á sob a forma de uma conversa, com interrogações e dúvidas, entre mim e o comandante Carlos de Almada Contreiras, que fez parte de um dos navios portugueses envolvidos no bloqueio do Porto da Beira, em 1966. Será possível a intervenção dos assistentes.

Trata-se de um romance cujo enredo procura desvendar os interesses que estiveram na origem do que aconteceu ao navio mercante Angoche e à sua desaparecida tripulação, e, a partir dos interesses, chegar aos seus autores.
As personagens do romance são homens e mulheres envolvidos, como tantas vezes acontece, em situações que os ultrapassam.
As respostas a que cheguei são apenas deduções e premonições do que poderia ter acontecido.
A Porto Editora e eu estamos a procurar a melhor oportunidade para uma apresentação ao vivo, sujeita aos condicionalismos do tempo presente.

Aqui vos deixo os links para a apresentação do dia 1 de Junho:
Youtube - https://youtu.be/qXJkFzqA7Us
Facebook - https://www.facebook.com/PortoEditora/posts/4114022285301916
Facebook (evento) - https://www.facebook.com/events/2668635700093451/



Sinopse:

Nacala, 23 de abril de 1971. Um navio da Marinha mercante portuguesa parte desse porto moçambicano com destino a Porto Amélia (hoje, Pemba). A bordo leva a tripulação e um civil, num total de vinte e quatro almas, bem como um importante carregamento de material de guerra destinado ao Exército português no Ultramar. No dia seguinte, de madrugada, um petroleiro encontra esse mesmo navio, de seu nome Angoche, à deriva, incendiado e sem ninguém a bordo, como se de um navio-fantasma se tratasse. De imediato, a PIDE/DGS abre um inquérito. Os relatórios iniciais mencionam duas explosões, e as teorias para o que aconteceu surgem em catadupa. Não faltam presumíveis culpados a quem apontar o dedo, mas não há provas. Para adensar o mistério, na noite do desaparecimento do Angoche, uma portuguesa, que trabalhava num cabaré da cidade da Beira e é tida como amante de um oficial da Marinha, cai de um edifício. Suicídio ou assassinato, as circunstâncias da sua morte nunca são verdadeiramente esclarecidas, e a dúvida paira… Depois do 25 de Abril, os relatórios da PIDE/DGS desaparecem. A carcaça do navio, ancorado no porto de Lourenço Marques, acaba por ser afundada. Se testemunhas houve, não falam. Estes são os factos. A partir deles, Carlos Vale Ferraz constrói um romance puramente ficcional, embora essencial e certeiro, sobre moralidade e heroísmo; e onde se demonstra como a imagem de um país se pode construir, não de verdade e justiça, mas da glorificação dos seus mais vergonhosos feitos.


Com a devida vénia a Almedina
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22228: Agenda Cultural (771): Publicação do romance "Além do Bojador", de Manuel Fialho (nova edição reunida e revista), editado por Grupo Narrativa (Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548)

segunda-feira, 1 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21959: Notas de leitura (1344): “Um Mergulho no Muxito”, por Jorge Paulino; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
Não desmerecendo, é uma auspiciosa estreia literária de um médico nascido em 1958. Foi buscar o Complexo Turístico do Muxito, um crime ali ocorreu em 1966, logo a seguir à inauguração da Ponte Salazar, um engenheiro norte-americano a trabalhar para a Lisnave e a sua mulher apareceram mortos na vivenda 13. Em 2000, o filho, arquiteto cotado, vem fazer semestre sabático em Lisboa e quer desvendar o passado. E consegue, fala-se de Operações como a Tridente, outras que glorificaram Alpoim Calvão e a Mar Verde, descobre-se uma trama criminosa e haverá um final em efervescência com revelações de verdadeiro aturdimento. Jorge Paulino tanto procurou a perfeição que a certa altura se excedeu e há muita verbosidade que é companheira da enxúndia, o demasiado palavroso que seguramente em próximas obras ele deixará de lado.

Um abraço do
Mário


Um Mergulho no Muxito:
Crime e mistério, com muita Guiné à mistura


Beja Santos

“Um Mergulho no Muxito”, por Jorge Paulino, Chiado Editora, 2017, é uma auspiciosa estreia literária. O autor é doutorado pela Universidade Nova de Lisboa em Transplantação Hepática, professor convidado de Cirurgia na Faculdade de Ciências Médicas e trabalha no centro clínico da Fundação Champalimaud. Estamos em agosto de 1966, época da inauguração da Ponte de Salazar. Um engenheiro norte-americano a trabalhar para a Lisnave tem a sua mulher e filhos na “Estância Muxito”, ao tempo um empreendimento turístico que suscitava muita curiosidade. A Lisnave alugara um quarto a Jack Polk, ele trouxe a família, ficaram em bungalows muito próximos. Jack irá assistir no sábado 6 de agosto à inauguração da ponte, no dia seguinte a vida daquelas duas crianças, Joe e Kathie, fica virada do avesso, o engenheiro e a mulher tinham sido brutalmente assassinados na vivenda n.º 13. Em 25 de abril de 2000, Joe Polk, durante a visita ao navio-escola “Sagres”, no porto de Norfolk, é sacudido por várias recordações que tinham a ver com um botão que fora deixado por um dos assassinos, o botão tinha uma pequena inscrição “Tridente”. Em tumulto, Joe Polk, professor no Departamento de Arquitetura da Universidade de Yale, decide fazer semestre sabático na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, quer apurar exatamente as razões daquele crime, ele e a irmã jamais aceitaram a interpretação dada pela Polícia Judiciária de que os pais praticavam espionagem.
Jorge Paulino move-se com agilidade na organização da trama, primeiro o escritório de advogados a que recorre e a organização dos primeiros passos da investigação, a Dra. Isabel Santos será a desbravadora desses contatos. Joe Polk aluga habitação em Verdizela, perto do Muxito. Começa as suas atividades na Faculdade de Arquitetura, irá interessar-se vivamente pela obra de um grande inovador, Cassiano Branco, um visionário que projetara algo de revolucionário para a região da Costa da Caparica e até mesmo para Cascais. A Dra. Isabel vai até ao Instituto de Medicina Legal, Joe começa a frequentar as praias da Costa, tem um derriço com uma brasileira, a narrativa acelera, a história do Muxito é desvelada, o proprietário, a firma Lino & Zimbarra abrira falência em 1973, tendo o Complexo Turístico do Muxito fechado as portas nessa altura. Em 1975 converteu-se na Comuna Che Guevara, o recheio das habitações foi sistematicamente pilhado, o glamoroso Muxito converteu-se em ruínas. Joe irá visitar essas ruínas com a Dra. Isabel, ali serão molestados por marginais e drogados, saem dali com o coração na boca, uma fuga precipitada para não deixarem lá a pele.

Depois dos relatórios médicos seguem-se conversas com a Polícia Judiciária, Joe entretanto conhece o arquiteto do Muxito, Nuno Cordovil. A investigação anda agora à volta das provas balísticas, o engenheiro Polk fora abatido com uma arma de guerra, as investigações começam a encaminhar-se para a Marinha, há visitas à Escola Naval do Alfeite, assim se chega à referência da Operação Tridente, no romance tratada como a maior operação secreta da Marinha Portuguesa na guerra colonial (o que na verdade não aconteceu). Apura-se que o proprietário do botão de punho tinha sido um militar da Marinha miliciano. Descobre-se que há incompatibilidades nos relatórios da Marinha e da Polícia Judiciária, fala-se longamente sobre a Operação Tridente, o comandante Fragoso sugere novas diligências. Conclui-se que o engenheiro Folk ouvira na vivenda 13 conversas na vivenda 12, ali se dirigira e vira cenas da maior infâmia, práticas de pedofilia. Todas as investigações se centram nesse passado e as descobertas são explosivas, havia oficiais da Armada responsáveis pela compra de armamento que se tinham aproveitado para fazer negócios ilícitos, havia um armazém na Fonte da Telha e um oficial, responsável por essas operações, vivia na vivenda 12. Já estamos na Escola dos Fuzileiros Navais, em Vale de Zebro, já se sabe da existência da empresa Sezimbarra, Lda., e dos negócios que envolviam a Guiné em guerra. Num passeio no Tejo com o comandante Fragoso, vão-se esclarecendo mais coisas sobre essa Operação Tridente, romanceiam-se as conclusões, o comandante Fragoso entrega a Joe o número de 2010 da Revista da Armada, onde se conta a Operação Tridente, diz-lhe que a solução do problema está ali. A Dra. Isabel e Joe ainda visitam o comandante César Augusto Brito em Évora, este imprevistamente desata a fazer ensaios com armas e fala-lhe de um camarada que andou envolvido na Operação Mar Verde, ali teria sucumbido o assassino de Jack Folk. Entretanto, enquanto tudo parece acelerar-se para se apurar a trama que levou ao assassínio de dois inocentes, é noticiado que na Operação Mar Negro, a Polícia Judiciária desmantelara uma organização criminosa, fizera apreensões junto às praias da Costa da Caparica. A Judiciária já sabe quem é o criminoso do Muxito, fora militar-miliciano altamente condecorado, para além de destemido, envolvera-se em transações de armamento com potências estrangeiras, e depois fizera experiências no tráfico de seres humanos. Como num romance a tudo se perdoa, até se pode aceitar o que o Jorge Paulino diz: “Sempre se fazia acompanhar por um ou dois marinheiros guineenses, pertencentes ao Batalhão de Comandos Africanos por ele treinados e que acabaram todos massacrados em Bissorã em 1974, depois do final da guerra”. Enfim, pequenos dislates que a ficção sabe perdoar…

E ficamos por aqui porque tudo se encaminha para um final turbilhonante, haverá revelações de caixão à cova, quem se julgava morto nas operações de Conacri ressuscita e prepara o seu desaparecimento. Os afetos escaldantes entre a Dra. Isabel e Joe não terão seguimento. Esta fica atónita quando descobre que caíram milhões e milhões de euros na sua conta bancária. E tudo termina no passado, no Hospital Militar de Bissau, em 29 de junho de 1965, ficaremos a saber quem era um jovem tenente que patrulhava a foz do rio Cacine, que amava uma rapariga Fula, não resistiu aos ferimentos, nascera uma menina que o general Schulz entregara ao Movimento Nacional Feminino.

O romance de Jorge Paulino, insista-se, está bem urdido como romance de crime, mistério, aventura amorosa. Nota-se que houve exigência no apuramento dos perfis e dos lugares, mas o autor é por vezes excessivo e palavroso, quebra o leitor pelo cansaço no exato momento em que lhe devia exigir a compulsividade na leitura. É uma estreia, o novo romancista pode sentir-se compensado pela obra equilibrada, esperamos que da próxima vez faça poda e limpe a enxúndia, ganhará o romance e cativará o leitor. E obrigado por se ter lembrado da Guiné, ele que nasceu em abril de 1958 – é prenúncio que uma geração que não foi à guerra também não a quer esquecer.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21939: Notas de leitura (1343): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte II: os "mentideros' de Bissau (Biafra, 5ª Rep) e ainda e sempre a retirada de Madina do Boé (Luís Graça)

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21253: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (15): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2020:

Queridos amigos,
Impunha-se dar voz à paixão de Annette, como se sente Paulo Guilherme já sabemos, por entreposta pessoa, este português tem vindo a firmar raízes com gente do mesmo ofício, com quem tarimba em reuniões oficiais e também no movimento associativo de consumidores. Tudo faz, a partir de agora, sem se subtrair às obrigações que mantém e manterá em Lisboa, para encontrar abertas que justifiquem a partida para Bruxelas. O correio trocado é esfuziante, uma mescla abençoada de passado, presente e futuro, aqui temos uma declaração de amor e uma confissão de algo que aconteceu num dado momento e que tem a ver com uma fotografia, um comentário de Paulo, coisa estranhíssima, pôs a balançar o coração de Annette. Há que ler a expressão que ela utiliza, o amor tem razões que as palavras explicam, um tanto ao revés do pensamento de Blaise Pascal. A felicidade de Annette desmesura-se, é a sua vez agora de enviar uma carta falando do seu dia-a-dia de intérprete.
Para quem está a acompanhar estas jornadas escaldantes, é bom não perder o episódio seguinte.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (15): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon très adorable Paulo, é a primeira vez que te escrevo desde que descobri o virar da página das nossas vidas, tudo tão espontâneo, como tivesse havido um pousio, um compasso de espera e uma roda da fortuna a desandar para o nosso encontro, a descoberta de duas ilhas solitárias, a despeito dos nossos dois quotidianos em azáfama, para ganhar decentemente a nossa existência e apoiarmos os nossos filhos, na instabilidade das suas carreiras profissionais, e não descarto, no teu caso concreto, os problemas de saúde de um dos teus filhos, que tanto te aflige. Tu enches-me de felicidade, a maravilha que tu sentes, a exultação perante o meu corpo e o que tu chamas a beleza do meu caráter, estonteia-me, mas acredito plenamente em ti.

Foi através de caminhos ínvios, por veredas sem sinalização, que fomos amadurecendo, ganhando confiança, até eu ter tomado a iniciativa de te dizer, sem qualquer pejo, que te amava loucamente, na noite em que pela primeira vez dormimos juntos. Sim, caminhos ínvios, passeios acalorados, outras vezes debaixo da morrinha da chuva, metidos em cafés quando os céus desabavam águas, nesta Bruxelas, acredito piamente, que tu amas de alma e coração. Passeios em Ixelles, Saint-Gilles, Schaerbeek, percorrendo calçadas, visitando exposições, recordo neste momento, como se tivesse sido há uma hora, e eu ainda estivesse a esfregar os pés dos longos passeios no Parque Josaphat, em Laeken, onde tu querias visitar as estufas e rever o Pavilhão Chinês e a Torre Japonesa (confesso-te que para mim estes adereços não passam de meras curiosidades, de um monarca endinheirado, um Leopoldo II, que foi a uma Exposição Universal e comprou adornos exóticos para exibir nos seus territórios), aquele inesquecível almoço em Dinant, vejo-te tão prazenteiro e guloso com a descoberta do frango de estragão, a alegria do cozinheiro a dar-te a receita e a dizer que a confeção só resulta com estragão fresco, comeste a valer e remataste com uma Dame blanche, um café e um Drambuie.

Vezes sem conta, nos dias seguintes àquele benquisto encontro na Rue Froissart, eu me questionei quanto ao teu pedido de abrirmos correspondência, o pretexto para vires a escrever um romance sobre a tua experiência na guerra da Guiné, aceitei o teu argumento, já se tinham passado cerca de três décadas sobre o teu regresso, o campo ficcional era o melhor terreno para enfrentar o que a memória e os documentos que conservaste te permitiam não um mero regresso ao passado mas advertir as gerações futuras. Percebi bem, por múltiplas razões aqui também não se fala da nossa colonização do Congo e de alguns envolvimentos sórdidos, tentativas de obter uma presença neocolonial, tudo isto é muito incómodo para a minha geração, pouco se fala das nossas ingerências e das desgraças que provocámos. E agora que tu sabes do meu amor por ti, como vejo o nosso futuro tão promissor, mesmo sabendo que temos muitos anos pela frente em que não podemos abandonar as nossas profissões, independentemente de nenhum de nós saber onde vamos pôr a âncora para as nossas velhices, quero que saibas que houve um momento que transformou a mera curiosidade numa eclosão afetiva, num transbordo tão forte de uma quase entrega, tudo aconteceu quando me enviaste, sob a forma de epítome, os acontecimentos do renascimento de Missirá, a que atribuis uma quase transcendência no desenvolvimento da tua personalidade, tu mesmo escreveste que aqueles meses de abril a julho de 1969 tinham constituído um repto ímpar, a descoberta da criação, o papel do cuidado e do desvelo pelas vidas que te tinham sido confiadas e pela segurança que te cumpria acautelar, naquele espaço de um destacamento militar, onde viviam tantos civis e aquelas crianças que tanto te preocupavam, umas de barriga inchada, outras portadoras de doença visível, a tua alegria quando conseguiste professor, o protocolo estabelecido com aquelas crianças que lavavam a loiça e que tinham direito a todas as sobras.

Mas, adorable Paulo, foi a fotografia do Jobo e a descrição tão entusiástica da padaria em Missirá que me fez entrar em definitivo naquele mundo tropical que tu não viveste numa mera passagem, a pôr uma cruz nos dias do calendário. Guardei tudo quanto escreveste, e aqui reproduzo:
“Annette, não contive o meu júbilo quando vi o Jobo enfronhado a amassar a farinha com fermento, o esforço que foi encontrar aqueles tijolos, ver nascer o forno, protegê-lo com um resguardo minimamente sólido, em frente do Jobo, que estagiou na padaria de Bambadinca duas semanas, e que veio com uma espécie de certificado de boa aprovação, o olhar que ele nos lança, de triunfo, como soubesse que das suas mãos sairiam pães apetitosos para militares e civis, já que ele também quer ser empreendedor e pediu autorização para nas horas vagas corresponder às solicitações da população civil, pois bem, creio que esta imagem espelha aquilo que chamamos desenvolvimento, civilização, cultura, a interseção de vários arcos temporais, a descoberta de que um bom alimento está ao alcance das nossas mãos e que podemos viver muito melhor. Há momentos, minha inestimável Annette, quando me sinto apoucado, talvez mesmo entristecido quando as coisas não me correm de feição, que venho contemplar os olhos do Jobo, as suas mãos bem firmadas dentro de um cunhete de granadas, e então revigoro-me, aquela caixa, inicialmente portadora de sinais da morte, prepara alimentos, e o Jobo, sem pose estudada, parece dizer-nos que logo acabe aquela malfadada guerra mudará de profissão”.

Algo mudou em mim Paulo, quando li e reli esta tua mensagem sobre a vida, a tua relação com o Outro, e a partir daí clarificou-me o sentimento que eu nutria por ti. Terrível o que me disseste mais tarde, que Jobo Baldé te escrevera de uma terra chamada Galomaro, em 1991, a pedir para o trazeres para Lisboa, que vivia na miséria, e que confiava absolutamente em ti. Fora muito duro teres recebido aquela carta, sentias-te impotente, naquele período em que vivias como cooperante, na maior das expetativas e que culminou na maior das deceções, conseguiras trazer o teu guarda-costas, Cherno Suane, dado o pretexto que sofrera duplo traumatismo craniano naquele acidente da mina anticarro, que tão bem me descreveste.

Na base da sinceridade em que assenta este amor tão pujante, tão inesperado para mim, quando já me preparava, com um certo travo de resignação, em ficar uma avó prestável, tu vieste como Estrela Polar, e não te quero esconder que esta correspondência é verdadeiramente um alívio, também me cabe a responsabilidade de preparar tempos disponíveis para te ir ver a Lisboa, entrar no teu mundo. Uma última confidência: a minha filha Noémie veio visitar-me e ficou muito surpreendida com tanta fotografia e cartas espalhadas, e uma fotografia emoldurada de um desconhecido. Sorriu e disse-me, “Ainda bem que estás a reconstruir algo que mereces, fico feliz se encontraste o companheiro do futuro”. Paulo, escreve-me, parece que vens dentro de duas semanas, não é? Estou a pensar em passarmos uns dias em La Campine, muito perto de Antuérpia, andaríamos de bicicleta, passeios de barco nos canais, podíamos ir aos Países Baixos, se quiseres. Amo-te tanto! Tu fazes parte da Misericórdia de Deus, em que tanto acredito. Do meu coração para ti, Annette.

(continua)

Bóreas, Deus dos ventos do Norte, 1922, escultura do Parque Josaphat, por Joseph Van Hamme

Maison Autrique, a primeira joia do genial arquiteto Victor Horta

Casa de Magritte, em Schaerbeek, Bruxelas

A Torre Japonesa e o Pavilhão Chinês em Laeken, Bruxelas

Dinant, Bélgica

Jobo Baldé, bravo soldado e exímio padeiro de Missirá
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21231: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (14): A funda que arremessa para o fundo da memória

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19377: Notas de leitura (1139): “Entardecer nos Rios da Guiné”, por Manuel Fialho; Narrativa, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
É o terceiro romance de Manuel Fialho, um novo retorno à Guiné, a Farim e ao mundo Mandinga. Envelheceu, ex-franciscano, despojou-se de todos os seus bens, entregou o seu património ao filho Francisco, fruto da sua relação com uma Mandinga. Como a ficção permite ir muito mais longe do que a nossa pobre lógica consente, Miguel Lúcio vai reencontrar uma paixão proibida, vivida em Assis, antes de ser capelão na Guiné. O desfecho é imprevisível, é segredo guardado para o leitor. Viajam pela região, percorrem a bolanha de Cufeu, vão até Guidage, ele conta à freira os dramas que aqui se viveram, algures em maio de 1973. É o entardecer da vida nesta literatura de regressos, em que estamos todos comprometidos.

Um abraço do
Mário


Entardecer nos rios da Guiné, por Manuel Fialho

Beja Santos

Manuel Fialho é, em termos da literatura da guerra da Guiné, um reincidente. Estreou-se com “Além do Bojador”, de que já se fez menção no blogue, seguiu-se “O Malinké”, do qual em breve se falará e foi publicado em abril de 2018 pela Editora Narrativa este “Entardecer nos Rios da Guiné”. Há um fio condutor, Miguel Lúcio combateu na Guiné na região de Farim, decorrido meio século, este ex-franciscano e ex-capelão que viveu em Farim, agora aposentado pela Universidade de São Paulo, recém-viúvo, regressa à Guiné, escolheu viver os seus últimos anos em território Mandinga, Binta, junto ao rio Cacheu, na casa da sua mulher, foi amor de capelão militar com Binta, como se descreveu em “Além do Bojador”.

Vive na austeridade o seu entardecer da vida, ouve cassetes, tem preferência pelos solos de oboé, e num certo entardecer aguarda a vinda do seu filho, de nome Francisco, vem na companhia de um grande amigo e camarada de armas da guerra da Guiné, também chamado Miguel, assim se inicia o romance contado na primeira pessoa do singular. Do seu amor por Binta, uma Mandinga, nasceu Francisco, bem-sucedido nos estudos e na profissão.

Miguel é um homem cheio de recordações. Estudou Teologia e História em Roma, aí conheceu Geneviève, uma freira, que muito amou numa discrição total. E eis que encostou ao velho cais uma lancha que traz Miguel e o filho do ex-capelão. Porque Miguel Lúcio escolheu aquele local? Ele responde que a preferência deve-se na procura de compreender o seu último percurso e por haver maior proximidade à memória da mulher que ele tanto amou. “Estava convicto que seria na observação dos comportamentos dos nativos onde eu poderia encontrar as razões mais remotas que me ajudariam a compreender a natureza humana. Dissimulava o vagar do tempo ouvindo algumas preferências musicais num velho gravador e leitor de cassetes a pilhas”. Miguel e a sua mulher Mandinga conheceram a felicidade por mais de quarenta anos. Estudou a velha África, a África dos grandes impérios do Gana e do Mali. É com alegria que recebe o filho e o seu maior amigo e combinam partir cedo na manhã seguinte para Farim. Na viagem lembram-se episódios da guerra que eles viveram e em Farim o passado de meio século reaviva-se: “Pisámos o chão vermelho batido pelo tempo. Miguel procurava sinais da época em que por ali andáramos. À direita, o conjunto da enfermaria e intendência militares e da velha piscina, todos em ruínas. Em frente, do outro lado, a central elétrica, cujo total abandono testemunhava o apagão generalizado a todo o território da Guiné. Levei-o à casa do médico, ali perto, a mesma casa em que ficavam os médicos de todos os batalhões que tinham passado por Farim. Mantinha-se cuidada, embora com a exígua mobília reduzida ao indispensável. O médico era um cubano, era de poucas falas. O português parecia já perdido por ali, falado por muito poucos e nem era ensinado nas escolas”. A visita prossegue, lembram-se mortos e feridos, a ponte de Lamel, os ataques a Farim, assim chegam à antiga administração onde são reconhecidos por velhos guineenses.

Os dias passam, viaja-se de jipe a Genico, Cufeu, Ujeque e Guidage, por ali os dois ex-combatentes de nome Miguel andaram meio século antes, recorda-se o fatídico mês de maio de 1973, sobretudo os acontecimentos sanguinolentos na bolanha de Cufeu, aqui nascera uma nova tabanca depois da guerra, havia mesmo uma mesquita. Visitam Guidage, assaltam recordações daqueles tempos horríveis de maio de 1973.

O amigo Miguel regressa a Lisboa, o ex-franciscano ainda trava com ele uma longa conversa de caráter filosófico, volta a ficar só, vai visitar o sogro, de nome Malan, este recomenda-lhe que volte a casar. Depois visita a missão católica, descobre que existe uma irmã recém-chegada, de nome Geneviève, acicata-lhe a curiosidade, afloram-lhe lembranças de Roma, começa a buscá-la pela região de tabanca em tabanca, entretanto adoece com malária, recupera e é visitado pela irmã Geneviève, afinal ela era a jovem clarissa que todas as manhãs vinha à porta do Convento S. Damião. É uma bonita história de amor de dois velhotes, paixão assolapada, a irmã Geneviève tudo fizera para chegar à Guiné quando soube pelo padre da missão que ali vivia o ex-franciscano Miguel Lúcio, ainda por cima viúvo. A freira declara-se. Tudo irá acabar numa tragédia, aqui não se conta o como e porquê, é um direito que assiste ao leitor.

Está dito e redito que esta literatura da guerra é um regresso permanente. A linha preponderante da narrativa atual é das memórias, muito menos a do romance. Causa surpresa ver Manuel Fialho a regressar com uma certa regularidade a Farim, tudo começou com um romance de amor e aqui temos um desfecho à volta da redescoberta do seu primeiro amor, o reencontro totalmente imprevisto com a clarissa que ele conhecera em Assis antes de vir para a Guiné, fora uma paixão proibida. É um evidente pretexto, o que é verdadeiramente importante é o regresso, como ele confessa:
“Optei pela nossa primeira casa, à beira do Cacheu e do magnífico terreiro onde as sombras das grandes árvores suavizam o bafejar quente e húmido das longas tardes, acolhendo a pequena tabanca Mandinga de crença islâmica. Preferi este lugar, na convicção de encontrar aqui a melhor escolha para compreender o meu último percurso e também pela maior proximidade à memória da minha mulher. Vivia junto dos nativos, onde eu queria encontrar as origens que as razões mais autênticas para refletir com mais liberdade sobre a condição humana”.

É também um outro modo de explicar como a memória tantas vezes fala mais forte e os antigos combatentes, sequiosos daquela laterite e daquela atmosfera onde se fizeram homens e tantas vezes ali viveram o acontecimento supremo das suas vidas, partem em romagem, como em romagem anda este Miguel Lúcio, embevecido com o entardecer nos rios da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19373: Notas de leitura (1138): "Voando sobre um ninho de Strelas": o autor dá-nos a dimensão do esforço dos bravos da Força Aérea, desde o piloto ao cabo mais simples, passando pelas enfermeiras paraquedistas, mostrando-nos toda a sua disponibilidade e entrega, mau grado as condições adversas em que viviam e, obviamente, o enorme risco de vida que corriam (Joaquim Mexia Alves, régulo da Tabanca do Centro)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19255: Agenda cultural (660): Lançamento do livro "O Homem do Cinema", por Lucinda Aranha Antunes; editora Alfarroba, levado a efeito no passado dia 18 de Novembro na FNAC do CC Vasco da Gama, em Lisboa


No lançamento de "O Homem do Cinema"

Dia 18 de Novembro, passado, na Fnac[1]


A mesa foi composta por Andreia Salgueiro da Editora Alfarroba, que abriu a sessão, dando a palavra ao escritor Tony Tcheka, que apresentou o livro. 

A assistência ficou suspensa das suas palavras ao reviver a magia do cinema, a personalidade complexa do "Manel Djoquim", figura querida e respeitada na Guiné colonial a merecer que a sua memória não se apague. 

Em seguida, falou a autora, Lucinda Aranha Antunes, destacando a dificuldade com que se debateu ao escrever sobre um passado próximo, mas já longínquo, obrigando-a a recorrer, em grande parte, a fontes orais. 

Por fim, deu a palavra ao público, tendo Vital Sauane emocionado a assistência ao contar como o cinema o obrigou a frequentar a escola portuguesa. 

O lançamento terminou com a habitual sessão de autógrafos.








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O HOMEM DO CINEMA
Romance

Autor - Lucinda Aranha Antunes
Editor - Alfarroba
ISBN - 978-989-8888-27-3
Formato - 21x14cm
Número de páginas - 168
Capa mole
1.ª edição - 11-2018
Preço - 12,50€

A busca por uma vida melhor
O encontro com a aventura e o desconhecido
A liberdade de uma nova terra
Os encontros e desencontros de uma vida amorosa

Com a devida vénia à Editora Alfarroba
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 11 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19186: Agenda cultural (657): Convite para o lançamento do livro "O Homem do Cinema", por Lucinda Aranha Antunes; editora Alfarroba, 2018, a levar a efeito no próximo dia 18 de Novembro na FNAC do CC Vasco da Gama, em Lisboa

Último poste da série de 15 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19197: Agenda cultural (659): O António Martins de Matos ,"Voando Sobre um Ninho de Strelas", sente-se agora totalmente realizado por, depois de ter plantado duas árvores, e dado o seu contributo para fazer dois filhos, acaba de publicar um livro, que é muito da sua história de vida, e em especial como piloto da FAP, mas também um bocado das nossas vidas de ex-combatentes...

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18271: Bibliografia de uma guerra (85): “O céu não pode esperar”, por António Brito; Sextante Editora, 2009 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
António Brito, autor de uma obra-prima incontornável da literatura da guerra, "Olhos de Caçador", é um autor prolífico em obras de aventura e ação, criou mesmo um justiceiro, de nome Sagal.
Neste seu segundo romance concatenou uma série de factos que vão desde um Fiat abatido, a descoberta de uma mensagem dirigida a D. João IV, que o mesmo piloto encontrou numa gruta na região do Rovuma, um espetacular afundamento de um galeão espanhol perto de Peniche, as experiências assombrosas que um frade desenvolve no Mosteiro de Alcobaça, e as peças do puzzle são tremendas, chegam ao Vaticano e tudo desagua numa estrepitosa cavalgada no espaço e num amor tão profundo que alguém anuncia dos céus o seu amor eterno.
Um excelente produto do realismo fantástico.

Um abraço do
Mário


O céu não pode esperar, por António Brito

Beja Santos

De António Brito já aqui se fez com detalhe a exaltação do seu livro "Olhos de Caçador"[1], seguramente um dos livros cimeiros da literatura da guerra colonial, romance baseado nas suas vivências africanas, em jovem alistou-se nas tropas paraquedistas e foi mobilizado para a guerra em Moçambique. O seu segundo romance aponta noutra direção, cimenta-se no realismo fantástico, organiza-se em repetidas viagens entre um determinado presente e um determinado passado, dispõe de um ritmo trepidante, empurra o leitor para acompanhar sem pausa esta aventura que não dá pausas, tal o seu empolgamento: “O céu não pode esperar”, por António Brito, Sextante Editora, 2009.

De que trata este romance? Façamos fé ao constante na contracapa:
“A história do Tenente Romão, o aviador que enfrenta a morte nos céus de Moçambique durante a guerra, quando o seu avião é atingido por um míssil terra-ar. Na costa Oriental de África tropeça no rasto de outro português, agente do rei de Portugal, que por ali passou séculos atrás. A descoberta arrasta-o do passado para o futuro, seguindo uma enigmática pista, anteriormente perseguida pela Inquisição. Envolve-se numa perigosa cruzada onde se entrelaçam o insólito e o inexplicável, a política de estado e as intrigas das organizações clandestinas, a procura do sagrado e o conhecimento profano. Descobre que o mesmo céu que percorreu de avião foi durante séculos alvo da curiosidade de outros homens com outros propósitos. Homens que, movidos pela força da fé e a curiosidade da razão, afrontam o fanatismo dos dogmas e a ordem estabelecida. Em "O céu não pode esperar", cruzam-se a ciência divina do Novo Mundo e o obscurantismo religioso, a Restauração da Independência de Portugal e a herança judaica, os inimigos da Revolução de Abril e a política da Santa Sé. Quando a admirável verdade irrompe, tudo faz sentido, tudo se harmoniza, até o censurável amor, coisa admirável de acontecer”.

Logo na abertura, António Brito dá-nos conta dos factos com que vai manipular este edifício da escrita: um Fiat atingido por um míssil Strela, em Outubro de 1972; o afundamento do galeão San Pedro de Alcantara, perto de Peniche, em 2 de Fevereiro de 1786, seguiam a bordo índios ligados à rebelião inca de Tupac Amaru; a ocupação espanhola de Portugal e a Guerra da Restauração; as perseguições da Inquisição que levaram à extinção dos judeus em Portugal e à perseguição de cientistas como Bartolomeu de Gusmão, construtor da Passarola; os crânios de cristal descobertos na América Central e na América do Sul, no interior destes cristais foram descobertas imagens holográficas a três dimensões; a construção, em 1993, pelo físico russo Eugene Podkletnov de um mecanismo antigravitacional que conseguia anular parcialmente a lei da gravidade e diminuir o peso dos corpos, enquanto um cientista francês desenvolvia um projeto de uma aeronave experimental com propulsão eletrocinética. Abreviadamente se dá conta desta trama avassaladora: o abate do avião do Tenente Romão, o afundamento do galeão espanhol e o auxílio prestado pelos monges do Mosteiro de Alcobaça; a cicatrização das feridas do Tenente Romão, que estava prisioneiro dos guerrilheiros, e que descobre numa gruta a seguinte inscrição: “Aqui chegou Fagundes Dias no ano de 1643 vindo de Jerusalém a cidade de Nosso Senhor, entrou na gruta e encontrou um pequeno cofre; no Mosteiro de Alcobaça fazem-se experiências e o índio Yupanki é envolvido numa intrigante construção; o documento guardado naquele cofre são umas folhas acastanhadas que falham de um naufrágio… Assim vamos saltando no tempo e no espaço, e é uma deslealdade tamanha usar o poder quase discricionário de esmiuçar minuciosamente a essência da trama da obra em análise, descurando que não se deve defraudar o leitor na vivência desse empolgamento, como é o caso.

Falou-se acima em realismo fantástico, tudo a propósito de uma narrativa que tem foros de plausibilidade com a especulação de hipóteses não demonstradas. O escritor elenca factos históricos ou possibilidades de ocorrência e dá-lhes um tratamento próximo do fantástico ou mesmo da ficção científica. António Brito revela-se um mestre nesta arte combinatória, urde uma história de bom entretenimento que merece a melhor atenção do leitor, vale a pena citá-lo numa prosa em que se vive uma odisseia no espaço:
“Estava a viver uma experiência extrema.
Ao alcançar os duzentos quilómetros acima da Terra, Romão sentiu-se astronauta lançada para o espaço sem plano de viagem. Não fazia ideia de onde estava nem do que viria a seguir. Sabia apenas que estava longe, muito longe de Alcobaça. Naquele momento, nas traseiras do Mosteiro, estariam a interrogar-se pela demora, por onde andaria com a borboleta-monarca. Pela vigia, perscrutava um infindável vazio. O negrume do espaço profundo contrastava com o azul que abraçava a Terra. Continuava a afastar-se dela, cada vez mais longe de casa. Tocava nos losangos de cristal que o fariam perder a altitude, mas a nave deixara de lhe obedecer. Movia-se apenas num sentido: para cima, sempre para cima.
Passou a marca dos quinhentos quilómetros, depois dos setecentos. Uma qualquer programação da borboleta de cristal não cessava de enviar instruções à máquina, levando-o para fora da Terra. A nave tinha vida própria, deixara de lhe obedecer. Na sua arrogância de piloto experiente, pensava conhecê-la, controlar o seu previsível comportamento, mas ela escapava-lhe das mãos. Nada do que aprendera na Academia da Força Aérea se aplicava aqui. Não era Romão que levava a nave, era a nave que o levava a ele. Para onde? Não sabia.
Por volta dos mil quilómetros, a subida cessou. A vertigem do voo transformou-se em quietude. Respirou fundo. Olhou preocupado o nível de oxigénio. Devia estar no mínimo, mas deixara de receber essa informação. Os instrumentos, exaustos pela louca corrida, tinham-se amotinado, cessado de dialogar com ele, mantinham-se imóveis, olhando sem reação para o piloto. Subitamente, sentiu-se inquieto e só. Enfiado no casulo de posto de pilotagem, sem espaço para se mover, passara a orbitar em redor da Terra, envolvido por um silêncio aterrador. Nada podia fazer. A realidade explodiu-lhe na cabeça. Ampliou-lhe a compreensão do momento.
Nunca mais voltaria a casa.
Olhou para fora, espantou-se com a soberba visão do Planeta Azul. Emocionado, compreendeu, por fim, porque incas, frades e navegadores quiseram ascender ao céu. Porque quiseram contemplar a criação de Deus”.

Nunca há bom romance se a história não for bem contada. Em O céu não pode esperar cumprem-se os melhores cânones: trepidação e uma grande história de aventura e amor. Não se pode pedir mais.
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Notas do editor:

{1] - Vd. postes: P14713; P14737; P14747 e 14766

Último poste da série de 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18246: Bibliografia de uma guerra (84): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (3) (Mário Beja Santos)