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segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20095: Notas de leitura (1212): Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
A Guiné pode gabar-se de possuir, a partir de Gomes Eanes de Zurara, relatos que foram fundamentais, no seu tempo, para dar a conhecer por toda a Europa os contornos da Costa Africana, os seus povos e as potencialidades que se abriam ao comércio e à divulgação da fé cristã.
André Donelha é contemporâneo de André Álvares de Almada, um dos nomes maiores da literatura de viagens sobre a Guiné, se bem que fique um pouco atrás na comparação, é indispensável a sua leitura por razão da etnografia, etnologia e até da antropologia. Um dado curioso para o leitor de hoje, que esteja desarmado perante a essência do que eram as viagens na época, era a fluidez da descrição de todos estes territórios como se todos eles fossem conectáveis, e há mesmo quem proponha que depois das ilhas atlânticas era para aqui que a Coroa devia mandar gente, tais e tantas eram as maravilhas encontradas.

Um abraço do
Mário


Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (1)

Beja Santos

Dando continuidade ao que há de melhor da literatura de viagens na Costa da Guiné, desde o século XV ao século XVII, dirigimos a atenção para um relato que, não podendo competir no brilho da observação da obra de André Álvares de Almada, complementa e enriquece muita informação anterior sobre as paragens entre o rio Senegal e a Serra Leoa. O Almirante Teixeira da Mota trabalhou arduamente neste documento e na investigação sobre o autor. Merece com elementar justiça que destaquemos as suas observações.

O pouco que se sabe acerca de vida de André Donelha é aquilo que consta ou se infere do seu escrito sobre a Guiné. Terá passado a infância em Santiago, e pelo facto pode ser considerado um escritor cabo-verdiano, tal como André Álvares de Almada. Esteve, pelo menos, três vezes na Guiné, o que deve corresponder a outras tantas viagens que fez. Encontrava-se embarcado na armada de António Velho Tinoco, Capitão da cidade da Ribeira Grande, quando da batalha que ele travou, vitoriosamente, contra os Franceses, nas proximidades da Aguada das Naus da Índia, no rio da Serra Leoa, em 1574. Na sua descrição, Donelha diz ter conhecido o rei Beca Caia em S. Domingos, o que poderia ter-se verificado nesta viagem de 1574. Em 1581, Donelha esteve no Bruco, morada do rei de Guinala, a fim de vender dois cavalos, observou então a cerca feita com ossos dos Fulas vencidos aí na grande batalha travada no século XV.

Neste tempo o distrito da Guiné estendia-se do rio Sanaga (Senegal) até à Serra Leoa. A Descrição de Donelha esteve séculos no olvido. Consta dos manuscritos reunidos em volume na Biblioteca da Ajuda: “Neste livro se contêm as primeiras relações do descobrimento da Costa da Guiné, Mina, Cacheu, Angola, Congo, Benguela e outros Reinos e Nações; seus costumes, exercício, e de muitas e admiráveis Árvores, Plantas, Animais, Peixes, Minas de Ouro, Cobre, Cristal, Sal, e outras muitas coisas”.

Donelha viajou na Guiné entre 1574 e 1585, foi contemporâneo de André Álvares de Almada. Convém recordar que a corrente da literatura de viagens esboça-se no século XV mas corre pelo leito mais impetuoso nos séculos XVI e XVII, é aqui que tem o seu auge. Está intimamente relacionada com aquilo que Jaime Cortesão definiu como o “humanismo universalista dos Portugueses”, cujas raízes, segundo ele, mergulham no franciscanismo; o nascimento e os primeiros tempos da ordem franciscana foram acompanhados de uma profunda renovação das ciências geográficas e da literatura de viagens, campos em que os franciscanos se notabilizaram.

Entre os portugueses essa corrente traduz-se já, dos fins do século XV para os começos do século XVI, na coletânea de relatos anónimos recolhidos pelo impressor Valentim Fernandes e no Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira. Contrariando o que se verifica nas restantes obras portuguesas destes tempos relativas à Guiné de Cabo Verde, em que a ordem da exposição é sempre de Norte para Sul, começando por o Senegal, Donelha inicia o seu relato com a Serra Leoa. Neste texto vamo-nos cingir aos capítulos 7, referente ao grande imperador Mandimansa e aos seus principais Farins ou reis Mandingas, no capítulo 8, em que Donelha se ocupa do rio Sanaga, ao Cabo Verde e aos Jalofos, matéria que prossegue no capítulo XIX, em que trata mais especialmente do Grão Jalofo; dá-se depois um salto para o capítulo XIV em que se trata da zona entre o rio Gâmbia e o Rio Grande e dos seus habitantes (Cassangas, Banhuns, Bramos e Beafares).

Almirante Avelino Teixeira da Mota
Teixeira da Mota procede a uma comparação entre André Álvares de Almada e Donelha e diz que Almada é marcadamente mais rico em tudo o que se refere ao comércio, sobretudo na enumeração dos produtos e mercadorias, e bem assim na informação etnográfica, que é sensivelmente mais pormenorizada e mais vasta; note-se, por exemplo, que Donelha não fala nos Felupes, e no tocante a povos tão importantes como os Balantas e os Bijagós apenas deles menciona os nomes. Quanto a animais, Donelha é mais rico pois individualiza 39, enquanto Almada só refere 11. Embora em menor grau, também Donelha leva à palma no respeitante a plantas, pois refere 35 ao passo que Almada indica 29.

No manuscrito que nos chegou de Donelha não há qualquer título, Donelha limita-se, no prólogo, a dizer que fez um “memorial” do que viu e soube no decurso das suas viagens. A palavra memorial não é de uso corrente na época: Almada usa Tratado Breve dos Rios (ou Reinos) da Guiné do Cabo Verde, o padre Manuel Álvares emprega Descrição Geográfica da Província da Serra Leoa, fórmula próxima da Descrição da Costa da Guiné, a que Lemos Coelho recorreu nos seus textos. “Inclinamo-nos, por isso, a escolher um título começado também por descrição”. Dá grande explanação à Serra Leoa. À semelhança de outros viajantes, verifica-se que a Guiné de Cabo Verde se estende entre o rio Senegal e um lugar indeterminado, é um território usualmente dividido em três regiões nos documentos da época: Costa do Jalofo, rios da Guiné e Serra Leoa. Posto este admirável elenco de comentários, demos a palavra a André Donelha.

(Continua)
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Último poste da série de 23 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20087: Notas de leitura (1211): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (20) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19763: Antropologia (30): Valentim Fernandes e o seu monumento literário “Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (2) (Mário Beja Santos)

Excerto do manuscrito de Valentim Fernandes extraído do blogue Quadrivium


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2016:
Queridos amigos,
O viajante Valentim Fernandes legou-nos uma narrativa que é um documento histórico, trata-se de um manuscrito que abarca o Senegal, a região correspondente à Guiné Portuguesa, a Serra Leoa, e muito mais. É meu propósito fazer uma compilação para onde convirjam nomes maiores da literatura de viagens, isto a propósito da Guiné: Zurara, Donelha, Cadamosto, Duarte Pacheco Pereira, Valentim Fernandes, e os que se seguem. É uma tremenda lacuna não se oferecer ao leitor contemporâneo uma sequência de olhares, descrições e panoramas que deem uma melhor compreensão às mentalidades destes homens da idade moderna, um fio condutor que gere mais chaves explicativas para o conhecimento da Guiné e dos guineenses.

Um abraço do
Mário


Valentim Fernandes e o seu monumento literário 
“Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (2)

Beja Santos

Em 1951, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa publicava uma obra fundamental da literatura de viagens quinhentista de autoria de Valentim Fernandes, também conhecido por Valentino de Morávia, era natural da Alemanha, tipógrafo de profissão, veio para Portugal nos últimos anos do século XV e trabalhou associado a outro impressor, também alemão, Nicolau de Saxónia. Três importantes estudiosos apresentavam o documento: Théodore Monod, Avelino Teixeira da Mota e Raymond Mauny. Tratava-se de um acontecimento, ir repescar um manuscrito conservado na Biblioteca de Munique e que tem a originalidade histórica de referir o Senegal, o litoral da futura Guiné Portuguesa, as ilhas de Cabo Verde, S. Tomé e Ano Bom. É uma escrita cheia de vivacidade, onde se descrevem plantas e animais, costumes indígenas, ritos religiosos e onde se regista com clareza o conhecimento exato e profundo que os portugueses já tinham da costa da Guiné, do Senegal e da Serra Leoa. Valentim Fernandes escreveu no seu próprio punho o documento, desenhou as cartas que Conrad Peutinger compilou em volume, hoje na biblioteca de Munique.

Dando continuação a esta espantosa narrativa, importa recordar que Valentim Fernandes é um viajante profundamente atento aquilo que hoje, em termos disciplinares, abarca a antropologia, a etnologia e a etnografia. A viagem em plena Terra dos Negros leva-o a observar e a pedir explicações sobre a justiça dos Mandingas. E faz um largo comentário que se inicia do seguinte modo: "Qualquer malefício que algum negro fizer ou furto de se seja acusado, corta-lhe o rei a cabeça e manda-lhe tomar toda a sua fazenda e toda a sua geração, assim que por causa do malfeitor ficam todos os seus parentes destruídos”. E anota o que interessa comprar na região: “As coisas que destas terras trazem são papagaios verdes, ouro, porém pouco, escravos e escravas, panos de algodão, coiros”. Está igualmente atento a usos e costumes, aos modos de comunicação quando os nativos se encontram: “Costume entre eles é assim dos grandes como dos pequenos que quando um se acha com o outro depois de muito tempos se não virem como cá nos abraçamos eles se põem em joelhos e os cotovelos em terra e com as mãos cobrem os olhos, e dão com os cotovelos no chão muitas vezes, e depois de no chão com um cotovelo e com o outro alça terra e a lança trás de si ou em cima de si”. Valentim Fernandes terá o todo pela parte, certamente que lhe deram a saber que os Mandingas eram mais que preponderantes, praticamente senhores absolutos da região: “Esta geração de Mandingas é a maior geração de uma língua que não há outra tão grande em toda a Guiné”. E apreciou algo que ainda hoje é visível desta zona da África Ocidental: “As mulheres desta terra e em toda a Guiné roçam e cavam e semeiam e mantêm o marido e fiam algodão e fazem muitos panos de algodão assim para se vestirem como para vender”. E chega o momento de apresentar a fauna: “Alifantes há em Mandinga muitos e por isso são grandes monteiros que os matam com arpões postos numa haste de lança e os arremessam. Búfalos há muitos e bravos. Onças muitas. Gatos muitos, com rabos longos e de desvairadas feições e maneiras de cores. Corças muitas. Gazelas ruivas em grandes manadas. Lebres há muitas. Coelhos nenhuns. Vacas poucas e pequenas. Há porcos monteses”. Interessa-se também pela fauna marítima: “Lagartos e muitos grandes são de 30 pés em lombo e quando homens ou mulheres ou vacas vêm para o rio estes lagartos os matam e comem-nos.
Os guinéus matam os lagartos desta maneira. Os pescadores quando vêem o lagarto dormir em terra estando eles em almadias (canoas) espantam-no e o lagarto espantado vai a correr para a água e se mete no fundo na lama e o pescador onde vê bulir para cima a água sabe que ali jaz o lagarto e introduz numa haste comprida, arpão de ferro longo e põe-lhe uma boia na haste com cordel, e logo vai fugindo ao lagarto e se torna a meter debaixo do fundo. Então o segue o pescador e lhe assenta o arpão. E assim tantas vezes até que o cansa e o mata”. E descreve finalmente os frutos e demais alimentos: frutos que parecem maçãs, coco, limões, trigo, feijões brancos, cera e mel.

Estamos agora no Cabo Santa Maria, ponta do rio Cantor. Fala dos Barbacins, Jolofos, Mandingas e Tucurães. Prossegue a viagem pelo rio Casamansa que ele apresenta assim: “É um rio de muito resgate. E vão os navios por este rio acima até 18 léguas e ali é o reino de Casamansa. Neste reino há muita gente misturada de todas as gerações como Mandingas, Felupes e Balangas. Os moradores deste reino são tecelões e fazem panos de muitas maneiras e cores. O rei é de geração Mandinga e se chama Casamansa”.

Nos termos deste livro, a que acaba a narrativa do Rio Senegal ao Cabo Roxo, feita pelos dois investigadores Théodore Monod e Raymond Mauny. A descrição seguinte “Do Cabo Roxo ao Cabo de Monte” é da responsabilidade de Avelino Teixeira da Mota.
Chegámos ao que é hoje a Guiné Portuguesa, e Valentim Fernandes escreve: “Rio de São Domingos é um rio em que entram navios por ele acima 60 léguas. Por aqui vêm os navios das ilhas do Cabo Verde para fazer o resgate do seu algodão para panos assim como em Casamansa”.

Sempre atento aos costumes e modos de viver, observa: “Têm costume nesta terra que de 8 em 8 dias se faz uma feira a qual quando em uma semana se faz em terça-feira outra semana se faz em segunda. Vem a esta feira gente de 15 a 20 léguas em derredor”. Faz uma larga referência aos Banhuns e dá conta do que está perto de S. Domingos: "em frente deste esteiro deste rio de São Domingos contra a banda do Sul está uma terra que se chama Caticheo (Cacheu) e tem rei sobre si. Tem também feira e vão à feira dos Banhuns e os Banhuns a estes”.

A viagem prossegue, chegam ao canal de Geba: “Rio Grande chama-se assim por ser muito grande e de grande largura e há na boca dele 8 ou 10 léguas e é rio de grande força de água e de grandes correntes". Descreve os negros do rio Grande e a viagem continua pelos Bijagós, daqui partem para a Serra Leoa.

Devemos a Valentim Fernandes uma correnteza espantosa de observações, é um grande pioneiro da literatura das viagens, aguçado pela curiosidade e certamente interessado em trazer um reportório informativo que lhe desse notoriedade.

Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History
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Nota do editor

Poste anterior de 1 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19734: Antropologia (29): Valentim Fernandes e o seu monumento literário “Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 7 de abril de 2019

Guine 61/74 - P19654: (Ex)citações (352): O amendoim ('mancarra'), a semente do Diabo ('Iblissa', em fula) (Luís Graça / Cherno Baldé)


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > BART 2917 (1970/72) > Tabanca fula em autodefesa do Regulado de Badora ou talvez do Regulado do Corubal, como Sansancuta... Crianças.

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Ano
Mil toneladas
Mil
contos
Contos por tonelada
1960
24,0
78,8
3,27
1961
40,0
126,3
3,17
1962
38,7
133,3
3,44
1963
36,6
124,7
3,41
1964
34,0
119,2
3,50
1965
15,2
64,3
4,23

Quadro  - Exportação do amendoim (1960-1965). Há uma evidente quebra das exportações com o início da guerra, e mais acentuadamente em 1965. O valor máximo das exportações, em milhões de escudos, foi em 1962, com um um total de 133,3 (o equivalente hoje a cerca de 54,2  milhões de euros. Em 1965, esse valor baixou para 64,3 milhões de escudos (o que equivaleria hoje a c. 25, 2 milhões de euros. 

Fonte: Adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1996, 44 pp., policopiado.

1. Comentários ao poste P19648 (*)

(i) Luís Graça:

Meu caro Mário: obrigado pro mais esta "pepita de ouro" para a historiografia da presença portuguesa na Guiné... Ao ler o excerto do documento que "descobriste" na Sociedade de Geografia, passo a perceber melhor o sentido da expressão, que ouvi aos fulas do regulado de Corubal, "Mancarra, semente do diabo"... Se o Cherno Baldé me ler, que me corrija... 

De qualquer modo há aqui um grande sabedoria africana, alicerçada na experiência (amarga) da imposição a África, pelo colonialismo europeu, no séc. XIX, da cultura das oleaginosas...

Vd. aqui um excerto de um poste que publiquei há 12 (!) anos, como o tempo passa!(**)


(...) É interessante notar que na mitologia fula a mancarra (amendoím) esteja associada ao Diabo em pessoa (Iblissa).

O cherno Umaru, que dirige uma pequena escola nesta tabanca de Sansancuta, do regulado do Corubal, e que se prepara, como bom muçulmano devoto (Tijanianké), para fazer no próximo ano a sua peregrinação a Meca (Iado Hadjo, em fula) e assim juntar ao seu nome o título venerando de Al-hadj, contou-me, por intermédio do José Carlos Suleimane Baldé (o meu braço direito, guarda-costa, intérprete, cozinheiro, secretário – é um dos nossos poucos soldados que sabe ler e escrever português, daí ser soldado arvorado e em breve 1º cabo (...) - contou- me ele a seguinte estória:

- Um dia Iblissa (o Diabo) quis desafiar a autoridade divina de Mohamadu (o Profeta Maomé). Tinha chovido muito e o Profeta dissera que então nasceriam todas as sementes que fossem lançadas à terra. O Diabo, em vez de uma semente de milho ou de arroz, deitou leite numa cova que ele próprio tinha feito no chão. Mohamadu, intrigado e inquieto com a provocação de Iblissa, foi falar com Alá, que lhe mandou guardar uma semente. E, ao fim desse tempo, não é que do leite nasceu mesmo a mancarra ? (...)


(ii) Cherno Baldé:

Caro amigo Luis,

Já conhecia a mitologia fula sobre a origem da mancarra, todavia, vivendo no meio social fula desde a nascença, não me suscitou especial curiosidade porque não há uma nem dez, são centenas de mitologias à volta dos mais diversos assuntos que, à partida, não faziam parte da vida social, económica e cultural dos fulas.

No caso particular da mancarra que os fulas descobriram primeiro no Senegal e depois na região do Rio Grande de Buba (Guinala) é, antes do mais, um produto associado ao homem branco e logo ao Diabo em pessoa. 


Se a este facto acrescentarmos o factor trabalho intensivo que a produção deste produto exige, não é de estranhar que os indígenas tivessem uma clara aversão à sua prática, o que justificaria a sua diabolização.

Já a partir dos anos 50 a sua produção estava tão vulgarizada e dispersa no território, devido à imposição dos impostos de capitação em parte, mas também pelo forte incremento e dinâmica que se assistia no vizinho Senegal, que este velho mito estava morto e enterrado. 


Antes do início da guerra, a principal actividade, na zona leste, estava associada ao seu cultivo e comercialização e, pelo meio, um salto até ao Senegal (durante a campanha sazonal da colheita da mancarra) para os jovens, para angariação de um pé de meia antes do primeiro casamento.

Com o início da guerra, a ida à tropa/milícia substituiu em parte esta prática iniciada desde o séc. XIX e diminuiu a produção deste produto, antes de desaparecer com a independência.

Certamente, o "Iblissa" (o diabo) dos fulas dos séc. XVIII/XIX e XX, está intimamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo internacional na sua frenética voracidade de acumulação do capital e neste sentido emergimos da arcaica mitologia indígena para a realidade do mundo em rápida globalização a que nenhum povo do planeta escapou.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé (***)

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(*) Vd. poste de 4 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19648: Historiografia da presença portuguesa em África (156): Um relato histórico guineense do maior interesse: O documento do capitão Caetano Filipe de Sousa, de 1883 (Mário Beja Santos)

(**) Vd. 14 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2048: Cusa di nos terra (4): Mancarra, semente do diabo (iblissa, em fula) (Luís Graça)

(***) Último poste da série > 6 de março de 2019 > Guiné 63/74 - P19557: (Ex)citações (351): Manel Pereira, amigo e camarada. Reencontro em Monte Real. (José Saúde)

sexta-feira, 1 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19541: Agenda cultural (673): Entrudo Chocalheiro, Podence, Macedo de Cavaleiros, 2-5 de março de 2019... Porque A Vida São Dois Dias, e o Carnaval São Três... E Portugal Não é Só Lisboa ... E Eu Vou Lá Estar!... (Luís Graça)




Página dos Caretos de Podence






Programa do Entrudo Chocalheiro, Podence, Macedo de Cavaleiros, Trás-os-Montes, Portugal
Com a devida vénia (*)... 



A vida é um entrudo chocalheiro

por Luís Graça

A vida é um teatro,
A vida é um anfiteatro grego antigo,
A vida é um jogo de máscaras,
A vida é ora tragédia, ora drama, ora comédia,

A vida é um jogo onde não há "final feliz",
A vida é representação, subversão e transgressão...
... Mas nunca digas que a vida é uma merda, 
amigo, companheiro, camarada!


Representas múltiplos papéis no teu palco,
enquanto a vida flui, do nascer ao morrer.
Papéis que tu escolhes, uns,
e outros que te impõem.
Quem é o encenador ?
Quem escreve o guião ?

Quem é o dono do palco ? 
Quem te faz a máscara, a tira e a põe?
E o chocalho, para não te perderes 

no teu mundo imaginário ?
Às vezes és ator, canastrão,
e vaidoso dono da ribalta 

e do proscénio e do cenário,
outras, mero e reles figurante.

Representas diversos papéis, 
bem ou mal mascarado,
ora emboscador, ora emboscado,

ora embrulho, ora embrulhado,
ora presa, ora predador,
ora herói, ora vilão,
ora sedutor, ora apanhado,
ou simples gato e rato.

Muitas máscaras chegaram-te 
até aos dias de hoje:
a "toga" do senhor doutor juiz, 

que,"cego, surdo e mudo",
decide da tua vida e da tua morte;
o "capuz" do carrasco, que te enforca;
o "traje académico", na universidade,
separando o sabichão do mestre 
e o pobre do aprendiz;
o "camuflado" do combatente na Guiné, 

que também te servia de mortalha,
a "farda" militar, que te impõe 
a unidade de comando-controlo
e a hierarquia na tropa e na guerra;
os "paramentos" do celebrante da missa cristã, o sacerdote,
as "vestes" do feiticeiro,
ambos fazendo a ponte entre dois mundos
que, só por magia, ou pela fé, se tocam,
a terra e o céu,
o sagrado e o profano,

o corpo e a alma; 
ou ainda a "bata branca" do médico ou da enfermeira,
que não é apenas uma simples peça 
de vestuário de trabalho;
ou o "título de chefia" 

que te eleva até ao trono ou ao altar,
mostrando a tua cabeça alguns centímetros acima da multidão.

Das máscaras do terror do passado
às máscaras de hoje
que te ajudam a exorcizar o medo de viver e morrer,
ou a virar o medo do avesso,
como diria o poeta Miguel Torga,
o medo que é inerente à condição humana,
a do "homem sapiens sapiens",
no terror do tsunami,
no absurdo da guerra,

no dignóstico e prognóstico do cancro fatal,
no estertor da morte...

Mas a máscara também está associada 
à festa, 
à terra,
aos tambores, 
à gaita de foles, 
aos chocalhos,
ao pão, ao queijo de ovelha e de cabra,
aos enchidos, ao vinho...
Porque não há festa sem o pão
e o vinho, a música, a folia,
a transgressão, 

a subversão dos papéis,
o entrudo,
o carnaval,
o terreiro,
esse fantástico chão português
que foi e ainda é o teu chão,
de Trás-os-Montes ao Algarve,
e os caretos de Podence (**), Grijó e Lazarim...
Sim, a vida é um entrudo chocalheiro,
a vida são dois dias,
e o carnaval são três.

... E eu quero lá estar!

Luís Graça, 14/2/2018,

revisto, 1/3/2019 (***)
__________


(**) Vd. também poste de 9 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16067: Manuscrito(s) (Luís Graça) (83): As nossas máscaras, ontem e hoje... Apontamentos sobre o XI Festival Internacional da Máscara Ibérica (Lisboa, 6-8 de maio de 2016)

(***) Vd. poste de 14 de fevereiro de  2018 > Guiné 61/74 - P18316: Manuscrito(s) (Luís Graça) (138): a vida são dois dias e o carnaval são três

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19307: Historiografia da presença portuguesa em África (141): As tribos da Guiné Portuguesa na História, pelo Padre A. Dias Dinis (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Naqueles anos de 1946 e 1947 falava-se fluentemente em tribos, em gentio, em incivilizados, em raças. O conhecimento histórico era nebuloso, a historiografia sobre África, e sob impulso das escolas francesas, inglesas e alemã, está a dar os seus primeiros passos firmes. O que se conhece é a literatura de viagens, ao recurso a relatórios, alguns trabalhos de campo como os que foram assinados pelo Padre Marcelino Marques de Barros.
A Agência Geral das Colónias e a Sociedade de Geografia de Lisboa procuram suprir lacunas. O Padre Dinis Dias, diga-se em abono da verdade, trabalhou que se fartou, leu Zurara, André Álvares de Almada, Valentim Fernandes, a obra do antigo governador Carvalho de Viegas, não podemos acusá-lo de que trabalhou às três pancadas, inclusivamente leu uma importante obra do seu tempo, Histoire de l'Afrique Occidentale Française, de J. L. Monod, de 1937. Depois dele, tudo seria mais fácil, quando o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa passou a produzir obras que ainda hoje são de referência na historiografia guineense.

Um abraço do
Mário


As tribos da Guiné Portuguesa na História, pelo Padre A. Dias Dinis (3)

Beja Santos

O padre franciscano A. Dias Dinis viveu cerca de seis anos na Guiné e empolgou-se com as questões do mosaico étnico, em 1946 produziu um trabalho que iria ser publicado em quatro números de “Portugal em África, Revista de Cultura Missionária”. É bem percetível que procurou estudar e conhecer o que de mais recente fora publicado nos domínios da História, da Antropologia, Etnologia e Etnografia. Neste último texto far-se-á referência ao que ele observou e estudou dos Bijagós, Nalus, Fulas e Futa-Fulas.

Diz que o nome de Bijagós é relativamente tardio, remontavam a 1462 as primeiras notícias dos portugueses sobre aqueles indígenas, então observados pelo navegador Pedro de Sintra. Cadamosto também escreveu sobre os Bijagós dizendo que numa das ilhas “tinham desembarcado e falado com os seus negros, mas que não puderam ser entendidos; e que andaram algum tanto pela terra dentro, até às suas habitações, que eram choupanas de palha pobríssimas, em algumas das quais acharam estátuas de ídolos de madeira; pelo que deles puderam compreender, estes negros são idólatras e adoram aquelas estátuas; e, não podendo ter nem entender outra coisa deles, seguiram a sua viagem pela costa mais avante, e tanto caminharam que chegaram à boca de um grande rio largo…”. Nos mapas primitivos, o arquipélago dos Bijagós tinha o nome de «Ilhas de Buam». Valentim Fernandes refere-se a estas mesmas ilhas com tal nome dizendo que eram povoadas e abastadas de mantimentos. Para este autor missionário, Mármol seria o primeiro autor a usar a palavra Bijagós na forma de Bigiohos. André Alvares de Almada dedica um capítulo aos Bijagós, diz que eram muito guerreiros, que andavam continuamente em luta, assaltando as terras dos Brames e dos Biafadas. Almada informa não haver rei entre os Bijagós. Os homens ocupavam-se em três coisas: guerra, fazer embarcações e tirar vinho das palmeiras e diz que “As mulheres fazem as casas e as searas, pescam e mariscam e fazem todo o mais serviço que fazem os homens em outras partes”. Descreve a indumentária, faz alusão à facilidade com que o Bijagó se suicida, descreve os seus produtos. Mantem-se em aberto a questão posta pelo autor: De onde terão vindo os ascendentes dos Bijagós atuais?

Os Nalus habitam as regiões de Tombali e de Cacine, Valentim Fernandes, Duarte Pacheco Pereira e Almada fazem deles esparsas referências. Almada diz que os Nalus na linguagem e no traje eram muito diferentes dos vizinhos Biafadas. Há referências aos escravos Nalus que chegavam por intermédio dos Biafadas de Cubisseco e de Bolola e que recebiam o chumbo como a mais apreciada das mercadorias. Ainda segundo Almada, os Nalus acreditavam que as suas almas andavam metidas em animais ferozes e que morrendo o animal também morriam as suas almas. Os Nalus teriam vindo a ser progressivamente rechaçados primeiro pelos Biafadas e depois pelos Balantas, acomodando-se na apertada região onde hoje habitam.

Estranhamente, o Padre Dias Dinis é muito lacónico acerca dos Fulas e Futa-Fulas. Diz que são os Peuls do território francês. Diz que entraram para a nossa colónia em data incerta, mas relativamente recente. Terão feito parte do grande Império Fula, um império que principiava no rio Senegal e se estendia para o Sudão, em concorrência com o império dos Mandingas. Nos primeiros anos do século XVI, segundo conta Almada, os Fulas atacaram os Mandingas da Gâmbia e desceram até ao rio Geba onde foram destroçados. Os Fulas são gente fortemente mestiçada, acobreados e de feições corretas, geralmente.

E faz a seguinte referência aos Futa-Fulas, diz que são provenientes do Futa-Djalon, enviados outrora ao Forreá pelos almanis, para extensão da sua supremacia política pela nossa Colónia, são os indígenas de feições mais corretas que topámos na Guiné Portuguesa. Representam o tipo mais aproximado do Fula clássico.

E procede às seguintes conclusões:

1. Os autores propriamente Quatrocentistas, como Zurara, Cadamosto, Martinho da Boémia e Jerónimo Münzer não aludem ainda às etnias da Guiné Portuguesa;

2. Roteiros do século XV, recolhidos nos primeiros anos do século XVI por Valentim Fernandes Alemão e ainda a obra de Duarte Pacheco Pereira inserem referências, por vezes minuciosas às etnias Mandinga, Felupe, Balanta, Banhum, Biafada e Nalu;

3. Nos fins do mesmo século XVI, André Alvares de Almada refere-se já à situação geográfica, usos e costumes dos Mandingas, dos Arriatas, dos Felupes, dos Jabundos, dos Cassangas, dos Brames, dos Fulas, dos Sapes, dos Balantas, dos Biafadas, dos Bijagós, dos Nalus, dos Bagas e Cocolis;

4. Algumas destas etnias desapareceram do território português atual, fundiram-se com outras ali existentes ou mudaram simplesmente de nome, caso dos Arriatas, dos Jabundos, dos Bagas e dos Cocolis;

5. Os dados históricos, geográficos e etnográficos parecem permitir a identificação dos atuais Papéis com os antigos Sapes, oriundos da Serra Leoa e entrados na Guiné no século XVI;

6. Parece ter havido, no mesmo século, uma grande invasão Mandinga para dentro da Guiné, impelida por uma maior invasão Fula, partida da Gâmbia e que atingiu o rio Geba, não ficando porém no território os invasores Fulas; a mancha geográfica e a influência político-religiosa dos aguerridos Mandingas alastrou, desde o século XVI, por todo o Norte e Centro do colónia, descendo até às regiões do Quínara e do Cubisseco, mancha e influência a pouco e pouco reduzidas aos retalhos atuais, sobre a pressão da recente invasão Futa-Fula.

7. São de formação ou de aparecimento muito recente na colónia, as tribos dos Baiotes e dos Manjacos, devendo constituir os primeiros uma subdivisão dos Felupes e mostrando-se aparentados os segundos com os Brames e Papéis.

8. As presentes notas provam que é possível reconstituir, em boa parte ao menos, a evolução histórica e etnográfica das principais etnias da atual Guiné, com base nos autores nacionais e estrangeiros dos séculos passados, especialmente nos relatos de viagens à costa da Guiné.

9. Documentam ainda terem sido poucas as deslocações das etnias da colónia, entre os séculos XV e XX, assim como o facto de elas haverem mantido sensivelmente os mesmos usos e costumes, ou seja, o mesmo nível de civilização primitiva.

E assim termina o trabalho deste franciscano que devotou alguns anos da sua vida nas missões da Guiné.

 A Senhora de África

Imagem retirada do jornal “O Comércio da Guiné”, abril de 1931.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19281: Historiografia da presença portuguesa em África (139): As tribos da Guiné Portuguesa na História, pelo Padre A. Dias Dinis (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19281: Historiografia da presença portuguesa em África (140): As tribos da Guiné Portuguesa na História, pelo Padre A. Dias Dinis (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
No mesmo ano em que o padre Dias Dinis começava a dar à estampa este seu trabalho sobre as etnias guineenses, surgia o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e a sua publicação de referência, o Boletim Cultural, ainda hoje de consulta obrigatória. Foi a partir dessa data, por incentivo de Teixeira da Mota, que os funcionários coloniais começaram a publicar trabalhos monográficos sobre as diferentes etnias, assim se abria a via para um certo desabrochamento em período colonial das investigações em antropologia, etnologia e etnografia. Isto para sublinhar que este franciscano, padre Dias Dinis, vem de outro tempo de leituras e observação, seria lastimável deixar no olvido uma tão ternurenta expressão pelo deslumbramento do mosaico étnico guineense.
É o que aqui pretendemos fazer.

Um abraço do
Mário


As tribos da Guiné Portuguesa na História, pelo Padre A. Dias Dinis (2)

Beja Santos

O trabalho do franciscano padre Dias Dinis foi publicado em “Portugal em África, Revista de Cultura Missionária”, com datas de 1946 e 1947, constitui um meritório esforço para a análise, com recursos parcos das ciências sociais e humanas do tempo, das etnias da Guiné Portuguesa. No texto anterior, fizeram-se referências a Felupes, Baiotes, Banhuns, Cassangas e aos Balantas. Vejamos seguidamente os Manjacos e Mandingas.

Os Manjacos habitam a região de entre os rios Cacheu e Mansoa até à Costa de Baixo e as ilhas de Pecixe e Jata, território dos Brames, segundo André Alvares Almada. O padre Marcelino Marques de Barros faz derivar os Manjacos dos Papéis. Sem dúvida, Brames, Papéis e Manjacos mantêm afinidades etnográficas e linguísticas, que podem ter brotado de cruzamentos havidos durante séculos. Papéis e Brames são inimigos há dezenas de anos, com rixas frequentes e sanguinolentas na sua história mais recente, o que pode denunciar protesto dos Brames contra o predomínio político dos Papéis na ilha de Bissau, de onde os Brames foram escorraçados.

O autor trata os Mandingas como uma das etnias mais vetustas, habitavam as regiões de Farim, Oio e Pecixe. O berço desta etnia é situado pelos historiadores no Alto Níger, onde vivia o seu Chefe ou Mansa. Na primeira metade do século XIII, o Mansa de nome Sun-Diata conseguira estender a hegemonia dos Mandingas do Mali por grande parte dos territórios circunvizinhos, caso dos Jalofos e a Gâmbia. O apogeu do Império Mali aparece situado em meados do século XIV. O Mansa achava-se em contacto com os sultões brancos da África do Norte. O império estava dividido em províncias e cantões, administrados por governadores e lugares-tenentes, esta informação foi prestado pelo geógrafo árabe Ibn Batuta. Zurara fala no Império de Méli. Aos Mandingas da Gâmbia se referem Cadamosto e Martinho da Boémia. Mas as notícias mais extensas e precisas foram-nos transmitidas por Valentim Fernandes. André Álvares de Almada alude aos Mandingas em vários capítulos da sua obra, assim circunscrevendo o reino: “Este reino dos Mandingas é mui grande, porque corre por este rio (Gâmbia) acima mais de duzentas léguas. E está povoado todo de gente, de uma banda e da outra. Pela banda do Norte, se mete muitas léguas pelo sertão até partir com os Jalofos, e quase que estão todos de mistura. E, pela banda do Nordeste, vai por cima dar na terra dos Beafares (Biafadas), como se dirá; e, pela banda de Leste, vai partir com os Cassangas e Banhuns”. Almada assevera que estes indígenas formavam muro por cima dos Cassangas e demais tribos do além-Cacheu e estendiam-se por Goli, povoação das margens do Geba (Porto Gole), até à região dos Beafadas. A zona dos Mandingas ter-se-á alargado, portanto, durante o século XVI, para a região de Mansoa e até às margens do estuário comum aos rios Geba e Corubal.

Passemos agora em revista o que Dias Dinis descreve sobre os Papéis, os Brames e os Biafadas.

Não há qualquer referência aos Papéis nem em Valentim Fernandes nem em Duarte Pacheco Pereira, a primeira referência data de 1573, foi de Luís del Caravaial Mármol, o qual, depois de falar do rio Cacheu, escreve: “A Província que segue é a dos Papéis, onde nasce um outro grande rio, que eles chamam das Ilhetas, por causa de duas pequenas ilhas povoadas de negros, que se encontram na sua foz”. O rio em questão é o Mansoa. Aparecem pois localizados entre o Geba e a ilha de Bissau, viveriam predominantemente aqui. Trocavam com os portugueses diferentes mercadorias, como ouro, escravos e presas de elefante; os portugueses levavam cavalos, contas, manilhas e panos. Diz Valentim Fernandes que chegaram a dar 14 escravos por um cavalo. Diz o padre franciscano (atenção, escreveu o seu documento em 1946) que o Papel é a única etnia guineense a estimar a carne de cão como alimento. Segundo ele, na ilha de Bissau trocavam um bom porco por um cão magro, para o comer, “segundo ali me informou um velho colono”. Os Papéis estariam dispersos pela ilha de Bissau, pelas imediações da vila de Cacheu, onde seriam tratados por Papéis do Churo.

Quanto aos Buramos ou Brames ou Mancanhas, distribuíam-se pelos regulados de Bula, Có e Jol, entre os rios Mansoa e Cacheu. São mencionados pela primeira vez na obra de Almada. Por não se venderem como escravos, explica este autor cabo-verdiano, cresceram muito, numericamente, e passaram-se para a margem esquerda do mesmo rio, acantonados na região de Putama. Mais tarde os Brames espalharam-se por toda a região entre os rios de Cacheu e Geba. O padre Marcelino Marques de Barros di-los subdivisão dos Banhuns. Seria interessante apurar-se esta afirmação, observa o autor. André Alvares de Almada descreve os seus usos e costumes, e com grande vivacidade. Que viviam em casas de taipa como as de Casamansa; descreve a indumentária daqueles que viviam na Corte dos régulos enquanto no sertão andavam nus. E adianta que os Brames eram bons e serviçais escravos. Homens e mulheres limavam os dentes. Para estas não serem «palreiras nem comilonas», logo de manhã metiam na boca um pouco de cinza e traziam-na até ao jantar, para não falarem nem comerem. Davam-se bem com os Portugueses, entregavam-lhes escravos, cera e marfim e recebiam camisas, calçado e alimentos.

Os Biafadas habitam a região de Quínara, entre os rios Geba e Buba. Almada refere-se bastante à terra dos Biafadas pelo ativo comércio que nela se desenvolvia, principalmente nas povoações de Guinala, Bolola e Buba, grafada também por Buguba e Biguba. Habitavam assim a região de Quínara. É minucioso e dá-nos muitas informações sobre os reis e o cerimonial da sua morte, as práticas de justiça, o modo do apuramento da verdade, que eram ladrões e vadios, que semeavam pouco e vestiam camisas compridas. Os Biafadas estavam sujeitos ao Farim-Cabo, Mandinga. O seu modo de habitação era peculiar, não viviam em aldeamentos mas em casas isoladas. Em Babel Negra, Landerset Simões diz dos Beafadas: “Imigrado em data impossível de precisar, por força da expansão que a certa altura tomou os Mandingas a que pertence (Djola), o seu contacto com os Papéis vem de longe e hoje ele próprio o tem por parente”. Segundo o missionário, julgava-se que do facto da aturada convivência dos Beafadas com os Mandingas se ter deduzido erradamente o parentesco. O professor Mendes Correia asseverava haver algumas leves afinidades linguísticas entre Biafadas e Manjacos. Parece ser de aceitar a observação do padre Marcelino Marques de Barros, diz o autor, que os Biafadas eram parentes próximos dos Cassangas.

Iremos prosseguir esta descrição das etnias falando dos Bijagós, dos Nalus, Fulas e Futa-Fulas, e ouviremos as confissões deste missionário que investigou com tanto empolgamento etnias da Guiné-Bissau.

(Continua)

Imagem retirada do livro “Guiné Portuguesa”, Luís António de Carvalho Viegas, 1936.

Imagem retirada do livro “Estudos, Ensaios e Documentos, Acerca da casa e do Povoamento da Guiné”, Francisco Tenreiro, 1950. A fotografia é do professor Orlando Ribeiro, que visitou a Guiné em 1947.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19260: Historiografia da presença portuguesa em África (138): As tribos da Guiné Portuguesa na História, pelo Padre A. Dias Dinis (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19260: Historiografia da presença portuguesa em África (139): As tribos da Guiné Portuguesa na História, pelo Padre A. Dias Dinis (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Atendendo aos conhecimentos da época (o trabalho foi escrito em 1946, no âmbito das comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné) temos que tirar o chapéu à laboriosa investigação deste padre franciscano, consultou o que na nossa historiografia e na francesa era demais relevante acerca de Felupes, Baiotes, Banhuns, Cassangas, Manjacos, Brames ou Mancanhas, Papéis ou Pepéis, Biafadas ou Beafadas ou Beafares, Mandingas, Fulas e as respetivas subdivisões, Balantas, Nalus, Bijagós, e um pouco mais.
Trata-se de um trabalho consciencioso de alguém que viveu seis anos na Guiné e se rendeu ao fascínio daquele inextrincável mosaico étnico, uma das pujanças e deslumbramentos da Guiné.

Um abraço do
Mário


As tribos da Guiné Portuguesa na História, pelo Padre A. Dias Dinis (1)

Beja Santos

Em quatro números da publicação “Portugal em África, Revista de Cultura Missionária”, com datas de 1946 e 1947, o padre franciscano Dias Dinis, que viveu alguns anos na colónia, deu à estampa um seu trabalho sobre as etnias da então Guiné Portuguesa. Diz à partida tratar-se de um despretensioso trabalho, um simples registo de notas, se bem, de acordo com a bibliografia apresentada, fique claro que consultou o que então era cientificamente mais válido e que constitua atualidade, caso de O Manuscrito “Valentim Fernandes”, edição da Academia Portuguesa de História, 1940, Guiné Portuguesa, de Luís António de Carvalho Viegas, 1936, Babel Negra, de Landerset Simões, está a par de diferentes publicações francesas, leu claramente André Alvares de Almada, Duarte Pacheco Pereira, Guiné. Apontamentos Inéditos, pelo General Dias de Carvalho, 1944, e muito mais.

Como é evidente, a antropologia, a etnologia e etnografia guineenses evoluíram muito, cuide o leitor de que há inexatidões e pontos desatualizados, mas o ponto central era o estado dos conhecimentos, a visão do missionário ocidental rendido à curiosidade de naquele território com pouco mais de 36 mil quilómetros quadrados ali coexistirem etnias como Felupes, Baiotes, Banhuns, Manjacos, Mancanhas, Biafadas, Papéis ou Pepéis, Mandingas, Fulas e suas derivações, Balantas, Nalus, Bijagós e outras. Observa, citando um trabalho do professor Mendes Correia que não estava ainda esclarecido o problema das origens e afinidades raciais de todos os grupos étnicos guineenses. Estudiosos como Deniker tinham tentado categorizar, Deniker adotou a seguinte classificação: Fulas e Mandingas provenientes de uma mistura de Etíopes e de Nigríticos (negros sudaneses e nilóticos); as demais tribos constituiriam o grupo dos Nigríticos litorais ou guineenses, que usam línguas bantos.

Em termos etnográficos, antes da chegada dos portugueses à Guiné, ali residiam populações indígenas autóctones e outras adventícias e é inquestionável a existência de grupos étnicos bastante diferenciados, o que demonstra sucessivas imigrações. Das populações autóctones, algumas sofreram influências islâmicas, outras não. O autor apresenta-se perante os seus leitores dizendo que a recolha a que procedeu assenta, essencialmente, na Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, de Zurara, nas Navegações do veneziano Luís de Cadamosto, no Manuscrito «Valentim Fernandes», no Esmeraldo "de situ orbis" de Duarte Pacheco Pereira. Estes autores são invocados porque nalgumas das suas obras nem sempre figuram as diferentes etnias guineenses. E escreve mesmo: “Nem todas as tribos citadas por Valentim Fernandes e Duarte Pacheco Pereira estão representadas na Guiné Portuguesa de hoje. Algumas desapareceram, fundiram-se com outras ou mudaram de nomes". E vai passar em revista, sempre a insistir que são notas ligeiras, as etnias que conheceu e que são objeto deste estudo.

Logo os Felupes, instalados entre o Atlântico e os rios do Arame, de Casamansa e Cacheu. Valentim Fernandes situa os Felupes nas margens de um braço do rio Casamansa dizendo que no vestir, adorar e comer, os Felupes podem-se equiparar aos Balantas. O mesmo autor trata-os por grandes guerreiros, possuidores de canoas em que remavam 50 a 60 homens e eram governados por um Mansa, dependente do Imperador. Era uma majestade verdadeiramente selvagem, punha e dispunha da vida dos seus súbitos, chegava a praticar atrocidades. André Alvares de Almada chamava os Felupes “pretos muito negros”. Francisco de Azevedo Coelho, comerciante nas margens do rio Buba no século XVII fala também dos Felupes, entre outros autores. Landerset Simões diz que pertencem à família dos Djolas.

Quanto aos Baiotes, estariam confinados entre o Cacheu, os Felupes, os Banhuns e a fronteira. Em tudo idênticos aos Felupes, tinham dialeto próprio. O Padre Marcelino Marques de Barros considerava tratar-se uma subdivisão dos Felupes.

Passando para os Banhuns, Valentim Fernandes dedicou-lhes muita atenção. Eram gente pacata que aceitou a chegada dos cristãos mercadores. Tinham uma feira semanal a cerca de 7 léguas do rio Casamansa, que atraía muito gentio. Eram idólatras. Valentim Fernandes descreve como sagravam os seus deuses, que eram simples forquilhas, implantadas no terreno, com longo e custoso cerimonial. Duarte Pacheco Pereira não teve conhecimento direto da tribo dos Banhuns que localiza, tanto quanto parece, entre o Geba e o Cabo da Verga. Adianta o Padre Dias Dinis que no século XVII trabalharam ativamente no território dos Banhuns os missionários franciscanos.

Temos agora os Cassangas, limitada territorialmente pelos Banhuns, pela fronteira, pelo rio Cacheu e supõe-se que pelo rio Abul, a leste. O rei vivia na povoação de Brucama, aqui se efetuava uma grande feira onde se vendiam escravos, produtos da terra e outras mercadorias. Era um chefe não eleito pelos seus súbitos, era nomeado de entre as pessoas da Casa Real e às vezes o novo chefe era imposto pelas armas. A terra era segura para os mercadores portugueses. Coisa que ali se perdesse logo sabia o rei dela e entregava ao seu dono. Os indígenas criavam abelhas em colmeia. Nas guerras, usavam azagaias, frechas, adargas, facas, espadas curtas e até paus. Belicosos, viviam em casas boas. Reverenciavam ídolos que eram “uns paus fincados no chão, de baixo de alguma árvore grande e sombria”. A estas Chinas ofereciam vinho de palma e de milho, ofereciam comida e vinho aos seus defuntos.

Segundo o autor, os Balantas habitavam principalmente os territórios das circunscrições de Mansoa e Bissorã, a zona média do rio Cacheu e o estuário dos rios Geba-Corubal. A primeira notícia que temos dos Balantas é dada por Valentim Fernandes, provavelmente escrita ainda no século XV, ele descreve os seus usos e costumes, como se vestem, o que cultivam, o gado que criam, as suas armas, a expressão da sua idolatria, a sua habitação. André Alvares de Almada, Duarte Pacheco Pereira referem-nos, Almada refere-se aos Balantas quando trata dos Brames do Geba e da ilha de Bissau. Os Balantas dão-se a si mesmos o nome de Brásà, ainda não se sabe o motivo. O desfile étnico vai prosseguir, logo com os Manjacos e com os Mandingas.

(Continua)

Povo Nalu – Aldeia de Cacine – Guiné-Bissau – África Ocidental
Foto: Jose Valberto Teixeira Oliveira – abril de 2010, retirado do site http://www.povonalu.com/, com a devida vénia.

Imagem retirada de Independent, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19217: Historiografia da presença portuguesa em África (137): Relatório Anual da Circunscrição Civil dos Bijagós, 1935 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16925: Manuscrito(s) (Luís Graça) (108): Com o Eduardo Jorge Ferreira, o Jaime Bonifácio Marques da Silva e outros amigos da Tabanca do Oeste, cantando as janeiras em Pereiro, nas faldas da serra de Montejunto


Serra de Montejunto > Cadaval > Vilar > Pereiro > Noite de Reis, 5-6 janeiro de 2016 > Numa da casas da aldeia que abre as suas portas a todos os "reiseiros" de dentro e fora... E são muitos, alguns de fora, como eu e a Alice (na foto., à direita, em segundo plano)... Do lado esquerdo, de boné, por causa do frio da noite, o nosso camarada Eduardo Jorge Ferreira e a seu lado o nosso amigo comum João Tomás Gomes Batista (, engenheiro técnico agrícola, safou-se da guerra, mas estagiou em Angola, enquanto aluno da Escola de Regentes Agrícolas de Santarém).

Falta, na foto, o Jaime Bonifácio Marques da Silva, nosso grã-tabanqueiro. O Joaquim Pinto Carvalho, que é natural do Cadaval, foi também convidado (ou, melhor, "desafiado"), mas não pôde comparecer por razões de agenda. 

Na véspera de partir para  a Guiné, em 1973, o Eduardo descobriu aqui essa tradição da  serra de Montejunto: os BRM (os "bons reis magos") cantam-se, há muito, em duas aldeias, Avenal e Pereiro. Em todas as casas onde há vivos, são feitas pichagens (hoje com spray e com moldfes), com 
as seguintes inscrições BRM [Bons Reis Magos] + estrela de David + ano.

Há uns anos atrás, o Eduardo (que vive em A-dos-Cunhados, Torres Vedras) voltou a Pereiro para o "cantar & pintar os reis"... E este ano desafiou alguns amigos e camaradas da Tabanca do Oeste.

Foto: © Eduardo Jorge Ferreira  (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Serra de Montejunto > Cadaval > Vilar > Pereiro > Noite de Reis, 5-6 janeiro de 2016 > Eduardo Jorge e Luís Graça


Serra de Montejunto > Cadaval > Vilar > Pereiro > Noite de Reis, 5-6 janeiro de 2016 > Jaime Bonifácio Marques da Silva e  Eduardo Jorge.

Fotos: © João Tomás Gomes Batista  (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Lê-se no sítio da Câmara Municipal de Cadaval, a propósito desta tradição, que se mantém viva e se renova todos os anos nas fraldas da serra de Montejunto:


(...) Segundo Alzira [Cordeiro, (...) uma das primeiras mulheres a cantar os reis no Avenal] trata-se(....) de uma tradição que não se pode perder por constituir património imaterial concelhio. «Reza a lenda que os antigos monges desciam do alto das neves (serra de Montejunto) ao povoado, para cantar às portas os votos de boas festas e no dia seguinte iam recolher as ofertas», relata a cantadeira. «No outro dia, pegavam em cestos, passavam pelo lugar e era-lhes oferecido cebolas, alhos, batatas, carne, chouriço, vinho ou dinheiro, e depois fazia-se o almoço dos reis. E aí, sim, eles já pediam colaboração das senhoras ou raparigas para irem ajudar a cozinhar», acrescenta. (...).

(...) "De acordo com Gonçalo Bernardino, cantador dos reis no Pereiro, a festa vai decorrer nos moldes habituais, começando com um jantar, pelas 20 horas, seguido de um cortejo, por volta das 22h, com os tradicionais cantares e pinturas, cortejo esse que decorrerá pela noite dentro, só terminando de madrugada. (...)  «ao longo do cortejo, as pessoas abrem as suas portas, mas depois, à meia-noite, uma hora, chegamos ao largo principal, e temos uma ceia com frango assado, chouriço, vinho, e ali todos os anos há cantares ao desafio, por homens e mulheres. A ceia é promovida pela colectividade mas é quase tudo oferecido através de pedidos que a gente faz localmente.»- 

(...) " No dia 6, haverá o tradicional almoço dos reis na associação local, servindo também este dia para recobro da noite anterior. «A gente diz, por brincadeira, que é feriado no Pereiro. Mesmo as pessoas empregadas, quando podem, metem o dia de férias para participar na festa», refere o “reiseiro”. Para Gonçalo Bernardino está é uma festa que agrada a muita gente, e uma tradição que, apesar de sempre se ter mantido, ganhou maior fulgor nas últimas décadas, recebendo visitantes de diversos concelhos limítrofes. «Está num ponto que não pode voltar para trás, pois já tem uma dimensão muito forte», realça Gonçalo. «Hoje não somos só nós que cantamos, já há muitas pessoas de fora que já estão enquadradas nos cânticos e já lançam as suas quadras», conclui. (...)


(...) Para além dos tradicionais cânticos, voltar-se-ão a inscrever em paredes e muros das casas da aldeia os símbolos tradicionais, que poucos saberão deslindar com exactidão, mas que representam, grosso modo, votos de bom ano e de prosperidade aos respectivos habitantes. -



2. O "Cantar 
e o Pintar os Reis" 
em Pereiro

por Luís Graça 





Que importa a noite fria de janeiro,
Se o desafio é ir a Montejunto,
Os Reis cantar na aldeia de Pereiro
E a amizade celebrar em conjunto?!

E a amizade celebrar em conjunto,
Homens e mulheres, velhos e moços,
E, se não houver salpicão nem presunto,
Come-se o chouriço, as pevides e os tremoços.

Come-se o chouriço, as pevides e os tremoços,
Que o Eduardo Jorge é o nosso guia,
Em voltando da Guiné com todos os ossos,
Prometeu que a Pereiro voltaria.

Prometeu que a Pereiro voltaria.
Lá nas faldas daquela bela serra,
As janeiras cantar com alegria,
Com mais alguns camaradas de guerra.

Com mais alguns camaradas de guerra,
Qual frio, qual carapuça, qual nevoeiro,
Viemos de longe cantar os reis nesta terra,
Que Portugal hoje chama-se Pereiro.

Que Portugal hoje chama-se Pereiro,
E tem da brisa atlântica um cheirinho,
Pode não haver, como no Norte, o fumeiro,
Mas há o branco, o tinto e o abafadinho.

Pereiro, Vilar, Cadaval, 5-6 de janeiro de 2016

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Nota do editor:

Úttimo poste da série > 1 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16902: Manuscrito(s) (Luís Graça) (107): As janeiras da tabanca da Madalena: vivó 2017!... (E saudando todas as tabancas e todos/as os/as tabanqueiros/as da Tabanca Grande: AD - Bissau, Ajuda Amiga, Algarve, Bando do Café Progresso - Porto, Bedanda, Candoz, Centro - Monte Real, Ferrel, Guilamilo, Lapónia, Linha - Cascais, Maia, Matosinhos, Melros - Gondomar, Oeste, Ponta de Sagres - Martinhal, São Martinho do Porto, Setúbal, e por aí fora, que o mundo afinal é pequeno!)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15215: Fotos à procura de... uma legenda (63): Bajudas de Bambadinca, fevereiro de 1970: um "grupo de idade" da etnia fula num dia de festa tradicional (Cherno Baldé, Bissau)



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Foto (e legenda): © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



1. Mensagem de hoje do nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé, que vive hoje em Bissau, respondendo pronta e amavelmente a um pedido do editor LG para completar a legenda da foto (*):

Caro amigo Luis Graça,

Antes de mais aproveito para felicitar o Jaime  Machado (ex-alferes), pelas imagens do tempo que passou (e bem) em Bambadinca (*), o que mostra o seu elevado nível de cultura, já naquela época, muito acima da média daquilo a que a tropa em geral nos tinha habituado.

E em jeito de resposta àquestão do Luís Graça (**), na minha opinião, acho que as imagens retratam um "grupo de idade" da etnia fula num dia de festa tradicional. Por força da islamização, as festas desta etnia são quase todas de natureza religiosa. [Em inglês, "age set",conceito socioantropológico; vd. Enciclopaedia Britannica]

A postura e o olhar algo envergonhados, a indumentária, os penteados e os enfeites na cabeça e no corpo, dizem isso mesmo.

Ainda seriam solteiras mas, nesta idade estariam todas comprometidas (com casamentos arranjados entre os pais) e aproveitam os últimos meses de liberdade antes do casamento.

A presença de elementos ou símbolos estranhos usados como adornos pode ser explicada por razões de urbanização e da crescente mistura/influência de outros hábitos e culturas em Bambadinca (centro urbano e importante elo de ligação ao resto do país) e arredores, devido à guerra e ao movimento das populações.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

PS - A expressao "islamizado/a"  não é  correcta, seria mais correcto dizer "islâmico/a",  pois já nasceram dentro de uma familia, meio e cultura islâmicas, mesmo que superficial. Islamizados seriam os seus bisavos que, de facto foram coagidos (de forma voluntária ou não) a uma conversão, muitas vezes forçaada, nos sec. XVIII/XIX.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13132: Notas de leitura (590): Bubaque foi uma colónia alemã... antes da I Guerra Mundial (Luís Vaz)

1. Trocas de mensagens com o Luís Vaz, a propósito do poste P13117 (*):

(i) Luís Vaz. 9/5/2014

Caros Camarigos Eduardo e Luís:

Luis Vaz, aos 13 anos,
em Bubaque.
Páscoa de 1974
Já respondi ao Antº Rosinha, a história da Fábrica Alemã na ilha de Bubaque. Mas tenho um texto muito interessante sobre a Ilha, de Luigi Scantamburlo que viveu 3 anos na Ilha de Bubaque, pois foi enviado pela sua congregação (Pontificio Istituto Missioni Estere de Milano) à Guiné-Bissau. No ano de 1975 começou a viver junto com o povo das ilhas dos Bijagós, onde preparou o presente estudo etnográfico. Em 1981 publicou a gramática e dicionário da língua crioula da Guiné-Bissau (editora EMI - Bolonha, Itália). Presentemente está a preparar um estudo sobre a língua e a religião dos Bijagós.

O texto segue em anexo [Etnologia dos bijagós da Ilha de Bubaque]. Se calhar dá para muitos artigos no nosso Blog, pensem nisso, e depois digam-me alguma coisa.

Abraço


 (ii) Luís Graça, 10/5/2014

Luís: Obrigado por esta preciosidade, que desconhecia. Não podemos reproduzir o documento tal como está, por causa dos direitos de autor. De preferência, o blogue publica inéditos... Mas se quiseres fazer uma nota de leitura, ou um síntese, tudo bem. O meu filho, músico e médico, esteve um fim de semana em Bubaque, em dezembro de 2009. Mas eu nunca tive oportunidade de conhecer os Bijagós. Como não houve lá guerra, é uma região mal conhecida dos ex-combatentes... Queres fazer um ou dois postes ? Afinal passaste lá ferias...Um abraço. Luís


 (iii) Luís Vaz, 10/5/2014

Olá,  António:

Ainda bem que apreciaste! Pelos vistos ali os verdadeiros colonizadores foram os Alemães. Podes fazer tu nota de leitura, pois eu como professor estou numa altura de muito trabalho. Pensa nisso. Abraço,  Luís Vaz. (**)


2. Reprodução de um excerto do livro de Luigi Scantamburlo, trad. de Maria Fernanda, "Etnologia dos Bijagós da Ilha de Bubaque", Lisboa : Institutro  de Investigação Científica Tropical ; Bissau : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 1991, 109 pp. Disponível, em texto integral, aqui:



BIOGRAFIA

Luigi SCANTAMBURLO nasceu em 1944. Fez os seus estudos de História das Religiões na University of Detroit (M. A., 1976) e de Antropologia na Wayne State University, Detroit. U. S. A. (M. A., 1978). Depois de ter trabalhado como jornalista na revista italiana Mondo e Missione (Milão) durante três anos, foi enviado pela sua congregação (Pontificio Istituto Missioni Estere de Milano) à Guiné-Bissau. No ano de 1975 começou a viver junto com o povo das ilhas dos Bijagós, onde preparou o presente estudo etnográfico. Em 1981 publicou a gramática e dicionário da língua crioula da Guiné-Bissau (editora EMI - Bolonha, Itália). Presentemente está a preparar um estudo sobre a língua e a religião dos Bijagós.

Este texto é a Thesis de Master of Arts em Antropologia na Universidade Wayne State, de Detroit (Michigan, U. S. A.), no ano de 1978. A tradução do inglês foi feita pela Doutora Maria Fernanda Dâmaso.


ÍNDICE

Prefácio
Agradecimentos
Introdução
História e origem
A situação geográfica e económica
As relações do parentesco tradicional e o sistema político
A cosmologia dos Bijagós
Conclusão
Bibliografia
Mapas e Figuras
Mapa 1 – A República da Guiné-Bissau
Mapa 2 – As Ilhas de Bubaque e de Rubane
Figura 1 – A tabanca de Ancadona
Figura 2 – Tipos de casas dos Bijagós
Figura 3 – Terminologia dos graus de parentesco em Bubaque
Fotografias

A SITUAÇÃO GEOGRÁFICA E A ECONOMIA (pp. 16/17)

A ilha de Bubaque, com uma área de 48 km2, dezoito dos quais são pântanos alagados pelo oceano durante a maré alta, está situada no canto sudeste do arquipélago (vê mapa 2). É a ilha mais afectada pela presença dos europeus, escolhida pelos colonizadores alemães antes da I Guerra Mundial e pelo Governo Português depois de 1920, como o centro principal das suas actividades no arquipélago. Os alemães construíram aqui uma fábrica para a extracção do óleo de palma (Elaeis guineensis); um porto para navios de pequena e média tonelagem na parte setentrional e uma quinta experimental em Etimbato.

Durante a ocupação colonial, que terminou em Agosto de 1974, Bubaque era o centro dos serviços administrativos de todo o arquipélago, com um administrador português residente e outros funcionários. Em 1952, a igreja católica, através de presença permanente de um missionário, e a missão protestante, começaram a sua acção na ilha. A construção de um pequeno hotel para turistas aumentou a presença dos europeus. A enorme praia de Bruce, situada na parte meridional, constitui uma atracção especial para os turistas e está ligada ao centro administrativo de Bubaque por uma estrada asfaltada desde 1976.

As comunicações com Bissau são possíveis através de pequenos aviões e barco. Todos os sábados à tarde chega um navio com capacidade para 200 passageiros e regressa a Bissau no dia seguinte. Mais hotéis e um grande aeroporto estão agora a ser construídos para desenvolver a capacidade turística da ilha.

O clima é do tipo subtropical, com chuvas abundantes, cuja precipitação média anual é de 1500 a 2000 mm, durante a estação das chuvas, de meados de Maio até meados de Novembro. A temperatura média é cerca de 33°C durante a estação seca e de 25°C durante a estação das chuvas, e a sua variação diária é muito ampla. À noite, sobretudo entre Dezembro e Fevereiro, a temperatura desce para 10°C ou mesmo 8°C e as pessoas têm de abrigar-se nas suas cabanas para se aquecerem.

A maior parte da ilha é coberta de palmeiras de óleo, cuja cultura foi desenvolvida pelos colonizadores alemães no princípio do século. A outra vegetação, do tipo floresta, inclui uma variedade de plantas da Região subtropical. As árvores de grande porte mais importantes, muitas vezes centros sagrados para as cerimónias religiosas, são os chamados poilões (Eriodendrum anfractuosum) e os embondeiros (Andansonia digitata). Nos arredores das tabancas, as árvores de fruto mais comuns são as mangueiras, os cajueiros, as laranjeiras, os limoeiros e as papaeiras. A caça, que se encontra nas outras ilhas (gazela, cabra-do-mato, hipopótamo, crocodilo), desapareceu da ilha de Bubaque. No entanto os macacos e os tecelões (Proceus cucullatus), tão perigosos para a agricultura, são ainda bastante numerosos.

Em Novembro de 1976, e ilha contava com 2172 habitantes (1054 dos quais eram homens e 1118 mulheres), cerca de 757, metade dos quais não bijagós, habitavam no centro de Bubaque e 1415 viviam nas doze tabancas da ilha (...)

Nalgumas tabancas, como Agumpa, Bruce e Etimbato, há uma ou duas famílias de outros grupos étnicos (Mandingas, Beafadas, Papéis) casados geralmente com mulheres bijagós. Bijante possui a ilha de Rubane (com uma área de 18 km2, cinco dos quais cobertos pela maré alta) e Ancadona possui as pequenas ilhas de Ametite e Anágaru, na parte oriental de Rubane. No sudoeste desta ilha existe um acampamento permanente para pescadores, ocupado habitualmente pelos Nhominca, um grupo étnico do Senegal.

A estatura media dos Bijagós é de 1,70 m para os homens e 1,60 m para as mulheres. Como a maioria dos povos do grupo atlântico-ocidental, a cor da sua pele é castanha, com algumas tonalidades de castanho muito escuro. Têm poucos pêlos no corpo e os rapazes usam o cabelo comprido, geralmente enrolado e entrançado da mesma forma que as mu1heres. Devido à presença dos serviços administrativos e das escolas construídas nos últimos trinta anos, Bubaque possui a mais alta percentagem de escolarizados do arquipélago.

Anninu, um bijagó de Canhabaque, foi, segundo a tradição, o fundador de Bruce, a primeira tabanca da ilha. A segunda foi Bijante, num dia em que o irmão mais novo do chefe de Bruce, encontrando-se no alto mar para caçar e pescar, descobriu a ilha de Rubane, abundante em caça, frutos e peixe. No intuito de ficar mais perto de1a, construiu uma nove aldeia. Ainda hoje existe um relacionamento especial entre estas duas tabancas.

Os Bijagós concordam em que duas ou três gerações atrás as ilhas eram mais povoadas. Buchumbar, perto de Ancadona, desapareceu há uma geração, e em muitas tabancas existem ainda vestígios evidentes de cabanas arruinadas, que nunca mais foram reconstruídas.

A importância de uma tabanca reside na sua autonomia para realizar as cerimónias de iniciação. Algumas delas não têm local para as realizar e mantêm por isso um relacionamento estreito com uma tabanca das proximidades. Assim, encontramos os seguintes grupos de tabancas, sendo as grafadas em itálico aquelas que possuem local para as cerimónias de iniciação: Bruce, Bijana-Ambanha, Bíjante-Enem-Ancadona, Agumpa-Ancabas, Ancamona-Charo-Anhimango. Etimbato ainda não é considerada uma tabanca, mas sim um lugar para trabalhos periódicos, preparado pelos colonizadores alemães para o cultivo das palmeiras de óleo. Alguns bijagós estão a tentar que lhe seja concedido esse estatuto. (...)
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Notas do editor: