segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9232: O meu Natal no mato (36): Conversas com um homem de Deus (Artur Augusto Silva, Quebo, 1962)


Guiné-Bissau > Bissau > Capa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos. (Bissau, 2006; edição de autor).



1. Há seis anos atrás, em finais de 2005, o Pepito (nickname do Eng Agr Carlos Schwarz da Silva, que vive e trabalha em Bissau desde 1975, sendo um dos fundadores da AD - Acção para o Desenvolvimento, hoje com 20 anos de existência) entrou  para a nossa "tertúlia" (agora conhecida como "Tabanca Grande", a comunidade virtual dos "camaradas e amigos da Guiné"). Vim a conhecê-lo pessoalmente em Lisboa,  em fevereiro de 2006. Mas antes disso, em meados de dezembro de 2005, ele tivera a gentileza de me enviar um conto, inédito, da autoria do seu pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), a que chamou "um conto de Natal", acompanhado da seguinte mensagem:


Caro Luís,

Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.



Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schulz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.

Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.

Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele) e por isso te envio como postal de Feliz Natal.

abraços

pepito



2.  Publicámos este conto, escrito em 1962, na I Série do nosso blogue, em poste de 16 de Dezembro de 2005 (*), ainda antes portanto de sair, em fevereiro de 2006, o livro O Cativeiro dos Bichos (onde vem inserido o conto de Natal), em edição dos três filhos do autor (Henrique, João e Carlos Schwarz). Porque grande parte dos atuais leitores do nosso blogue não o conhece, voltamos a publicá-lo, agora na II Série, e com pequenas revisões.  Na antologia de contos de Artur Augusto Silva (ao todo, 25), este ficou com o título, possivelmente original, "Noite luarenta de Dezembro"...


Recorde-se, por outro lado, que o autor, jurista de formação, era também especialista em direito consuetudinário, tendo publicado vários livros sobre os "costumes e usos jurídicos" dos fulas (1958), dos felupes (1960) e dos mandingas (1969).  A amizade com o Cherno Rachide e a sua família já vi vinha de muito longe, e tem sido mantida e cultivada pelo Pepito (que é amigo do actual Califa de Quebo-Forreá, o Cherno Aliu Djaló).


3. Noite luarenta de Dezembro (**)
por Artur Augusto Silva [, foto à direita]


Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid, enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.

Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.


Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.


O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar. Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».


Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens.

Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão - retorquiu o tubabo - então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o Tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.
Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos. Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga. Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.
- Irmão Tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?


Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens. Mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.
A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus. Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.

A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares… Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do Tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.

[Artur Augusto Silva, 1962]


In: SILVA, Artur Augusto - O cativeiro dos bichos. Bissau: 2006. pp. 187-189. [
Ed. lit Henrique Schwarz, João Schwarz e Carlos Schwarz; prefácio de Henrique Schwarz; impressão e acabamento, Novagráfica, Bissau, Fevereiro de 2006]
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Notas do editor:


(*) Vd. I Série > 16 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

(**) Ultimo poste da série > 16 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9214: O meu Natal no mato (35): Um Santa Claus na forma de um barquinho (José da Câmara)

Guiné 63/74 - P9231: Notas de leitura (313): Três Tiros da Pide, de Oleg Ygnatiev (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2011:

Queridos amigos,

Dei-me ao trabalho de reler os diferentes livros do jornalista soviético Oleg Ygnatiev em que ele especula sobre o assassinato de Cabral, numa tentativa de procurar responder às dúvidas do nosso camarada Mário Serra de Oliveira com quem o Momo Turé trabalhou no restaurante O Pelicano, mesmo à beira do Pidjiguiti.

Estou cada vez mais convencido que o Momo deu muito jeito à tese do braço longo da PIDE que ninguém até hoje apresentou provas, continua a conspiração de silêncio sobre a documentação do julgamento, não há uma só prova sobre os autores morais, como ainda recentemente recordou José Pedro Castanheira, autor de uma investigação de referência sobre o assassinato.

O Mário Serra de Oliveira e todos nós vamos esperar não sei quanto tempo até se saber a verdade sobre o assassinato de Cabral.

Um abraço do
Mário


Momo Turé nos livros de Oleg Ygnatiev

Beja Santos

O nosso confrade Mário Serra de Oliveira deu importantes esclarecimentos quanto à presença de Momo Turé em Bissau e a trabalhar no restaurante O Pelicano. Momo Turé, tal como Aristides Barbosa, são nomes recorrentes em toda a obra de Oleg Ygnatiev seja na biografia de Amílcar Cabral ou nos trabalhos que dedicou ao assassinato do líder carismático do PAIGC.

"Três Tiros da PIDE, quem, porquê e como mataram Amílcar Cabral", por Oleg Ygnatiev (Prelo Editora, 1975) foi um livro que teve algum sucesso na época, tanto em Portugal como na Guiné-Bissau. Numa concepção de Guerra Fria tinha todo o sentido incriminar a PIDE/DGS e forjar uma tese sem nenhum suporte documental. Um assassinato concebido por uma repressiva polícia política fazia esquecer o conjunto de executores, deixava no olvido as provas factuais do chamado julgamento de Conacri, decidido por Sekou Touré, sob a forma de amplo jurado internacional e, como é de todos sabido, não existe hoje um só depoimento ou registo das actas desse julgamento.

Como arquitectou o jornalista Oleg Ygnatiev os planos da conspiração? Deu-lhe um nome: operação “Rafael Barbosa”, pareceu-lhe bastante emblemático incriminar o antigo presidente do PAIGC liberto por Spínola em 1969, além de que Barbosa comprovadamente relacionou-se com Momo Turé e Aristides Barbosa, numa entrevista concedida a Leopoldo Amado, no âmbito da investigação que este historiador procedeu à volta da biografia de Aristides Pereira, Rafael Barbosa diz claramente que preparou a fuga destes antigos prisioneiros do Tarrafal conjuntamente com outros elementos.

Ygnatiev congeminou um diário de viagem em que vai atravessando as chamadas zonas libertadas e onde vão sendo referidos os nomes dos incriminados como Momo, Aristides Barbosa, Bacir Turé e Malã Nanko. Momo teria sido referenciado no final do ano de 1961 por um agente da PIDE/DGS em Bissau, mais concretamente no “Grande Hotel”, onde trabalhava como criado de mesa. Teria começado aí o seu recrutamento. Sem nenhum pejo, Ygnatiev fala no diz-se e no consta, logo a seguir a Momo ter sido colocado no Tarrafal: “A certa altura parece que alguém entregou à mulher de Momo um bilhetinho, que conseguiu por caminhos desconhecidos chegar às suas mãos. Várias pessoas se interessaram pela situação da família e mais uma vez ofereceram a sua ajuda à mulher de Momo, mas ela sempre respondia que ele lhe tinha deixado umas economias e que por enquanto tinham o indispensável para viver”.

Dentro deste relato inequivocamente romanceado, em 1969, o então director da PIDE em Bissau, numa reunião, refere que Momo deverá receber 200 contos para a reconstrução da sua casa, tal como lhe fora prometido. Logo após a sua libertação, em 3 de Agosto de 1969, Momo Turé aparece como chefe da sala do restaurante O Pelicano.

O relato de Ygnatiev mistura abusivamente diferentes situações, tece uma descrição mirabolante sobre o massacre de Jolmete, de 20 de Abril de 1970, diz que os oficiais foram baleados por terem oferecido resistência às forças de André Gomes, o que é uma rotunda mentira. O texto é de novo reconduzido para O Pelicano, alguém dá instruções a Momo, são indicados os nomes dos contactos, competirá a Momo e a Aristides Barbosa transcreverem as reuniões de direcção do PAIGC. Dentro deste plano, a PIDE comprometia-se a entregar dinheiro todos os meses à mulher de Momo, enquanto ele partia para Conacri, disfarçado de patriota. Vão adiante surgindo outros nomes como os de Inocêncio Cani e João Tomás, dirigentes punidos e afastados por graves irregularidades. Sem apresentar provas, como sempre, temos João Tomás nomeado como informador da PIDE através de contactos com comerciantes.

E para dar mais sabor ao relato, sem igualmente nunca ilustrar os nomes dos conspiradores atrás referidos, eles são insinuados como os executores da instrução nº 42/71, da Direcção-Geral de Segurança. Numa reunião partidária, Amílcar Cabral tirou de uma pasta 5 folhas de papel, dizendo tratar-se de um programa detalhado de acções subversivas contra o PAIGC, dizendo inequivocamente que dentro desse plano constava a liquidação do secretário-geral Amílcar Cabral e de todos aqueles que não aceitassem uma direcção política genuína de guineenses, referindo-se o nome de Rafael Barbosa como um dos mais influentes para a futura direcção. No final da reunião, os camaradas M e N ter-se-ão aproximado de Amílcar Cabral dizendo que tinham vistoriado os pertences pessoais de Momo, encontraram notas idênticas à da instrução da DGS. Em Bissau, António Fragoso Allas, o director da PIDE, teria ficado furioso com esta troca de informações.

Oleg Ygnatiev vai fazendo surgir outros nomes como os de Saidu Baldé e Mamadu Indjai que em 20 de Abril de 1973 é o responsável pela segurança de Amílcar Cabral. Em Conacri, ao longo de 1972, colaboradores de Cabral continua a insistir na destituição e ou prisão de pessoas como Momo e Aristides Barbosa, mas Amílcar Cabral ia sempre adiando essa decisão à espera de uma regeneração destes dirigentes subversivos e o livro termina com um conjunto de depoimentos sobre o assassinato de Amílcar Cabral e depois a menção à execução dos chefes do complô. Como é evidente, o autor não explica quem chefiava o complô, limita-se a referir nomes de acordo com a tese de que a PIDE preparara um plano para instalar quadros ressabiados junto de Cabral, a missão seria trazê-lo vivo para Bissau e eleger uma direcção fantoche pronta a executar os planos neocolonialistas de Spínola. Não vale a pena insistir que tudo isto é fantasioso, não há um só documento que abone o relato de Ygnatiev. Rafael Barbosa sempre considerou este plano sugerido tanto pela direcção do PAIGC, a partir do assassinato de Cabral, como pelas conjecturas de Ygnatiev como um puro delírio, disse sempre que Momo era um militante dedicado mas que não escondia a sua discordância com as teses da unidade Guiné/Cabo Verde.

Com esta releitura do livro de Ygnatiev penso ter respondido em voz alta a algumas da dúvidas do camarada Mário Serra de Oliveira que nunca esclareceu o Momo Turé em O Pelicano, ali estiveram juntos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9207: Notas de leitura (312): Arquitectura Sustentável na Guiné-Bissau (Manual de boas práticas) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9230: Parabéns a você (355): Humberto Reis, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Guiné 1969/71 e João Melo, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAV 8351/72, Guiné, 1972/74

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9211: Parabéns a você (354): Francisco Santos, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, da CCAÇ 557 (1968/70) - Agradecimento

domingo, 18 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9229: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (41): Comprei um computador pequeno e lentamente fui aprendendo a navegar na Net (Fernandino Vigário)

1. Mensagem do nosso camarada Fernandino Vigário* (ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 1911, Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, 1967/69), dirigida ao nosso Blogue:

Caro amigo Carlos Vinhal, um abraço.
Amigo Carlos, a minha apresentação à Tabanca grande já foi feita com a ajuda do camarada Albino Silva, onde foi publicado um resumo da minha passagem pelo chão Manjaco de Teixeira Pinto: agora vou fazê-lo eu próprio como me pedes, e também tirar possíveis dúvidas sobre o meu nome.

Sou FERNANDINO VIGÁRIO “não confundir com Fernando” sou, e sempre fui conhecido por Vigário, desde os tempos da escola, trabalho, vida militar, e amigos, portanto não há qualquer problema em ser tratado por Vigário, este é o meu nome da guerra.

Como já sabem, fui Soldado Condutor, tenho a quarta classe do ensino primário. Há cerca de nove meses tive oportunidade de começar aprender informática na Junta de Freguesia, vai daí comprei um computador pequeno “tipo Magalhães” e lentamente fui aprendendo umas coisas, entre elas navegar na Net. Há quatro ou cinco meses para espanto meu deparo com o SITE da Tabanca Grande e fiquei contente por tal ter acontecido, e sempre que posso dou lá uma vista de olhos. Fiquei a saber algo que não imaginava que tivesse acontecido, como o caso dos três Majores, e outros mais…

Nos quase vinte e cinco meses de Guiné nunca escrevi nada do dia-a-dia, portanto não tenho registos de nada, do que quer que seja, por tal motivo tenho dificuldade em me lembrar de certas passagens. A memória já está cansada no entanto vou tentar recapitular algumas histórias e depois enviarei.

Estou a escrever no Word, como deves calcular, sou maçarico na informática, demoro algum tempo a escrever, também faz parte da minha aprendizagem, e é natural que eu cometa algum erro. No E-mail vou escrever o mínimo, este texto vai no anexo.

Amigo Carlos, fiquei deveras satisfeito por publicarem com a ajuda do Albino Silva as minhas simples palavras, os camaradas também foram simpáticos nos seus comentários, eu achei por bem responder a um, englobando os outros, tudo isto foi novo para mim e uma surpresa ver o meu comentário em poucos segundos estar no blogue.

Um forte abraço deste novo camarada
Fernandino Vigário


2. Comentário de CV:

Esperamos que esta mensagem do nosso camarada Vigário sirva de incentivo a outros camaradas que julgam que ter a Quarta Classe do antigo Ensino Primário é pouco para comunicar com a Tabanca Grande. Aqui, mais de 500 ex-combatentes da Guiné têm a mesma oportunidade para depositarem as suas memórias de guerra, sem precisarem de qualquer grau de doutoramento e sem disporem de equipamento informático sofisticado. Como diz o Fernandino, um PC tipo "Magalhães" é mais que suficiente.

Caros camaradas, por favor percam a timidez e "apresentem-se" na Tabanca porque todos somos poucos para deixarmos a nossa verdade, o nosso testemunho, antes que outros que nunca por lá passaram se ponham a contar aquilo que não viram, mas ouviram.

Aqui fica o desafio e um abraço para todos os camaradas que ainda não tiveram a "coragem" de se juntar a nós.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9186: Tabanca Grande (309): Fernandino Vigário, ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 1911 (Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, 1967/69)

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9209: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (40): Em Civitavecchia, Itália, com veteranos de guerra (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P9228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (18): Uma mina anticarro e as suas consequências

1. Em mensagem do dia 15 de Dezembro de 2011, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias, desta feita uma nada agradável, porque relata o acidente que vitimou o nosso camarada António Filipe, Soldado Condutor da CCAÇ 675, a quem enviamos um abraço.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (18)



A mina não destruiu tudo... o fogo faz a sua parte.


A Mina Anticarro
(consequências)

O dia 28 de Dezembro de 1964 ficou profundamente marcado nas nossas mentes de jovens e pouco experientes combatentes (estávamos com poucos meses de mato!) por vários motivos bem ligados entre si.
Por um lado sofremos os efeitos terrivelmente devastadores e assustadores da primeira mina anticarro que deflagrou na nossa zona depois da nossa chegada... ainda não sabemos bem como. Pensou-se de início que se trataria duma mina telecomandada pois explodiu à passagem da segunda viatura e sob a roda de trás do lado direito. Muito provavelmente não terá sido essa a causa do rebentamento, depreendemos nós, hoje, volvidos 47 anos.

A primeira viatura era uma GMC da 2.ª Grande Guerra à qual chamávamos “rebentaminas” mas felizmente nunca accionou nenhuma... talvez porque era conduzida por um soldado sempre muito atento e cuidadoso e, além do mais, chamava-se Padre Eterno – acreditem que é verdade.
Por outro lado, como consequência da monstruosa explosão tivemos um morto, o Fur Mil Vilhena Mesquita, natural de Vila Nova de Famalicão, na realidade era o nosso primeiro morto verdadeiramente em combate; tivemos também três feridos considerados em estado muito grave e alguns feridos ligeiros.

Apesar de ainda não ter havido minas na nossa zona depois da nossa entrada no teatro de operações – tempos antes uma autometralhadora havia sido seriamente danificada pelo rebentamento duma mina a escassos 3Km de Binta – já os nossos condutores auto estavam alertados que tal podia acontecer a qualquer momento; deveriam cumprir escrupulosamente – tanto quanto possível – as regras estabelecidas.

À cabeça da coluna seguia invariavelmente a tal GMC, viatura mais resistente ao efeito de tais armas; as restantes viaturas deviam pisar sempre o rasto da GMC para evitar fazer explodir minas. Circulando à velocidade possível naquela via de terra batida – estrada Binta/Bigne – era um tanto complicado cumprir com o rigor apropriado, aquelas ordens – até porque os soldados partiram de cá com pouquíssimos conhecimentos e quase nula experiência. Aprenderam mais num mês em Bissau do que os parcos ensinamentos que lhes foram transmitidos durante a especialidade. Faziam o que podiam!


Por outro lado ainda, as Mercedes, viaturas mais altas e bastante resistentes, circulavam apenas com dois pneus no eixo de trás – os interiores – para que pisassem maior superficíe de estrada com os quatro pneus (2 em cada eixo) protegendo assim a tarefa dos unimogues que eram mais vulneráveis.

O rebentamento desta mina e suas consequências imediatas foram amplamente tratados pelo companheiro Jero, o nosso insigne cronista, autor de o “Diário” da CCaç 675 e “Golpes de Mãos’s” com arte, engenho e profundo sentimento.

Aqui e agora tratarei apenas do que aconteceu ao soldado 2085, António Filipe de seu nome completo, mais conhecido pelo nome da terra que o viu nascer – Vendas Novas – o que acontecia com frequência na vida militar.
O Filipe foi um dos três feridos em estado muito grave.
Transportado de helicópetero, chegou em coma ao HM 241 em Bissau; avaliado o seu estado, seguiu de urgência para a capital do Imprério.
Permaneceu internado no HMP da Estrela durante mais de 3 anos; foi submetido a diversas intervenções cirúrgicas para minorar a sua incapacidade física. Por fim foi-lhe atribuido um grau de incapacidade bastante elevado – 77%.

Durante a sua permanência “forçada” no HMP, o nosso homem teve a coragem, a paciência e a pachorra de fazer o 5.ºano do liceu, o que lhe proporcionou um razoável e inesperado (à partida) emprego como escriturário numa grande empresa de metalomecânica (Mague) onde recentemente veio a reformar-se por idade.

Um dia o seu médico assistente ordenou que o Vendas Novas fizesse um determinado tratamento especial ao seu pé danificado, numa dependência do mesmo hospital; houve um “ligeiro” descuido da enfermeira – hoje falaríamos de negligência – e o bom do Filipe voltou com uma série de bolhas de água – vulgo: queimaduras – no pé.
O médico, ao aperceber-se do estado lastimoso em que se encontrava o pé do seu paciente, perguntou escandalizado:
- Que raio é isto?! Como provocaste estas queimaduras tão extensas?
- Foi lá do outro lado! Uma puta duma enfermeira distraiu-se e eu fiquei com o meu pé neste estado miserável!
- Quem foi ela?
O Filipe tentou transmitir os atributos de que se lembrava da tal enfermeira para que o médico conseguisse identificá-la e citou também um nome que ouviu alguém chamar-lhe.
Comentário do galeno:
- Essa a quem tu chamas de puta... é a minha mulher!

Imaginem a cara do Vendas Novas... e o susto que ele terá apanhado... sem vislumbrar um buraco onde pudesse enfiar-se!

Lisboa, 12 de Dezembro de 2011
Belmiro Tavares

O Filipe em posição de combate... para a fotografia.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9151: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (17): Quando Paulo VI visitou o Santuário de Fátima

Guiné 63/74 - P9227: Blogoterapia (194): Como é bom não termos dúvidas (Juvenal Amado)

O Unimog do Falé destruído por mina anticarro na picada de Dulombi

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado*, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 15 de Dezembro de 2011:

Carlos e Luís
Os dias vão passando invernosos, mais solitários, pensamos em tudo o que por nós passou e acabamos por descarregar no depósito de memórias que é o blogue.

Bom fim de semana e um abraço
JA


Quantas vezes duvidamos se o caminho que traçamos será o mais correcto? Afastamos as alternativas pois o contrário é nos doloroso, assombra-nos, azeda-nos e faz-nos infelizes.

Como é bom não termos dúvidas
Nunca nos questionarmos
Termos sempre a certeza
Não haver lugar para arrependimentos
Que os nossos actos foram os correctos.
Afastar os pesadelos como fossem moscas
Vangloriarmo-nos sem rebuço
Falar da guerra como se fosse inócua
Sonhar com bravura em tempo de Paz
O heroísmo sem orgulho
Dar com a esquerda sem que a direita veja
Pensar sempre no patriotismo dos que morreram
Acreditar que morreram por algo, que valeu a pena
Pensar mais em honra que em choro e dor
Que o destino tem sempre hora certa
Ter desculpa para o indesculpável
Acreditar que o crime tem sempre castigo
Ter mais piedade do que vontade
Que cada ruga no nosso rosto conta uma estória

Enfim acreditar que Deus está do nosso lado.


LDG e o apoio aéreo
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9148: O meu Natal no mato (33): Um conto natalício (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 3 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9132: Blogoterapia (193): Porque somos um país de marinheiros, congratulemo-nos com a recuperação dos pescadores das Caxinas (Henrique Cerqueira)

Guiné 63/74 - P9226: Memória dos lugares (167): As nossas lavadeiras da Guiné, a nossa Amélia de Bissorã (Maria Dulcinea)

1. Mensagem da nossa tertuliana Maria Dulcinea (NI)*, esposa do nosso camarada Henrique Cerqueira) que esteve em Bissorã nos anos de 1973/74, com data de15 de Dezembro de 2011:

Olá Carlos Vinhal
Hoje, motivada pelo despertar de lembranças, e após uma visita ao Hospital de S. João em que conhecemos um menino da Guiné que está internado em Pediatria e que segundo ele a sua Avó é de Bissorã, resolvi escrever sobre as Mulheres da Guiné e muito especialmente as "Lavadeiras dos Militares", mas ainda mais especialmente sobre a "Nossa Lavadeira" de seu nome Amélia). Assim, escrevi um pequeno texto que envio em anexo, e se por acaso o Carlos achar que é publicável, publica, caso contrario há sempre um arquivo à mão...

Resta-me desde já desejar a todos os Tertulianos sem qualquer excepção um Muito Feliz Natal e que o próximo Ano seja muito melhor que este.

Para o Carlos e Dina um abraço especial da tertuliana
Dulcinea


As nossas lavadeiras da Guiné

A nossa Amélia

Hoje resolvi escrever um pequeno texto em homenagem às “Lavadeiras” da Guiné e muito especialmente à “nossa” Lavadeira de seu nome AMÉLIA.

Creio que na generalidade todos os militares na Guiné “tiveram“ ao seu serviço essas valorosas Mulheres que conseguiam um meio de subsistência lavando as roupas dos militares em serviço na Guiné, e como não fugia à regra, o meu marido tinha a “sua” Lavadeira. 

Quando cheguei a Bissorã e após a nossa instalação de acomodamento aos usos e costumes da nossa “Tabanca”, o Henrique disse-me que iríamos continuar com a Amélia. De pronto foi-me apresentada a “Famosa“ e desde logo se criou uma grande empatia entre nós, pois que a Amélia era uma senhora muito bem esclarecida, muito divertida e como a foto documenta era muito bonita.

Na realidade o que eu pretendo é fazer uma singela homenagem a todas as “Amélias” que de uma forma ou de outra acabaram por fazer parte da vivência dos militares que permaneciam longe dos seus familiares, sendo muitas vezes as suas Lavadeiras suas confidentes e quiçá terem que aturar os devaneios de jovens “desgarrados” e ausentes do convívio de suas mulheres ou namoradas.

Quero ainda salientar o quanto eram importantes aquelas horinhas certas, no final da tarde, quando as “Lavadeiras” com as suas trouxas de roupa lavada percorriam os locais dos militares a entregar as suas roupas e recolhendo outras. Que giro era vê-las em “bandos”, entrando pelo quartel, falando muito alto e rindo como se aquele momento também fosse de alegria para elas porque sentiam que o seu trabalho era útil e ajudava à sua subsistência .

Jamais esquecerei a Amélia e alguns momentos de cumplicidade que existiram entre nós, assim como jamais esquecerei tudo o que passei e aprendi com as Mulheres da Guiné. Daí o meu sincero reconhecimento a todas elas.

Fui de certo modo despertada para esta lembrança quando esta semana visitei um menino internado no Hospital de S. João, que é da Guiné, de seu nome TIGNÁ e que segundo ele, a sua avó é de Bissorã e assim todas as lembranças despertaram.

Não incomodo mais até porque não tenho muito jeito para a escrita e só escrevi este texto porque fui incentivada pelo Henrique. No entanto se virem que não tem pés nem cabeça podem enviar para o “arquivo”.

Um beijinho para todos os Tertulianos e um especial para as mulheres da Guiné.
NI (Maria Dulcinea Rocha)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8329: As mulheres que, afinal, também foram à guerra (11): Como fui parar à Guiné (Maria Dulcinea)

Vd. último poste da série de 9 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9166: Memória dos lugares (166): a paliçada de troncos de palmeira do Cachil (José Colaço, CCAÇ 557, 1963/65)

Guiné 63/74 - P9225: (Ex)citações (166): Gostei dos que… gostaram e gostei, juro que não menos, dos que não gostaram (José Brás)

1. Mensagem do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 17 de Dezembro de 2011:

Acabadinho de chegar do Espírito Santo, Hospital de Évora e não banco ou terceira pessoa da santíssima trindade, busquei no sítio do blogue as reacções que o meu último comentário transformado em poste* tinha conseguido reunir e gostei do que li.

Gostei dos que… gostaram e gostei, juro que não menos, dos que não gostaram.

Isto dito assim, pode parecer aquela história da nossa meninice “o Gustavo gostava da Gustava…”, mas acreditem camaradas que não o boto deste modo por brinquedo mas porque seriamente me preocupa muito mais a falta de ideias e de opiniões ou a descoragem (sic) de as colocar, do que o desacordo em si próprio como sinal humano das diferenças ou como prova de que a verdade não será nunca universal, não decorrendo daí mal ao mundo se todos soubermos dessa certeza e nos respeitarmos nas diferenças que aparentemente nos separam mas na verdade dão sentido, coesão e beleza ao mundo.

Sei que dirão alguns que passaram já tantos dias que não se justifica voltar eu à questão, correndo o risco de reabrir querelas e incómodos. Porque assim não creio e porque tenho o debate entre contrários mais por positivo do que por negativo, contrario tais opiniões e aqui estou.

Começo por assegurar que, a meu ver, do que disse então, não há razão para retirar nem uma vírgula, excepto se quisesse imitar estilo e forma de Saramago, coisa que não quero por não gostar de macaqueações e por claramente me sentir incapaz para tal exercício.

E que disse eu, então?

Primeiro, “que não entrava em comentários acerca de torturas e assassinatos praticados por gente do PAIGC a conterrâneos seus que lutaram do nosso lado, alguns mesmo, a quem nunca chamarei heróis porque o que os animava era mais uma sanha guerreira e algumas vezes mesmo ferozmente assassina, do que esse tal amor a uma bandeira que não poderiam sentir enquanto símbolo de centenas de anos de história de um povo que conheciam apenas nas relações coloniais”.

Disse em segundo que “Sempre achei que o seu engajamento nas nossas fileiras se deveu mais a acidentes na sequência das relações de origem tribal ou mesmo pessoal entre os protagonistas dos acontecimentos, do que a devoções nacionalistas, e que alguns ficaram do outro lado obrigados ou por acidente e outros do nosso lado por conveniências de momento".

Em terceiro lugar disse que “não eram melhores uns que os outros, como seres humanos, senão na diferença de carácter que nos distingue a todos, havendo gente boa e má dos dois lados, se quisermos reduzir o conceito de bom e de mau a esta nota simplificada".

Vejamos uma a uma estas três afirmações para tentarmos descobrir nelas a marca que o António Graça Abreu parece detectar que em sua opinião há-de ser na pele da alma como essas tatuagens mandadas colocar pelos nossos soldados na pele do corpo garantindo amor de mãe ou eterno amor à Maria que, em alguns casos casou com outro Manel.

Primeiro! É ou não verdade que esses heróis negros de caçadores especiais se transformaram em verdadeiras máquinas de matar, neste caso a gente da sua terra, gente que provavelmente teria sido de seu convívio, vizinho ou mesmo amigo?

Segundo! É ou não verdade que uma boa parte dos combatentes do PAIGC ficaram daquele lado por acidente como, por acidente poderiam ter ficado do nosso, e que do nosso lado ficaram outros que pelos mesmos acidentes poderiam ter ficado de lá? Obrigados também, muitos, forçados, “politizados” à força, como aliás a maioria dos brancos que daqui saíram contrariados e apenas porque não puderam escapar, igualmente doutrinados nesta ideia de Pátria multirracial e pluri-continental e na afirmação de que bandidos às ordens de potências estrangeiras nos que riam roubar parte da Pátria.

Terceiro! Bem, este terceiro nem me parece que careça de considerações de tão anti-polémico que é.
Sabemos das façanhas desses soldados negros de forças especiais e do jeito que deram aos nossos objectivos quando realizavam coisas que não éramos capazes de realizar, e frequentemente cantamos tais façanhas como exemplo de portuguesismo genuíno na senda dos nossos heróis antigos. Que entre eles havia gente muito boa, também, é uma verdade que conhecemos pessoalmente e que acolhemos com amizade, mas tais andorinhas não fazem a Primavera.

Sabemos dos outros de menor proeminência, soldados milícias integrado nas Companhias ou em grupos especiais, oficiais de segunda linha com autoridade sobre populações e que por isso haviam ganho galões e uns patacos.

Éramos amigos de tal gente que considerávamos companheiros nas andanças das matas e do combate de tal maneira que a um, Rei local, tenente de segunda linha, emprestei três contos que nunca mais vi.
Mas também sabemos que a nossa ocupação nunca foi pacífica e que nem as suas culturas passaram para a nossa nem a nossa passou para as deles.

A teoria que nos faz crer que aquela boa e sofrida gente era portuguesa como nós e que morria em defesa da sua Pátria, Portugal, não tem ponta por onde se pegue num quadro que temos da nação portuguesa, da sua fundação (também em revolta contra mandos indesejados), da sua evolução histórica, das suas lendas, da língua que se foi formando, dos costumes e da cultura, tudo forjado contra invasores frequentes, a poder de pulo e de ânimo, tornando consciência coesa e unida o que era diferente em cada região do território, dando espaço a um povo a que orgulhosamente pertencemos.
E sabemos que desse caldo civilizacional não fazem parte os costumes, as crenças, as línguas dos povos da Guiné, a esta hora ainda muito dificilmente capazes de chamar Pátria em todo o seu território a esse poder que sai de Bissau.

Disse ainda e volto a dizer que “Se há alguma coisa que diferencia portugueses dos restantes europeus é essa ausência de ódio e essa capacidade de dar as mãos sem grandes preconceitos, que atravessou o nosso processo colonial. Prova disso é que no fim, ao contrário do que aconteceu com outros, fomos capazes de manter respeito e amizade uns pelos outros e mesmo de deixar saudades.
No entanto, bom é que não exageremos ao ponto de concluir que somos santos e que não cometemos também algumas atrocidades.”

Mas falemos primeiro das que o Poder que se instalou em Bissau após Abril praticou sobre os seus próprios conterrâneos porque haviam ficado do nosso lado. Coisa hedionda, sem qualquer dúvida, impiedosa e assassina a um tempo, e absolutamente estúpida do ponto de vista político, na hora em que o novo País precisava mais de unidade, de concórdia, de lavar feridas e de criar condições para a construção de uma Pátria que abrigasse as diferenças no esforço colectivo para melhorar a vida das gentes, afinal, a única justificação para encetar e manter uma luta como aquela.

Mas mantenho o que disse no poste anterior “Não conheço maus tratos que o PAIGC tivesse infligido a militares portugueses embarcados em Lisboa para os combaterem, ao contrário, sem colocar em dúvida que tivesse havido algum caso fora do quadro dos prisioneiros em Conakri, o que tenho ouvido são relatos de respeito e de bom tratamento na situação precária em que eles próprios viviam.”

A referência ao triste caso dos oficiais chacinados numa alegada missão de paz, é uma excepção que pela sua causalidade e pela trama que os levou àquele lugar para um encontro com uma facção do PAIGC, já qualificada como caso especial de desconfiança pela Direcção Central da luta, dificilmente caberá como responsabilidade do próprio PAIGC, sendo mais própria de bando em rebeldia, descoberto e com necessidades de se “lavar” a fim de evitar julgamento que, como calculamos, haveria de ter consequências funestas.
De resto, é hoje muito claro que tal manobra não passou de mais uma louca aventura de Spínola, igual a tantas outras que acabaram por se voltar contra nós.

Portanto, meu caro António Graça Abreu, sabendo como sabes que gosto muito de ti, nessa figura humana que escreveu aquele Diário da Guiné; que traduz e nos dá a conhecer tantos poetas daquele País longínquo e ainda misterioso; que é capaz de escrever ele próprio uma poesia de rara sensibilidade e lirismo, plena de busca do mistério humano, irás desculpar-me a ingenuidade e a marca de que falas.

De facto, como gente, cresci na revolta contra poderosos e ladrões que agrilhoaram este nosso povo durante séculos ao atraso, à doença, à crença num destino de besta de carga espoliada da sua força criadora para alimentar poderes e luxos de uns poucos e o lado mais negro de uma igreja que haveria de ser de esperança. Nessa forma de pensar e de agir percorri os anos sem necessidades de máscaras, nem de fingimentos, aguentando as consequências e sempre no prejuízo próprio. Isso porém não obsta a que aceite diferenças e que as tente compreender, nem obsta a que alimente amizades fora deste meu quadro de pensar, às vezes mesmo maiores do que dentro desse quadro.
Já te ofereci a minha casa mais do que uma vez e repito-o aqui publicamente, sem medos nem preconceitos.

Em relação ao Cherno Baldé de quem gosto frequentemente no que escreve, creio que o que digo atrás lhe servirá e quanto ao resto lá saberá as linhas como que se coserá.

E tu, meu camarigo grande e maior de alma ao que sei e tenho visto. A ti, acho que nunca ofereci casa mas é como se o fizesse, amigo de Montemor, do fado, da forcadagem, do bem comer e beber, das gentes, e nisso tudo meu irmão.
A ti te direi que colocas o carro à frente dos bois. Quer dizer, achas que ganharíamos a guerra se não tivéssemos perdido a política, com isso subalternizando a política à guerra e esquecendo que primeiro vem a política e só depois a guerra; que a guerra, qualquer guerra, as que se ganham e as que se perdem, são sempre consequência de determinadas políticas.

Esta nossa, já a tínhamos perdido há muito, quando africanistas inteligentes perceberam o caminhar do mundo e a necessidade de alterar o rumo da nossa politica ultramarina. Nota que nem lhe chamo colonial porque acho que de colonialistas tínhamos muito pouco na autêntica noção de colonial.

Quando Salazar gritou “para África em força”, coisa com a qual concordo em absoluto em face do horror do Norte de Angola, era tarde para arrepiar e ganhar a guerra do diálogo, a única saída verdadeiramente vitoriosa para todos.

Nunca, em nenhum dos meus escritos eu disse que havíamos perdido a guerra na Guiné. Que era difícil, sabemos que era, como era também para o PAIGC. Mas aguentaríamos na capacidade de sofrimento que nos caracteriza e que nos deu força para cruzar os mares do mundo, até que o regime em Lisboa dissesse, como já dizia, não há mais meios.

Por outro lado, Joaquim, deixa que te faça um reparo àquela coisa dos livros editados contra o discurso directo. O discurso que aqui se faz, exactamente como nos livros (fora dos relatórios) nunca é o discurso directo e ainda menos o discurso directo de cada um no tempo e no espaço em que vivemos as dores do combate. Eu também lá andei e conheci-me a mim e aos meus camaradas do corredor de Guilege. Sei bem como eram e como reagiam e por isso prefiro calar-me quando nos almoços oiço bravatas. Grande respeito tenho por eles e não alimento preconceitos por quem teve medo.

Abraços
José Brás
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9149: (Ex)citações (161): Fomos capazes de manter respeito e amizade uns pelos outros e mesmo de deixar saudades (José Brás)

Vd. último poste da série de 11 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9178: (Ex)citações (165): Agora já não há contenda, embora às vezes me pareça que para alguns, ela, a contenda, ainda perdure (Francisco Godinho)

Guiné 63/74 – P9224: Memórias de Gabú (José Saúde) (18): A caminho do campo


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

Camaradas,

 Esta catarse de memórias de Gabu - Guiné 1973/74 - que ultimamente tenho dado à estampa no nosso blogue - Luís Graça & Camaradas da Guiné - foram, de facto, uma alavanca primordial para remexer com o meu passado e, logicamente, deparar-me com a minha comissão militar em solo guineense.

Reconheço, e julgo apresentar-se como verídico, que cada momento relatado ao longo das “MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”, nos chama à nostalgia. Todos, em geral, nos revemos em situações partilhadas e constatadas no meio onde coabitámos, não obstante o local da Guiné onde prestamos serviço. 

Aliás, a minha intenção foi, e é, partir para o além do conflito armado no terreno. Todos trouxemos outras recordações que jamais esqueceremos. E foi justamente nessa base de um oportuno auto-entendimento, que resolvi deixar escrito a minha (nossa) vivência naquele território, reconhecendo, contudo, que as narrações se enquadram em pleno com o nosso modo de vida como militares na Guiné.

Revejam, por exemplo, os quotidianos percursos das mulheres da tabanca a caminho do campo!


A caminho do campo


Uma jornada de trabalho

Gabú, ao longe, ainda se vislumbrava. O caminho, de terra batida, era com frequência palmilhado pela população. As mulheres, normalmente descalças, caminhavam em direcção ao campo. Com a trouxa à cabeça lá iam elas para mais uma jornada de trabalho.

O seu labor encorajava-me. Sentia prazer na sua firme determinação. Recordo que a mulher assumia-se como alavanca do modesto lar. Da tabanca. Era ela que cavaca a terra com desusados apetrechos, que semeava e colhia o milho, a mancarra (amendoim), a mandioca e que procurava os meios de subsistência.

O homem, deitado numa esteira descansava e… dormia. Esperava, quiçá, que o mango caísse de maduro que ir ao cimo da árvore colher a respectiva fruta já pronta a comer.

Comecei então a perceber que a mulher, com os seios de fora e um simples pano que prendiam à cintura e calçando um velho par de chinelos, às vezes, assumia-se como a matriarca do clã familiar.

Era comum vê-las no campo. Os estreitos trilhos do mato eram-lhes familiares. Algumas vezes me interroguei se a sua leveza no andar em veredas apertadas não se tornava perigoso? Uma mina anti-pessoal poder-lhes-ia ser fatal. Diziam-me que não. Voltava a interrogar-me: Porquê? Elas lá saberiam a razão que as movia.

Em Gabu existia um campo de minas que servia de protecção ao Quartel. As minas estavam colocadas em pontos estratégicos entre dois arames farpados. Não tive conhecimento de nenhum acidente pessoal. Uma vez entrou uma vaca para aquele espaço proibido, resultado: rebentou uma mina e a vaca, logicamente, morreu.

A população tinha conhecimento do perigo que aquele espaço reservado detinha e recusava, naturalmente, uma aproximação ao campo de minas.

Aquele êxodo constante das mulheres tinha, também, outros contornos: o caminhar para a bolanha. No tempo do arroz eram elas que assumiam o trabalho.

Numa análise feita à mulher guineense, estou convicto, e assumo, que o seu labor e entrega a uma sociedade que conhece no seu contexto um multifacetado número de etnias é e será sempre sobejamente reconhecida.

Esta é a minha singela opinião!


Mulheres na sua deslocação para o campo

Um abraço deste alentejano de gema,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P9223: Estórias cabralianas (69): Onde mora o Natal, alfero ? (Jorge Cabral)

1. Com votos, telegráficos, mas quentes, do nosso alfero, enviados a 16:

" Amigos! Bom Natal! Abraços. Jorge Cabral"...

2. Comentário de L.G.:

Tomei a liberdade de transformar esta mensagem natalícia em mais uma estória cabraliana que, como sempre, nos emociona, nos faz sorrir  e/ou nos põe a pensar... Que raio de sítio, Missirá, a última tabanca do Cuor, para se pensar o Natal de 1970, meu irmão!... De qualquer modo, que as rabanadas, as filhós, o arroz doce e a aletria de Missirá de 1970 não te faltem à mesa da consoada da Lisboa de 2011!... Quentes e boas!... Um xicoração. Luís.


3. Estórias cabralianas > Onde mora o Natal? (*)
por Jorge Cabral



Também houve Natal em Missirá naquele ano de 1970. Na consoada,  os onze brancos e o puto Sitafá, que vivia connosco. Todos iam lembrando outros Natais.
Dizia um:
 – Na minha terra…

E acrescentava outro:
 – A minha Mãe fazia…  

E a mesa por encanto encheu-se. Rabanadas, filhós, arroz doce, aletria... Juro que vi e até saboreei.


Eis quando o Sitafá interrogou:
 –  Onde mora o Natal?

Ninguém lhe respondeu... mas eu ainda vou a tempo:
 –  Está cá dentro, se calhar é um neurónio. E sabes,  Sitafá, neurónios, já perdi muitos, mas não quero perder este. Porque Natal, Natal, só existe quando mora no mais fundo de nós.


Jorge Cabral
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8992: Estórias cabralianas (68): Zina, a bordadeira do Pilão (Jorge Cabral)


(...) Chegado na véspera e instalado no Biafra, entrei pela primeira e última vez na Messe de Oficiais em Santa Luzia. Era noite do Bingo. Procurei algum conhecido e encontrei o Gato Félix, estudante de Letras, ora Alferes, o qual também me pareceu entediado. (...)

Guiné 63/74 - P9222: Agenda cultural (180): O filme Quem Vai à Guerra, de Marta Pessoa (Portugal, 2011), à venda, em DVD, neste Natal




Quem vai à guerra, um filme de Marta Pessoa, produzido pela Real Ficção (Portugal, 2011). Edição em DVD. Disponível nas lojas FNAC de todo o país. Preço: c. 15 €

Foto: Facebook > Quem Vai à Guerra (com a devida vénia...)


Sobre este filme (documental) se disse, por exemplo, na revista Visão, de 15 de Junho de 2011, em artigo assinado por Manuel Halpern, o seguinte:

(...) "Marta Pessoa, a autora de 'Lisboa Domiciliária', faz agora um trabalho de fundo sobre o papel das mulheres durante a Guerra Colonial, que ironicamente se chama 'Quem vai à Guerra', como que deixando claro que ao lado da guerra que quem combate no campo, há uma outra tendencialmente silenciosas, mas também sofrida. Marta Pessoa dá voz a estas mulheres, edificando o seu papel sofrido e as mazelas sobretudo psicológicas. E faz isto cercando o tema, metodologicamente, como que dividindo os exemplos por grupos, socorrendo-se sobretudo de depoimentos, fotografias e das raras filmagens da época


"Assim, o primeiro ponto são as mulheres que realmente ficaram na metrópole... As mães e as namoradas que viram os seus homens partir, numa despedida de lenços brancos que se acenava até ao fio do horizonte... a elas restava esperar, nada mais do que esperar, às vezes até nunca. Em paralelo, as mulheres que foram, que ficaram nos postos de retaguarda, nas cidades e vilas de África, para estarem mais próximas dos seus maridos. E que sofreram uma mudança radical de vida. Uma compara a experiência na Guiné com uma prisão, uma pena que se tem de cumprir com sacrifício.

"Depois há as madrinhas de guerra, aquelas que se correspondiam com soldados, para lhes dar ânimo, num esforço diário. E também as enfermeiras paraquedistas que, por si só, mereciam um documentário à parte, que arriscaram a vida em cenário de guerra, entre homens, no tempo de brandos e bons costumes, em que a sua missão nem sempre era moralmente bem vista". (...)


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sábado, 17 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9221: Agenda cultural (179): Descerramento de placa toponímica em Ponta Delgada, em homenagem aos combatentes caídos em campanha, dia 19 de Dezembro pelas 16 horas (Carlos Cordeiro)

1. O nosso camarada Carlos Cordeiro (ex-Fur Mil At Inf CIC - Angola - 1969-1971), Professor na Universidade dos Açores, enviou-nos para publicação e conhecimento um Convite da Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada dando notícia do descerramento de três placas toponímicas, no próximo dia 19 de Dezembro, sendo que uma delas, que devia servir de exemplo para muitos dos Municípios do Continente, é uma homenagem aos Combatentes do Ultramar, daquela cidade, mortos em campanha.
Apraz-nos registar esta homenagem, de que damos notícia com o maior orgulho, tanto mais que o nosso camarada Carlos Cordeiro vai usar da palavra durante o acto.



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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9208: Agenda cultural (178): Convite para o lançamento do livro Tempos Sem Remissão, de Diamantino Gertrudes da Silva, dia 17 de Dezembro de 2011, pelas 15h30, no Auditório da Escola Superior de Viseu (Rui Alexandrino Ferreira)

Guiné 63/74 - P9220: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (3): Mensagens dos nossos camaradas Giselda e Miguel Pessoa, Sousa de Castro, José M. Matos Dinis e José Martins

MENSAGENS DE NATAL DOS NOSSOS CAMARADAS

1. Dos nossos "estrelados" camaradas Giselda Pessoa, ex-2.º Sarg. Enfermeira Paraquedista, Guiné, 1972/74, e Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, Guiné, 1972/74, hoje Coronel Ref:

Caros editores, e permitam-me também, caros conselheiros
Aqui vão os nossos votos de Festas Felizes e muito ânimo e imaginação para superar a crise.
Com amizade
Giselda e Miguel Pessoa



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2. De Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74:

Camarigos,
Envio em anexo meu postal de Boas Festas/Natal 2011 e também a indicação do nosso próximo convívio que irá ser organizado em Ponte de Sôr, pelo ex-Fur. Mil. António Espadinha Carda.

Um abraço
Sousa de Castro



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3. De José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71:

Que o Natal seja todos os dias, e os amigos também.
JD


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4. Do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70):

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9212: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (2): Mensagens dos nossos camaradas

Guiné 63/74 - P9219: Efemérides (82): A invasão da Índia Portuguesa em 18 de Dezembro de 1961 (José Martins)

 


1. Em mensagem do dia 11 de Dezembro de 2011, o nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos este brilhante trabalho de pesquisa sobre a invasão da Índia Portuguesa em Dezembro de 1961, há precisamente 50 anos:




A QUEDA DA ÍNDIA

18 de Dezembro de 1961

Há quem atribua a queda da Índia, como marca do início da queda do Império Português. Mas, não. Tal não é verdade.

Em 22 de Agosto de 1415, com a expedição portuguesa e a consequente conquista de Ceuta, dá-se inicio expansão de Portugal rumo ao desconhecido, mas foram necessárias mais de quatro décadas, para que Ceuta consolidasse a sua posição, após a tomada em 1458 da praça de Alcácer Seguer e em 1471 de Arzila e Tânger.
Quando a Índia caiu, Alcácer Seguer, Arzila e Tanger já não faziam parte do Império, assim como o Brasil, que foi descoberto e anexado à Coroa Portuguesa depois da Índia. Também não podemos esquecer que muitas “possessões” que Portugal detinha, ao longo das costas de África e na Ásia, se foram esfumando, umas atrás das outras, independentemente do seu tamanho e/ou importância.
A “perda” de possessões nem sempre se ficou devendo à “sorte das armas”. Por exemplo, na Índia, Bombaim foi cedida ao Reino Unido, em 1661, incluída no dote de D. Catarina de Bragança, na altura do seu casamento com Carlos II de Inglaterra.

Voltemos à Índia, onde a maioria dos Portugueses nunca estiveram. Melhor, voltemos ao princípio da descoberta do caminho marítimo para a Índia, ao Século XV, que quer dizer ao meio da história deste nosso país.

Coube ao Almirante-Mor Vasco da Gama (n. Sines entre 1460 e 1469 † Cochim em 1524), filho ilegítimo de Estêvão da Gama, Cavaleiro da Casa de D. Fernando de Portugal, Duque de Viseu e Alcaide-Mor de Sines, casado com Dona Isabel Sodré, filha de João Sodré (também conhecido como João de Resende), que era de ascendência inglesa e tinha ligações à Casa do Príncipe Diogo, Duque de Viseu e Governador da Ordem Militar de Cristo.

A viagem, para a Índia começa no dia 8 de Julho de 1497 com a saída da barra do Tejo da frota constituída pelas embarcações São Gabriel, São Rafael, Bérrio e São Miguel, com cerca de cento e setenta homens a bordo entre soldados, marinheiros e religiosos.

O objectivo, a Índia, é atingido em 20 de Maio do ano seguinte, tendo Vasco da Gama que enfrentar a hostilidade do Samorim de Calecut. De regresso, a Armada atinge Lisboa, em fins de Agosto de 1499, tendo sido recebida em triunfo. Vasco da Gama realiza ainda mais duas viagens à Índia, sendo a última já com o título de Conde da Vidigueira e na qualidade de Vice-Rei, acabando por falecer em Cochim a 25 de Dezembro de 1524.

O Estado Português da Índia, Estado da Índia ou simplesmente Índia Portuguesa, foi um governo com a função de administrar todas as possessões portuguesas localizadas na zona do Oceano Indico, desde a África Oriental até à Ásia, que viu reduzida a sua área de governo em 1752 com a atribuição de governo próprio a Moçambique, situação que se verificou em relação a Macau, Solor e Timor em 1884, ficando, assim, restringido aos territórios de Goa, Damão, Diu, Ilha de Angediva, Dadrá, Nagar-Haveli, Simbor e Gogolá.

Com a independência obtida, da Coroa Britânica, em 15 de Agosto de 1947, a União Indiana, começou a reivindicar a posse dos territórios portugueses na zona, que foram sendo absorvidos pouco a pouco, até que, com a constituição de uma republica parlamentar, o Primeiro Ministro Pandit Jawaharlal Nehru recupera a declaração feita por Mahatma Gandhi [Mohandas Karamchand Gandhi (n. em Porbandar em 2 de Outubro de 1869 † Nova Déli em 30 de Janeiro de 1948), mais conhecido popularmente por Mahatma Gandhi (do sânscrito "Mahatma", "A Grande Alma") foi o idealizador e fundador do moderno Estado indiano e o maior defensor do Satyagraha (princípio da não-agressão, forma não-violenta de protesto) como um meio de revolução (in Wikipédia)], de que “Goa não podia ficar separada”, pelo que resolve reivindicar, formalmente, a abertura de negociações com Portugal, tendente à anexação dos territórios na Índia.

Com o Império Português “em ordem”, depois das “escaramuças” havidas em África, aquando da dobragem do século XIX para o século XX, apesar de se ter prolongado muito para além do regresso das tropas que estiveram em França, e mesmo depois do regresso dos expedicionários aos Açores e Cabo Verde, durante a 2.ª Guerra Mundial, só a Índia, a Jóia da Coroa (mesmo na República), estava a causar alguma perturbação.
Durante o período que este antecede, também na Índia houve situações que, dado os acontecimentos que ocorreram no país, desde a Conferência de Berlim até ao final da Grande Guerra, ao territórios da Índia tiveram de fazer face a uma rebelião dos soldados marathas do Batalhão de Infantaria da Índia. Esta rebelião teve origem na ordem de deslocação, para Moçambique, de duas Companhias. Desenvolveram-se, então, as operações militares em Satary, entre 1895 e 1897.

Para conter esta insurreição, foi enviado à Índia um Corpo Expedicionário do Reino, ainda estávamos no regime monárquico, sob o comando de Sua Alteza real o Senhor D. Afonso, Duque do Porto. Constituíam este corpo expedicionário, as seguintes forças: Comando e Estado-maior (1 oficial e 6 praças); uma Secção de Artilharia de Montanha (1 oficial e 40 praças); uma Companhia de Cavalaria 3 (4 oficiais e 70 praças); duas Companhias de Infantaria 3 (11 oficiais e 444 praças); Serviço de Saúde (4 praças); Serviços Administrativos (1 oficial e 3 praças); num total de 22 oficiais e 567 praças. Convém lembrar que, à época, os sargentos eram considerados praças. Também faziam parte do corpo expedicionário, um contingente de marinheiros do cruzador “Vasco da Gama”, não quantificados na fonte consultado.

Na sequência das perturbações havidas, houve novas Operações de Polícia em 1901 e 1902, dirigidas pelo Governador-geral da Índia Coronel Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo.
Em 1912 foram efectuadas novas operações em Satary, sendo necessário recorrer ao reforço da guarnição da Índia, pelo envio de três Companhias de Moçambique.

Só uma preocupação se colocava ao poder de então, no início dos anos 50 do século passado: Guarnecer os territórios naquele estado com o maior número possível de militares.
Sem negociações, a União Indiana acaba por anexar os territórios de Dadrá e Nagar-Haveli e impede o reforço daqueles territórios, mas Portugal envia mais tropas para a Índia, tendo chegado a cerca de 12.000 homens e três navios de guerra.

No inicio de 1961, o Coronel Francisco da Costa Gomes, na sua qualidade de Subsecretário de Estado do Exército (56.º Ministério, cargo que ocupou de 14 de Agosto de 1958 a 13 de Abril de 1961), sugeriu a redução dos efectivos naquelas paragens para cerca de 3.500 homens, em virtude de se ter constatado que aquele território seria indefensável, perante uma, mais que provável, invasão. Esses efectivos foram deslocados para África, onde se tinham iniciados os conflitos que se prolongariam por cerca de treze anos, e que se propagou a três frentes de combate.

Com uma guarnição de pequena dimensão, mal armada e pouco municiada, dá inicio a alguns combates esporádicos, com forças da União Indiana, em 17 de Dezembro de 1961. Porém, no dia 18, uma força de cerca de 45.000 homens, mantendo na retaguarda como reserva cerca de mais 25.000, dá inicio à invasão simultânea dos três territórios ainda em poder efectivo de Portugal.


Socorro-me, agora, dum trabalho que venho efectuando ao longo dos últimos anos, talvez 10, que intitulei, genericamente de “AD UNUM”, que significa “ATÉ AO ÚLTIMO” e é o lema da Escola Prática de Infantaria, a Casa-Mãe daquela Arma:

17 de Novembro de 1961 – Num incidente na ilha de Angediva, ao sul de Goa, a guarnição abre fogo sobre o navio de passageiros “Sabamati”, sendo transformado no pretexto para uma intervenção militar tendente a libertar os territórios pela força.

12 de Dezembro de 1961 – Na Índia, dá-se a evacuação das mulheres e crianças. A operação é desaconselhada por Lisboa, por contrária ao interesse nacional, mas o General Vassalo e Silva, governador do Estado Português da Índia, não abdica de pôr a salvo os familiares dos seus homens. Com capacidade para cento e cinco passageiros, o navio Índia larga de Mormugão com seiscentos e cinquenta.

14 de Dezembro de 1961 – Na Índia é decretado o estado de emergência, ao mesmo tempo que é recebida a mensagem rádio, enviada pelo Dr. Oliveira Salazar, presidente do Conselho e Ministro da Defesa: “Recomendo e espero a sacrifício total, única forma de nos mantermos à altura das nossa tradições e prestarmos o maior serviço ao futuro da Nação. Não prevejo possibilidades de tréguas, nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos".

17 de Dezembro de 1961 – Os territórios de Goa, Damão e Diu são cercados por efectivos das forças armadas da União Indiana, num total de quarenta e cinco mil homens e mais vinte e cinco mil de reserva, utilizando carros de combate do último modelo, artilharia, tropas aerotransportadas, unidades anfíbias, engenharia, aviação moderna. Do lado português cerca de três mil e quinhentos militares deficientemente armados e municiados – há quem não tivesse melhor que uma espingarda Kropatcheq, anterior à Primeira Guerra Mundial, espingardas Lee-Enfield, britânicas, modelo de 1917 e metralhadoras ligeiras Lewis -, sem blindados e sem armas anticarro, sem aviação e praticamente sem artilharia.

17 de Dezembro de 1961 – Ao principio da noite aterra no aeroporto de Dabolim um avião da TAP, vindo de Carachi. Prevê-se que traga uma encomenda urgente das desejadas granadas “Instalaza”, destinadas a reforçar a depauperada artilharia anticarro. Os caixotes são abertos com ansiedade, mas ninguém quer acreditar no que vê: em vez de granadas, chouriços, enviados por Lisboa no âmbito da campanha do “Natal do Soldado”.

18 de Dezembro de 1961 – Invasão, pela União Indiana, do Estado Português da Índia. Mal armados e em número reduzido, cerca de três mil e quinhentos efectivos, perante as forças indianas invasoras, cerca de cinquenta mil militares do exército, marinha e força aérea, resistir significava uma cruel e inútil auto-imolação para os efectivos militares portugueses.

19 de Dezembro de 1961 – O contingente português acabou por se render, tendo o governador, general Vassalo e Silva, ordenado a “suspensão de fogo” às suas tropas. Mais de três mil militares portugueses foram feitos prisioneiros, entre eles o próprio Comandante. O Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar que queria “Só soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos”, puniu e perseguiu alguns dos oficiais em serviço na Índia, o que abriu dolorosa ferida nas Forças Armadas Portuguesas e foi uma das raízes do derrube do regime Salazar, doze anos depois da queda de Goa, Damão e Diu.

19 de Dezembro de 1961 - Foram feitos prisioneiros em Goa (3412), Damão (853) e Diu (403), entre civis e militares, metropolitanos, africanos e indianos. Os 4668 prisioneiros foram enviados para os campos de concentração de Goa localizados em Nevelim, Praça da Aguada, Pondá e Alparceiros.

20 de Dezembro de 1961 – O General Chaudhury, das Forças Armadas Indianas, dirige-se ao campo de Alparqueiros, para uma visita ao já ex-Governador, no seu quarto-cela. O General Vassalo e Silva quis levantar-se para cumprimentar o indiano, mas este, pousando-lhe a mão no ombro, não deixou, puxando de seguida uma cadeira, sentou-se. O General português recusa a oferta de tratamento preferencial enquanto o indiano louva os militares portugueses, pelo seu comportamento nos combates travados em Mapuçá, Bicolim, Damão e Diu. O general indiano, no final, apertou a mão ao general português, colocando-se à disposição do vencido para o que fosse necessário.

27 de Dezembro de 1961 – Jawahalal Nehru, primeiro ministro indiano, manifesta-se contra os ataques internacionais de que foi alvo por ter invadido os territórios portugueses de Goa, Damão e Diu.

3 de Janeiro de 1962 – Estabelecimento, em Lisboa, de um governo do Estado da Índia.

12 de Janeiro de 1962 – O Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Dr. Franco Nogueira, entrega ao Presidente do Conselho de Ministros, Dr. Oliveira Salazar, um documento intitulado “Notas sobre a Política Externa Portuguesa”. Neste documento, de dezoito páginas, era preconizada a entrega de Macau à China e Timor à Indonésia, enquanto à Guiné e São Tomé e Príncipe seria dada a autonomia e independência. Os territórios de Angola, Moçambique e Cabo Verde seriam mantidos como colónias essenciais.

27 de Janeiro de 1962 – Acordo entre Portugal e a União Indiana para o repatriamento de mais de três mil prisioneiros.

Maio de 1962 – Começa a repatriação dos prisioneiros, com o estabelecimento de uma ponte aérea até Carachi no Paquistão, sendo, a partir daí, a viagem efectuada por mar nos navios enviados pelo Governo de Lisboa:
• Vera Cruz – Sai no dia 8 e chega a Lisboa a 22, com 2968 pessoas a bordo;
• Pátria - Sai no dia 12 e chega a Lisboa a 26, com 1265 pessoas a bordo;
• Moçambique - Sai no dia 15 e chega a Lisboa a 30, com 1382 pessoas a bordo. Foram transportadas mais de 5600 pessoas, entre militares e civis.

Quando chegam a Lisboa os navios que transportam os ex-prisioneiros de guerra da Índia, os militares repatriados só saíram a coberto da noite, debaixo de forte dispositivo de segurança militar, sendo esta atitude justificada “pela necessidade de os proteger da população, que os queria linchar pela cobardia demonstrada”.
No cais apenas alguns familiares e amigos dos regressados.


Em memória dos camaradas de armas tombados em nome de Portugal, deixamos o registo dos seus nomes, para que a História e os Homens, os não esqueçam, e não se tornem em SOLDADOS ESQUECIDOS:

Militares tombados em Defesa da Índia Portuguesa

Abel Araújo Bastos – Soldado
Abel dos Santos Rito Ribeiro – Alferes Miliciano de Infantaria
Alberto Santiago de Carvalho – Tenente Infantaria
Aníbal dos Santos Fernandes Jardino – Marinheiro
António Baptista Xavier - 1.º Cabo
António Crispim de Oliveira Godinho - 1.º Cabo
António Duarte Santa Rita - 1.º Sargento da Armada
António Fernando Ferreira da Silva - 1.º Cabo
António Ferreira – Marinheiro
António José Abreu Abrantes – Alferes Miliciano Infantaria
António Lopes Gonçalves Pereira – Alferes Miliciano Engenharia
Cândido Tavares Dias da Silva - 1.º Cabo
Damuno Vassu Canencar – Soldado
Fernando José das Neves Moura Costa - Soldado
Jacinto João Guerreiro – Soldado
João Paulo de Noronha - Guarda 2.ª classe
Jorge Manuel Catalão de Oliveira e Carmo - 2º Tenente Armada
José A. Ramiro da Fonseca - Furriel Miliciano
José Manuel Rosário da Piedade - 1.º Grumete Armada
Joviano Fonseca - Guarda-Auxiliar
Lino Gonçalves Fernandes - 1.º Cabo
Manuel Sardinha Mexia – Soldado
Mário Bernardino dos Santos – Soldado
Paulo Pedro do Rosário - Guarda Rural
Tiburcio Machado - Guarda-Rural

OBS: Esta lista pode estar incompleta

Os Soldados da Índia só foram “reabilitados” do ostracismo a que foram votados, após o 25 de Abril. Todos os prisioneiros de guerra, foram condecorados com a Medalha de Reconhecimento (*) em 03 de Maio de 2003, pelo então Ministro de Estado e da Defesa Nacional Dr. Paulo Portas.

Odivelas, 10 de Dezembro de 2011
José Marcelino Martins

(*) Sobre a Medalha de reconhecimento, criada em 27 de Dezembro de 2002, pode ver-se a descrição da mesma no Poste de Sexta-Feira, 30 de Outubro de 2009, Guiné 63/74 - P5184: Controvérsias (40): Carta Aberta ao Senhor Ministro da Defesa Nacional (José Martins)
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Notas de CV:

Vd. também Dossier Goa 1961 em Super Goa

Vd. último poste de José Martins de 14 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9200: Um novo Monumento aos que tombaram pela Pátria, aos que construíram uma terra (5) (José Martins)

Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9218: Efemérides (60): Como os acontecimentos de Goa, Damão e Diu foram vividos em Luanda (Antº Rosinha)