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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7809: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (66): Na Kontra Ka Kontra: 30.º episódio




1. Trigésimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 17 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


30º EPISÓDIO

Em determinado momento de um fim de tarde o rádio-telegrafista vem ter com o Alferes e entrega-lhe uma mensagem acabada de chegar do comando de Galomaro. Não é demais referir que com o rádio que se possuía, um AN GRC 9, só se conseguia comunicar com Galomaro de dia e só em Morse. Se por qualquer motivo, ataque, evacuação, etc. fosse necessário comunicar durante a noite com a sede da Companhia…

Depois de o Alferes ter ido buscar o livrinho de descodificação pôde ver o que a mensagem dizia: Ordem para no dia seguinte fazer uma operação de reabastecimento de munições à tabanca próxima de Cantacunda.

Recordando o que já foi dito. Na noite anterior o Alferes Magalhães, de acordo com ordens superiores, tinha combinado, com o comandante do pelotão de milícia João Sanhá, a ida neste dia a Cantacunda, tabanca em auto-defesa, em operação de reabastecimento de munições. Como sempre, essa conversa teve lugar no local habitual, ambos sentados no “bentem”, grande estrado de querintim, debaixo de um mangueiro bem no centro da tabanca. Não fossem as combinações guerreiras, o local de onde se via o relampejar ao longe e se ouviam os pios de som metálico dos morcegos frutívoros nos mangueiros, pareceria o centro do paraíso.

Neste dia, bem cedo, porque se pretendia regressar a Madina Xaquili para o almoço, segue a coluna. Os cerca de oito quilómetros até Cantacunda são percorridos sem percalços. O itinerário é considerado seguro pois os guerrilheiros do PAIGC só tinham mostrado actividade para Sul, ou seja, para os lados da tabanca abandonada de Padada, do rio Corubal e de Madina do Boé, entretanto abandonada pelas tropas portuguesas e agora “santuário” do PAIGC.


A coluna de reabastecimento à tabanca em auto defesa de Cantacunda.

Em Cantacunda entregaram-se os cunhetes de munições, tiraram-se as fotografias da praxe com o chefe da tabanca, iniciando-se de seguida o regresso a Madina Xaquili .


Na tabanca de Cantacunda a entregar os cunhetes de munições. O Alferes Magalhães sentado no “bentem” entre o Comandante da Milícia João Sanhá e o Chefe da tabanca.

Sensivelmente a meio do percurso, já com a descontracção do regresso, um forte rebentamento fez estremecer toda a picada bem como os corpos dos homens da coluna apeada, comandada pelo Alferes Miliciano Magalhães Faria. Uma nuvem em cogumelo, de fumo e pó avermelhado, eleva-se nos ares, e é vista também da tabanca de Madina Xaquili onde o Alferes Magalhães está sediado. Da mesma forma faz estremecer os corações de todos os habitantes da tabanca, em especial das mulheres dos milícias que integravam a coluna.

Visão aterradora a partir de Madina Xaquili, especialmente para as mulheres dos milícias que integravam a coluna.

Um elemento da coluna tinha accionado um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provocou ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros foi o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.

Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco pergunta ao João Sanhá:

- Quem foi atingido?

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7801: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (65): Na Kontra Ka Kontra: 29.º episódio

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7801: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (65): Na Kontra Ka Kontra: 29.º episódio




1. Vigésimo oitavo nono da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 16 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


29º EPISÓDIO

Estavam assim os dois graduados, descontraídos, quando para os lados de Padada, onde se situavam as sentinelas metidas na mata, se ouve um tiro aparentemente de arma automática.

Conforme as instruções que havia e que envolviam toda a população da tabanca, um dos militares foi percutir uma velha jante de viatura que se tinha pendurado numa árvore. Era o sinal de alarme para todos o pessoal ir para os abrigos que lhe estavam destinados. Como já havia abrigo para a população civil, aí se reuniram todas as mulheres, crianças e os poucos homens que não pertenciam à milícia. Deve aqui referir-se que a jante, neste caso, desempenhava as funções do “Grande Tambor” existente em quase todas as tabancas ou o característico tronco oco utilizado pelos balantas, maior que os utilizados nos batuques e por isso de som cavo. Todos eles eram tocados sempre que, por motivo importante, era necessário reunir toda a população.

Há dias já se tinha feito um ensaio dessa situação mas agora era a sério. Fora dos abrigos só se encontram os três graduados. Passaram-se uns minutos sem mais nada acontecer. Teria sido abatido um sentinela? Ou apenas o disparo de um deles? A quem? Os três interrogavam-se.

- João, é preciso mandar um grupo de homens ver o que passou com os sentinelas.

Para alívio de todos tão depressa foram como vieram. Aconteceu que um dos sentinelas viu ao seu alcance um porco do mato e, contrariamente a todas as regras, não perdeu a oportunidade de o abater. Claro que não se podia deixar passar este acto sem uma punição, embora pequena dada a pouca formação militar de todos os milícias. De acordo com o João, o milícia em questão integraria a próxima operação apesar de ter participado na anterior e, principalmente, teria que dividir o animal com a tropa metropolitana.

Dado o sinal para acabar a situação de alarme toda a tabanca voltou aos seus afazeres. O Furriel aproveita e vai deitar-se um pouco, tendo o nosso Alferes pedido ao João para mandar chamar o Samba, pois queria falar com ele. Queria resolver a situação da Asmau rapidamente.

Sentados os dois à mesa das refeições foi rápida a conversa. O Alferes disse que já tinha falado com o Adramane e que iam resolver já o assunto. Para abreviar e não haver constrangimentos de discurso pode dizer-se que o Samba deu ao Alferes o equivalente a meia vaca para ficar com a Asmau. Foi um montante muito inferior ao que tinha dispendido, mas o Alferes Magalhães resolve o seu problema e o Samba também.

Passam uns dias e o nosso Alferes, agora mais liberto, dedica-se além dos patrulhamentos, a colher mais informações sobre os hábitos de todos os habitantes da tabanca. Passa a andar mais com o João vendo o evoluir das suas lavras. Ao princípio achava um pouco estranho que os milícias trabalhassem para ele aparentemente de forma gratuita mas agora já sabe que era uma ancestral prerrogativa de qualquer chefe. Os chefes de tabanca e os régulos chegavam a ter lavras longe da sua morança mas perto das moranças dos súbditos, que tinham que as trabalhar para proveito do seu chefe. Aqui, com o Chefe da Milícia passava-se procedimento semelhante. Não será de esquecer que esses mesmos chefes asseguravam o bem estar dos homens que para ele trabalhavam, distribuindo -lhes os excedentes das produções.

Tinha visto a sementeira da mancarra e acompanha agora o crescimento das plantas. Assiste ao aconchegar de terra às mesmas. Repara nas plantações de mandioca com largos sulcos, para melhor drenarem as águas da chuva e também para protegerem as raízes, não ficando fora da terra nem ensopadas em água, quando chove muito. Fica a saber, contrariamente ao conhecimento que tinha, que a raiz da mandioca se pode comer crua, pois vê comê-la aos africanos. Acha muita piada às enxadas de madeira que usam para trabalhar a terra: Autênticas preciosidades da pré-história. Acaba por comprar algumas para levar para a Metrópole quando regressar de vez. Vê que o João guarda a mancarra descascada, destinada a semente, em grandes garrafões de vidro.

Uma das enxadas com que trabalhavam a terra.

Repara nas cabaças de recolher o vinho de palma com forma de grandes peras e sobretudo nos funis feitos com folhas de palmeira, para lá em cima da árvore conduzirem a seiva da incisão para a cabaça.

Em determinado momento de um fim de tarde o rádio-telegrafista vem ter com o Alferes e entrega-lhe uma mensagem acabada de chegar do comando de Galomaro. Não é demais referir que com o rádio que se possuía, um AN GRC 9, só se conseguia comunicar com Galomaro de dia e só em Morse. Se por qualquer motivo, ataque, evacuação, etc. fosse necessário comunicar durante a noite com a sede da Companhia…

Depois de o Alferes ter ido buscar o livrinho de descodificação pôde ver o que a mensagem dizia: Ordem para no dia seguinte fazer uma operação de reabastecimento de munições à tabanca próxima de Cantacunda.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7794: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (64): Na Kontra Ka Kontra: 28.º episódio

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7794: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (64): Na Kontra Ka Kontra: 28.º episódio




1. Vigésimo oitavo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 15 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


28º EPISÓDIO

Continuam a andar pela mata, pouco densa nessa zona, calcando o capim que já atingia quase um metro de altura. O Samba ao lado do Alferes nada dizia, continuando de olhos baixos.

- Samba, se eu me divorciasse da Asmau estavas na disposição de casar com ela?

Nesta altura, pela primeira vez, o milícia levanta a cabeça e encara o Alferes. Admite que a Asmau ainda pode ser sua.

- Mas meu “Alfero” não tenho “patacão” que chegue para dar ao pai dela.

- Já falei sobre isso com o Adramane e podes crer que de alguma forma se há-de resolver o nosso assunto. Vou pensar bem sobre isso e depois tornamos a falar.

O nosso Alferes estava decidido a resolver a situação. Chegado do patrulhamento, tomou outro banho, almoçou com os seus homens e “dormiu” o que pensava ser a última sesta com a Asmau.

À noite no “bentem” conversou com todo o pessoal mas sobretudo com o João, tendo com ele sido abordada a questão do divórcio.

Acabou por ir dormir e, como é costume dizer-se, dormir com um problema debaixo do travesseiro é meio caminho andado para o resolver.

Mais uma vez dormiu ao lado da sua mulher sem nada acontecer. Desta vez pesava o problema que de momento o afligia. Por um lado queria divorciar-se da Asmau, “passando-a” ao Samba, por outro não queria perder muito dinheiro com a “transacção”.

Deitado ia pensando no problema. Por mais que o tentasse resolver de outra maneira acabava sempre por chegar à mesma conclusão. Achando que teria que ser assim, acabou por adormecer ao lado da mulher africana mais espectacular da Guiné.

Acordou cedo, como era costume quando andava preocupado. Foi tomar o seu banho e dirigiu-se à mesa de refeições para tomar o pequeno almoço. Só estava presente o “legionário” que começava a preparar as coisas para o “café” do resto da tropa. O Alferes apenas saudou o cozinheiro com um bom dia. Não estava para grandes falas e o “legionário”, que estava mais ou menos a par da situação, respeitou o laconismo do seu chefe.

Passado pouco tempo o pessoal tinha tomado o pequeno almoço e estava reunido para se ir fazer o patrulhamento dessa manhã. Todos já sabiam quem desta vez ia. Os que iam num dia não iam no seguinte. Dos presentes fazia parte o Samba, apesar de no dia anterior ter participado. O Alferes sabia muito bem o porquê da sua presença. Quereria saber se o Alferes já tinha algo a dizer-lhe que lhe possibilitasse o juntar-se com a Asmau. Para não haver equívocos o Alferes dirige-se-lhe:

- Samba, como sabes, hoje não vais na coluna. Sobre a nossa conversa, podes ter a certeza que ainda hoje falo contigo e tudo se há-de resolver pelo melhor. Podes ir.

O nosso Alferes já sabia como ia resolver o assunto mas queria assentar bem as ideias. Além de não querer falhar em algum procedimento, não queria, acima de tudo, que algum dos intervenientes saísse “ferido”.

Foram fazer o patrulhamento. Os guerrilheiros ainda não tinham andado por aquelas bandas. O capim era agora um óptimo indicativo da presença humana. A uns três quilómetros de Madina Xaquili, ao passarem junto da picada para Padada no local onde esta cruzava uma linha de água, o alferes verifica que ali seria um óptimo local para montar uma emboscada se se viessem a notar intenções de aproximação por parte do PAIGC. Era um local em que, a partir de uma zona arborizada e protegida, se podia “varrer” uma larga área do outro lado da linha de água. Podia ter-se perfeitamente debaixo de fogo um “bigrupo” inteiro, embora se soubesse que eram mandados à frente um ou dois elementos incaracterizados com funções de reconhecimento.

Regressaram à hora de almoço sem terem, mais uma vez, detectado quaisquer vestígios. Todo o pessoal se sentia aliviado com isso. Depois de almoço o nosso Alferes não vai dormir a sesta. A Asmau já não o motivava como antes e também queria trocar algumas impressões com o Furriel. Fica pois à conversa com ele à medida que iam esgotando o resto de uma garrafa de bagaceira e fumando mais que o costume, sobretudo o Alferes.

Estavam assim os dois graduados, descontraídos, quando para os lados de Padada, onde se situavam as sentinelas metidas na mata, se ouve um tiro aparentemente de arma automática.

Conforme as instruções que havia e que envolviam toda a população da tabanca, um dos militares foi percutir uma velha jante de viatura que se tinha pendurado numa árvore. Era o sinal de alarme para todos o pessoal ir para os abrigos que lhe estavam destinados. Como já havia abrigo para a população civil, aí se reuniram todas as mulheres, crianças e os poucos homens que não pertenciam à milícia. Deve aqui referir-se que a jante, neste caso, desempenhava as funções do “Grande Tambor” existente em quase todas as tabancas ou o característico tronco oco utilizado pelos balantas, maior que os utilizados nos batuques e por isso de som cavo. Todos eles eram tocados sempre que, por motivo importante, era necessário reunir toda a população.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7787: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (63): Na Kontra Ka Kontra: 27.º episódio

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7787: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (63): Na Kontra Ka Kontra: 27.º episódio




1. Vigésimo sétimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 14 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


27º EPISÓDIO

Praticamente o Alferes e a sua mulher só se encontram na cama. Será pouco para um relacionamento saudável.

Aos poucos começa a haver desinteresse mútuo na cama. Parece repetir-se o que se tinha passando com o João Sanhá e a sua primeira mulher Kadidja, pois o João só comia a comida feita pela outra mulher, a Mariama.

Os dias vão passando e o desinteresse de um pelo outro acentua-se. Ao fim e ao cabo tudo o que aconteceu talvez não passasse de uma fantasia do Alferes Magalhães que, depois de realizada, nada mais interessava.

Passou um mês do dia do casamento. A situação estava a tornar-se insustentável e o nosso Alferes começa a pensar como há-de sair da situação em que se tinha metido. Tinha agora plena consciência dos problemas que se podem criar com a diferença de culturas. Também aprendeu que o amor não se pode reduzir à cama.

Apesar de o Alferes Magalhães ter os patrulhamentos diários que lhe ocupam muito do seu tempo e até certo ponto o distraem, não deixa de pensar na sua situação de vida com a Asmau e na forma de a resolver. Como tem o Furriel que lhe resolve quase todos os problemas de comando, tem mais tempo para conversar com o João e o resto da população da tabanca.

Os autênticos concertos de kora dados pelo Braima, à noite, no “bentem”, ajudam à distracção de todos e especialmente do Alferes. Mas tudo isso não basta, o seu grande problema actual mantém-se.

Foi nessas conversas nocturnas que vem a saber que o milícia Samba não se importaria de ficar com a Asmau se o Alferes se divorciasse. Subsistia porém o problema de o Samba não ter dinheiro para a “transacção”.

Poderia haver um divórcio formal, passando pelo pai da Asmau em que este devolveria o dote ao casal, em partes iguais, ou o Samba poderia entender-se com o Alferes sobre o pagamento que lhe teria que fazer para ficar com a Asmau.

O Alferes fala com o Adramane e ambos concordam em que não haveria divórcio formal, ficando o Alferes com a liberdade de “negociar” com o Samba.

No patrulhamento do dia seguinte saem, como costume em fila indiana, afastados uns dos outros seis ou sete metros, conforme as instruções do Alferes, seguindo atrás deste o seu “ordenança” o Dionildo. Logo ao entrar na mata o Alferes dirige-se ao Dionildo:

- Desta vez quero que troques a tua posição com o Samba. Vais lá à frente e diz-lhe para ele vir para aqui.

- F… meu Alferes, fui despromovido?

- Não penses que te livras assim de mim. Só quero conversar com o Samba e depois volta tudo ao mesmo.

Depressa a ordem foi cumprida. Quando o Samba ia a passar pelo Alferes para se posicionar à distância combinada, este diz-lhe para se colocar a seu lado pois queria conversar com ele. Continuando a andar ao lado do Alferes o Samba não tira os olhos do chão. Em voz baixa como a dupla situação exigia, o Alferes vai-o pondo à vontade falando de algumas banalidades e de seguida passa a abordar o assunto que diz respeito aos dois.

- Samba, podes crer que ao chegar aqui a Madina Xaquili, se soubesse que tu gostavas da Asmau e só não tinhas casado com ela por não teres dinheiro para dar ao seu pai, eu não teria feito o que fiz. Gostei muito da Asmau, mas agora as coisas já não estão a correr bem entre nós.

Continuam a andar pela mata, pouco densa nessa zona, calcando o capim que já atingia quase um metro de altura. O Samba ao lado do Alferes nada dizia, continuando de olhos baixos.

- Samba, se eu me divorciasse da Asmau estavas na disposição de casar com ela?

Nesta altura, pela primeira vez, o milícia levanta a cabeça e encara o Alferes. Admite que a Asmau ainda pode ser sua.

- Mas meu “Alfero” não tenho “patacão” que chegue para dar ao pai dela.

- Já falei sobre isso com o Adramane e podes crer que de alguma forma se há-de resolver o nosso assunto. Vou pensar bem sobre isso e depois tornamos a falar.

O nosso Alferes estava decidido a resolver a situação. Chegado do patrulhamento, tomou outro banho, almoçou com os seus homens e “dormiu” o que pensava ser a última sesta com a Asmau.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7779: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (62): Na Kontra Ka Kontra: 26.º episódio

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7779: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (62): Na Kontra Ka Kontra: 26.º episódio




1. Vigésimo sexto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


26º EPISÓDIO

Antes o nosso Alferes ainda vai à mesa onde já estavam os seus homens à espera que o “legionário”, o cozinheiro, lhes servisse o almoço. O Dionildo, com um c… f… pelo meio, não deixou de lhe perguntar se tinha dormido bem. Os outros, já meios desinibidos, não deixaram também de “brincar” com o seu Alferes. Este quando já não estava a achar graça à brincadeira, pega em duas cervejas que estavam embrulhadas com um pano molhado para as arrefecer e dirige-se para o pé da sua amada.

Ambos sentados numa esteira à porta da morança iniciam a sua primeira refeição. Com a primeira colherada de arroz que o Alferes mete à boca faz uma careta, sorri para a Asmau, engole-o, levanta-se, vai ter com o “legionário” e pouco depois está novamente sentado para continuar a refeição.

O nosso Alferes tinha ido buscar um pouco de sal pois, apesar de já saber que os africanos da tabanca cozinhavam o arroz sem sal, não lhe tinha ocorrido que a Asmau o pudesse cozinhar assim. Convencer a Asmau a comer com sal seria uma violência idêntica à de ele próprio passar a comer sem o mesmo. Não foi difícil ultrapassar esta “pequena” divergência. Para todos os problemas que antevira antes do casamento tinha tentado achar a resolução. Houve, no entanto, o “tal pormenor” de que se tinha esquecido: Os hábitos alimentares que eram muito diferentes. Passar a cozinhar o arroz separado, ou um pouco de sal dissolvido em água quente para aspergir na “bianda” do Alferes resolveria o “pequeno” problema.

Era sabido que os africanos da tabanca praticamente só comiam arroz para acompanhar o que quer que fosse, que diga-se, nunca era muito. Muitas vezes o arroz era só acompanhado com um molho à base de folhas de certas plantas. Carne ou peixe era só uma vez por festa.

Nos dias seguintes o Alferes Magalhães, que tinha à sua disposição os géneros alimentares da sua tropa, consegue com algum custo e a ajuda do cozinheiro “legionário”, que a Asmau cozinhe outros pratos, sem ser arroz. Ela põe todo o seu empenho na aprendizagem, mas nem sempre as coisas saem perfeitas. A diferença de culturas vinha ao de cima. O nosso Alferes ia suportando tudo por amor à sua bela Asmau.

O retorno aos patrulhamentos alivia um pouco o Alferes da tensão ligada à confecção da comida pela Asmau. Depois de uma manhã cansativa era sempre bom tê-la à espera mesmo que a comida não estivesse uma perfeição. E com uma “boa sesta” tudo se esquecia.

Os dias vão passando. Os patrulhamentos cada vez são mais profundos na mata. Vestígios da guerrilha, nada. O nosso Alferes teria todos os motivos para se sentir feliz e satisfeito com aquela vida, mas a questão da comida feita pela Asmau agudiza-se dia a dia. Era uma sobrecarga para a Asmau e insatisfação para o Alferes.

Passam-se três semanas nesta situação e o Alferes depois de muito pensar achou que tinha encontrado a solução para o problema da comida. Depois de conversar com a sua mulher, decide que ela fará comida só para ela ou irá comer com os pais e ele passará a comer com os seus homens. De imediato parece que tudo isso resulta, mas não será bem assim.

Praticamente o Alferes e a sua mulher só se encontram na cama. Será pouco para um relacionamento saudável.

Aos poucos começa a haver desinteresse mútuo na cama. Parece repetir-se o que se tinha passando com o João Sanhá e a sua primeira mulher Kadidja, pois o João só comia a comida feita pela outra mulher, a Mariama.

Os dias vão passando e o desinteresse de um pelo outro acentua-se. Ao fim e ao cabo tudo o que aconteceu talvez não passasse de uma fantasia do Alferes Magalhães que, depois de realizada, nada mais interessava.

Passou um mês do dia do casamento. A situação estava a tornar-se insustentável e o nosso Alferes começa a pensar como há-de sair da situação em que se tinha metido. Tinha agora plena consciência dos problemas que se podem criar com a diferença de culturas. Também aprendeu que o amor não se pode reduzir à cama.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7763: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (61): Na Kontra Ka Kontra: 25.º episódio

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7763: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (61): Na Kontra Ka Kontra: 25.º episódio




1. Vigésimo quinto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 10 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


25º EPISÓDIO

Não se sabe se houve mais dizeres em fula naquela noite. Cansados acabaram por adormecer.

Ao acordar pressentem que há alguém junto da entrada da morança. A ex-bajuda continuou deitada e o agora o seu homem prepara-se para ir tomar um banho à fonte. Pega na toalha e no sabão, abre a porta e sai. Acto contínuo três ou quatro “mulheres-grandes”, das que estavam à porta, precipitam-se para dentro da morança. O Alferes que já se afastava em direcção à fonte pára a fim de presenciar o que se estava a passar.

Não demorou muito que as mulheres saíssem da morança do Alferes e da agora sua mulher, Asmau. Uma delas trazia na mão um pano muito branco que foi agitando de modo a que todos vissem. Claro, o Alferes não percebeu de imediato o que se estava a passar. Como se seguiu uma algazarra por parte do pessoal que se ia apercebendo do pano branco que a mulher ia agitando, teve que perguntar o porquê de tudo daquilo.

O Alferes não percebeu logo o alcance da primeira explicação: As mulheres tinham ido passar o pano “pela Asmau” e como vinha com manchas vermelhas podia concluir-se que efectivamente ela tinha ido para o casamento com o “cabaço”.

Só mais tarde, em conversas com o João é que ficou a saber tudo. Primeiro era uma questão de honra para os pais da Asmau terem-na entregue para o casamento ainda virgem, depois era sabido que naqueles confins ainda se fazia questão disso. O nosso Alferes, apesar de saber pelo seu amigo Ibraim de Bafatá que aí as bajudas nem sempre se casavam com cabaço, aqui, como já tinha ouvido ao João, o pessoal queria assim.

Também ficou a saber que era importante para os pais da bajuda, constatarem a consumação do casamento, pois no caso de um hipotético divórcio isso era muito importante: Num divórcio sem consumação, ou se a bajuda já não levar cabaço, o noivo pode devolver a mulher aos pais recebendo o dote de volta. Num divórcio com consumação o homem entrega a mulher aos pais sendo o dote devolvido, metade para o homem e a outra metade para a mulher.

O Alferes compreendeu todas as explicações sobre o assunto. Não deixou de considerar um tanto degradante para a mulher a cena do pano branco, embora se saiba que em muitos locais do chamado mundo ocidental foi prática não muito distante, exporem-se os lençóis da noite de núpcias, com os mesmos fins. Não deixou porém de pensar no que é o acto mais aviltante para as mulheres africanas, praticado em bajudinhas de dez, doze anos: O fanado. Uma mulher grande calcando com os joelhos os braços da bajudinha, outras segurando-lhe cada perna mantendo-as afastadas e uma outra com um qualquer objecto cortante faz-lhe a ablação de tudo o que mais tarde poderia proporcionar prazer sexual à bajuda. Teve sorte a bajuda Asmau e também o nosso Alferes.

Logo no primeiro dia após o casamento, os dois pombinhos passam a comer na sua morança. Ainda tinham restos de carne pelo que a Asmau se limitou a fazer um pote de arroz. O aspecto do arroz fumegante era óptimo. O nosso Alferes conseguiu sem grande dificuldade que a sua mulher passasse a comer o arroz com uma colher e não à mão, como era costume com todo o pessoal da tabanca. Comerem do mesmo tacho, como também era habitual, não afligia o Alferes, pois se tratava da sua mulher com quem agora tinha todas as intimidades.

Antes o nosso Alferes ainda vai à mesa onde já estavam os seus homens à espera que o “legionário”, o cozinheiro, lhes servisse o almoço. O Dionildo, com um c… f… pelo meio, não deixou de lhe perguntar se tinha dormido bem. Os outros, já meios desinibidos, não deixaram também de “brincar” com o seu Alferes. Este quando já não estava a achar graça à brincadeira, pega em duas cervejas que estavam embrulhadas com um pano molhado para as arrefecer e dirige-se para o pé da sua amada.

Ambos sentados numa esteira à porta da morança iniciam a sua primeira refeição. Com a primeira colherada de arroz que o Alferes mete à boca faz uma careta, sorri para a Asmau, engole-o, levanta-se, vai ter com o “legionário” e pouco depois está novamente sentado para continuar a refeição.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7755: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (60): Na Kontra Ka Kontra: 24.º episódio

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7755: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (60): Na Kontra Ka Kontra: 24.º episódio




1. Vigésimo quarto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 9 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


24º EPISÓDIO

O nosso Alferes, embora já esteja liberto do acordo com o Adramane, ainda não se sente muito à vontade com a, agora, sua mulher. De qualquer modo conversaram mais, chegam a abraçar-se, beijam-se.

Está a chegar a noite. Os dois vão comer mais alguma coisa e antes de se recolherem são avisados que precisam da sua presença no “bentem”. O Braima, músico da tabanca, queria dedicar e oferecer ao Alferes uma composição musical. Não faz da música e do canto a sua profissão, ou seja não se considerando “jideu” não ganha a vida à custa de loas dedicadas a “homens grandes” importantes, que vaidosamente lhes pagam. O momento é inesquecível para o nosso Alferes que, comovido às lágrimas, muito agradece. Não tarda que, finalmente, o Alferes leve a Asmau para a sua morança.

A morança do Alferes que praticamente só tinha a sua cama, encontra-se agora atulhada com todas as prendas recebidas, mais a cama da Asmau. Tudo isso iria ser necessário para a vida do casal.

O Alferes ligou o seu pequeno candeeiro a pilhas e os dois foram ordenando melhor tudo aquilo que o pessoal para lá tinha levado. Com todos os pertences no sítio, o Alferes diz à ainda sua bajuda, que era melhor deitarem-se, perguntando ao mesmo tempo se ela queria que ele apagasse a luz para se despirem. Ela disse que não era necessário e foram tirando a roupa que não era muita, com aquele clima. O Alferes tirando a sua “sabadora” ficou quase nu mas, para seu espanto, verifica que ela tem vários panos para tirar, um sempre mais curto que o anterior, e não apenas um como ele pensava. Afinal, por baixo do habitual pano comprido, as mulheres africanas usam outros. É um autêntico espectáculo extra para o Alferes Magalhães, contando que tem ali a mulher africana mais bonita que alguma vez tinha visto na Guiné.

Apagado o candeeiro deitam-se cada um em sua cama. O Alferes tem a Asmau à sua esquerda. Vão trocando algumas palavras. Havia uma coisa que atormentava o Alferes, saber se a Asmau tinha ido ou não ao fanado. O João achava que possivelmente não. Se ele queria ter prazer, muito prazer, com a sua linda bajuda, o mesmo queria que acontecesse com ela. Para acabar de vez com a terrível incerteza, no meio da conversa, faz-lhe a pergunta. Resposta negativa e total alívio para o Alferes. Poderia proporcionar à Asmau prazer idêntico ao que ele queria ter.

Vão conversando, cada um em sua cama. O Alferes com a sua mão esquerda vai afagando, primeiro um braço dela, depois o ventre. Sente o umbigo metido para dentro, contrariamente a muitas africanas que o têm saliente, por mau tratamento à nascença. Mais um degrau de satisfação por isso. Estende o braço e tenta agarrar o braço esquerdo dela. Ao fazê-lo não deixa de sentir os seu dois seios duros com os mamilos a resvalarem nos pelos do seu próprio braço. Faz-lhe festas na cara, desce para os ombros, os seios, seios duros. Aquela mão percorre todo o corpo da ainda bajuda. Embora já tivesse quase a certeza, não deixou de verificar que realmente ela não tinha ido ao fanado e aí, pela primeira vez ela mexeu-se. Algo se passava e o Alferes sabia muito bem o quê. Continuou. Rodando agora na sua cama, com a mão direita foi sentindo a pele macia dos seios sentindo os mamilos entumecidos. Ela sem nada dizer continuava a mexer-se, a contorcer-se. E quando “a palhota já estava quase a pegar fogo” ele enlaça-a, puxa-a para a sua cama. Não demora muito até que ela, até aí calada, solte uma qualquer expressão em fula, não compreendida, mas adivinhada por ele, e se deixe cair para o lado.

Não se sabe se houve mais dizeres em fula naquela noite. Cansados acabaram por adormecer.

Ao acordar pressentem que há alguém junto da entrada da morança. A ex-bajuda continuou deitada e o agora o seu homem prepara-se para ir tomar um banho à fonte. Pega na toalha e no sabão, abre a porta e sai. Acto contínuo três ou quatro “mulheres-grandes”, das que estavam à porta, precipitam-se para dentro da morança. O Alferes que já se afastava em direcção à fonte pára a fim de presenciar o que se estava a passar.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7748: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (59): Na Kontra Ka Kontra: 23.º episódio

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7748: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (59): Na Kontra Ka Kontra: 23.º episódio




1. Vigésimo terceiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 8 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


23º EPISÓDIO

Nos dias seguintes o Alferes continua a fazer os patrulhamentos diários à volta da tabanca, cada vez mais longe. O não aparecimento de vestígios do inimigo é um bom presságio para o casamento. Durante os percursos vai sempre pensando como resolver os problemas que daí podiam resultar. Decide que no próprio dia reforçará as sentinelas metidas na mata. Morança tinha a sua, que chegava perfeitamente. É preciso arranjar uma cama para colocar ao lado da sua onde se deitará a Asmau… para dormir. Com toda a certeza ela trará a sua. Passa-lhe pela cabeça a ideia de continuar com a mesma lavadeira, que além de lavar a sua roupa lavaria também a da sua princesa, pois princesas não lavam roupa. Rapidamente chega à conclusão que seria uma péssima ideia colocar a Asmau sem nada que fazer. A própria deverá querer, à boa maneira africana, tratar da roupa do seu homem.

Tudo parece que se está a resolver de forma simples para o nosso Alferes. Está a esquecer-se dum “pequeno pormenor” que só detectará depois do dia do casamento.

1969. Princípios de Julho. Dia marcado para o casamento. O Alferes não deixou de dormir um pouco em sobressalto, como qualquer outro noivo. Com a noiva possivelmente ter-se-ia passado o mesmo.

Levanta-se, “enfia” uns calções e as botas militares que, juntamente com o ar ensonado lhe conferem um aspecto nada próprio de um noivo. É sua intenção ir direito à fonte tomar o seu primeiro banho. Ao sair da morança começa a achar que já não deve ser assim tão cedo pois há muito pessoal por ali, o que não era habitual. Também nota que o pessoal africano, sobretudo as mulheres, estão vestidas com panos mais garridos. Cheira a carne assada. Cai em si, havia festa na tabanca. Ia haver casamento, o seu. Tão rapidamente toma banho, como se veste a preceito. Enverga pela primeira vez a “sabadora” encomendada aos milícias que tinham ido fazer compras ao “Regala” em Galomaro. Também pela primeira vez se apercebe da frescura que aquela roupa proporciona, contrariamente às vestes europeias.

Depois do café não pôde deixar de deambular pela tabanca recebendo e retribuindo cumprimentos. Está algo emocionado por se sentir integrado naquela comunidade. Não deixou de passar pela morança do Adramane. A Asmau era o seu objectivo mas ela não apareceu ou não quis aparecer, o que não incomodou o Alferes pois já sabe que é francamente correspondido.

Fora da morança vê o que lhe parece ser o seu recheio posto a arejar. Estará ali tudo que se pode ter numa casa africana: Muitas meias cabaças, tachos, panelas, uma arca aberta com roupas e panos, aparentemente a tomar ar, algumas garrafas com bebidas, mais panos, um gorro de lã, vários embrulhos.

O gorro que deram de prenda ao Alferes.

Está o Alferes a contemplar aquele estandarete quando um dos seus homens se lhe dirige:

- “Manga” de prendas, meu Alferes.

Só aí é que ele compreendeu a situação. Eram as prendas para o casal que, como é costume, se expõem à porta da morança da noiva para todo o pessoal ver.

Conversa com um, conversa com outro, depressa se aproxima a hora do almoço melhorado, que irá ser precedido da cerimónia propriamente dita, o casamento. Em Madina Xaquili, tabanca pequena, não há mesquita nem “imami” cabe pois ao Chefe de Tabanca, Adramane, muçulmano convicto, realizar a cerimónia. Quando todo o pessoal, excepto as sentinelas, se reúne ao pé da sua morança dá início à cerimónia, palavras não compreensíveis para os europeus não muçulmanos. Depois de ter lido umas passagens do Corão, porventura semelhantes às de um casamento católico, vira-se para o casal, à sua frente, e declara-os casados.

Todos foram desejar felicidades ao casal e o pessoal africano vai-se dispersando em grupos entoando cantares nas línguas das suas etnias, totalmente incompreensíveis para o Alferes e o seu pessoal metropolitano. A alegria era muita e sincera.

A seguir todo o pessoal vai comer e beber. Há duas mesas cheias de perfeitas iguarias, para aquele fim de mundo. A da noiva, junto da morança dos pais e a do noivo, a mesma onde comia todos os dias. Em ambas há de tudo à fartura: Cabrito assado, arroz branco, “siga” de galinha com óleo de palma, caldo de mancarra, diversos bolos à base de mancarra, de confecção local e, pasme-se, há dois bolos perfeitamente europeus, de aspecto e sabor, um de laranja e outro de chocolate. É uma surpresa do João. Tinha mandado comprar no comerciante “Regala” em Galomaro dois bolos enlatados que depois de se retirarem da lata parecem acabados de fazer.

Foi bebedeira para uns, festa para todos, excepto para o milícia Samba que, depois de comer se retirou. O Samba sempre tinha gostado da Asmau só que ainda não tinha conseguido o dinheiro suficiente para dar ao pai dela. Felicidade de uns, infelicidade de outros.

O nosso Alferes, embora já esteja liberto do acordo com o Adramane, ainda não se sente muito à vontade com a, agora, sua mulher. De qualquer modo conversaram mais, chegam a abraçar-se, beijam-se.

Está a chegar a noite. Os dois vão comer mais alguma coisa e antes de se recolherem são avisados que precisam da sua presença no “bentem”. O Braima, músico da tabanca, queria dedicar e oferecer ao Alferes uma composição musical. Não faz da música e do canto a sua profissão, ou seja não se considerando “jideu” não ganha a vida à custa de loas dedicadas a “homens grandes” importantes, que vaidosamente lhes pagam. O momento é inesquecível para o nosso Alferes que, comovido às lágrimas, muito agradece. Não tarda que, finalmente, o Alferes leve a Asmau para a sua morança.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de Guiné 63/74 - P7743: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (58): Na Kontra Ka Kontra: 22.º episódio

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7743: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (58): Na Kontra Ka Kontra: 22.º episódio




1. Vigésimo segundo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 7 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


22º EPISÓDIO

Esta pequena operação decorreu sem a detecção de qualquer indício o que lhe aumentou a sensação de bem estar. O nosso Alferes, ao passar pelas sentinelas que estavam na mata para os lados de Padada aproveitou para as posicionar melhor, no sentido de terem um melhor campo de visão através da mata, que por ali era bastante aberta.

Chega para o almoço, dorme uma sesta, como já não acontecia há dias e ainda procura ver a Asmau para saber como ela tinha reagido ao “pedido de casamento”. Não demora a vê-la passar por entre as moranças. Dirige-se ao seu encontro.

O Alferes ia falar para a sua bajuda mas não foi necessário. O seu olhar e o seu sorriso diziam tudo o que era preciso dizer. Como muitas vezes acontece nestes casamentos arranjados, a noiva não gostando do noivo, embora aceitando o que lhe impõem, nunca olharia olhos nos olhos como agora a Asmau faz.

Neste caso era evidente o acordo da bajuda. Perante aquele sim, sem nada dizer, o nosso Alferes vai parar às nuvens.

Para tudo isto acontecer deve ter contribuído muito o facto de a Asmau ser um pouco evoluída. Saiu da tabanca para ir à escola, contrariamente à maioria das mulheres que nunca saíram de Madina Xaquili. Tinha ido várias vezes com o pai a Bafata. Tinha pois contactado com brancos o que a levaria a não excluir a hipótese de um dia um homem branco a querer. Aparecer assim um militar e logo oficial, era para ela como encontrar um príncipe encantado.

Também a ele, ela lhe parece uma princesa. Já se tinha imaginado na Metrópole, depois de terminada a comissão, acompanhado de uma mulher de fazer inveja a muitas brancas. O seu amor pela Asmau é puro e sincero.

Estão por largos momentos de olhares cruzados, sem nada dizerem. Desta vez ela não vem com o peito descoberto. Talvez já esteja a assumir a condição de “prometida” ao Alferes. Traz uma espécie de blusa, curta, sem mangas mas totalmente aberta à frente. Conforme se vai mexendo os seios ora aparecem ora se escondem como que de um jogo de sedução se tratasse, mas não, tudo isso nela é de uma naturalidade angelical.

O Alferes, tal como da primeira vez que esteve com ela, passa-lhe a mão ao longo do braço. Chegado ao pulso agarrou-lho pensando que ela se poderia querer afastar como da outra vez. Repara que não reage, antes com a outra mão agarra também a mão do Alferes. Mais uns momentos se passam em silêncio. Os olhares dizem tudo.

Acabam por conversar assim enlaçados, como se o mundo tivesse acabado. Naquele momento não há tabanca, não há tropa, muito menos guerrilha. Num acto cavalheiresco o Alferes pergunta-lhe se o casamento poderá ser daí a uns dias. Ela diz que não pode ser antes de uns cinco dias, o que o Alferes facilmente compreende e aceita.

Ele ainda lhe diz que a quer fazer muito feliz e que espera ir brevemente para Bafata levando-a com ele. Que lá terão uma casa só para eles. E mais:

- Asmau, quando acabar a minha comissão vais comigo para a metrópole. Vais ver coisas que nunca viste.

Por via do acordo pré-nupcial o Alferes sabe que não pode “avançar” mais, pelo que é melhor afastar-se dela rapidamente com medo de não conseguir conter-se. Apreciando novamente a pele sedosa, agora dos dois braços, conseguiu num acto de estoicismo, de militar que era, afastar-se ao mesmo tempo que lhe diz:

- Asmau, vamos ter muito tempo para conversar sobre o nosso futuro. Agora, deves ter coisas a tratar, assim como eu.

Nos dias seguintes o Alferes continua a fazer os patrulhamentos diários à volta da tabanca, cada vez mais longe. O não aparecimento de vestígios do inimigo é um bom presságio para o casamento. Durante os percursos vai sempre pensando como resolver os problemas que daí podiam resultar. Decide que no próprio dia reforçará as sentinelas metidas na mata. Morança tinha a sua, que chegava perfeitamente. É preciso arranjar uma cama para colocar ao lado da sua onde se deitará a Asmau… para dormir. Com toda a certeza ela trará a sua. Passa-lhe pela cabeça a ideia de continuar com a mesma lavadeira, que além de lavar a sua roupa lavaria também a da sua princesa, pois princesas não lavam roupa. Rapidamente chega à conclusão que seria uma péssima ideia colocar a Asmau sem nada que fazer. A própria deverá querer, à boa maneira africana, tratar da roupa do seu homem.

Durante outro patrulhamento.

Tudo parece que se está a resolver de forma simples para o nosso Alferes. Está a esquecer-se dum “pequeno pormenor” que só detectará depois do dia do casamento.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7739: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (57): Na Kontra Ka Kontra: 21.º episódio

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7739: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (57): Na Kontra Ka Kontra: 21.º episódio




1. Vigésimo primeiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 6 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


21º EPISÓDIO

Quase todo o pessoal continuou por algum tempo à mesa, comentando a visita do Comandante de Bafata. Todos manifestaram a ideia que o tinham achado um homem duro, distante e até ríspido de mais para com o Alferes. Este explicou que era a maneira de ser do Coronel mas quem o conhecia bem, como ele próprio, o achava cordial e principalmente um homem justo, com quem se podia contar.

Todos continuam a conversar menos o Alferes que se cala ficando pensativo. Passados poucos minutos levanta-se e sem sequer se despedir, contrariamente aos seus hábitos, dirige-se à sua morança. Entra, sai, vai ao “quarto de banho”, sai, vai carreiro abaixo em direcção à fonte, pára, volta para trás, entra novamente na sua morança, tira a roupa e deita-se.

Efectivamente está nervoso. O adiamento da conversa com o pai da Asmau deixa-o assim. Sabe que também os africanos se recolhem nas horas de maior calor, pois no princípio da época das chuvas, a temperatura chega muitas vezes aos quarenta e cinco graus à sombra. Um verdadeiro inferno. Só quando chove, o que acontece quase todos os dias, se sente um certo alívio. Tem que rapidamente falar com o Chefe de Tabanca mas terá que esperar pelo fim da tarde.

Tenta dormir mas não consegue. Deixa passar umas três horas. Apesar de o pai da Asmau já saber do pedido, o Alferes não o quer incomodar pois ele ainda pode estar a dormir. Também não fez falta ao seu pessoal pois o Furriel dirige os trabalhos.

Levanta-se, passa um pouco de água pela cara, veste-se e não espera mais tempo. Como se de um acto de guerra se tratasse, resolve “atacar”. Com o pacote de cola que o João lhe tinha emprestado, desta vez não vai a eito, feito autómato, nem tão pouco pelo carreiro mais directo para a morança do Adramane. Vai em zig-zag pelos carreiros de forma a demorar mais tempo. Nunca era demais pensar bem no que iria dizer ao pai da Asmau. Embora já se tivesse aconselhado com o João e este lhe tivesse dito que se o pai de uma bajuda aceitar o casamento, tudo se resolve com “um toma lá dá cá”, também lhe tinha dito que faz parte conversarem durante bastante tempo para dar ideia a quem está cá fora, que o “negócio” foi difícil. Desta vez até iria ser. Chegado ao seu destino chama como da vez anterior:

- Adramane, Adramane.

O Chefe de Tabanca vem à porta e como já sabe ao que o Alferes vem, manda-o entrar.

Não se sabendo o que se passou dentro da morança, é fácil imaginar, tendo em conta a expressão de satisfação do Alferes, ao sair.

Mais tarde, já sentados à mesa para o jantar, o Alferes Magalhães comunica que se vai casar com a bajuda Asmau e que o casamento será daí a três ou quatro dias, o tempo necessário para se preparar a festa. Irá haver cabritos e galinhas para todos tirarem a barriga de misérias. Para o nosso Alferes não só a barriga mas também o… coração. Foram-se levantando da mesa, ficando só o Furriel e o Alferes. É então que este tem o desabafo:

- Quero dizer-lhe que não foi difícil conseguir a Asmau mas, contrariamente ao que me tinha dito o João, que com uma vaca e uns cabritos já se conseguia uma bajuda, neste caso o pai não “abriu mão” dela a não ser por duas vacas mais os cabritos. Claro que não me custou a desembolsar o dobro do que pensava. Mal ele sabia que eu estava disposto a dar três ou mais vacas. O Adramane não sabe o que ali tem, ou só sabe em parte.

- Só lhe posso dar os parabéns, meu Alferes.

No dia seguinte não teve que se preocupar muito com os preparativos da festa. Apesar de também lhe competir a sua parte, como ali é costume, os pais da Asmau, compreendendo a situação, assumem quase tudo. Cai na realidade. Pensa que para além da alegria que sente por ir desposar aquela maravilhosa bajuda, também está em guerra e não pode agora permitir que o PAIGC vá ofuscar a sua felicidade.

Estar com a Asmau a sós não pode, por força do acordo feito com o pai dela. Assim, e depois de escolher um grupo de homens, brancos e africanos como era costume, vai fazer um patrulhamento de uns quilómetros à volta da tabanca. Além de conhecer melhor as imediações, a principal razão era ver se eram detectados vestígios da passagem de algum elemento da guerrilha.

A saída para mais um patrulhamento.

Esta pequena operação decorreu sem a detecção de qualquer indício o que lhe aumentou a sensação de bem estar. O nosso Alferes, ao passar pelas sentinelas que estavam na mata para os lados de Padada aproveitou para as posicionar melhor, no sentido de terem um melhor campo de visão através da mata, que por ali era bastante aberta.

Chega para o almoço, dorme uma sesta, como já não acontecia há dias e ainda procura ver a Asmau para saber como ela tinha reagido ao “pedido de casamento”. Não demora a vê-la passar por entre as moranças. Dirige-se ao seu encontro.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7719: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (56): Na Kontra Ka Kontra: 20.º episódio

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7719: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (56): Na Kontra Ka Kontra: 20.º episódio




1. Vigésimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 3 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


20º EPISÓDIO

Ao fim de algum tempo chegou a uma conclusão: Pura e simplesmente não havia estratégia, ou melhor, o que havia a fazer não era mais do que rapidamente ir falar com o Adramane, perguntar-lhe se podia casar com a filha e quanto queria de “dote”, saindo da incerteza que o andava a consumir.

Num ímpeto, levanta-se e olhando na direcção da morança do Chefe de Tabanca, como que estabelece o azimute para rapidamente lá chegar. Não chega a dar meia dúzia de passos. Para, estático, qual cão da pradaria pressentindo o perigo.

Com algumas ordens dadas em alta voz aos seus camaradas que estavam mais perto, inflecte o sentido da marcha que tinha iniciado e dirige-se a correr para a sua morança. Iria buscar a G3 e colocar o cinturão onde tinha sempre colocados quatro carregadores de munições e três granadas?

Não, não ia, ia simplesmente pôr a boina. O nosso Alferes tinha ouvido ao longe o ruído inconfundível dos rotores de um helicóptero. Ia pois completar o fardamento para receber os superiores que ali deviam vir. O Coronel, Comandante do Agrupamento de Bafata, não tinha héli à disposição pelo que o mais certo era tratar-se do Comandante Chefe de Bissau e com este era preciso ter mais cuidado. Ou então poderiam ser os dois, como muitas vezes acontecia.

Ainda o héli se não via e o Alferes já está no meio da tabanca a dar as últimas instruções ao pessoal no sentido de se apresentarem bem fardados.

De trás das grandes árvores da orla da mata surge o “Alouette III”. O nosso Alferes corre para a zona desmatada, fora do “arame”, o melhor lugar para a aterragem, mas para sua surpresa o piloto opta por pousar dentro da tabanca, numa pequena zona livre de palhotas. Ainda bem que assim foi pois as lavras do João, da zona desmatada, iriam ser todas pisadas. Talvez tenha sido por ordem de quem lá vinha e por acharem que era mais seguro aterrar dentro do arame farpado.

Aterragem normal. Nem pó levantou dado a terra ainda estar húmida da chuvada da noite anterior. Pára o motor turbo-hélice, que equipa estes helicópteros e logo as hélices. Abrem-se as portas e imediatamente se reconhece quem chega, além dos pilotos: Estranhamente, só o Coronel de Bafata. Não vinha o Comandante Chefe e ainda bem pois, com o Comandante do Agrupamento o nosso Alferes tinha uma relação próxima e dentro de certos parâmetros, cordial. Com o Comandante Chefe de Bissau é que nunca se sabia com o que se contava, principalmente quando se tratava de oficiais. Para ele os soldados é que eram os bons.

O Coronel rapidamente percorreu parte da tabanca inteirando-se do adiantamento dos trabalhos nos abrigos, sobretudo do destinado à população civil. O Alferes mostra-lhe o forno que ele próprio tinha construído, arrancando um sorriso ao seu superior, o que era coisa rara.

Tão rápido como chegou partiu, despedindo-se do Alferes, secamente como era habitual:

- Magalhães Faria, só sai daqui quando toda a gente tiver abrigos.

Só muito mais tarde, já em Bafata, é que o Alferes Magalhães vem a saber porque razão o Coronel tinha aparecido naquele dia de helicóptero, em Madina Xaquili. Na sequência da ordem de Bissau para o Comando de Agrupamento de Bafata, este devia mandar para as tabancas em auto-defesa da periferia da zona habitada, os oficiais disponíveis, enquadrando grupos de militares. O Coronel entendeu que ele próprio também devia cumprir a ordem e, nesse sentido, resolveu ir passar uma noite numa tabanca. No dia seguinte tê-lo-iam ido buscar de héli e, aproveitando o transporte, fez a visita a Madina Xaquili.

São horas de almoço e a conversa com o Adramane iria ficar para depois da sesta, ou para o dia seguinte. A agitação militar da manhã tinha amolecido os sentimentos do nosso Alferes.

Desta vez o almoço é uma feijoada com pé de porco enlatado e arroz. Uma comida destas será deliciosa se não se repetir dia sim dia não… ou todos os dias. Como é a primeira vez que se come este prato na tabanca, todo o pessoal o acha óptimo. E no fim até se pôde “limpar” o prato com pão e não com as tais bolachas das rações de combate… O pão já estava a ficar duro pelo que o Alferes anunciou:

- Pessoal, não se vai esperar mais tempo. Amanhã vamos experimentar o forno e também as qualidades do nosso padeiro, que já conta com a ajuda do milícia Sadjuma.

Quase todo o pessoal continuou por algum tempo à mesa, comentando a visita do Comandante de Bafata. Todos manifestaram a ideia que o tinham achado um homem duro, distante e até ríspido de mais para com o Alferes. Este explicou que era a maneira de ser do Coronel mas quem o conhecia bem, como ele próprio, o achava cordial e principalmente um homem justo, com quem se podia contar.

Todos continuam a conversar menos o Alferes que se cala ficando pensativo. Passados poucos minutos levanta-se e sem sequer se despedir, contrariamente aos seus hábitos, dirige-se à sua morança. Entra, sai, vai ao “quarto de banho”, sai, vai carreiro abaixo em direcção à fonte, pára, volta para trás, entra novamente na sua morança, tira a roupa e deita-se.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7713: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (55): Na Kontra Ka Kontra: 19.º episódio

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7713: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (55): Na Kontra Ka Kontra: 19.º episódio




1. Décimo nono episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 2 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


19º EPISÓDIO

- Nosso Furriel, o que estou a pensar fazer, o senhor não pode fazer por mim, e como deve imaginar não é ir à orla da mata.

O Furriel afastou-se e o Alferes pensando alto:

- Onde eu vou arranjar uma vaca? Tenho que falar com o João.

Depois de uns momentos a ordenar as ideias, levantou-se e foi procurá-lo para os lados da sua morança, perto do mangueiro, no centro da tabanca. Quando o viu chamou-o à parte e disparou:

- João onde posso arranjar uma vaca?

- Uma vaca? Para que é que o Alferes precisa de uma vaca? Com um cabrito, a sua tropa governa-se dois ou três dias.

- João, João, já se esqueceu da nossa conversa sobre casamentos em que me disse que com uma vaca e uns cabritos se podia “comprar” uma bajuda?

- Ah, então é isso? Desculpe. E pelo que me parece, trata-se da bajuda Asmau. Estou certo? Sempre se quer casar com ela? Quer que o ajude a falar com o chefe Adramane?

- Não, obrigado, eu próprio falarei. O meu único problema, como já disse, é onde vou arranjar uma vaca para dar ao pai da Asmau se ele vier a concordar com o casamento.

- É muito simples Alferes… Quando se fala numa vaca é a mesma coisa que falar no “patacão” que uma vaca vale. O pessoal por aqui dá aos pais das bajudas vacas e cabritos porque é o que tem. Se tivessem dinheiro escusavam de pensar no gado. O Alferes combina com Adramane quanto ele quer e paga-lhe tudo em dinheiro. Além do mais, para ele, que não tem vacas, seria uma grande preocupação ter que tratar só de uma.

Vacas que não são do Adramane.

- Compreendi tudo João. Diga-me só mais uma coisa: Por aqui quanto custa uma vaca, para poder pagar em dinheiro ao Adramane?

- Por mil “pesos” já é bem paga. Quanto aos cabritos uns cinquenta “pesos”.

- Obrigado, João, até logo. Se vier a precisar da sua ajuda, procuro-o.

- Alferes, não se vá já embora pois ainda lhe quero dizer mais umas coisas que é capaz de não saber: Quando for fazer o pedido da bajuda ao Adramane, como eles são muçulmanos não lhe pode levar, como é costume, uma bebida alcoólica como prenda, mas neste caso deve levar uma porção de cola.

- E onde vou arranjar, de hoje para amanhã, a cola?

- Se quiser esperar dois ou três dias, o pessoal como tem que ir a Galomaro, ao comerciante “Regala” fazer algumas compras, podem trazer-lhe a cola mas se não quiser esperar, como eu penso, posso emprestar-lhe alguma e depois dá-ma.

- Agradeço isso. Agora vou mesmo embora. Até logo.

Afasta-se e vai novamente sentar-se na mesa das refeições, de onde se avistavam quase todas as moranças. Via portanto quase tudo o que se passava na tabanca. Alguns dos seus homens, juntamente com milícias, transportavam terra para cima dos abrigos. Outro grupo, que estaria de folga, jogava às cartas na sombra de uma morança, tendo um “pilão” virado ao contrário, como mesa. As mulheres iam e vinham da fonte transportando água. Reparou nos poucos miúdos e bajudinhas que havia na tabanca. Enquanto brincavam iam chupando o miolo das “kabaseras” fruto dos embondeiros, de difícil acesso por se situarem muito alto nas árvores. O vendaval da noite anterior fê-los cair, tendo os miúdos aproveitado essa dádiva da natureza.

Uma Kabasera inteira, outra aberta vendo-se o miolo e
também as sementes depois de chupadas.

Embora longe, a dada altura não teve dúvidas que, num dos extremos da tabanca, a Asmau tinha saído da sua morança e por um carreiro se dirigia provavelmente para a fonte. Era uma oportunidade que tinha para estar com ela, pelo menos para a acompanhar até à fonte. Não se mexe. Continua sentado, seguindo-a com o olhar, apreciando as suas formas perfeitas que a distinguia das demais. Em determinada altura nota que ela olha na sua direcção e então, aí sim, aproveita para lhe acenar com o braço, tendo sido correspondido. Naquele momento foi quanto bastou ao nosso Alferes. Sente-se nas nuvens. Tinha sido correspondido.

Não podia dispersar as ideias. Tinha que pensar na estratégia a usar quando fosse falar com o pai dela. Tudo dependia disso, por mais que ele gostasse da Asmau e ela do Alferes. Tudo estaria nas mãos do Chefe Adramane. Estranhos costumes, que tinham que ser respeitados.

Ao fim de algum tempo chegou a uma conclusão: Pura e simplesmente não havia estratégia, ou melhor, o que havia a fazer não era mais do que rapidamente ir falar com o Adramane, perguntar-lhe se podia casar com a filha e quanto queria de “dote”, saindo da incerteza que o andava a consumir.

Num ímpeto, levanta-se e olhando na direcção da morança do Chefe de Tabanca, como que estabelece o azimute para rapidamente lá chegar. Não chega a dar meia dúzia de passos. Para, estático, qual cão da pradaria pressentindo o perigo.

Com algumas ordens dadas em alta voz aos seus camaradas que estavam mais perto, inflecte o sentido da marcha que tinha iniciado e dirige-se a correr para a sua morança. Iria buscar a G3 e colocar o cinturão onde tinha sempre colocados quatro carregadores de munições e três granadas?

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7707: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (54): Na Kontra Ka Kontra: 18.º episódio

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7707: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (54): Na Kontra Ka Kontra: 18.º episódio




1. Décimo oitavo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 1 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


18º EPISÓDIO

Não havia que fugir mais ao problema que ali tinha trazido aquele homem. Mais nada havia a dizer que não fosse o Sadjuma fazer o pedido ao Alferes.

- Diz lá Sadjuma o que me tens a pedir.

- É sobre o forno que o meu Alferes fez.

De tudo o que o Alferes tinha pensado como sendo o problema do milícia, o forno não fazia parte. O Sadjuma continuou.

- Como sabe estamos aqui isolados. Um homem, aqui, não tem futuro algum. Como milícia ainda dá para sustentar a família, mas a guerra não durará sempre…

- Ala te ouça. Continua.

- Se a guerra acabar ou tiver que deixar a milícia, gostava de ter um modo de vida para continuar a poder tratar da mulher e dos filhos.

O Alferes dava “voltas e voltas à cabeça” a ver se vislumbrava o que aquele homem queria dizer, com as suas preocupações com a família mas, sobretudo, a ligação com o forno que acabara de construir. Já com alguma impaciência o Alferes incita-o a acabar o discurso.

- Continua, continua.

- Não sei se é possível o que lhe vou pedir mas, pode crer que eu só ajudava, não incomodava ninguém.

Nesta altura o Alferes estava mesmo a passar da impaciência ao desespero. Não estava a aguentar os minutos de expectativa que, nesta situação lhe estavam a parecer horas. Numa atitude mais ríspida, que os seus galões lhe proporcionavam, diz:

- Sadjuma, diz o que tens a dizer pois já está a parar de chover e amanhã é outro dia.

Apercebendo-se da impaciência do Alferes e numa atitude muito humilde, que aliás o caracterizava, faz o seu pedido.

- Meu “Alfero” posso ser ajudante do padeiro?

Como se pode imaginar “caíram-lhe ao chão”, os queixos, tudo. O Alferes sentiu um misto de alívio, pela simplicidade do pedido, e também de satisfação pela facilidade em poder atender ao solicitado. O padeiro talvez não precisasse de ajudante mas nestas condições seria bem vindo. Sempre aliviaria o mestre, no “traz e leva”.

As intenções do Sadjuma, além de ser ajudante de padeiro, eram sobretudo, como facilmente se compreende, aprender a fazer pão. Inteligente como era não havia dúvidas que em poucos dias se encontraria apto para governar a sua vida na arte de padeiro.

- Oh Sadjuma, então era só isso? Estava preocupado contigo. Sempre pensei que estivesses com algum problema sério. …Claro que não vais poder ser ajudante de padeiro …Já és. Deixa-me falar amanhã com o padeiro para depois te poderes apresentar ao trabalho.

O Sadjuma ao lado do Alferes Magalhães.

Estavam a cair as últimas pingas, quando o Sadjuma se despediu do Alferes com mais uma continência, coisa rara por aquelas paragens. Depois da grande chuvada, o pessoal continua recolhido. Estava tudo molhado, inclusive o “bentem” debaixo do mangueiro. O Alferes ainda sai para apanhar algumas gotas de chuva refrescantes. Com aquela humidade a rondar os cem por cento, os quarenta graus de temperatura parecem ser cinquenta, autenticamente sufocantes. As nuvens negras que trouxeram a chuva já se iam afastando, deixando ver um espectacular céu estrelado.

Mais uma vez o Alferes Magalhães tem uma noite de sono reparador, depois do alívio sentido e porque no dia seguinte teria uma agradável e importante tarefa a cumprir. Não se levantou tão cedo como o costume. Foi o último a ir tomar o café, desta vez com pão quase fresco, uma delícia.

Estava-se em fins de Junho, pouco faltava para os abrigos da população civil ficarem prontos. A rede de arame farpado fora melhorada, sobretudo na passagem para a fonte, de forma que ao anoitecer podia ser completamente fechada. O Alferes Magalhães estava livre para “outras guerras”.

Toma o café ainda com alguns dos seus homens que, em pequenos grupos se foram levantando, dirigindo-se para os seus afazeres que, diga-se, não eram muitos. Havia uma certa acalmia na tabanca. Quando por último o Furriel se levanta, vendo o Alferes muito pensativo pergunta se o pode ajudar em alguma coisa. Este levanta a cabeça e sorrindo vai dizendo:

- Nosso Furriel, o que estou a pensar fazer, o senhor não pode fazer por mim, e como deve imaginar não é ir à orla da mata.

O Furriel afastou-se e o Alferes pensando alto:

- Onde eu vou arranjar uma vaca? Tenho que falar com o João.

Depois de uns momentos a ordenar as ideias, levantou-se e foi procurá-lo para os lados da sua morança, perto do mangueiro, no centro da tabanca. Quando o viu chamou-o à parte e disparou:

- João onde posso arranjar uma vaca?

- Uma vaca? Para que é que o Alferes precisa de uma vaca? Com um cabrito, a sua tropa governa-se dois ou três dias.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7701: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (53): Na Kontra Ka Kontra: 17.º episódio

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7701: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (53): Na Kontra Ka Kontra: 17.º episódio




1. Décimo sétimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 31 de Janeiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


17º EPISÓDIO

Prosseguiram, passando pelo mangueiro onde havia o estrado para o pessoal se sentar à conversa, principalmente à noite. Estava lá o João e conversaram um pouco, tendo este chamado a atenção para uma nuvem negra ao longe. Queria dizer com isso que provavelmente se aproximava um tornado com a consequente chuvada torrencial. Era necessário ir jantar rapidamente para ainda se poder comer à mesa.

No fim do jantar já se tinha levantado o vendaval que precedia o aguaceiro pelo que todos se dirigiram para as suas palhotas. O nosso Alferes ainda tem que correr para se livrar das primeiras pingas. Próximo da sua morança, repara que o vulto do qual já se tinha esquecido, continua à sua porta.

Parou numa atitude de defesa mas, com a ajuda do clarão de um raio, pôde ver os reflexos nos óculos espelhados de quem o esperava e concluiu logo de quem se tratava. Havia um milícia que nunca largava os óculos escuros espelhados, nem à noite. Pelos vistos o Milícia Sadjuma estava ali sentado há cerca de duas horas. Que se passaria para ele estar tanto tempo à espera do Alferes? Algo de grave teria acontecido. Pela sua cabeça passou logo a ideia, muito generalizada, dos casos passionais entre milícias que, contrariamente aos metropolitanos que os resolvem à pancada ou até pela morte, os tropas africanos vêem muitas vezes pedir a opinião ou ajuda ao mais graduado presente. Recorda quando a Kadidja o procurou para a ajudar a resolver o seu diferendo com o João.

Está-se naquele fim do mundo, a dezenas de quilómetros de qualquer tabanca importante. Está-se em plena época das chuvas o que torna as picadas intransitáveis. Mulheres, salvo a bajuda Asmau, só havia as de alguns milícias. Havia pois alguns que não tinham companheira. O cérebro do Alferes quase “deita fumo” tentando articular respostas para o que o Sadjuma lhe iria expor. A mulher do Sadjuma era a Bobo, sem dúvida a mais interessante mulher da tabanca, exceptuando a Asmau, claro. Era pois muito apetecível. Até o nosso Alferes, logo no primeiro dia, ficou um tanto perturbado quando a viu. Pensou nessa altura que seria bajuda, apesar de estar com uma criança ao colo, o filho do João.

Quando o nosso Alferes se aproxima da sua morança o Sadjuma levanta-se e, como está devidamente fardado, faz uma continência como lhe ensinaram na instrução. O Alferes estava cada vez mais preocupado com o que podia sair da boca do milícia. É sabido que em assuntos estritamente militares, inclusive de guerra, o nosso Alferes é muito desenvolto, mas no que diz respeito aos sentimentos é muito inibido. Depois de uma continência daquelas o Alferes não tem alternativa e pergunta:

- Que se passa Sadjuma?

- Desculpe meu “Alfero” vir incomodá-lo mas tenho uma coisa muito importante a pedir-lhe.

Na cabeça do Alferes há um turbilhão de ideias pois não consegue antever o que vai sair dali. Um homem esperar duas horas para lhe pedir uma coisa… Algo muito importante será. Porque o não teria procurado durante o jantar? Talvez por ser assunto sigiloso. Ah era isso, pensou. Deve ser coisa muito “cabeluda”.

Deve dizer-se que o milícia Sadjuma é o militar mais aprumado de todo o pelotão de milícia. Nunca é visto sem camisa ou sem boina. Quando um superior fala com ele, põe-se sempre na posição de sentido.

A chuva começa a cair com intensidade o que serviu para o Alferes interromper por momentos a conversa que, a contra gosto, iria ter com o Sadjuma.

- Entra Sadjuma, senão molhamo-nos.

Entraram ambos para a morança e o Alferes sentou-se numa ponta da sua cama e ofereceu a outra ponta ao milícia. Este recusou, dizendo que estava bem de pé. O Alferes insistiu, tanto mais que aquela posição rígida de sentido o estava a incomodar. Numa atitude de obediência acabou por se sentar. Para retardar mais um pouco a conversa que imaginava complexa, o Alferes ao ligar um pequeno candeeiro a pilhas, foi dizendo:

- Sadjuma, bebes uma cerveja?

- Não meu “Alfero”, não posso, sou muçulmano.

- Desculpa, não sabia, queres então uma “Fanta” ou água do filtro?

- Pode ser água.

Lá fora a chuva caía em rajadas. O nosso Alferes nota que, contrariamente ao que acontecia no Agrupamento em Bafata, em que uma chuvada assim produzia um tal barulho nos telhados de chapa que nem dava para conversar, aqui numa morança com cobertura de capim, a chuva não produzia ruído algum.

Não havia que fugir mais ao problema que ali tinha trazido aquele homem. Mais nada havia a dizer que não fosse o Sadjuma fazer o pedido ao Alferes.

- Diz lá Sadjuma o que me tens a pedir.

- É sobre o forno que o meu Alferes fez.

De tudo o que o Alferes tinha pensado como sendo o problema do milícia, o forno não fazia parte. O Sadjuma continuou.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7698: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (52): Na Kontra Ka Kontra: 16.º episódio

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7698: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (52): Na Kontra Ka Kontra: 16.º episódio




1. Décimo sexto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 30 de Janeiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


16º EPISÓDIO

Depois de uma pequena sesta o Alferes faz o que o João Sanhá lhe tinha feito no dia da sua chegada: Vai mostrar os recantos da tabanca ao Furriel. Fala-lhe nas sentinelas metidas na mata para os lados de Padada, mostra-lhe o fornilho detrás do poilão, os abrigos e vão à fonte. Pelo caminho o Alferes vai dizendo:

- Nosso Furriel, foi a época seca, passaram uns seis meses sem chover e poucos lugares haverá na Guiné que tenham nesta altura uma nascente de água a correr e com a qualidade que já vai apreciar.

Estavam a chegar ao fim da zona desmatada e iam entrar na zona ensombrada da mata onde se situa a fonte, quando o Furriel pára olhando fixamente para o grupo de mulheres que estavam a lavar roupa. Fica estático. Mudo por instantes, talvez a pensar no que iria dizer ao Alferes.

- Se aquela é a tal Asmau, o meu Alferes tem todo o meu apoio. Ainda sem se mexer continua: Pode crer que nunca vi uma bajuda que se assemelhasse a esta. Sempre pensei não ser possível nesta terra existir uma mulher assim. Que tom de pele. Que olhar. E o sorriso dela. Até o colorido do pano condiz com o tom da sua pele.

- Aí tem a minha Asmau.

- Muita branca lá da metrópole gostaria de ter o corpo desta bajuda. Agora é que o compreendo perfeitamente.

Como, duma maneira geral, as mulheres não falam português o Alferes, com dupla intenção, aproveita para apresentar o novo elemento através da Asmau.

- Asmau, explica às “mulheres grandes” que este camarada é um Furriel que chegou hoje à tabanca.

Asmau falou com as mulheres no seu dialecto, o fula, e logo de seguida o Alferes, como que para continuar a conversa com a sua bajuda, pergunta:

- Asmau, como se diz obrigado em fula?

- Djarama. E muito obrigado, djarama bui.

- Então, Asmau, djarama bui.

Um rasgado sorriso dela perturba o nosso Alferes e até o Furriel. Assim, a título de despedida, Magalhães Faria ainda diz:

- Asmau ainda me hás-de ensinar mais coisas em fula.

Ambos se dirigem à nascente onde o Furriel prova a água. Depois seguem carreiro acima tendo o Furriel parado, aproveitando a sombra de uma árvore, não porque precisasse de descansar pois a distância da fonte à tabanca era de uns duzentos metros. De frente para o Alferes diz-lhe:

- Como já lhe disse, compreendo-o perfeitamente e pelo que já vi quero lhe dizer que se não fosse a guerra não me importava de trazer para aqui a minha mulher e viver neste paraíso para sempre.

- Eu não chegaria a tanto mas que se está muito bem, isso está. O nosso Furriel acabou de chegar mas eu posso-lhe adiantar mais: A pureza e ingenuidade desta gente, contagia uma pessoa. E a maneira simples de viverem, cultivando só aquilo de que precisam… Claro que plantam alguma mancarra para vender e depois poderem comprar roupas e alguns utensílios. As moranças, ou não têm porta ou, se a têm, não tem fechadura. E a inter-ajuda? Existem alguns procedimentos que a nós nos parecem estranhos e até aberrantes como o fanado feminino, mas são os costumes desta gente.

Continuaram a subir, ainda estiveram os dois a olhar para a abertura da passagem para a fonte e chegaram à mesma conclusão: Era necessário torná-la mais segura, de forma a que à noite não fosse possível entrar por ali alguém, tanto mais que era uma zona baixa e sombria.

Retomam a subida, passam a rede de arame farpado e o Alferes num relance vê, ao longe, um qualquer elemento nativo acocorado à porta da sua morança. Achou um pouco estranho mas como já estava a escurecer não reconheceu a pessoa.

Prosseguiram, passando pelo mangueiro onde havia o estrado para o pessoal se sentar à conversa, principalmente à noite. Estava lá o João e conversaram um pouco, tendo este chamado a atenção para uma nuvem negra ao longe. Queria dizer com isso que provavelmente se aproximava um tornado com a consequente chuvada torrencial. Era necessário ir jantar rapidamente para ainda se poder comer à mesa.

No fim do jantar já se tinha levantado o vendaval que precedia o aguaceiro pelo que todos se dirigiram para as suas palhotas. O nosso Alferes ainda tem que correr para se livrar das primeiras pingas. Próximo da sua morança, repara que o vulto do qual já se tinha esquecido, continua à sua porta.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7687: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (51): Na Kontra Ka Kontra: 15.º episódio

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7687: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (51): Na Kontra Ka Kontra: 15.º episódio




1. Décimo quinto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 27 de Janeiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


15º EPISÓDIO

Já noite, depois do jantar, o Alferes Magalhães passa pelo “bentem” apenas para dar as boas-noites ao pessoal, e vai deitar-se. Desde que tinha chegado à tabanca ainda não tinha ouvido uma sinfonia até ao fim. Desta vez, com tempo, e com os seus problemas quase todos resolvidos, ia tentar ouvir a 5ª de Mahler completa.

Conseguiu. Por isso dormiu até mais tarde. Acordou com o barulho do pessoal a falar alto. Saiu da morança e passou pelo “legionário” dizendo-lhe para lhe aprontar o café enquanto ainda ia passar pelo forno. Queria ver se não havia fissuras, pois não sabia como se comportava aquele barro ao secar. Verificou que estava tudo perfeito e foi tomar o café.

Definitivamente iria haver pão, mas não como imaginara…

A meio da manhã, com todos os trabalhos a decorrer, inclusive a apanha de lenha para depois queimar no forno, eis que se começa a ouvir o ruído de viaturas. Conforme as instruções recebidas todo o pessoal se aprontou, vestindo a camisa os que estavam em tronco nu, o que era habitual quando estavam a trabalhar. O Alferes sabendo que, quer o Comandante Chefe de Bissau, quer o Coronel de Bafata não iam aparecer ali num Unimog, aos saltos, não se preocupou muito com quem lá vinha. Era com certeza o pessoal da Companhia de Galomaro.

Passados uns minutos chega uma coluna de três Unimogs. Houve os cumprimentos habituais, como se o pessoal já não se visse há séculos. Além do sempre esperado correio, traziam abastecimentos de toda a ordem e, naturalmente, pão! Logo o Alferes anteviu a possibilidade de não forçar com fogueiras a secagem do forno, para este não estalar. Havia pão para dois ou três dias.

Os que chegaram foram dizendo que traziam duas arcas “térmicas”, uma com gelo e a outra com cervejas frescas. Seria boa ideia habituar o palato a cervejas frescas se depois teriam que as beber a trinta e tal graus? Sempre se tiraria a barriga de misérias.

Foi sol de pouca dura. Um qualquer “inteligente” em Galomaro, em vez de por o gelo numa arca e as cervejas noutra, pôs tudo misturado. O que chegou foram apenas cervejas frescas e água…

Uma coluna, trazendo correio e abastecimentos, era sempre bem vinda mesmo sem mensagem prévia. Esta muito mais, pois trazia um grupo de sete soldados e um Furriel para reforçar a guarnição de Madina Xaquili. Pena era que não trouxesse qualquer reforço de armas pesadas ou mais granadas para o morteiro. Enfim, sempre era alguma coisa.

O João arranjou mais umas moranças para os oito homens acabados de chegar e, depois das despedidas do pessoal que retornava a Galomaro, vão todos almoçar.

Logo à mesa, o Alferes Magalhães pensou em entregar ao Furriel acabado de chegar, parte das responsabilidades que tinha sobre os ombros. Uma razão sobressaía: ter mais tempo para se dedicar à sua bajuda.

Nesta primeira refeição, a conversa repartiu-se por um lado entre os dois graduados como seria natural, por outro entre todo o resto do pessoal partilhando as suas experiências. O Alferes põe o Furriel a par de toda a situação e pede-lhe para executar as funções de orientação dos trabalhos que ele próprio vinha exercendo.

O pessoal foi dormir a sesta e os dois graduados continuam à mesa a bebericar uma boa bagaceira acabada de chegar. A mesa, sob um alpendre de folhas de palmeira e implantada numa pequena elevação, proporcionava quase sempre uma aragem refrescante. O Alferes conta ao camarada as suas intenções sobre a Asmau, única bajuda casadoira da tabanca. Conta que as coisas já estão adiantadas, pelo menos para ele, e que talvez no dia seguinte já fosse “negociar” com o Chefe da Tabanca, Adramane, pai da Asmau. O Furriel, acabado de chegar e só conhecendo o Alferes agora, não expressa qualquer opinião sobre o assunto. Apenas lhe deseja felicidades.

Depois de uma pequena sesta o Alferes faz o que o João Sanhá lhe tinha feito no dia da sua chegada: Vai mostrar os recantos da tabanca ao Furriel. Fala-lhe nas sentinelas metidas na mata para os lados de Padada, mostra-lhe o fornilho detrás do poilão, os abrigos e vão à fonte. Pelo caminho o Alferes vai dizendo:

- Nosso Furriel, foi a época seca, passaram uns seis meses sem chover e poucos lugares haverá na Guiné que tenham nesta altura uma nascente de água a correr e com a qualidade que já vai apreciar.

Estavam a chegar ao fim da zona desmatada e iam entrar na zona ensombrada da mata onde se situa a fonte, quando o Furriel pára olhando fixamente para o grupo de mulheres que estavam a lavar roupa. Fica estático. Mudo por instantes, talvez a pensar no que iria dizer ao Alferes.


Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7680: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (50): Na Kontra Ka Kontra: 14.º episódio