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sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20523: Notas de leitura (1252): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (39) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
O bardo descarrega as suas penas, o seu companheiro de viagem prossegue em grande círculo, vai ao início da guerra, às suas primícias, tenha o leitor curiosidade e fartas leituras o esperam, tanto para entender o que foi a ascensão nacionalista na Guiné e como cedo se impôs o pensamento de Amílcar Cabral, como para acompanhar a digressão do aparato subversivo, em ondas os insurretos foram-se formar na China e na Checoslováquia, mais tarde na URSS, muito mais tarde virá o apoio cubano, entrementes haverá notórios progressos no armamento.
Por isso aqui se recupera as memórias do "Homem Ferro", um fuzileiro que conheceu a subversão desde 1962, por muitas andanças, em 1963, se apercebeu do alastramento da guerrilha e dos seus focos poderosos.
E aqui também se fala da CCAÇ 675, em 1964 encontraram Binta como território onde agentes do PAIGC se deslocavam folgadamente. Os reforços portugueses foram chegando a conta-gotas, revelar-se-ão insuficientes para estancar a dispersão da guerrilha.
A lira do bardo tem acordes de sofrimento, temos toda a vantagem em tentar perceber os ventos que sopram da guerrilha.
É o que aqui se faz.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (39)

Beja Santos

“Dois colegas com azar
os seus dias terminaram.
O pessoal do Batalhão
grande mágoa passaram.

Para serem tratados
os médicos os examinaram
e algumas chapas lhes tiraram.
Sendo ambos operados
alguns dias foram passados
e soro começaram a levar.
Fartaram-se de penar
com os sofrimentos de gravidade
e foram para a eternidade
dois colegas com azar.

O Francisco António foi o primeiro
que a morte levou.
O António Amaro, desmoralizado
ao ver a falta do companheiro,
o 1.º Cabo e o Furriel enfermeiro
a falar o reanimaram.
A verdade não lhe contaram
para ver se ele não esmorecia.
Mas como o azar o perseguia
os seus dias terminaram.

Este último se aguentou
quarenta e seis dias a sofrer.
Mas começou a emagrecer
porque a hemorragia não estancou.
De dia a dia piorou
levando muita injeção.
A 10 de maio se soube então
que o último suspiro deu.
Pois ele e o Francisco comoveu
o pessoal do Batalhão.

Os pais com aflição
souberam que os filhos tinham morrido.
Pois lançaram grande gemido
naquela região.
Perto da mesma povoação
estes rapazes se criaram
para o Ultramar abalaram
despediram-se com suspiros e ais
e no fim do tempo seus queridos pais
grande mágoa passaram.”

********************

Continua a litania dos padecimentos, o bardo não pára de trombetear desaires e agonias, parece que todo o Batalhão está exposto às mais rudes provas. É nisto, por contraste, que este companheiro do bardo vasculha esta nova guerra da Guiné na sua fase primigénia e encontra um relato sobre os primórdios da luta armada, até ao seu desenvolvimento. Dele já fez referência em obra sua com parceria, intitulada “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: um roteiro”, Fronteira do Caos Editores, 2014, tem a ver com as memórias de um combatente intitulada “Homem Ferro”, seu autor é Manuel Pires da Silva, responsável pela edição, com data de 2008. Tem-se sempre em conta que o leitor é leigo, iniciou-se nestas leituras da guerra da Guiné, procura compreender como desabrochou o conflito na área militar, mais complexo é explicar que houve uma prolongada germinação do nacionalismo, formaram-se diferentes partidos, em 1959, Amílcar Cabral em reunião com outros companheiros do Partido Africano para a Independência, tomaram decisões de fundo, Rafael Barbosa e outros ficaram no interior da Guiné em subversão, Cabral e outros partiram para Conacri para encontrar apoios que dessem incremento sério à guerrilha, como veio a suceder, o mesmo Cabral capitaneou os grandes debates com forças concorrentes, o PAIGC, a partir de 1965, foi reconhecido como a força categórica e exclusiva na frente da libertação nacional. Vejamos agora o que viveu um jovem, a partir de 1962, é um relato que dá muito para pensar.

As memórias do fuzileiro Manuel Pires da Silva trazem surpresas, uma delas é abrir novas perspetivas ao que se passou na Guiné em 1962, ninguém desconhece que as investigações dirigem-se sempre para os acontecimentos a partir de Janeiro de 1963, insista-se que há como que uma nebulosa sobre os preparativos da subversão e a respetiva resposta do lado português. Manuel Pires da Silva conta-nos como se fez marujo, ele levou uma vida atribulada em Vale de Espinho, concelho do Sabugal, mourejou no campo, trabalhou com o pai numa oficina de carpinteiro de carros de bois, andou a furar batentes de portas com martelo e formão, fez a instrução primária, andou no contrabando e apanhou alguns sustos. Adolescente, veio com o irmão mais velho para Lisboa, deram-lhe trabalhos de construção civil, foi depois carpinteiro de cofragem, sentia-se desalentado, queria ir mais longe. Inscreveu-se na Marinha, fez a recruta em Vila Franca de Xira, aos 17 anos era segundo-grumete voluntário. Em 1961, foi frequentar o curso de Fuzileiro Especial, recebeu a boina.

É incorporado no DFE 2, destinado à Guiné, ali chega em Junho de 1962. Que missões tiveram? Fazem guarda ao Palácio do Governador, levam prisioneiros do PAIGC para a Ilha das Galinhas, são mandados para o Sul, onde o PAIGC já desencadeava ações de sabotagem. A primeira operação de reconhecimento visava obter informações das gentes das tabancas de Campeane, Cacine, Gadamael Porto, entre outros lugares; seguem depois para Bula, havia fortes suspeitas de guerrilheiros infiltrados naquela zona. Descreve o efetivo da Marinha, ao tempo. O DFE 2 é pau para toda a obra: operação em Darsalame; vão ao rio Corubal em lanchas de fiscalização, “chegam às tabancas e só vêem velhos, mulheres e crianças, que fogem para todo o lado. Rebentam-se canoas, interrogam-se pessoas, mas ninguém sabe nada”. Em Dezembro, vão até Caiar. “Quando se tentava contactar com a população da tabanca, surge o tiroteio, o primeiro contacto com as armas de fogo do inimigo. O comandante é ferido no pé direito, tendo sido o primeiro fuzileiro ferido em combate”. Pouco antes do Natal, voltam ao rio Corubal, os botes são postos na água e sobem o rio. “Passada cerca de meia hora após largar do navio, ouvem-se rajadas de pistola-metralhadora”. E escreve mais adiante: “A situação agravava-se de dia para dia. O Comandante-Chefe andava preocupado, pois Lisboa não mandava reforços suficientes. Esta preocupação era partilhada pelo Comandante da Defesa Marítima, Capitão-de-Fragata Manuel Mendonça”.

Em Março de 1963, fazem batidas nas áreas de S. João, Tite e Fulacunda, no mesmo mês em que os guerrilheiros se apoderaram dos navios “Arouca” e “Mirandela” perto de Cafine. A situação agrava-se no rio Cobade e Cumbijã, os guerrilheiros atacam ousadamente as embarcações. Na sequência do acidente aéreo que vitimou um piloto e levou à captura do Sargento-Piloto Lobato, os fuzileiros bateram a zona, encontraram o cadáver do piloto sinistrado e os restos do avião. “Os guerrilheiros tinham a população do Sul completamente controlada. Os fuzileiros estavam ali sozinhos a remar contra a maré”. Em Julho, com o apoio de um pelotão de paraquedistas, passam Gampará a pente fino. É nisto que foi necessário acudir na área do Xime, todos os dias há fugas para o mato; no mês anterior, foram até à tabanca de Jabadá, tendo sido recebidos a tiro. O inimigo já desencadeia ações violentas a partir da mata do Oio. “Entretanto, a ilha do Como começa a tornar-se intransitável devido à presença dos guerrilheiros”; a tabanca de Jabadá continua em pé de guerra, a aviação lança bombas de napalm, para intimidar os guerrilheiros, o destacamento desembarca e só encontra velhos e miúdos feridos. A guerra surge à volta de Porto Gole, o inimigo não se deixa intimidar e reage com muito fogo, os fuzileiros sentem-se encurralados, aproveitando uma aberta, eles retiram e pedem apoio da aviação. No dia seguinte voltam, desta feita assaltam o objetivo. “Quando o bombardeamento pára, o destacamento arranca para o assalto final. Depara-se com mais de 50 casamatas, algumas crianças feridas, a chorar, e dois ou três velhos, também feridos. Registam as informações que eles querem dar”. Quando estão a retirar, recebem instruções da aviação, um grupo de guerrilheiros voltou ao objetivo. Os fuzileiros conversam entre si, tanto esforço e o inimigo não se apresenta. A seguir a este relato, o DFE 2 anda numa completa dobadoira, seguem para Gã Vicente e descobrem um novo inimigo, as abelhas. Por esse tempo vão chegando à Guiné mais reforços, o DFE 7, mas a subversão ultrapassa a capacidade de tomar sempre a iniciativa, a fazer fé em tudo quanto ele escreve, o Sul não dá parança. O que está hoje historicamente provado, e muito bem documentado. Em Novembro, é por de mais evidente que o PAIGC controla as ilhas de Como, Cair e Catunco. A resposta é a operação Tridente em que o DFE 2 participa. O DFE 9 chega em finais de Fevereiro.

Tudo se agrava no rio Corubal, as embarcações são constantemente alvo de emboscadas, atacam a navegação na Ponta do Inglês, e mesmo no canal do Geba. Volta-se à península de Gampará, vão com o apoio de forças terrestres, conclui-se que o inimigo não estava até então implantado no terreno. E depois atacam Cafal Balanta, Cafal Nalu e Santa Clara, há fogo do inimigo que só deixa de reagir quando chegam os T6. E no mês de Junho acabou a guerra para o DFE 2. Ele volta à metrópole, à Escola de Fuzileiros, é convidado para dar instrução. E em Outubro de 1965, lá vai Manuel Pires da Silva no DFE 13 a caminho de Luanda.

Vamos agora mais adiante, ao Diário da CCAÇ 675, a Companhia do Capitão do Quadrado, quando chegaram em meados do ano de 1964 à região de Binta, encontraram tudo em estado de sítio, já se fez referência à sua mentalidade ofensiva, o Capitão do Quadrado foi ferido e está hospitalizado em Bissau, a unidade militar em agosto nomadiza até Guidage, no fim do mês regressa o Capitão do Quadrado e em setembro recomeça a polvorosa, golpes de mão, patrulhamentos, batidas.
Também o furriel-enfermeiro é poeta como o nosso bardo, deixa um sinal dos seus afetos numa publicação de caserna, abre com versos melancólicos, lágrimas de despedida lá no cais, são os dias de viagem até à Guiné, ele questiona:  
“Viverei? Voltarei a ver os meus? A Pátria Querida?”.

E despede-se com versos confiantes, animosos:
“À dúvida, ao desânimo, seguem-se a segurança, a fé;
O dever do bom português é mais forte. Vamos lutar,
As dificuldades, os sacrifícios vencem-se de pé.
Mais fortes, mais homens, com honra havemos de voltar.

E quando chegar esse dia ansiosamente esperado,
os vossos corações alvoraçados, delirantes
Voltarão a descortinar no cais festivo, engalanado,
Sorridentes mães, esposas, noivas, felizes como dantes.”

Mas ainda há muito que contar desta Companhia. E um dia destes, pasme-se, chega a hora do BCAV 490 ir para território menos atribulado. Bissau espreita, o estado de ânimo do bardo dará sinais de uma candura, de um rejuvenescimento que desconhecíamos desde aqueles tempos em que a grande questão era a má comida da recruta.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 27 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20504: Notas de leitura (1250): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (38) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20514: Notas de leitura (1251): “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade; By the Book, edições especiais, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20504: Notas de leitura (1250): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (38) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Era dever elementar tentar uma contextualização da "média duração" do período embrionário do nacionalismo guineense até aos anos de arranque da luta armada, isto para melhor entender as atribulações em que vivia o BCAV 490 e as dores e atribulações que o bardo notifica no seu longo poema. É curioso o que Silva Cunha escreveu em "O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril", em 1977, a propósito da sua visita à Guiné onde foi confrontado com a falta de resposta adequada a uma guerrilha que fora metodicamente planeada para irradiar entre a região Sul, o Corubal e o Morés, havia a expetativa de, com as populações em fuga e o desmoronamento económico, fosse impossível repulsar a guerrilha. Silva Cunha atribui a responsabilidade em parte ao diferendo entre o Governador e o Comandante-Chefe, julgava-se que Arnaldo Schulz, na unificação dos poderes político-militares, operasse um milagre. O que não aconteceu, mesmo passando os efetivos de 10 mil para 25 mil homens, por razões que todos nós hoje conhecemos, não era uma questão de fé nem de bravura nem de habilidade na liderança, não se suspeitava de que aquele adversário ia gradualmente ganhando consciência de que o seu armamento era muito mais sofisticado do que o português.
O tempo e a determinação fizeram o resto.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (38) 

Beja Santos 

“Nos fins da nossa comissão
continuamos a lutar.
Da 487, 3 companheiros
foram feridos ao retirar.

Todos os dias alinhamos
não conseguimos descansar.
Para a estrada patrulhar
grandes martírios passamos.
Emboscadas apanhamos
nesta nossa transição,
carregamos os géneros de alimentação
e bebida para se beber.
Mas continuamos sempre a sofrer
nos fins da nossa comissão.

Do Batalhão de Cavalaria
todos os homens são arrojados,
passam-se uns maus bocados,
mas temos sempre valentia.
O bando de rebeldia
armadilhas nos vem armar.
Os Sapadores a examinar
algumas vão levantando,
enquanto o tempo se vai passando
continuamos a lutar.

24 homens se emboscaram
perto da mata cerrada,
passaram lá a madrugada
até que os bandidos chegaram.
Grande ataque travaram
morrendo muitos bandoleiros.
O grupo de traiçoeiros
pensou em nos cercar,
e tiveram então azar
da 487 3 companheiros.

Um tiro no pulso apanhou
o amigo Augusto Ribeiro.
Foi perto de um carreiro
que o Amaro ferido ficou.
O António Francisco também levou
uns tiros ao regressar,
tiveram que o evacuar
junto aos seus camaradas.
Por haver muitas rajadas
foram feridos ao retirar.”

********************

Enquanto o bardo não pára de clamar os sinistros, as muitas canseiras, a expetativa do fim da comissão militar, voltamos à companhia de Leopoldo Amado, pedindo-lhe colaboração para o grande plano de fundo em que evoluiu a luta armada, talvez o exercício valha a pena para melhor se clarificar as atribulações em que viveram as gentes do BCAV 490 e companheiros próximos como a CCAÇ 675. Num extenso ensaio intitulado “Da embriologia nacionalista à guerra de libertação na Guiné-Bissau”, inserido no livro “Guineidade & Africanidade”, Edições Vieira da Silva, 2013, Leopoldo Amado vai até aos alvores do nacionalismo guineense na década de 1950, recorda as independências nos países limítrofes, a presença crucial de Amílcar Cabral a partir do outono de 1952 até 1955, quando regressou com a mulher, ambos bastante combalidos com paludismo, a criação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, que será uma das alavancas do PAI (depois PAIGC), os acontecimentos de 3 de agosto de 1959 no Pidjiquiti, o processo sinuoso da fundação do MLG – Movimento de Libertação da Guiné, as decisões tomadas em Bissau em 1959, em que Rafael Barbosa é constituído como o dínamo da subversão, recrutando jovens para Conacri, a presença de Cabral em Conacri onde irá fundar a Escola Piloto, o envio, em 1960, de 25 elementos para a formação ideológica e militar na Checoslováquia e outros 30 para a China e 5 para a União Soviética, enquanto decorre a mobilização no mundo dos agricultores. Dentro desta trajetória, é desencadeada a partir de fevereiro de 1960 uma operação de difusão de panfletos e comunicados subscritos pelo Movimento de Libertação da Guiné, as autoridades locais informam Lisboa, a conta-gotas chegam unidades militares. É tido em consideração um histórico de aproximações e roturas entre grupos pró-independentistas, com um extenso corolário de lutas renhidas em território senegalês e da Guiné Conacri. 1962 é o ano da prisão de importantes quadros do PAIGC na Guiné enquanto se prepara a operação subversiva a partir da região Sul, certificado igualmente que na região do Morés há condições excecionais para desencadear e fazer irradiar a luta armada. A questão interminável dos diferendos entre grupos e grupúsculos acaba por pôr frente a frente a FLING e o PAIGC, no ano seguinte é o PAIGC que ganha o reconhecimento internacional inequívoco.

Resolvido um grave problema relacional entre as autoridades da República da Guiné e o PAIGC por causa de armamento que entrava à sorrelfa através do porto de Conacri, e que chegou mesmo a levar à detenção de responsáveis como Aristides Pereira, Luís Cabral e Vasco Cabral, questão que foi resolvida com o regresso de Amílcar Cabral, iniciava-se a mobilização da população no Sul.
Vale a pena dar a palavra a Leopoldo Amado:  
“A região ao Sul do rio Geba e a Oeste do rio Corubal tem o aspecto de uma gigantesca mão cujos dedos, apontados para o Atlântico, formam alongadas e sucessivas penínsulas separadas pelos rios Grande de Buba, Tombali, Cumbijã e Cacine, apresentando uma óptima configuração para a prática de guerrilha, na medida em que essas penínsulas são extraordinariamente recortadas por centenas de canais e de rios que quase as atravessam de um lado ao outro, não menosprezando, neste particular, a enorme amplitude das marés, quando as águas sobem, mesmo na época seca, em que as margens dos rios e dos braços ficam alagadas em enorme extensão, tanto mais que toda a terra é excepcionalmente plana e baixa.
Compreende-se assim a razão por que, na altura, as estradas eram poucas e más e porque todas elas dispunham de inúmeras pontes e pontões. A destruição destas obras, fácil de levar a cabo, determina o isolamento terrestre das povoações que passam a ficar dependentes da navegação fluvial ou das ligações aéreas. O PAIGC, conhecendo bem o terreno, escolheu justamente a região Sul para nela iniciar uma actuação que supunha poder levar a cabo com relativa rapidez e facilidade”.

Decorre o segundo semestre de 1962 num estado de agitação permanente que fragmenta a economia, apavora as populações, é-se obrigado a tomar partido, uns partem sobre a proteção do PAIGC, outros apelam às unidades militares mais próximas. Está dado o mote para a separação das águas.

Leopoldo Amado

Voltando ao texto de Leopoldo Amado, em julho foi criada a Frente Norte, na região de Mansoa – Mansabá – Farim. Isto não esquecendo que provocado o estilhaçamento no Sul se atravessou o Corubal, atacando a povoação do Xime, era nítido que o PAIGC procurava estender a sua atividade para mais longe. Mansoa é uma das portas da região do Oio, região de florestas densas e quase sem estradas.

E o historiador escreve:
“Em 30 de Junho de 1963, um grupo armado do PAIGC inutilizou a jangada de Barro, no rio Cacheu, a qual garantia a ligação entre aquela localidade e Bissorã, indiciando esta acção a intenção de atacar toda a região. Efectivamente, a 1 de Julho foram alvejadas viaturas entre Binta e Farim. Em 2, os grupos guerrilheiros do PAIGC tentaram destruir com explosivos diversas pontes e pontões nas estradas Olossato – Farim, Olossato – Mansabá e Mansoa – Nhacra. Montaram também uma emboscada na estrada Mansoa – Bissorã, fazendo cinco feridos às tropas do Exército português. Em 4 atacaram Binar, onze quilómetros a leste de Bula e Olossato, entre Bissorã e Farim. Em Binar mataram o régulo e raptaram o encarregado do Posto Administrativo. Em Olossato saquearam as casas comerciais. Em 6 de Julho, ao entardecer, os grupos guerrilheiros do PAIGC emboscaram uma força de Mansabá, quando esta regressava de um reconhecimento ao Morés. Na noite de 12 para 13, outros grupos destruíram vários pontões na estrada Olossato – Mansabá. E em 18 atacaram Encheia, onde não havia qualquer força militar. A situação deteriorou-se depois, o Exército português, apesar dos esforços esperados feitos para recorrer aos pontos atacados. Os efectivos militares eram, porém, muito escassos. Pelo contrário, o PAIGC dispunha de numerosos grupos, todos dotados de armamento relativamente aperfeiçoado e abundantes munições. A breve trecho, em grande parte da região do Oio, as populações nativas, aterrorizadas pelos contendores, ou faziam causa comum com eles ou eram expulsas das suas tabancas. Aquelas que resistiam ou que queriam manter-se neutrais, eram castigadas ou dizimadas e as suas tabancas incendiadas. Assim aconteceu em Bigene, Canfandá, Mamboncó, etc.”

Leopoldo Amado regista a evolução da luta armada na região Sul, com mais cortes de estradas, destruição de pontões, flagelações, colocação de abatises, lançando o pandemónio nos transportes, inclusive foi incendiado o barco a motor da carreira Bolama – Ponta Bambaiã. O fornecimento de armamento é cada vez maior, as autoridades portuguesas estão confusas quanto à dimensão da atuação do PAIGC. Por falta de efetivos, as unidades militares sentiam-se impotentes para fazer frente ao ataque metódico às infraestruturas rodoviárias.
Mais uma vez se dá a palavra a Leopoldo Amado:
“Além de criar um vácuo que lhe proporcionasse refúgio seguro em Morés, o PAIGC pretendeu também inutilizar os eixos rodoviários de interesse económico como sejam os de Mansoa – Mansabá – Bafatá, por onde se escoava boa parte da mancarra produzida pelo Leste da Guiné e alguma da madeira cortada na região do Oio. Aliás, Mansabá constituía um importante cruzamento de estradas, pois por ela passam, além do eixo Mansoa – Bafatá, os de Bissorã – Bafatá e Farim – Mansoa. Daí que, a certa altura, parecesse ser intenção do PAIGC de isolar Mansabá. Esta actuação fez diminuir o trânsito rodoviário para o Leste da Guiné com o que ficaram sobrecarregados os já congestionados transportes fluviais do rio Geba”.

As informações obtidas pela PIDE não eram suficientes para asfixiar ou repulsar o movimento subversivo. Havia enorme expetativa do que se iria passar a Norte, Senghor era ainda extremamente prudente com o tráfego das armas, via nesta fase com desconfiança o PAIGC, tinha um grave contencioso com Conacri. A situação vista do lado português é de acalmia na Península de Bissau e no Arquipélago dos Bijagós, o “chão manjaco” não aceita interferência do PAIGC e de Bafatá para o Gabú os Fulas asseguram fidelidade à soberania portuguesa. Silva Cunha visita a Guiné e constata a crispação existente entre o Governador Vasco Rodrigues e o Comandante-Chefe Louro de Sousa. Irá escrever, depois do 25 de Abril, que “Do nosso lado, não havia uma ideia de manobra bem definida e, o que era mais grave, não se acreditava que fosse possível resistir eficazmente ao adversário. As nossas guarnições estavam distribuídas pelo território numa quadrícula nem sempre bem concebida, mantendo-se nos aquartelamentos, numa posição de pura defensiva. Praticamente não havia forças de intervenção e se nessa altura não sofremos um revés sério foi mais por falta de força dos adversários do que em resultado da nossa acção”. Há, pois, neste período de 1963 a 1965 alguns “olhos do furacão”, o BCAV 490 está num deles, assim se compreende a aflição do bardo, registando pelos seus nomes os camaradas sinistrados.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 20 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20474: Notas de leitura (1248): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (37) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20490: Notas de leitura (1249): “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade; By the Book, edições especiais, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19968: (In)citações (135): Achega II - E o PAIGC exaltou o Comandante Guerra Mendes a substituto de Salazar, na toponímia de Bissau (Manuel Luís Lomba)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) datada de 10 de Julho de 2019, com mais uma "achega":

ACHEGA II*

Protesto o meu respeito à laboriosa pesquisa histórica da Guerra da Guiné pelo Beja Santos, Jorge Araújo, José Matos, José Martins e de outros “camarigos”. Os seus actores não precisam de reescrever a sua história; mas, às vezes, sentimos a pulsão de chamar a “verdade dos factos” à colação das meias-verdades de muitos comunicadores.

O PAIGC foi fundado em 19 de Setembro de 1956, não por Amílcar Cabral (estava em Angola), mas por Rafael Barbosa, escriturário da construção civil, e por Fernando Fortes, chefe da Estação Postal Provincial, em Bissau, sob o acrónimo de PAI (Partido Africano da Independência), homónimo do Partido Comunista do Senegal, ambos militantes do Partido Comunista Português, no contexto do alinhamento deste com as conclusões anticoloniais da Conferência de Bandung, de Abril de 1955, e da proclamação do “direito das colónias à autodeterminação”, do XX congresso do PCUS, em Fevereiro de 1956.

Amílcar Cabral aderiu-lhe como militante e, em 1959, por negociação com os seus poucos pares e sem outra formalidade, Rafael Barbosa passou a presidente, ele a secretário-geral, Aristides Pereira a secretário-geral adjunto, objectivou-o também a Cabo Verde e mudou o seu acrónimo para PAIGC. O presidente manteve-se em Bissau, enquanto os dois secretários-gerais se expatriavam, avisadamente, – a PIDE instalara-se em Bissau no ano anterior. O PAI, o PAIGC, em Bissau, e o PAICV seu sucedâneo, na Praia, tiveram génese comunista e cabo-verdiana.

O PAIGC desencadeou a sua Guerra da Guiné nos princípio de 1963, com dois ataques à guarnição militar de Tite; mas, a Guerra da Guiné foi iniciada pelo MLG (Movimento da Libertação da Guiné), fundado em 1959, em Bissau, o primeiro partido emancipalista a desencadear ataques e emboscadas, nas áreas de S. Domingos, onde vitimou o Capitão de Cavalaria António Lopo Machado do Carmo, o primeiro oficial profissional a morrer em combate na Guiné, pilhagens a Susana e Varela e também atacou o aquartelamento de Bigene, iniciados em Julho de 1962 e activos até Fevereiro de 1964, até a manobra de Amílcar Cabral e o seu “charme” diplomático conseguir o desapoio da Organização da Unidade Africana e a perda da simpatia pela ONU.

O MLG expatriara-se para Dandula-Turene, Senegal, na sequência da agitação dos marinheiros de cabotagem, – a famigerada greve e o “massacre” do Pidjiquiti -, em Agosto de 1959, de sua inspiração e com o contributo do seu militante Luís Cabral, que virá a ser o presidente do PAIGC e primeiro PR da Guiné-Bissau, então guarda-livros da Casa Gouveia (Grupo CUF), empregadora da sua maioria. Esses ataques foram organizados e comandados por Pierre Mendy, um manjaco senegalês, já licenciado do exército francês e que combatera na Guerra da Argélia, e neles participou o guineense Momo Turé, que virá a ser um dos assassinos de Amílcar Cabral.

Os comandantes do PAIGC, que mais infernizaram a vida aos soldados portugueses e às populações, foram os 30 tirocinados na China, na “geração” de Mao-Tse-Tung.

O Rui Demba Djassi, era um jovem activo e turbulento duma família de funcionários públicos, residente na então rua de S. Luzia, entre o estaleiro da Tecnil e o Quartel-General do CTIG, desertara do EP para o PAIGC com o posto de furriel miliciano, e, antes de assentar praça, fora cobrador da Farmácia Moderna, muito dedicado à Dr.ª Sofia Pombo Guerra, comunista portuguesa e uma das mães da independência da Guiné (os guineenses não deixaram de ser polígamos na política…).

Foi o primeiro operacional dos primeiros 30 formandos militares e ideológicos na China, o primeiro instrutor da base de Koundara, vila da República da Guiné, a primeira base do PAIGC, à distância rodoviária de cerca de 30 quilómetros da fronteira com Buruntuma, foi nela que instruiu e foi dela que partiu o grupo de combate, o seu comando dividido com o Bobo Quetá, ex-futebolista de “Os Balantas” de Mansoa, para desencadear a sua guerra da Guiné, com esses dois ataques a Tite, no coração da Guiné - o de 6 de Janeiro, lançado sobre o edifício que encarcerava cerca de 100 “subvertidos” e o de 27 de Fevereiro de 1963, sobre a messe dos sargentos, ambos repelidos, no segundo foi decisiva a prestação da malta da “Maria Albertina”, autometralhadora Fox, do Pelotão de Reconhecimento enviado de Aldeia Formosa (Quebo), em reforço da guarnição.

Osvaldo Vieira, um dos principais formandos ideológico-militar na China, fora também empregado da Dr.ª Sofia Pombo Guerra, em Bissau, outro furriel miliciano desertor do EP, pontificava na Frente norte, Oio, Morés, etc., e, o seu primo Nino Vieira (terá sido cabo na guarnição da Guiné?), o principal formando na China, pontificava na Frente sul, há dois anos "enfeudado" com 300 combatentes, “pacificamente”, nas ilhas do Como, Caiar e Catunco - a sua “república independente” do Como, enquanto não foi extinta pelas NT, com a Operação Tridente, no primeiro trimestre de 1964.

Rui Djassi havia sido transferido para o posto de Vitorino Costa, irmão do Manuel Saturnino, morto no assalto das NT à tabanca de S. João, que tiveram a infeliz (no mínimo) ideia de passear a sua cabeça como troféu, transferido por Amílcar Cabral do seu posto do Gabú, quando falhava clamorosamente a sua subversão – os fulas eram refractários ao PAIGC e à sua mensagem.

Considerado o momento fundacional da nacionalidade bissau-guineense, iniciado em 12 e fechado em 16 de Fevereiro de 1964, no auge da Batalha do Como/Operação Tridente, o famigerado Congresso de Cassacá aprovou a sua “Lei constitucional” e o seu “Código de Justiça”, explicitadas pelo advogado José Araújo, ex-jogador da Académica de Coimbra. Invocando essa legalidade, no dia 17, Amílcar Cabral presidiu ao julgamento dum grupo de correligionários “criminosos”, entre os quais Rui Djassi, condenou três à morte por fuzilamento, o Nino Vieira e o Francisco Té providenciaram a execução, mas perdoou o Rui e deu-lhe a oportunidade de reabilitação no lugar do Vitorino Costa – expondo-o à maldição legada pela malta da CCaç 153, do RI 13 de Vila Real, e do seu capitão Carreto Curto, cuja morte havia decretado, como responsável da morte e da decapitação do Vitorino Costa.

Em 24 de Abril de 1964, dois meses depois, o Rui Djassi também foi eliminado pelas NT e Aristides Pereira mandou o Guerra Mendes para o seu posto, que lhe desobedeceu e que as mesmas eliminarão, um ano depois, em 14 de Fevereiro de 1965.

Quando o MLG e o PAIGC desencadearam a sua “guerra de libertação”, a Guiné-Bissau era uma criação territorial, administrativa e diplomática dos portugueses, mas apenas nominalmente portuguesa, sempre pertencera a guineenses e a cabo-verdianos – aqueles por direito próprio, como seus naturais, e estes como seu destino de emprego, nos serviços da administração pública, no comércio e serviços. Em 1961, havia menos de 1000 portugueses da Metrópole e ilhas adjacentes residentes na Guiné, contando os colonos, patentes militares e quadros públicos.

Os bissau-guineenses não se têm furtado ao reconhecimento que o continuado falhanço do seu Estado advirá do ADN ideológico do PAIGC, quando partido único e totalitário. A sua nacionalidade foi fundada por Amílcar Cabral, foi o PAIGC que a formatou em Estado, a matéria-prima era portuguesa, mas o seu modelo e metodologias eram fantasias, estranhas ao povo guineense.

Amílcar Cabral era português de Bafatá e a sua mulher Maria Helena era portuguesa de Chaves, ele acedeu e formou-se como bolseiro do Estado Português, a Casa dos Estudantes do Império, a cultura e a língua portuguesa foram a matéria-prima com que fundou a nacionalidade bissau-guineense, o seu conhecimento consolidado, como altos funcionários do Estado português, em Lisboa, Luanda e Bissau, iniciou os preparativos internacionais da sua luta com passaporte português, custeou as primeiras despesas da sua luta com escudos$ do seu ordenado e com escudos$ dos recursos da esposa, ter-se-á motivado ao tirocínio na China, para chefe militar, por ter sido oficial miliciano português e foi recrutar a primeira geração dos seus quadros combatentes ao Exército Português – sargentos e praças guineenses e oficiais cabo-verdianos.

Dos seus 60 primeiros quadros operacionais e ideológicos, construtores da nacionalidade e do Estado bissau-guineense, 30 foram mandados para a China, a tirocinar a luta de guerrilha, 25 para a Checoslováquia, a tirocinar para as polícias de segurança e para o controle político de partido único, e 8 para a União Soviética, a tirocinar Economia planificada. A ideologia de partido único, imposta nesses países, terá sido a sua má companhia.

O seu mais alto magistrado da Nação, o primeiro independente, ignorou a ética castrense da obediência ao poder instituído, e mandou fuzilar, alguns já julgados e absolvidos, cerca de 10.000 mil guineenses militares e militarizados, formados técnica e civicamente pelas FA portuguesas, em vez de os reconverter em FA nacionais da Guiné-Bissau.

Os quadros militares formados na China e noutros países de partido único, em vez de servirem o país, viraram as suas armas “libertadoras” contra o seu povo, usaram-nas para se servirem dele. Os quadros policiais, formados na Checoslováquia, em vez de servirem as populações e a administração interna, espiavam-nas e faziam desaparecer os que ousavam tecer qualquer crítica. E os quadros políticos formados na União Soviética não estilhaçaram a economia como delapidaram a generosidade financeira da comunidade internacional. E o tráfico de cooperantes pouco lhe valeu…

O destino foi muito cruel com Amílcar Cabral e menos com a sua ex-mulher. Morreu como como português emigrado, conselheiro Técnico contratado pelo ministério do Desenvolvimento Rural da República da Guiné, e, diplomaticamente, como Mohamed Benali, cidadão marroquino, e é cidadão bissau-guineense póstumo. A Maria Helena, divorciada desde 1966, foi sempre portuguesa, fará carreira como docente da Universidade do Minho e acabará os seus dias em Braga, em 2005.

E o PAIGC exaltou o Comandante Guerra Mendes a substituto de Salazar, na toponímia de Bissau.
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OBS: - Subtítulo da responsabilidade do editor
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Notas do editor

(*) - Vd. poste de 3 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19943: (Ex)citações (353): Uma achega referida à circunstância da morte em combate de Guerra Mendes, comandante do PAIGC (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703 / BCAV 705)

Último poste da série de 11 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19883: (In)citações (134): Os Coirões de Mampatá, CART 2519 (1969/71) (Mário Pinto, 1945-2019)

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19200: Notas de leitura (1121): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (60) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2018:

Queridos amigos,
São bem pessimistas as informações sobre a vida económica e financeira da Guiné no início da década de 1960. O gerente de Bissau envia os dois panfletos enviados aos funcionários e oficiais do Exército, a autoria teria pertencido ao Movimento de Libertação da Guiné, o seu principal ativista era Rafael Barbosa, nacionalista convicto que estabelecerá um acordo com Amílcar Cabral para a fusão de partidos, existe historiografia que ajuda a compreender este contexto, leia-se, por exemplo, António Duarte Silva ou Leopoldo Amado.
Aproveito a circunstância para lembrar que até esta data não há sinais, pelo menos documentais, do PAI que se transfigurará em PAIGC. Talvez não haja estranheza nenhuma, ao contrário do que diz a mitologia o PAIGC arranca efetivamente em 1959 e torna-se público em 1960, a presença de Amílcar Cabral em Conacri e de Rafael Barbosa na agitação interna até março de 1962, é decisiva.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (60)

Beja Santos

A partir de 1960, o gerente de Bissau não mais deixará de dar notícias sobre “acontecimentos anormais”, forma adocicada de indiciar que já se vive em agitação e há iniludíveis sinais ou pré-avisos da luta armada. Mas a vida continua. Dentro desta documentação avulsa encontra-se uma carta da Procuradoria das Missões Franciscanas endereçada à Administração do BNU solicitando um crédito para a construção de biblioteca e fornecimento de livraria, como se verá, o Secretário de Estado do Vaticano, o Cardeal Tardini é favorável a que se contraia tal empréstimo. De outro lado, e com data de agosto e setembro de 1961, a Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné solicita ao BNU a concessão de créditos aos pequenos “comerciantes do mato”.
Atenda-se aos argumentos da carta expedida pelo gerente de Bissau:
“O interesse destas operações, no actual momento, reside essencialmente na utilidade de fixarmos elementos brancos no interior por forma a não darmos ao indígena a ideia do ‘abandono’, não lhe criando dificuldades ou perturbações nas suas tradicionais relações de troca.
Acrescente-se que as chamadas casas grandes, ao que parece, não têm facilitado a estes comerciantes os adiantamentos que era uso conceder-lhes e, também ao que parece, estão seguindo uma política de retracção que, a ter as cores que certas fontes me têm descrito, suscitaria amargos comentários…
Mas porque se trata de pequenos comerciantes, isolados no interior, com uma estrutura económica extremamente frágil não se vê como seria possível ao Banco conceder-lhes crédito, tanto quanto ao aspecto técnico das operações como no que se refere à sua garantia.
Analogamente ao processo que, na Metrópole, temos usado com os Grémios da Lavoura, poderá aceitar-se aqui um crédito indirecto, por intermédio do organismo que legalmente representa esta actividade. Assim e se a Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné tiver personalidade jurídica e capacidade para se obrigar, fica a Dependência autorizada a abrir a favor da mesma associação uma conta-corrente, com garantia de livrança, até ao montante de 3 mil contos”.

A Inspeção do Ultramar pronunciou-se dias depois:
“Deve escrever-se à Dependência no sentido de a instruir para que no eventual arranjo a fazer com a Associação Comercial estude uma fórmula que permita ligar mais directamente os comerciantes do interior à acção do Banco. Isto é, pretende-se que os benefícios a conceder o sejam claramente pelo Banco, embora através da Associação Comercial”.

Dirigindo-se em setembro ao Governo do BNU, o gerente da Filial de Bissau acrescenta novos dados:
“O Sr. Governador da Província, conhecedor do assunto por intermédio do nosso Exm.º Administrador confessou-nos estar bastante interessado na operação, que considera, sob o ponto de vista económico, contributo valioso para a prosperidade dos pequenos comerciantes e agricultores. Voltaremos à presença de V. Exas. logo que a Associação Comercial conclua a elaboração do sistema de funcionamento de crédito a dispensar aos pequenos comerciantes e agricultores”.

Regressemos aos “acontecimentos anormais”.
Tem inequívoco interesse o que Bissau envia para Lisboa logo em 21 de fevereiro de 1960:
“Há cerca de 10 dias todos os Directores de Serviço e Oficiais de Exército receberam, pelo correio, lançados na central desta cidade, dois miseráveis panfletos de ataque à nossa soberania na Guiné. Todos os funcionários os foram entregar a Sua Ex.ª o Governador, o mesmo fazendo os oficiais ao seu comandante. Mas conseguimos que nos emprestassem um exemplar para tirar as cópias que enviamos. Nos meios responsáveis suspeita-se que os nojentos papéis tenham vindo da Metrópole, pois o seu aparecimento nos CTT coincidiu com o dia da chegada do avião. Atribui-se a sua redacção a um advogado, pela disposição do texto.
Entretanto, a estação emissora de Conacri desencadeou um covarde ataque a algumas personalidades desta terra, ataque que tem lugar nas emissões de domingo, pelas 18 horas. Com a montagem de um posto de interferência no mesmo comprimento de onda, conseguiu-se, ao que consta, anular a recepção.
Não falta na Guiné quem aplauda, com fins nitidamente antipatrióticos, a política do Governo local. Também existe quem discorde dela. Paralelamente, a situação económica não dá indícios de melhoria. A produção de mancarra e arroz estima-se inferior à do ano passado e as três grandes firmas aqui estabelecidas desencadearam uma forte alta nos preços de aquisição ao indígena, indo ao mato competir com os pequenos comerciantes, o que causou descontentamento neste sector. O arroz é insuficiente para alimentação da população. Está em curso uma importação de 3 mil toneladas para cumprir o défice da campanha.
A situação cambial agrava-se, mais por deficiência do sistema. Urge que se adoptem regras rígidas de disciplina nas importações e promover a entrada na Província das coberturas derivantes das taxas de concessão do petróleo.
Este conjunto de acontecimentos e circunstâncias traz a população, especialmente a população europeia, alarmada e inquieta”.

Vejamos agora o teor dos panfletos distribuídos na circunstância:



A 8 de março, o gerente de Bissau volta a informar o governo do BNU sobre essas ocorrências:
“Informamos V. Exas. que já foi preso pela PIDE um dos comparticipantes da miserável manobra do chamado Movimento de Libertação da Guiné.
A máquina de escrever onde foram dactilografados os papéis pertencem à Alfândega de Bissau e o dactilógrafo foi um mestiço, aspirante daquela repartição.
E fora de dúvida que o autor não foi ele, mas alguém de maior envergadura intelectual.
É possível que o malandrim já tenha confessado o nome de quem o incumbiu da tarefa, mas, ou por conveniência da polícia ou por outras razões, o certo é que não se sabe ter sido preso alguma das pessoas julgadas capazes de redigir o triste documento”.

(Continua)


Clicar nas imagens para as ampliar


Imagem esclarecedora do papel que desempenhava a Sociedade Comercial Ultramarina, a grande rival da Casa Gouveia (CUF), que, a partir dos anos 1950 passara a pertencer maioritariamente ao BNU.
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Notas do editor

Poste anterior de 9 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19178: Notas de leitura (1119): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (59) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19187: Notas de leitura (1120): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18188: Notas de leitura (1030): A Guiné-Bissau, os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980 e um relatório do CIDAC de Dezembro do mesmo ano (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Este relatório do CIDAC fala sem complexos de um diagnóstico da doença que estava a vitimar o regime de Luís Cabral. Doença que todos viam e que a todos comprometia. É por vezes radical, excessivo e injusto, quando fala da carga deletéria dos "pides" e "comandos", pondo tudo no mesmo saco, ainda por cima antes e depois da independência da Guiné-Bissau. Vale a pena insistir que não dispomos de nenhum documento válido sobre o alegado comprometimento dos comandos em golpes de Estado.
É um relatório que diagnostica os principais problemas e que, curiosamente, segue de perto a argumentação expendida por um ideólogo do PAIGC ao tempo, Hélder Proença. Documento em que se insiste que continuava por perceber qual o projeto político do Movimento Reajustador, como se iria ver mais tarde não passava de um projeto da tomada do poder, nunca iriam aparecer diretrizes políticas claras para a estafada reconciliação e para a resolução dos problemas prementes do país, que persistem.

Um abraço do
Mário


A Guiné-Bissau, os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980 e um relatório do CIDAC de Dezembro do mesmo ano

Beja Santos

O CIDAC tem um longo historial de cooperação com a Guiné-Bissau, antes e depois do 25 de Abril. Após os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980, em que um autointitulado Movimento Reajustador apeou Luís Cabral da direção do PAIGC, uma delegação do CIDAC visitou Cabo Verde e a Guiné tendo produzido um detalhado relatório acompanhado de conclusões. Procede-se a seguir, e abreviadamente, ao alinhamento das principais linhas do documento.

Em jeito de diagnóstico, são referidos os seguintes pontos: esvaziamento das estruturas partidárias, com crescente dificuldade na mobilização popular; para compensar a crise na mobilização das massas, a direção do PAIGC teria reforçado as suas posições autoritárias, recorrendo a medidas de forte censura e ao endurecimento da Segurança (esta praticava tortura e prisões indiscriminadas). De igual modo, observava-se condescendência em relação aos crescentes privilégios da camada dirigente, incluindo a acumulação de erros na política económica. Era patente o descontentamento popular, agravado pelas roturas de abastecimento, o que tinha originado uma situação de fome no país que estava a atingir um ponto explosivo. Aristides Pereira alertara há pouco, e severamente, para tais situações no decurso de uma reunião do Conselho Superior de Luta. Também as FARP já escondiam o descontentamento com a nova hierarquização e a perpetuação dos baixos salários, eram visíveis grandes tensões entre os militares. Mas há dois pontos que não se podem ignorar. Em 10 de Novembro a ANP aprovara uma nova Constituição do país, e os debates tinham sido altamente polémicos, sobretudo à volta das seguintes matérias: ausência de uma referência expressa à obrigatoriedade do Presidente ser cidadão guineense, a concentração de poderes no Presidente, a admissão da pena de morte e as discrepâncias, consideradas negativas e inferiorizantes, em relação à Constituição de Cabo Verde. Por outro lado, assistia-se a um cesarismo em que Luís Cabral despachava direta e exclusivamente os assuntos dos Negócios Estrangeiros, os da FARP e da Segurança, que passavam completamente à margem do primeiro-ministro Nino Vieira. Tudo conjugado, tinham-se avolumado pressões à volta o comandante de Nino para que ele assumisse as suas responsabilidades. A fazer fé no relatório, estaria, por parte de Luís Cabral, a ser preparada uma ação para prender Nino, possivelmente a 16 de Novembro, festa de aniversário da FARP.

Passando aos acontecimentos de 14 de Novembro, vejamos a sua sequência. Foram dadas instruções para deter todos os dirigentes como medida de precaução e para libertar os presos políticos, foram interrompidas as comunicações com o exterior. O único foco de resistência efetivo veio da parte do homem forte da segurança, Buscardini que, cercado, provavelmente se suicidou. Entre os factos relevantes do desencadear dos acontecimentos, há a registar a insólita intervenção de Rafael Barbosa na rádio. Este autoproclamou-se líder e desencadeou um movimento de regozijo nos bairros de Bissau. O seu discurso na rádio foi interrompido por ordem do Conselho de Revolução. Três horas depois discursa Nino. Rafael Barbosa gozava manifestamente de grande popularidade. Deu-se também uma dinâmica anti-cabo-verdiana, manifestou-se descontroladamente, porventura por razões que tinham vindo a ser recalcadas desde a independência: ressentimentos que remontam ao período colonial; desigualdades de condições entre cabo-verdianos e guineenses que pertenceram aos quadros do funcionalismo ultramarino no que respeitava a aposentações e reformas. Mais se adianta no relatório que existiam ao tempo na Guiné-Bissau cerca de 200 funcionários cabo-verdianos em postos de responsabilidades no aparelho de Estado, e escreve-se: nem a Guiné-Bissau pode prescindir destes quadros nem Cabo Verde tem a capacidade para os absorver.

Numa segunda fase do golpe, divulga-se a sigla “Movimento Reajustador”, reafirmando sempre a permanência da linha política de Amílcar Cabral e chega-se a convidar Aristides Pereira a vir até Bissau. Com o maior mediatismo possível, fez-se a denúncia dos fuzilamentos dos guineenses e mostraram-se valas comuns, denúncia que terá provocado um autêntico e sincero traumatismo coletivo.

O Movimento Reajustador, à data da elaboração do relatório do CIDAC ainda não tinha revelado claramente qual o projeto político que o corporizava. A expressão reajustador tornou-se rapidamente simpática, incluía nos seus objetivos prioritários o combate às injustiças, a determinação em resolver a crise económica, em satisfazer as necessidades mais prementes do povo, e não deixando de propor a revisão do processo da unidade Guiné-Cabo Verde. A adesão ao movimento foi maciça e espontânea, quer dos poderes regionais (a exceção do presidente do Comité de Estado do Gabu) quer da população quer mesmo da generalidade dos quadros dirigentes. O relator carateriza este movimento como uma revolução nacionalista e populista que não evitou o despoletar de reações racistas contra os mestiços. Para tranquilizar toda a classe política afeta ao PAIGC, foi proclamada uma linha política de continuidade e fidelidade às orientações do PAIGC, particularmente às do III Congresso. Sékou Touré reconheceu o regime escassas horas depois da sua implatanção, enviou a Bissau uma forte delegação governamental e fez uma oferta de mantimentos de primeira necessidade. Podem-se explicar estas atitudes pelas seguintes razões: antigo contencioso pessoal de Sékou Touré contra Luís Cabral, fundado em preconceitos racistas, e um recente conflito fronteiriço tinha azedado as relações entre os dois regimes, à volta de uma zona de águas territoriais onde prosseguiam as prospeções petrolíferas.

A posição oficial cabo-verdiana foi de condenação, trocaram-se cartas ao mais alto nível, o seu conteúdo dava para perceber que a rotura caminhava para o irreversível. O relator não deixa de apontar os aspetos que ele considera negativos: prisão de Luís Cabral, bem como a de alguns membros do Conselho Superior de Luta e de Conselho Executivo de Luta; a indefinição da direção política; a condenação emocional dos fuzilamentos e da descoberta de valas comuns não podia iludir que os “pides” e os “comandos” tinham sido os maiores criminosos ao serviço de opressão colonial, “mesmo depois da independência”; os ataques a Aristides Pereira, envolvendo-o na responsabilização por desvios; a libertação e a intervenção espalhafatosa de Rafael Barbosa; o bloqueamento das estruturas supranacionais do PAIGC.

Mas já na fase das conclusões, comenta-se que a reação nacionalista só terá frutos políticos positivos se for acompanhada pelo combate às forças de orientação política antipopular, comentando-se também que deve ser analisado o frequente apelo ao retorno ao país dos guineenses no estrangeiro, particularmente os quadros técnicos incluindo aqueles que têm estado organizados em movimentos de oposição ao PAIGC como a FLING e a UPANG. A este respeito diz-se que não se pode esquecer que estas organizações representam interesses bem específicos de camadas privilegiadas. O comunicado público do CIDAC apela à libertação dos atuais presos políticos, justificando: “A libertação dos detidos seria um passo fundamental para o diálogo interno e externo, além de não parecer fundamentado que continuem presos os camaradas que, sem prejuízo de erros e desvios, dirigiram as lutas de libertação e de reconstrução nacional, no momento em que são acolhidos e integrados elementos da oposição”.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18175: Notas de leitura (1029): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (16) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16650: Notas de leitura (896): “A Guerra da Guiné”, por António Trabulo com a colaboração de Leston Bandeira, Editorial Cristo Negro, 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2016:

Queridos amigos,
Temos aqui um trabalho surpreendente de um neurocirurgião que está reformado desde 2009 e não pára de escrever. Como ele esclarece, cumpriu o serviço militar obrigatório como médico da Reserva Naval, a bordo do navio hospital Gil Eanes, nos mares da Terra Nova.
O seu conhecimento da Guiné é puramente livresco. E este seu livro, primoroso para quem pretende iniciar-se nos principais factos desta guerra, cumpre satisfatoriamente as boas regras da divulgação imparcial.
Não hesito em sugerir a sua leitura por todos.

Um abraço do
Mário


A Guerra da Guiné, por António Trabulo

Beja Santos

Confesso ter sido uma grande e agradável surpresa a leitura de “A Guerra da Guiné”, por António Trabulo com a colaboração de Leston Bandeira, Editorial Cristo Negro, 2014. António Trabulo é neurocirurgião reformado e tem os seus trabalhos publicados na Europress, Parceria A. M. Pereira, Esfera do Caos, Editorial Cristo Negro e Fronteira do Caos. Trata-se de um livro organizado por eventos ou marcos cronológicos, tudo num considerável esforço de síntese pautado pelo rigor informativo e uma boa capacidade de divulgação. Tanto quanto sei, é depois do livro do Coronel Fernando Policarpo a grande angular sobre a guerra da Guiné.

Estando estruturado em pequenos e curtos capítulos, o autor não ilude que o seu conhecimento é livresco mas que recolheu testemunhos escritos na primeira pessoa e declara a sua independência: “Não me prendem à Guiné com os laços de amor que chegam a turvar a vista quando olho para Angola. Existem realidades que se apreciam melhor à distância". Vejamos com algum detalhe a organização de um livro cuja leitura se recomenda a todos.

Primeiro, o assassinato de Amílcar Cabral, os dados estão corretíssimos. A propósito da prisão, a mando de Sékou Touré dos conjurados que lhe vieram anunciar o assassinato, ele observa a entrada dos revoltosos na prisão: “Eram três dezenas de pessoas descalças e vestidas com camuflados, com a cabeça erguida, parecendo muito orgulhosos do que tinham feito”. E recorda a acusação do jornalista Fernando Baginha, anos mais tarde: “O golpe de 14 de Novembro de 1980 não é mais do que a continuação do golpe de 20 de Janeiro de 1973. Quer um quer outro destinava-se a levar ao poder um homem: Nino”.

Segundo, o autor descreve a utopia de Cabral à luz da formação das novas nacionalidades africanas, do pan-africanismo, das tentativas federalistas. Terceiro, dá-nos um pouco da história da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, enunciando a multiplicidade de lutas étnicas e de resistência à ocupação, destacando a figura mais singular da Guiné-Bissau antes de Amílcar Cabral, Honório Pereira Barreto. Terceiro, dá-nos a trajetória ideológica de Amílcar Cabral e a importância do período que passou na Guiné, entre finais de 1952 e inícios de 1954. Ficamos igualmente com um quadro sinótico dos movimentos nacionalistas, das etnias, do significado do massacre do Pidjiquiti. Já temos o cenário das opções da guerrilha em meio rural, começa-se a preparar a luta armada e desencadeia-se a guerrilha. O autor escolhe como acontecimentos dominantes nesses primeiros anos a “Operação Tridente” e o Congresso de Cassacá.

Quarto, a luta armada é um facto, espalha-se pelo território, desarticula-se a economia, nos anos subsequentes Arnaldo Schulz garante um enorme esforço militar, recorre a bombardeamentos e a operações por tropas helitransportadas. Há posições defensivas onde se vive no maior sofrimento. E cita Carlos Fabião: “Tite começou por ser uma desgraça. Depois ocupámos Jabadá, em frente a Tite, mas tivemos mais de 100 ataques fortes a Jabadá”. Entra em cena a guerra psicológica, os aldeamentos estratégicos, a africanização da guerra com a distribuição de armamento pelos civis das tabancas e a instrução de milícias, pelotões de caçadores nativos e a formação de companhias de caçadores africanos. Se Schulz não consegue parar a guerrilha, Spínola traz novas promessas: concentra meios, faz crescer o número das aldeias estratégicas, promove Congressos do Povo, faz escolas, estradas, inúmeras infraestruturas.

Quinto, nos seus textos sinóticos o autor refere lutas internas do PAIGC, o massacre de três majores e um alferes num período que se julgava de mudança radical da guerra no chão Manjaco, apresenta Marcelino da Mata, o aprisionamento do capitão cubano Peralta, descreve as operações “Gata Brava” e “Mar Verde”, deixa uma água-forte de Rafael Barbosa e da sua personalidade enigmática. É neste contexto que vem à baila informações sobre os prisioneiros portugueses, como se alimentavam as tropas portuguesas, quem eram os comandantes do PAIGC, os seus dirigentes políticos, do mesmo modo ficamos a saber quem eram os colaboradores diretos de Spínola. Ficamos igualmente a saber o que Amílcar Cabral pensava das mulheres bem como foram os seus dois casamentos.

Sexto, Amílcar Cabral não confinava a sua estratégia aos ataques a quartéis, a fazer emboscadas, a pôr minas e armadilhas nas picadas, foi um incansável diplomata, em 1972, o ano que precedeu a sua morte viajou 31 vezes, as Nações Unidas eram o seu objetivo maior, mas não descurava os fornecedores de armamento, alimentos e medicamentos, promovia todos os contactos necessários para arranjar bolsas de estudos para os futuros quadros. Do mesmo modo, o autor lhe dedica um texto de referência sobre o pensamento político. E assim chegamos à frustração de Spínola quando percebe que o Marcello Caetano lhe nega a abertura de negociações para uma solução política da guerra. Os textos aparecem no final da obra a um ritmo mais acelerado, fala-se dos acordos de Argel, da independência de facto, da execução de guineenses que tinham combatido do lado português, de uma nova república sempre entregue à violência, ao conflito e à instabilidade.

Na conclusão, o autor também não esconde o seu desalento: “A Guiné-Bissau não voltou a atingir o nível de cuidados primários de saúde e educação assegurados no tempo da guerra pelos militares portugueses. Os camponeses continuam a predominar no conjunto da população e a sustentar o país, mas pouco ou nenhuma influência tem na gestão da república, em que, apesar das realizações periódicas de eleições, mandam os antigos comandantes militares”. E o livro termina com a seguinte observação: “Uma das maiores vitórias de Amílcar Cabral acabou por se dar numa luta que ele sempre relegou para lugar secundário. As dificuldades impostas ao governo de Marcello Caetano pela guerrilha ajudaram a abrir os olhos de muitos oficiais portugueses para o futuro. O anquilosado regime a cair de podre. Incapaz de resolver, a tempo e com serenidade, a questão colonial, foi derrubado por uma revolta militar. Nascera de forma semelhante, a 28 de Maio de 1926”.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16639: Notas de leitura (895): "Guiné: crónicas de guerra e amor", de Paulo Salgado: texto da apresentação do livro, pelo poeta e jornalista Rogério Rodrigues

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13119: Notas de leitura (587): "Um Sorriso para a Democracia na Guiné-Bissau", por Onofre dos Santos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
O Dr. Onofre dos Santos participou em vários atos eleitorais na Guiné-Bissau, em 1994 e depois no período de 2003-2005. É um amante fervoroso da Guiné e não o disfarça.
Este livro reporta-se às eleições de 1994, são minuciosamente versadas, mostra-se a legislação, os partidos em competição, a estimulante educação cívica desenvolvida no período que procedeu o ato eleitoral, ouvem-se os comentários e os sonhos por quem suspirava por aquela ansiada alvorada democrática, pois pareciam franqueadas as portas da democracia multipartidária. Este livro é um testemunho e um registo e uma referência obrigatória para o estudo do que aconteceu na Guiné-Bissau entre 1991 e 1994.

Um abraço do
Mário


Um sorriso para a democracia na Guiné-Bissau, por Onofre dos Santos

Beja Santos

De Onofre dos Santos já aqui se fez recensão ao seu importante livro “Eleições em tempo de cólera”(*), de 2006, a reunião das suas lembranças do período em que viveu na Guiné-Bissau entre 2003 e 2005. Anteriormente Onofre dos Santos estivera na Guiné-Bissau na Missão de Observação Eleitoral das Nações Unidas a propósito das eleições de 1994 que pareciam marcar definitivamente a entrada da república da Guiné-Bissau no quadro dos países africanos em busca de uma legitimidade democrática fundada na livre escolha dos eleitores. É dessas eleições que ele escreveu o livro “Um sorriso para a democracia na Guiné-Bissau”, edição de autor, 1996.

Como ele escreve à guisa de introdução, a Guiné-Bissau era o penúltimo dos cinco PALOP a adotar um figurino democrático depois de uma década e meia de sistema de partido único. Nas eleições presidenciais houve segunda volta entre Nino Vieira e Koumba Yalá, foi um processo vibrante e com consequências no futuro. Para se chegar a essas eleições, durante três anos e meio decorreu um processo de democratização que começou pelo reconhecimento da democracia multipartidária, foram produzidas várias leis constitucionais, alterou-se a lei da imprensa, o estatuto dos jornalistas, regulou-se o acesso dos partidos políticos aos meios de comunicação social, aprovou-se a liberdade sindical, etc. Entrou em funcionamento uma Comissão Multipartidária de Transição para preparar a realização de eleições. É possível imaginar as polémicas e fricções que este processo de democratização suscitou, tanto na Assembleia Nacional Popular como nos partidos políticos.

Em 1993 foi criada a Comissão Nacional de Eleições, surgiu apoio da comunidade internacional, mormente para o financiamento do recenseamento e montagem de todo o aparelho eleitoral. Onofre dos Santos depois de apresentar este cenário onde iriam decorrer as eleições de 1994, apresentou o país de uma síntese. É desse punhado de reflexões que se retira o que ele escreveu sobre a integração falhada de Cabo Verde: “A falhada experiência de integração, projetada no próprio nome do PAIGC, nascera de um objetivo anticolonial, confirmado por uma luta sangrenta travada nas florestas da Guiné-Bissau, na qual os cabo-verdianos tiveram uma ação relevante.

A experiência colonial conjunta, a unidade cultural e étnica e o imperativo pan-africanista da unidade do continente africano, os laços seculares entre os dois países não foram suficientes para superar o ressentimento latente e profundo em relação aos cabo-verdianos, associados à presença colonial portuguesa de quem ao longo de um século foram os melhores agentes, em consequência do relativamente alto índice de alfabetização no arquipélago, onde todos os habitantes eram arbitrariamente classificados como civilizados e gozavam, pelo menos teoricamente, do mesmo estatuto legal que os portugueses metropolitanos.

De facto, a experiência colonial de Guiné e Cabo Verde, embora conjunta, teve traços de caracterização que as diferenciou, nomeadamente a interiorização pela elite colonial educada e predominantemente mestiça, da maioria dos pressupostos racistas de superioridades veiculados pela função civilizadora portuguesa e tanto bastou para que a clivagem se tornasse num fosse que desde a ascensão às independências respetivas impediu a sua maior aproximação e unificação”.

Onofre dos Santos dá-nos no seu livro um quadro abrangente do leque partidário e respetivos dirigentes, aflora as difíceis alianças a que não seriam alheios os fenómenos da fulanização e da falta de clarificação ideológica. Define depois o trabalho da Comissão Nacional de Eleições, como se processou o recenseamento eleitoral e dificuldades sentidas, como se pôs em prática um programa de educação cívica com a colaboração dos média e de formadores nas tabancas. A rádio teve um papel crucial tanto no recenseamento como na campanha e no acompanhamento minuto a minuto do ato eleitoral. A Comissão Nacional de Eleições produziu banda desenhada intitulada “A decisão está em ti” e que fazia parte do programa de educação física extensivo a todo o país. Segue-se uma apresentação quanto ao modo como a comunidade internacional interveio e apoiou o processo eleitoral. Na sequência desta exposição, o autor apresenta o sistema eleitoral, o controlo e fiscalização dos partidos políticos e o papel dos órgãos jurídicos, a que se segue uma curta abordagem sobre o papel dos observadores no processo eleitoral.

É do maior interesse o conjunto de referências que o autor apresenta sobre comentários dos candidatos como Nino Vieira, Cadogo (Carlos Domingos Gomes), Koumba Yalá, Victor Saúde Maria, François Mendy entre outros, fala-se de incompetência, violação dos direitos elementares, desastre económico, corrupção, promessas de paz e estabilidade, etc.

Entramos nas eleições legislativas e primeira volta das presidenciais, no caso das primeiras surgem reações, torna-se notório o fenómeno Koumba Yalá que procurou juntar todas as forças oponentes ao PAIGC logo que se soube que o PAIGC tivera mais votos que Nino Vieira, exigindo uma segunda volta. O PAIGC teve uma maioria de 62 lugares entre os 100 do parlamento com apenas 37 % dos votos obtidos. A Resistência da Guiné-Bissau – Movimento Bafatá teve 19 lugares e o PRS – Partido da Renovação Social 12. Quanto às presidenciais da primeira volta, Nino obteve 46,20 % e Koumba Yalá 21, 88%. Ia seguir-se o duelo entre Nino e Koumba, o fator étnico entrou em ação, houve mesmo pronúncios de violência e chegou a segunda volta das presidenciais em que as chuvas de Agosto dificultaram o acesso dos eleitores em certas zonas do país. Nino Vieira foi o vencedor com mais de 12 mil votos de diferença. A declaração final de Koumba teve a maior importância para o regresso à calma dos espíritos: “Estou contente, porque finalmente o povo da Guiné vai conquistar a liberdade”. Mas essa declaração não iludia a referência a atos de repressão e intimidação, arbitrariedades e corrupção eleitoral. Num surpreendente agradecimento, elogiou Rafael Barbosa, dizendo que na sua pessoa “está refletida a coragem e decisão dos guineenses na luta por dias melhores, em que não haja repressão, abusos, prisões arbitrárias nem quaisquer outros crimes que violem a dignidade da pessoa humana”. E continuou: “Se em termos de números perdi as eleições, em termos políticos ganhei-as largamente pois se o povo guineense mesmo atemorizado pela Segurança do Estado votou massivamente na minha candidatura, livremente ter-me-ia dado uma larga maioria do seu voto. E é essa vitória política que nos vai permitir a conquista de novas vitórias no caminho da democratização e construção do bem-estar da sociedade guineense juntamente com todos os que me apoiaram no quadro do conjunto da oposição”.

Em 18 de Agosto, tomaram posse os deputados eleitos à nova Assembleia Nacional Popular. Emerge como segunda figura do Estado Malan Bacai Sanhá, elogia-se a transição sem violência e sem ódio, o elevado grau de civismo dos guineenses. Bacai Sanhá comenta: “Esta terá sido a melhor homenagem que podia ser prestada a Amílcar Cabral e a todos os combatentes da liberdade deste país que pode ser pequeno no tamanho e ainda pobre nos seus recursos mas que é muito grande e principalmente rico na unidade que é conseguida na convivência de todos os dias e secular entre guineenses tão diferentes entre si”.

Esta a substância do livro de Onofre dos Santos. Infelizmente, os sonhos de Bacai Sanhá não se confirmaram.


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Notas do editor:

(*) - Vd. postes de:

28 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12908: Notas de leitura (576): "Eleições em tempo de cólera", por Onofre Santos (1) (Mário Beja Santos)
e
31 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12917: Notas de leitura (577): "Eleições em tempo de cólera", por Onofre Santos (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 5 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13100: Notas de leitura (586): "O Tráfico de Escravos nos Rios da Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)", por António Carreira e "Mário Soares e a Revolução", por David Castaño (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8335: Notas de leitura (242): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2011:

Queridos amigos,
Se dúvidas subsistissem sobre a grande importância dos depoimentos dos entrevistados, terá ficado esclarecido, com estas recensões, como é complexo esperar que se publique nos próximos anos uma história do PAIGC, há inúmeros pontos de encontro sob a génese do movimento de emancipação, múltiplas são as interpretações de eventos sucessivos, há silêncios inabaláveis, registos desaguados em autênticos labirintos.
Posso imaginar o pesadelo do trabalho com que os historiadores se irão confrontar para atinar com uma linha interpretativa largamente consensual… serão trabalhos de Hércules.

Um abraço do
Mário


O testemunho de Aristides Pereira* (6):
Rafael Barbosa, Silvino da Luz, Vítor Robalo e Elisée Turpin

Beja Santos

Conclui-se hoje um ciclo de recensões em torno de um vasto acervo de entrevistas que acompanham o tomo monumental “O Meu Testemunho” de Aristides Pereira, Editorial Notícias, 2003. Não é de mais salientar que se recomenda a leitura do testemunho de Aristides Pereira mas o fundamental da obra, por paradoxal que pareça, reside em entrevistas da maior importância e no próprio apenso documental, como mais tarde se fará referência.

Rafael Barbosa é uma personalidade que cabe perfeitamente num romance de John Le Carré, tal a riqueza da sua complexidade. Amado e odiado ao extremo, aquele que foi presidente do Comité Central do PAIGC e o herói sem reservas dos primeiros e decisivos recrutamentos para a luta armada, Barbosa soube cultivar o mito, deixou na bruma e no labirinto dos equívocos uma gama de atitudes que podem constituir a grandeza e a miséria do combatente que viveu à beira do vulcão o emaranhado das dúvidas e das certezas.

A entrevista que concedeu a Leopoldo Amado em Maio de 1995 é aliciante. Fala com autoridade dos diferentes movimentos para a independência que antecederam o PAIGC (PAI), com todos os nomes. Descreve as circunstâncias em que foi criado o PAI, como ele igualmente foi fundador do MLG, como surgiram as desavenças entre os dois movimentos, como ele aderiu sem tibiezas ao PAI e se tornou no mais estrénuo activista e recrutador. Conta a sua prisão em 1962. Enuncia os nomes de todos aqueles que enviou para a luta. Quando lhe perguntam o número de pessoas que enviou, ele responde com simplicidade: “Quase toda a malta que saiu aqui de Bissau fui eu que a mandei. E mesmo depois que saí da segunda prisão – já depois do célebre discurso que provocou o meu afastamento do cargo de presidente do Comité Central – mandei mais de 50 ex-presos, de um total de 93 que foram postos em liberdade”.

A sua versão quanto aos motivos que foi afastado do altíssimo cargo que tinha no PAIGC é mirabolante: terá ingerido droga através da mancarra, ficou com a cabeça baralhada, foi aliciado a ler um discurso em que repudiava todo o seu passado político. E declara: “Perguntem ao Malam N´Djai, locutor de língua mandinga, ele assistiu a tudo. Eu, a metade do discurso, perdi o sentido. Foi obrigado a repetir a leitura… Mas não parei com a luta. Escrevi uma carta para Amílcar Cabral em que lhe dizia que estava disposto, no dia em que eu conseguisse sair da Guiné, a apresentar-me no tribunal militar para ser julgado, tive aquela falha. Ele escreveu-me uma carta, tenho-a no meu processo”.

Durante a entrevista, Barbosa revela-se indignado com o comportamento dos dirigentes do PAIGC para com ele. Diz não ter recebido nenhum dinheiro do Spínola, só materiais para a construção da sua casa que também não aceitou. Foi adepto da guerrilha urbana. Quando rebentaram bombas em Bissau, voltou a ser chamado à PIDE. Em todas as circunstâncias é peremptório, identifica-se sempre como militante do PAIGC. Especula sobre o que esteve por detrás da morte de Amílcar Cabral, não hesita na importância do conflito entre cabo-verdianos e guineenses e exonera qualquer responsabilidade pessoal no assassínio, mesmo quaisquer ligações com os executores do crime. É um documento espantoso, fica-se a perceber que o lutador não morreu no político esquecido e abandonado.

Silvino Manuel da Luz faz um depoimento de alto quilate. Descreve o seu percurso de iniciação na política, na ilha de S. Vicente, como desertou na Nigéria, ele que era oficial em Angola. Oferece-nos um quadro de grande valia sobre a preparação teórica dos quadros do PAIGC de extracção cabo-verdiana. O que salta à vista é a coerência das atitudes, a força das convicções, a luminosidade dos ideais. Silvino da Luz irá com Vitor Saúde Maria às conversações secretas que tiveram lugar em Londres em Março de 1974. Dá-nos um quadro do que era o PAIGC em finais de 1973, princípios de 1974: “Cabral já pensava numa aviação. Ele mandou gente para se formar na aviação. Esses jovens dos helicópteros e dos MIG na Guiné-Bissau saíram da escola piloto durante a luta armada. Cabral estava a pensar num tipo de aviões que foram utilizados na guerra do Biafra. Aviões pequenos, capazes de voar a baixa altitude e difíceis de detectar pelos radares (…) Com Cabral, fiz uma missão à Líbia pra expor ao presidente Kadhafi a nossa necessidade dos chamados red eye, tipo de foguete antiaéreo portátil, de fabrico ocidental”. Fala-se em hesitações sobre a participação dos cabo-verdianos na luta armada, não omite as tensões interétnicas e quanto às razões da morte de Cabral diz abertamente: “problemas de diversa natureza. O chamado fenómeno do cabo-verdiano na direcção da luta, o problema dos cabo-verdianos, algum cansaço devido a uma guerra prolongada, o trabalho da PIDE, etc. etc. (…) A acção subversiva dos portugueses é ligada ao cansaço com uma luta que não parecia ter fim. Alguns tiveram a miragem de um fim rápido que despertou um aparente ódio profundo ao cabo-verdiano e ao mestiço”. Como se sabe Silvino da Luz é hoje um dos políticos mais prestigiados da República da Guiné de Cabo Verde. Será de lamentar se este homem de elevada cultura e de grande humildade intelectual não deixar as suas memórias sobre a sua participação e visão da luta armada.

O rol de entrevistas culmina com dois entrevistados de vulto, Vitor Robalo e Elisée Turpin. Sobressaem nestas confissões dados excepcionais sobre o passado da luta, olhares sobre os primórdios da luta, estes dois velhos políticos aludem às mortandades praticadas nos anos 40, era governador da Guiné Vaz Monteiro, terei sido um tempo de grande prepotência e humilhações. Registam as acções de rebeldia desde os anos 50, as disparidades entre os grupos de libertação e o papel determinante de Amílcar Cabral. São testemunhos singelos, gente que não tem nada a perder e que se considera defraudada quanto à forma como se enviesou a actividade política do PAIGC. Confessa o leitor que estas três entrevistas são indispensáveis para centrar nos bastidores numa peça cujo desfecho ainda não está esclarecido.

O apenso documental é riquíssimo, comporta peças como os primeiros estatutos do PAIGC, a criação de um movimento de libertação da Guiné, os apontamentos datados de 17 de Janeiro de 1963, da autoria de Costa Pereira, chefe da delegação da PIDE em Bissau sobre a Guiné portuguesa e os territórios vizinhos, inclui igualmente cartas de Amílcar Cabral e na parte final temos o acervo das actas dos encontros ocorridos em Londres e Argel, a seguir ao 25 de Abril. Vale a pena dedicar alguma atenção a esta riqueza documental desde o início até ao termo da luta armada.
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

20 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8141: Notas de leitura (230): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (1) (Mário Beja Santos)

28 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8176: Notas de leitura (234): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (2) (Mário Beja Santos)

3 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8209: Notas de leitura (235): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (3) (Mário Beja Santos)

17 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8286: Notas de leitura (239): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (4) (Mário Beja Santos)

20 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8304: Notas de leitura (240): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (5) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 24 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8318: Notas de leitura (241): Porque Perdemos a Guerra, de Manuel Pereira Crespo (Mário Beja Santos)