quinta-feira, 24 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1783: Tese de doutoramento de Leopoldo Amado: Guerra colonial 'versus' guerra de libertação (João Tunes)


Guine > Região de Tombali > Guileje > 1970 > "Junto foto do meu arquivo referente a uma das alturas em que estive em Guileje, datada de Maio de 1970. Em primeiro plano, a rede de protecção em arame farpado. Atrás, abrigos e porta de armas. Vêm-se ainda os telhados, da esquerda para a direita, da caserna, do refeitório e do posto de transmissões"

Foto e legenda: © João Tunes (2006). Direitos reservados


Com a devida vénia transcrevo aqui a excelente peça bloguística, produzida pelo nosso camarada João Tunes, e inserida no seu blogue - Água Lisa (6) - , com data de 21 de Maio de 2007. 

O João, que foi Alf Mil Trms, no Pelundo e em Catió (1969/71), é um dos nossos camaradas que mais tem reflectido sobre o contexto político e ideológico em que se desenrolou a guerra colonial (1971/74). 

Às vezes, polémico, crítico, contundente, incómodo, cultivando a frontalidade, o João é sobretudo um cidadão militante e livre, um homem de grande lucidez e generosidade, absolutamente indispensável como maître à penser nesta nossa Tabanca Grande. 

Tenho saudades tuas, João. Visita-nos mais vezes. Ou melhor: não precisas de pedir licença para entrar, que a casa também é tua, pese embora nem sempre te sintas confortável nos espaços fechados, exíguos e às vezes clautrofóbicos, desta caserna da tropa, preferindo desenfiares-te para a bolanha, a savana arbustiva, o rio ou a floresta-galeria... (LG)


Segunda-feira, 21 de Maio de 2007 > GUERRA COLONIAL / GUERRA DE LIBERTAÇÃO
por João Tunes 

(Subtítulos e links da responsabilidade de L.G.)



A guerra colonial ainda resiste como tabu contornado na sociedade portuguesa. A abordagem deste drama, que durou treze anos, marcando, em perdas e danos, muitas dezenas de milhares de portugueses hoje acima dos 55 anos de idade mas que se repercutiu nos seus familiares, deixando assim marcas em várias gerações, não alcança, em termos de ocupação de memória e de evidência histórica, comparado com o espaço memorialista, narrativo e analítico ocupado pelo drama conexo e consequente da descolonização, uma repartição similar. E o filtro do ressentimento gerado pelo drama da descolonização foi e é um formidável gerador de preconceitos que actua como espécie de coveiro de memória relativamente ao drama colonial (antes da guerra e durante esta). Como se, para a maioria dos portugueses, se tivesse descolonizado aquilo que não se colonizou e se resistiu a permitir a separação, persistindo-se assim no mito salazarista difuso do Portugal “do Minho a Timor”, prolongando um ressentimento colectivo por nos terem arrancado, à má fila, bocados que “eram nossos”.

Guerra colonial, guerra do ultramar, guerra de libertação...

Mas os portugueses que falam e escrevem sobre a guerra colonial (alguns preferem chamar-lhe “guerra no ultramar”, o que tem uma marca política evidente, enquanto para os africanos ela é denominada como “guerra de libertação”, o que também significa muito) têm ainda, independentemente do enquadramento político e ideológico sobre ela, uma visão inevitavelmente eurocêntrica. Ou seja, é sempre um olhar sobre este sofrimento (ou gesta, para os “patriotas”) sedimentado da experiência ou da percepção interpretativa do "lado do colono" (no mínimo, do ponto de vista cultural), mesmo quando esse "colono" procura, o mais possível com o que melhor sabe, colocar-se na pele do "colonizado" e adoptar a sua causa.

Mia Couto, um escritor moçambicano de pele branca, exemplificou bem as diferenças quando referiu que enquanto os portugueses falam de "descolonização", os africanos não usam este termo porque para eles o que existiram foram "independências" (ou seja, não foram os europeus que descolonizaram, foram os africanos que conquistaram as independências dos seus países).

[É elucidativo que, quanto ao Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, esse mimetismo maior feito pelo salazarismo relativamente à perfídia do nazismo, depois replicado em vários outros locais de África, haja, entre a literatura do antifascismo militante, uma constância de referência ao período 1936-48, em que lá estiveram internados prisioneiros políticos europeus, quase se silenciando que o mesmo e odioso Campo foi reaberto em 1961, por despacho de Adriano Moreira, esse hoje notável e venerando professor de boas práticas democráticas, onde dezenas de milhar de africanos penaram até 1974. Quase parecendo que, nessa mesma iniquidade, um africano anticolonial sofreu menos que um antifascista europeu, quando o inverso é que foi verdadeiro.]

Um enorme défice de produção documental e de investigação historiográfica, do lado africano

Entretanto, da parte africana, muito mais escassa ainda é a produção de registos memorialistas e trabalhos históricos sobre as guerras de libertação. Por variadas e evidentes razões (altas taxas de analfabetismo e ileteratícia; atribulações políticas; falta de arquivos; fragilidade das estruturas e meios académicos; menor horizonte de vida que levou a que muitos dos que combateram já tenham falecido; maiores preocupações em sobreviver, consolidar a independência e garantir o futuro que lidar e fazer registo do passado).

Neste quadro, se os “antigos colonos” perdem pouco tempo a lembrar e pensar o passado colonial, os “antigos colonizados” ainda menos o fazem, o que beneficia o alargamento (conveniente para uns tantos) do “buraco histórico” que a guerra colonial / guerra de libertação representa na memória dos portugueses e dos africanos que têm como pátrias suas as antigas colónias portuguesas, sobrando, inevitavelmente, o espaço para os mitos e os ressentimentos, maus conselheiros para a saúde cívica dos povos.

Daqui que considere um facto notável, remando contra o silêncio das memórias, o trabalho persistente e competente do historiador guineense Leopoldo Amado (na foto de cima). Que, constituindo uma importantíssima e honrosa excepção, submete, no próximo dia 28, a um júri de doutoramentos da Universidade Clássica de Lisboa, em sessão pública, o seu notável trabalho de investigação sobre a guerra na Guiné (1963-1974) e que culminou num estudo comparado da mesma quanto aos dois lados da contenda (a mais dura no quadro das três guerras coloniais) e em que foi orientado pelo Professor João Medina (*) (**). Demonstrando, em boa tese, que os mitos e os ressentimentos abatem-se pelo saber.

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(*) Assim reza a nota informativa da Universidade Clássica de Lisboa:

Doutorando/a: Lic.º Leopoldo Victor Teixeira Amado
Doutoramento: Doutoramento em História - História Contemporânea
Título da Tese: “Guerra Colonial versus Guerra de Libertação (1963-1974): O Caso da Guiné-Bissau”
Data/Hora: 28 de Maio, 10H00
Local: Reitoria - Sala de Doutoramentos, Cidade Universitária, Lisboa


(**) – O meu elogio antecipado ao trabalho académico de Leopoldo Amado fundamenta-se no conhecimento prévio de que beneficiei, mercê da sua amizade que muito me honra, e para o qual, modestamente, dei o meu singelo contributo de mera opinião crítica na fase de elaboração final, valendo-me, como suporte, da memória registada no meu corpo e na minha alma, proveniente de dois registos contraditórios e num paradoxo que me empalou a juventude - o de antigo combatente na Guiné nas fileiras do exército colonial e o de militante activista contra a guerra colonial.

Guiné 63/74 - P1782: Bibliografia (6): O nosso doutorando Leopoldo Amado vai ter o seu 'baptismo de fogo' no próximo dia 28, na Universidade de Lisboa (Luís Graça)

Guiné (1963/74) > Guerra de libertação 'versus' guerra colonial ? Um case study... Esta vai ser a tese de doutoramento, em história contemporânea, do Leopoldo Amado, a ser apresentada e discutida em provas públicas, a realizar na Universidade de Lisboa, dentro de dias...


Foto: Em cima, guerrilheiros do PAIGC progredindo na mata (Fonte: Foto Bara > Fotogaleria (foto editada, com a devida vénia / edited photo, with our best wishes...) ... Pátria ou morte!... A Luta Continua... era o então slogan em moda, de inspiração guevarista...

Foto: Em baixo, militares portugueses da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) prontos para mais uma acção... O fotógrafo (ou alguém por ele) escreveu, ironicamente, no seu álbum: Viva a guerra, viva a morte!... Vivam os Panteras... Quando o penúltimo morrer, o último cumpre a missão... (Fonte: Torcato Mendonça, 2007).


Comentário posterior do nosso amigo e camarada Torcato Mendonça (Fundão): "São graduados do 2º Grupo da Cart 2339 – Esq/direita: Alf 1000 Torcato; Furriéis 1000 Sousa (foi ao 2º/3ª mês para a 3ª de Comandos); Rodrigues e Rei. O Sousa (Fernando Luís) foi substituído pelo Sérgio. Só se juntou a nós no embarque, ficou nos Comandos. Panteras era o nosso Grupo – A Divisa era essa. Há um escrito disso e fotos da malta toda. PS - Isto não foi á primeira. Só goela… mas havia muita união. Um abraço, ex – chefe do Grupo".



1. Mensagem do nosso Leopoldo Amado (1), com data de 16 do corrente:


Assunto - Provas públicas de doutoramento

Caro Luís,


Gostaria de te informar de que já me encontro no rectângulo, após uma estada de pouco mais de três meses na Guiné-Bissau (2).

Assim, por teu intermédio, comunico a todo o pessoal da tertúlia de que as minhas provas públicas de doutoramento terão lugar nos dias 28 e 29 do corrente, pelas 10:00 H, na Reitoria da Universidade de Lisboa.Um abraço a todos

Leopoldo Amado


2. Mensagem enviada ao pessoal da nossa Tabanca Grande, em 20 do corrente:

Amigos & camaradas:

Acabei agora mesmo de chegar do Funchal. E, ao abrir o meu correio, de casa, tive a grata surpresa de receber boas novas do nosso amigo Leopoldo Amado.

Ficam desde já todos convidados, os que puderem, a ir ouvi-lo defender a sua tese de doutoramento em história contemporânea. O título da tese é (estou a citar de cor) Guerra de libertação ‘versus’ guerra colonial: o caso da Guiné-Bissau ...

As provas, que são públicas, prolongam-se por dois dias, sendo o primeiro dia, 28 de Maio, 2ª feira, reservado ao candidato, e à arguição principal... Local: Reitoria da Universade Clássica, ao Campo Grande (Metro: Cidade Universitária)...

Seria interessante saber quem poderá ir ouvir e apoiar o nosso amigo e camarada de tertúlia...

Luís Graça

3. Até à data, tive os seguintes comentários:


20 de Maio de 2007 > Luís: Conto estar presente, pois é sempre um prazer ouvir, e aprender com alguém como o Leopoldo. Um abraço a todos. Carlos Fortunato, ex-Fur Mil da CCAÇ 13 (1969/71)

20 de Maio de 2007 > Amigos & camaradas: Já temos uma presença, a do Carlos Fortunato, além de mim próprio (embora dia 28 tenha aulas, às 14.30h). Luís

21 de Maio de 2007 > Bom diaTudo irei fazer para estar presente e levao um abraço fraterno ao Leopoldo. AB. José Martins

21 de Maio de 2007 > Por um Amplo Movimneto 'Leopoldo a Doutor' (pela Independente é que não) ou, como se dizia no meu tempo de jovem estudante, antes de ser mal fardado por ter sido fardado à força como paisano guerreiro:

MALTA, TODOS À CIDADE UNIVERSITÁRIA NO DIA 28!

João Tunes

22 de Maio de 2007 > Só um amigo de verdade escreve assim. Muito obrigado, caro Tunes. As tuas palavras constituem inquestionavelmente um importante incentivo.

Leopoldo Amado

Páginas Pessoais >

Lamparam II > http://guineidade.blogs.sapo.pt/

Lamparam > http://lamparam.blogs.sapo.pt/

22 de Maio de 2007 > Caro amigo Leopoldo:

Soube pelo Luís Graça que vais defender a tua tese de doutoramento nos próximos dias 28 e 29. Tinha-te dito que gostaria muito de estar presente, mas não me vai ser possível. É que, além de já ter que me deslocar a 2 de Junho a Sever do Vouga para o encontro da CART 1690, estou estes dias muito enrolado numa (muito boa) situação: a Delegação do Norte da Associação 25 de Abril está-se a preparar para ocupar uma nova sede, em edifício que foi cedido pelo Presidente da Câmara de Matosinhos. Temos de agarrar isto com unhas e dentes, e bem, pois é um avanço muito considerável em relação às muito más condições que tínhamos nas Escadas do Barredo, à Ribeira do Porto. E, como compreendes, para trabalhar nunca há muitos. São sempre os mesmos, como é hábito.

Porque a conheço, tenho a certeza que vais ter sucesso com a tua tese. Considero-a um trabalho genuíno e único num tema ainda muito pouco tratado, de grande interesse para quem quizer estudar a luta de libertação na Guiné.

Espero que tenhas já concretizado os patrocínios que tinhas em perspectiva, sobre o que, como te disse, já falei com o Jorge Araújo, do Campo das Letras. Diz-me qualquer coisa sobre isso, pois vou voltar à carga com ele depois do dia 29.
Um abraço e desejos de bom sucesso.

A. Marques Lopes

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts recentes do Leopoldo Amado:
25 de Fevereiro de 2007 >Guiné 63/74 - P1549: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (8): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte I

6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1566: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (9): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte II

17 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1603: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (10): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte III (Fim)

(2) Vd. post de 18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1444: Adeus, estou de malas aviadas para Guileje (Leopoldo Amado)

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1781: Memórias de Copá (1): Ambulância do PAIGC, de fabrico soviético, capturada pelo Marcelino da Mata, em Copá (A. Santos)


Guiné > Zona Leste > Sector L3 > Nova Lamego > 1973 (?) > Ambulância do PAIGC, de fabrico soviético, capturada pelas NT.

Foto: © António Santos (2007). Direitos reservados.


Mensagem do nosso camarada A. Santos, ex-Sold Trms, Pel Mort 4574/72, Zona Leste, Sector L3, Nova Lamego,1972/74:

Na sequência do último mail sobre armas e viaturas para o projecto Guileje (1), junto em anexo a foto de uma viatura de fabrico soviético, que tinha como função o transporte de feridos, mas quando foi capturada pelo grande Marcelino da Mata, na zona de Copá [vd. carta de Canquelifá] (2), estava carregada com armamento.

A foto foi tirada em Nova Lamego.

Estou a tentar reunir, entre o pessoal do Pel Mort 4574/72, fotos de interesse para o projecto.

A. Santos
SPM 2558
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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts recentes sobre este tópico:

27 de Março de 2007 > Gúiné 63/74 - P1628: Projecto Guiledje: fotografias de armamento e equipamento, das NT e do PAIGC, precisam-se (Nuno Rubim)

12 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1753: Diorama de Guileje, 1965/67 (Muno Rubim)

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1756: Exposição de armamento apreendido ao PAIGC, aquando da visita de Américo Tomás (Bissau, 1968) (Victor Condeço)

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1764: Armamento do PAIGC (Nuno Rubim)

18 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1766: Guileje: A Bêbeda, uma Fox do Pel Rec 839 que ficará imortalizada no diorama (Nuno Rubim)

19 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1768: Guileje: A Fox, rebaptizada, dos Diabos do Texas (Nuno Rubim)

(2) Sobre Copá (aquartelamento abandonado pelas NT em 14 de Fevereiro de 1974), vd. posts de:

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1410: Antologia (57): O Natal de 1973 em Copá (Benigno Fernando)

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1409: Bibliografia de uma guerra (16): Pirada, Bajocunda, Canquelifá, Copá: o princípio do fim (Beja Santos)

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

Guiné 63/74 - P1780: Zé Neto: Um herói de Guileje homenageando os heróis de Gandembel

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > O então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado), que exercia funções de primeiro-sargento da Companhia, comandada pelo Cap Corvacho. O Zé Neto, como é carinhosamente tratado entre os seus camaradas e amigos, é autor de um notável conjunto de textos, já publicados na I Série do nosso blogue, com as suas memórias de Guileje (1)...

Foto: © Zé Neto (2006). Direitos reservados


Pombal > 28 de Abril de 2007 > 2º Encontro da Tertúlia Luís Graça & Camaradas da Guiné > O Idálio Reis, ex-Alf Mil da CCAÇ 2317 (Gandembel/Balana, 1968/69), autor de uma notável fotobiografia sobre a sacrificada unidade (2)...

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados


1. Reprodução de dois posts do Zé Neto:

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCII: Confusão acerca da CCAÇ 2317 (Gandembel, 1968/69) e da CCAÇ 2316 (Guileje, 1968/69) (Zé Neto)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXV: Os heróis de Gandembel (Zé Neto)



11 de Abril de 2006 > A heróica e desastrosa aventura de Gandembel


Texto do Zé Neto, que mudou de endereço de e-mail e que estoicamente deixou de fumar há umas semanas atrás, para bem da saúde dele e da alegria geral da caserna... (LG)

Meus amigos:

Deve haver uma enorme confusão sobre a CCAÇ 2317. Esta companhia, comandada pelo Cap Barroso de Moura, esteve na área de Guileje em 1968/69 e não 1967/68, como vem referido em blogue anterior.

Propriamente na tabanca de Guileje (ou Guiledje) apenas esteve de 20 de Março a 8 de Abril [de 1968]. Nesta data seguiu para a heróica e desastrosa aventura de Gandembel que consta dos meus escritos anteriores (3).

A sua irmã, a CCAÇ 2316, é que ficou estabelecida em Guilege. (Notem Guile...para todos os gostos).

Por agora é tudo, não esquecendo o meu agradecimento pelas muitas mensagens de Força, Zé, resiste ao cigarro!, que tu, Luis, desencadeaste na malta do blogue.

Abraça-vos o velho Zé Neto.



23 de Maio de 2006 > Um herói que quer deixar de fumar, fala sobre os heróis de Gandembel


Texto do Zé Neto a quem eu há dias disse: "Grande Zé! Como é bom receber notícias tuas! Se voltaste a escrever e a ‘emailar’ é bom sinal!"... Pois é, ele está de volta, o nosso primeiro de Guileje, e hoje valente capitão em guerra contra o tabaco!... Parabéns, Zé (e permite-me esta inconfidência: o teu bom exemplo deve ser conhecido e seguido por outros amigos e camaradas).. Sê bem vindo, de regresso, à nossa caserna (agora já não preciso de te pedir para deixar o cigarro lá fora!...). (LG)

Meu caro Luis:

Não. Não desapareci. Apenas hibernei para vencer o tabágico vício. E estou a conseguir. Vou a caminho do quarto mês sem cigarro.

Mas o assunto é a chegada do Idálio Reis ao blogue (3). Como se pode verificar, eu já tinha referido aqueles bravos nos meus escritos. Veja-se no Post 423 a blague do 1º Martins que calçou a cagadeira (4). Este senhor é meu companheiro de férias de Setembro em Lagos e, nas conversas do bar, faz sempre questão de evidenciar a colaboração que lhe prestei, porque, confessa, na altura não estava muito calhado nas funções do seu posto à frente duma companhia.

Mais adiante, no Post 544, registo algumas considerações sobre a CCAÇ 2317 e a sua odisseia (5): o ex-alferes Reis deve ter muito que contar!!!

Para ajuda vou anexar um pequeno trabalho de elaborei a partir da preciosa obra intitulada (e já toda desencadernada e rascunhada) História da Unidade - BART 1896.

Por agora resta-me mandar um abraço muito forte à tertúlia. Outro, para ti, do Zé Neto.


OS HERÓIS DE GANDEMBEL

Estou certo de que seria reconfortante para um punhado de bravos do Exército Português que algum dos Comandantes do PAIGC de então contasse, com a sua dignidade de militar, o que foi para eles a campanha de Gandembel e Ponte Balana em 1968/69.

Como interveniente muito próximo da gesta dos rapazes da [CCAÇ] 2317, sirvo-me da História da Unidade (BART 1896) para trazer à tona da memória alguns pormenores duma batalha pouco conhecida. É uma pequena achega com a qual quero reafirmar a minha profunda admiração pelos camaradas que foram deliberadamente atirados para o massacre pelos senhores de Bissau.

A Operação Bola de Fogo destinou-se “à implantação de um aquartelamento para efectivo de companhia, no Corredor de Guileje”.

Desenvolveu-se entre 8 e 14 de Abril de 1968, com a seguinte “Força executante”:
- CART 1613
- CART 1689
- CCAÇ 2316 (-) (3 Gr Comb)
- CCAÇ 2317
- 3ª COMP COMANDOS (-) (2 Gr Comb)
- 5ª COMP COMANDOS (-) (2 Gr Comb)
- PEL REC FOX 1165
- PEL SAPADORES/CCS /BART 1896
- PEL CAÇ NAT 51
- PEL CAÇ NAT 67
- PEL MILÍCIAS 138 e 139
- ELEMENTOS DO BENG 447
- APAR (Apoio Aéreo)

Instalado o Aquartelamento em GUILEJE 8 D4 -93 (Coordenadas de Gandembel)

Durante a operação o IN flagelou 7 (sete) vezes a posição, causando às NT 2 mortos, 13 feridos graves e 34 ligeiros.

Até 25 de Junho de 1968, data em que o BART 1896 foi substituído no subsector pelo BCAÇ 2835 (a que a CCAÇ 2317 pertencia), o aquartelamento de Gandembel foi flagelado com fogo de Mort 82 e Canhão S/R por 52 (cinquenta e duas) vezes.

Normalmente os ataques duravam entre 8 e 15 minutos. São de destacar os três de 19 de Abril de 1968 às 3h45, 4h20 e 5h00; os três de 30 de Abril, às 2h15, 21h20 e 22h15; e os quatro de 14 de Maio (não houve registo das horas).

José A S Neto


2. Comentário de L.G.: Hoje mesmo, mandei, pelo nosso correio 'interno', a seguinte mensagem: "Amigos & Camaradas: Permitem-que vos chame a atenção para o extraordinário documento, da autoria do Idálio Reis, que temos vindo a publicar (infelizmente, com alguma irregularidade) sobre essa desastrada e heróica aventura de Gandembel, como lhe chamou há um ano atrás o Zé Neto... Gandembel, a terra dos homens-toupeira, mas também dos rapazes de nervos de aço...

E a propósito deste camarada, o Zé Neto, que esteve em Guileje, quero-vos dizer que as notícias sobre a sua saúde não são as melhores... Há tempos falei com ele, e soube, através da família, que ele está internado no Hospital Militar em Belém, no serviço de oncologia... O nosso patriarca pode receber visitas entre as 9 e as 21h, segundo as notícias (que são tristes) que me chegaram, mais recentemente, da sua querida neta... De qualquer modo, ele precisa da nossa força e do nosso carinho, neste momento difícil. Como ele lhe disse há tempos ao telefone: Zé, vencestes muitas guerras, não vais perder esta batalha!... Oxalá! Aqui vai para ele e para o Idálio Reis um forte abraço".

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

(...) "10ª (e última) parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).

"Recorde-se a justificação que ele deu para partilhar connosco as suas memórias de Guileje: Depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte muito significativa das memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só a 'matar pretos' enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de famíli...

"Esta confiança, em mim e na nossa tertúlia, eu tenho que a agradecer ao camarada Zé Neto. Faço votos para que este fim seja apenas um até breve, até ao meu regresso... LG" (...)

(2) Vd. posts de

19 de Anbril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

18 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69 )

(3) Vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel


Hino a Gandembel

Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.

- Meu Alferes, uma saída!
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é pr’ponte!,
Logo se ouve dizer.

Oh!, Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (i) e morteiradas.
Oh!, Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se ligam os rádios
Ao som de estrondos e tiros.

A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (ii)
É preciso protecção.

Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.

Temos por v’zinhos Balana (iii),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (iv) te protege.

Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!

Recolha: José Teixeira / Revisão de texto: L.G.

(i) Verylights
(ii) WC
(iii) A famosa ponte sobre o Rio Balana
(iv) A espingarda automática G-3


(4) Vd. post de > 23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(4): os azares dos sargentos

(5) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo

Vd. também a série Fotobiografia da CCAç 2317:

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá

9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel

2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras

9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em

23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço

Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Abril/Maio de 1968 > A construção do aquartelamento de Gandembel requereu muitas canseiras envoltas em perigo permanente, para que se garantisse alguma segurança aos nosso homens, uma vez que eram alvo de inúmeros e consecutivos ataques inimigos.

A realização das casernas-abrigo foi a tarefa mais crucial para os homens da Companhia. Representavam para as tropas que aqui se sedeavam, um local de refúgio, e nestas pequenas 'guarnições' pernoitámos durante cerca de 10 meses, de

Foto 301 > "As estruturas metálicas (pré-fabricadas), que chegaram com as colunas. Eram as infra-estruturas de base ".

Foto 302 > "Sobre a sua parte superior, colocavam-se as traves, constituídas por cibes".

Foto 303 > "Construção do tecto. A colocação de uma espessa camada de betão, sobre um tapete metálico (chapas feitas dos bidões)".

Foto 304 > "Havia todo o cuidado na firmeza do tecto"

Foto 305 > "Visão de 2 casernas em fase terminal; falta a colocação dos blocos de pedra".

Foto 306 > "No transporte dos blocos de pedra"

Foto 307 > "Vista traseira de um abrigo"

Foto 308 > "Aspecto de uma caserna-abrigo, já finalizada"


Fotos e legendas: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.


VI Parte da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1). Textio enviado em 11 de Fevereiro de 2007.


Assunto: A generosidade de um punhado de gente jovem, onde os ecos dos seus ais de desespero e dor, não ressoavam para além da região do Forreá. Gandembel/Ponte Balana, de 9 de Maio a 4 de Agosto.


Caros companheiros Luís e restantes Tertulianos:

A época plena das chuvas aproximava-se, começava a fazer surtir os seus benéficos efeitos, o que para nós incidia muito especificamente na água que o rio Balana pudesse debitar. Este, logo que retomasse alguma capacidade de vazão, significaria que a tão ansiada água já abundaria, e as restrições ao consumo que tinham prevalecido até então, evolavam-se no tempo.


15 de Maio de 1968: o Furriel António Alves acciona uma mina A/P e é amputado de uma das pernas


Já não se tornaria necessário calcorrear o seu leito movediço, tão propício a dissimular uma qualquer armadilha. Bastava unicamente chegar-se à margem esquerda, através da picada aberta para a ligação ao destacamento de Ponte Balana, e encher os bidões com a ajuda de uma bomba manual.

E o refrigério dos nossos corpos, em copiosos banhos à fula, permitia-nos usufruir de uma incontida satisfação de prazer, ao fazer desaparecer as manchas de sujidade que se haviam incrustado durante todo esse período de permanência naqueles antros imundos, que denominei de abrigos-toupeira.

E aquele trilho para o Balana era sistematicamente o mesmo, com os 2 Unimogs a rolarem sobre o mesmo assento. A paragem e as manobras das viaturas para abastecimento faziam-se quase sempre naquele paradouro exíguo, e os homens apeados não diferiam em muito as suas pisadas. E desta conjugação, que a guerra sabe tão ardilosa e perfidamente fazer uso, a 15 de Maio, surge o horror, com o accionamento de uma mina pelo furriel António Alves, a causar ferimentos graves nas duas pernas, uma das quais viria a ser amputada.

Sendo o primeiro ferido muito grave da Companhia, a comoção do seu sofrimento enquanto o helicóptero não chegava e a desventura do próprio drama em si, que quase toda a Companhia presenciou, fez abalar os nossos mais profundos sentimentos, pois perdíamos sempre um pouco de nós mesmos. E começava a manifestar-se o pesado fardo das intolerantes e desumanas vivências de Gandembel.


Finalização das 8 casernas-abrigo e reforço da fiada de arame farpado

A briosa CART 1689 despede-se do nosso convívio, e esta sua partida deixou-nos claramente mais pobres, sós e indefesos. Em mais de um mês que nos acompanhou, até 15 de Maio [e 1968], desenvolveu um trabalho extremamente meritório, e empenhou-se forçadamente em nos acompanhar. Passou também por graves tribulações, em que perde por falecimento um furriel, alvo de um artefacto armadilhado por ela mesma, e sofre mais de uma dezena de evacuações, por ferimentos e doenças.

À minha Companhia deparava-se ainda muito trabalho a realizar, mormente no fecho da configuração octogonal do aquartelamento, com a finalização das 8 casernas-abrigo, a colocação de mais 1 fiada de arame farpado e a limpeza roçada de toda a vegetação a distender por um amplo perímetro exterior.

Cada caserna era um compartimento rectangular, de dimensões da ordem dos 15 x 3 metros, e cuja construção se apoiava em 8 estruturas metálicas em forma de um U recto invertido. Tais estruturas eram firmadas ao solo por sapatas de betão.

Na sua parte superior (tecto), a actuarem como vigas, colocavam-se um conjunto de cibes, as quais eram sobrepostas por um tapete resultante do aproveitamento de bidões. Este tapete metálico, seria então recoberto por uma espessa camada de betão. E o coberto parecia apresentar um bom grau de segurança, que aliás se viria a confirmar mais tarde, na detonação de uma granada de morteiro 82.

Já as partes laterais eram construídas na base de troncos de árvores, a que se viriam a juntar blocos de pedra colocados à mão, os quais eram extraídos de um maciço rochoso que por ali havia, geologicamente conglomerados pouco consolidados. Tais blocos, extraídos por acção manual de picaretas, e a sua aposição para fazer parede a encobrir os toros, não ofertava a segurança desejável, mas foi a melhor solução encontrada para fazer uso dos recursos naturais disponíveis.

Havia 2 entradas pela parte de trás, também protegidas por um tapume de troncos. E a parte frontal da caserna, dispunha de 6 frecheiras rectangulares, largas e de pouca altura, com o fim de permitirem uma boa visibilidade e de poderem fazer uso das G3 em caso de última necessidade.

Cada grupo de combate ocupava 2 casernas, e lateralmente a uma delas, construiu-se um posto de vigia, que garantisse a conveniente segurança no alerta do sentinela.


PAIGC: Forte bateria de morteiros 82 e reforço do bigrupo de Nino Vieira

Lutava-se contra o tempo, pois que se tornava bem evidente que o PAIGC vinha progressivamente aumentando o seu efectivo, e uma vez que estava muito próximo da Guiné-Conacri, tornavam-se fáceis as deslocações para desencadearem flagelações mais próximas, quase sustentadas na base de armamento ligeiro, onde os RPG já apareciam e cada vez em maior quantidade. Mais em suplemento, junto à fronteira e talvez postados em território não nacional, dispunham de uma forte bateria de morteiros 82, e estes, de um modo quase perseverante, davam-se ao atrevimento de nos saudar com os seus quase consecutivos estampidos, a pôr-nos em constante alerta vermelho.

Hoje, passados tantos anos, não causar-me-á engulhos de maior, pois é minha forte convicção, ao afirmar que a data de 15 de Maio [de 1968] se revela como marco crucial na estratégia militar do PAIGC para esta zona, e que está apegada de forma visceral, mesmo muito profunda, às colunas de reabastecimento oriundas de Aldeia Formosa, e que redundam na quebra de todos os tabus de matriz religiosa.

Mais, julgo como certo que o bigrupo de Nino Vieira se junta ao já forte efectivo do PAIGC, com um objectivo firme de tentar resolver definitivamente esta questão da fixação das NT em sítios onde se movimentavam à vontade. A concretização de tal objectivo tem por fim contrariar ao máximo as colunas de reabastecimento, como também de encontrar e esperar a oportunidade mais conveniente para poder destruir Gandembel.

Foi efectivamente assim?


Operação Pôr Termo (de 15 a 26 de Maio de 1968, com um efectivo de três companhias)

Os factos e os feitos comprovam-no, dado que é a partir desta data que a situação de aparente tranquilidade e harmonia em que vivia uma vasta e densa zona envolvente a Aldeia Formosa, se altera abrupta e radicalmente.

Nesse dia, por razões que desconheço, as NT dão início à Operação Pôr Termo, com o objectivo de cercear a actividade inimiga nessa zona, para o que dispõe de um efectivo de 3 Companhias (entre as quais, uma Companhia de Comandos), e que se prolonga até 26 de Maio.

Os resultados infligidos ao PAIGC foram bastante diminutos, se se atender às trágicas consequências sofridas pelas NT. O relatório oficial sobre esta operação refere que sofremos 6 mortos, 3 feridos graves e 6 ligeiros, que é distinto do que nesse período pude comprovar e me foi dado a conhecer.

Assim, para além do que se desenrolou nesse trágico 15 de Maio, correspondente à 3ª coluna advinda de Aldeia Formosa, que referenciarei num capítulo sobre as colunas de reabastecimento, com a morte de 6 homens e de mais uma dezena de feridos evacuados, logo a 20 de Maio, há um facto nas imediações de Aldeia, que não lhe conheço os pormenores, mas em que registo ter havido 4 mortos e 8 capturados.


Pesadas baixas para a CART 1612, na sequência do recrudescimento da actividade operacional do PAIGC

Há documentos oficiais que confirmam que em resultado de uma mina anti-carro com emboscada, na estrada Mampatá−Uane, morrem 4 soldados da CART 1612. Não tenho elementos que me permitam concluir se estas acções se interconectam, pois o que então me afirmaram é que a captura dos elementos fora operada num ataque com assalto a um pequeno destacamento.

Esta Companhia de Artilharia, num curto espaço de tempo, é agressivamente fustigada, e relacionada com as colunas Buba − Aldeia Formosa − Gandembel, perdendo um número incrível de militares, em mortos e feridos.

Como mero título de exemplo, e só pela atribuição manifestamente jocosa como foi apelidada essa operação, dou a conhecer a actividade exercida pelo PAIGC sobre Gandembel, neste lapso de tempo. Assim:

— no próprio dia 15, houve 2 ataques, cerca das 20 e 24 horas, uma na base de armamento ligeiro, e a outra com morteiros, com mais de meia centena de deflagrações;
— a 16, cerca de uma centena de morteiradas espaçadas, a terem início por volta das 19.30 horas; às 4 horas, também na base de morteiradas, em menor número (não mais de 50), mas com maior poder de concentração;
— no dia 17, 2 ataques de morteiros, por volta das 19.30 e 22 horas, ambos com detonações a rondar a meia centena;
— já a 18, houve um único ataque de morteiros, ao começo da noite, a ultrapassar seguramente as 70 deflagrações;
— a 19, cerca das 20 horas, houve uma flagelação com duração de cerca de 20 minutos, de lança-granadas e de metralhadoras, a que se seguiu um ataque de morteiros, a rondar a meia centena de despoletamentos;
— no dia 20, ao anoitecer, mais um ataque de morteiros, com mais de 50 deflagrações;
— já a 21, registou-se só um ataque de morteiros, com cerca de 30 detonações;
— a 22, ao fim da tarde, há uma flagelação de lança-granadas e metralhadoras, que se prolonga em cerca de 15 minutos;
— no dia 23, logo pela madrugada, mais um ataque de morteiros, mais intenso, a ultrapassar a centena de disparos;
— já a 24, também há a registar um ataque de características muito similares ao do dia anterior;
— a 25, a meio da tarde, um pequeno ataque de morteiros, com cerca de 20 detonações;
— no dia 26, outro ataque de morteiros, ao princípio da tarde, com mais de meia centena de disparos.


26 de Maio de 1968: Spínola pela primeira vez em Gandembel

E é precisamente neste dia 26 de Maio [de 1968] que Spínola, ainda com poucos dias no cargo das suas funções de Comandante-Chefe, visita Gandembel logo pela manhã e sem qualquer aviso prévio. Debruça-se atentamente quanto às condições que aquele local ofertava às tropas aí sedeadas, não faz muitas perguntas, também não ousa questionar das eventuais dificuldades sentidas, é receptivo quanto à urgência de se dispor de equipamento bélico defensivo de grandes calibres. Faz-se não demorar muito tempo, e o helicóptero que o trouxera, e que sobrevoava Gandembel para não ficar estacionado durante a sua permanência, aterra de novo para o levar para outro rumo.

E o que Spínola terá pensado sobre o que tinha observado, já que pelo seu mutismo parece dar a entender que tinha perfeito conhecimento da situação bélica que se estava a passar na zona?

Naturalmente que ainda é prematuro extrair quaisquer ilações, pois certamente não foi por razões vãs que quis deslocar-se a este sítio. Posso reconhecer que se lhe tenha deparado aqui o primeiro dos grandes problemas para enfrentar e tentar resolver.


As colunas de reabastecimento tornam-se um pesadelo


Apenas após 3 dias Spínola vir a Gandembel, chega um pequeno contingente de artilharia, sob o comando de um alferes, com 2 obuses, que julgo de calibre 10.5, a que acrescia 2 metralhadoras pesadas Browning, e para as quais já estavam construídos os seus ninhos.

O PAIGC, convicto da sua força, desencadeia no dia 5 de Junho [de 1968] mais uma das suas acções, e que mostrar-se-ia fatídica para a Companhia, conforme referirei no capítulo sobre as colunas de reabastecimento, ceifando a vida ao 3º elemento da Companhia — o alferes Álvaro Vale Leitão, que vinha a caminho de Gandembel, provindo de Guileje.

Estas colunas devastavam e devoravam, provocando consequências de tal modo aterradoras, que iam atingindo penosa e gravemente os elementos da escolta que forçadamente nelas estavam envolvidos, com perturbações profundas e fracturantes no corpo e na mente.

Mas quem, sujeito a um penoso andar, absorvido pelo efeito danoso do inimigo, se confronta aqui com a morte de um companheiro, para mais alguns instantes se deparar com um outro a necessitar de ser evacuado, muito dificilmente conseguiria suportar tantas adversidades. E as perspectivas de as verem acabadas, de lhes pôr termo, não as vislumbrava.

Como forma de mascarar este embate de vida e de morte, havia sempre uma mente brilhante que planificava mais uma operação, mas que à míngua dos seus efectivos, não beliscava minimamente no comportamento bélico do PAIGC.

Foi o caso da Boa Farpa, tão serenamente vista dos céus por uma Dornier, mas tão assustadora e pungente para os que cá em baixo começavam a perder a noção da racionalidade, que se mediava entre o tudo e o nada, inseguros de si mesmos, já a agirem quase sempre maquinalmente. Eram homens em desespero, contando apenas com uma G3 fortemente aperrada e pronta a fazer fogo ao menor indício de perigo.

E ante este desencadear consecutivo de ocorrência deste tipo de vivências ameaçadoras, de uma guerra descomedida e sem limites, não se torna fácil de as descrever, porquanto são tantas e tão diferenciadas que nos impele a omitir as que, embora sofridas, não trouxeram, no imediato, perdas gravosas para a Companhia.

Homens em desespero: o caso do Alferes do Pelotão de Caçadores Nativos

Sem manifestar qualquer pretensão em me arrogar em fazer o papel de advogado do diabo, julgo hoje, há lonjura de quase 4 décadas, que quem chegasse a Gandembel tinha de possuir um temperamento firme e rijo, para enfrentar as adversidades que se lhe deparavam no dia a dia, dado o modo agreste e alucinante como se conseguia sobreviver.

Embora o considere como exemplo raro, ao referi-lo, demonstra um pouco o que este lugar nos reservava, e por isso faço-o figurar na história de Gandembel. Em rendição individual, e logo que chega do Continente, é enviado um alferes (perdi qualquer referência pessoal) para o Pelotão de Nativos, que num prazo de apenas 2 semanas, mediado entre os dias 29 de Maio a 13 de Junho, mergulha num profundo estado de transe que condoía. Era um ser quase inerte, que de tão apoderado pelo medo, já não reagia. Ante esta incontornável situação, a Companhia que estava sob o comando de subalternos [aliás, como numa parte substancial do tempo de permanência], pediu a sua evacuação.

(Continua)



E para todos vocês, um até breve. Um abraço do Idálio Reis.

_______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá

9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel

2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras

9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em Gandembel

terça-feira, 22 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1778: Álbum das Glórias (13): O que custava mais eram os primeiros 21 meses (Humberto Reis / Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Natal de 1969 > Messe dos Sargentos > Pessoal da CCAÇ 12 (1969/71) e da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) no almoço de Natal: na foto, consigo distinguir, no lado esquerdo, os furriéis milicianos da CCAÇ 12 Marques, Branquinho, Martins (o Pastilhas), o Pina e o Fernandes... No lado direito, assinalados com um rectângulo a amarelo, reconheço o nosso vagomestre, Jaime Santos, e o José F. G. Almeida, de transmissões (1).

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.


O Álbum das Glórias (2)

1. O nosso amigo e camarada Humberto Reis estava, há dias, desapontadíssimo porque, pela primeira vez, desde que a malta de Bambadinca, da época de 1968/71, se reune periodicamente para conviver - prática inaugurada em 1994 - vai ter que faltar à chamada (3)... Ou seja, no dia 26 de Maio, sábado próximo, ele estará na Suécia, numa viagem de negócios (o nosso engenheiro está ligado à concepção, instalação, gestão e manutenção de sistemas de ar condicionado), enquanto os camaradas do seu tempo de Bambadinca (CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12, Pel Rec Daimler 2206, Pel Caç Nat 52, Pel Caç Nat 63, etc.) se irão juntar, em Lisboa, na Casa do Alentejo, sob a batuta dos ex-Alf Mil da CCS do BCAÇ 2852 Fernado Calado e Ismael Augusto...

O Humberto fazia questão de dizer-me que ele era um dos quatro 'totalistas' da CCAÇ 12: ele, o Marques, o Fernandes e o Sousa, ex-1º cabo Aux Enfermeiro até à data não tinham falhado um convívio... Vai acontecer desta vez, mas mesmo assim ele faz questão de estar representado pela esposa Teresa (que esteve em todos os encontros, excepto no 1º, em Fão, Esposende, no já longínquo ano de 1994)...

Em jeito de pequena homenagem ao nosso 'cartógrafo-mor' - como eu na brincadeira gosto de lhe chamar -, e desejando-lhe bons ventos e bons augúrios lá por terra dos vikings, vou aqui citar uma das frases que a sua memória de elefante reteve, e que é reveladora do nosso proverbial humor de caserna.

Em conversa, a propósito do Gilberto Madail, conhecido dirigente da Federação Portuguesa de Futebol e da UEFA, lembrou-me o Humberto que foi a CART 1746 (a que pertencia o Madail) (4) quem, estando no Xime, na altura da nossa chegada à Guiné, fez as honras da recepção aos periquitos (nós, os da CCAÇ 12, mas também os da CART 2520, que vieram render os da CART 1746): ao chegarmos ao Xime, em LDG, e ao tomarmos as viaturas que nos iriam conduzir a Contuboel, "eram eles que lá estavam com um grande lençol branco onde estava escrito O Que Custa Mais São Os Primeiros 21 Meses"...




Guiné > Região do Oio > Bissorã > Pessoal da CART 1525 (1966/67) e e da CART 1746 (1967/69) > Na messe de oficiais: O Rogério Freire, alf mil da CART 1525, é o de "de óculos ao lado do Madaíl" (Gilberto Madaíl, em primeiro plano, no lado esquerdo). "Ao fundo está o (na altura) Capitão Mourão da CART 1525 e, ao seu lado, à direita da foto de óculos, o Capitão Vaz" (RF)... Este último comandava a companhia a que pertencia o alf mil Madaíl, a CART 1746 (que irá acabar a sua comissão no Xime, Zona Leste, Sector L1).

Em Bissorã, sempre houve uma tradição ligada à actividade desportiva e, nomeadamente, ao futebol... Não sabemos se o jovem Madaíl tinha jeito para a bola ou, na altura, já tinha revelado a sua vocação para dirigente desportivo... Diz o Rogério Freire (RF) sobre o Gilberto Madaíl, que é hoje uma figura pública: "A imagem que retenho do Madaíl daquele tempo é o de uma pessoa muito alegre e bem disposta e de muito fácil conversa e diálogo".

Foto: CART 1525 - Os Falcões (Bissorã,Guiné-Bissau, 1966-67) (com a devida vénia...).



Infelizmente, esse momento [ da troca de galhardetes entre periquitos e velhinhos no Xime] não foi fotografado por nenhum de nós, pelo menos até ao momento não me chegou às mãos nenhuma 'chapa' desse dia e hora... Eu tenho, apesar de tudo, um apontamento desse dia 2 de Junho de 1969 (5)...

Em boa verdade, esse terá sido o primeiro dia dos duros 21 meses que nos esperavam em terras da Guiné... (LG).

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 21 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1773: Lista do pessoal de Bambadinca (1968/71) (Letras C / Z) (Humberto Reis)

(2) Vd. post de 3 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1726: Álbum das Glórias (12): Bissau: Clube Militar, mais conhecido por Biafra (Mário Bravo)

(3) Vd. post de 9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1742: Convívios (2): Lisboa, Casa do Alentejo, 26 de Maio de 2007: Bambadinca 68/71, BCAÇ 2852, CCAÇ 12, etc. (Fernando Calado)


(4) Vd. posts de:


21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P978: Futebol em Bissorã no tempo do Rogério Freire (CART 1525) e do Gilberto Madail

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P979: O Gilberto Madail pertenceu à CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (Paulo Santiago)




(5) Vd. post de 12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)


(...) "Como um cão apanhado na rede – repetia eu, nessa manhã de 2 de Junho de 1969, no fundo da LDG Bombarda (6), entre fardos de colchões de espuma, cunhetes de munições, Unimogs novinhos em folha e velhas malas de viagem atadas com cordões, enquanto os fuzileiros, hercúleos, heróicos, em tronco nu, de garrafa de cerveja na mão, assustavam bichos e homens com tiros de morteirete próximo da temível Ponta Varela, exorcizando os diabos negros que infestavam o tarrafe e os cerrados palmeirais que circundavam as margens do Geba, ao mesmo tempo que um solitário T-6, protector como um anjo da guarda, sobrevoava a foz do Corubal, ronceiro, sob um céu de chumbo (ou de bronze incandescente ?), em círculos concêntricos como o voo do sinistro jagudi - que fareja a morte, dizem os guinéus, a quilómetros de distância -, acabando por alijar a sua carga mortífera lá para longe, talvez a norte, em Madina/Belel, talvez a sul, no Fiofioli – após a nossa chegada a bom porto…

"Na circunstância, um porto fluvial, um sítio chamado Xime, sem qualquer tabuleta que o identificasse – um pontão acostável, uma guarnição militar a nível de companhia (com um destacamento no Enxalé, do outro lado do rio e da bolanha), três obuses Krupp, silenciosos mas ameaçadores, meia dúzia de casas de estilo colonial, de adobe e chapa de zinco, e mais umas escassas dezenas de cubatas de colmo, ruínas dum antigo posto administrativo, restos de uma comunidade mandinga, vestígios de um decadente entreposto comercial, cercados de holofotes, arame farpado, espaldões, valas, abrigos, a estrada cortando ao meio a tabanca e o aquartelamento, dois irmãos siameses condenados a viver e a morrer juntos…

"Todo o tráfego para a Zona Leste passava inevitavelmente pelo Xime, sendo o rio Geba (ou Xaianga) navegável até Bafatá, mas apenas por embarcações de pequeno calado, e mesmo era assim uma aventura devido ao risco de emboscadas especialmente no Mato Cão, no troço entre o Xime e Bambadinca quando o rio estreitava e se espraiava pela terra dentro, enroscando-se como uma cobra entre a bolanha e a floresta…

"E como os cães (vadios) que se levam na carroça camarária, lá seguimos a caminho do matadouro ou de um outro qualquer destino cruel, para um sítio no mínimo desconhecido, que sabíamos apenas chamar-se Contuboel, algures no leste da Guiné, a meio caminho entre Bafatá e a fronteira norte, para aí formarmos companhia, transportados em estranhos camiões que habitualmente serviam para reboque de peças de artilharia – por ironia, chamados Matadores! - , entre alas de soldados, tugas, que faziam segurança nos flancos, bronzeados pelos trópicos, de lenços de pescoço garridos – tão garridos como o traje da minhota em dia de arraial, tão desconcertantemente garridos em contraste com o camuflado já comido do sol e da chuva - , alardeando a sua velhice, por gestos que revelavam um misto de paternalismo, sobranceiria, fanfarronice e inconsciência -, esforçando-se por asssinalar, a nós, pobres e assustados periquitos, o buracão da última mina, os vestígios da última emboscada, a curva fatídica onde, por detrás dos morros de baga-baga, a morte podia estar à nossa espreita, sob a forma do lendário Fernandes, antigo futebolista do Sporting de Bissau, de quem se dizia ser capaz de fazer saltar a cabeça dum tuga a 100 metros de distância com um único tiro certeiro de RGP… Pobres periquitos que engoliam todas as patranhas que lhes impingiam desde a chegada a Bissau, propagadas de esplanada em esplanada, do Bento ao Pelicano, como fogo atiçado ao capim…

"Um arrepio de frio percorreu-me o corpo de alto a baixo. Instintivamente tirei os meus óculos, puxei a escassa gola do camuflado para o desguarnecido pescoço, enterrei o quico na cabeça e pus a patilha da G-3 no automático – quebrando assim, pela primeira vez, o juramento que a mim próprio fizera, ainda em Santa Margarida, de nunca mais pôr uma bala na câmara, depois do lamentável incidente com a velha mauser em que, durante um das brincadeiras estúpidas da IAO, no assalto a uma tenda de campanha do inimigo-a-fingir, havia arrancado os fundilhos das calças da farda nº 3 a um cabo miliciano, quase à queima roupa, com uma bala de madeira...

"A meu lado, o pobre do Pastilhas suava por todos os poros, à medida que o gigante da floresta verde abria os seus braços para nos deixar passar… A começar pelo nosso capitão, o afável capitão Brito, veterano da Índia, seguíamos todos tensos e calados, tentando disfarçar o natural nervosismo de quem entrava abruptamente no famoso TO (teatro de operações) da Guiné.

"Pairava ainda na estrada Xime-Bambadinca o fantasma do furriel vagomestre do Xime que em Ponta Coli, antes de Amedalai, tinha por hábito desafiar impunemente o turra, insultando-o de cabrão e filha da puta para cima, turra esse que nós iríamos aprender a respeitar com a reverência temerosoa que é devida a todos os inimigos poderosos, armados ou não de RPG – até que um dia morreu com um tiro na nuca e a bela Helena de Bafatá nos braços" (...).


(6) Não foi a LDG Bombarda mas sim a LDG Alfange que nos levou de Bissau ao Xime: quem o diz é o Manuel Lema Santos, que é o nosso catedrático em matéria de Marinha e Marinheiros:

vd post de 16 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1371: Foi a LDG 101 Alfange que transportou a CCAÇ 2590/CCAÇ 12 até ao Xime em 2 de Junho de 1969 (Manuel Lema Santos)

Guiné 63/74 - P1777: Blogues que nos citam (1): Rumos e Culturas, de Carlos Palmeiro




Blog de Carlos Palmeiro , de 26 anos, Rumos e Culturas é apresentado como um "espaço dedicado à publicação de textos sobre os mais variados temas... opiniões independentes sobre o mundo social, político e cultural que partilhamos, lado a lado com a publicação de crónicas e histórias sobre todos os assuntos possíveis… todos mesmo... um blog em metamorfose quase constante". O autor interessa-se por fotografia, turismo, viagens, desporto e aventura, ambiente, política, sociedade, Portugal, blogosfera...

Com a devida vénia transcrevemos um excerto de um texto, ainda recente, sobre o nosso blogue (para o qual o Rumos e Culturas teve a gentileza de fazer uma hiperligação permanente):

Quinta-feira, 25 de Janeiro de 2007 > Luís Graça & Camaradas da Guiné

Não é de há muito tempo que venho lendo as crónicas publicadas no blog colectivo Luís Graça & Camaradas da Guiné, contudo, soube desde o primeiro momento que o visitei, que viria a ser um visitante frequente. E assim tem sido.

O endereço foi-me dado por um professor que muito prezo, um homem simples mas dotado em tudo o que lhe conheço, Dr. Mário Beja Santos, uma das personalidades que nele publica. São dele algumas das mais interessantes crónicas que li, peças de um romance que anda a ser escrito… pedaços de história que me deixam agarrado ao ecrã do computador até à última linha.

Operação Macaréu à Vista, nome do romance, é de uma riqueza informativa inquestionável, crónica narrativa de momentos passados na Guiné, numa descrição marcada por um poder de recordação imenso e por um humor subtil que julgo ser uma das grandes qualidades dos diversos relatos. Apesar de todo o romance estar disponível no blog, a sua publicação em livro é imprescindível, pois nem toda a gente acede à blogosfera, e um documento como este deverá chegar a todos.

O editor do Blog, Luís Graça, professor na Universidade Nova de Lisboa, tem vindo a acolher no seu espaço um grupo de camaradas seus da Guiné, que vão publicando em conjunto crónicas documentais, a que chamo, sem sentido pejorativo, pedaços de história, que, quer pela qualidade, quer pela quantidade de informação, já constituem um acervo histórico singular sobre a guerra colonial na Guiné, para consulta obrigatória não só por pessoas que viveram idêntica experiência de guerra ou tenham presenciado esse período em Portugal ou nas colónias, mas sobretudo para aqueles que como eu, se encontram afastados desse período histórico por razões geracionais.

O blog, para além do espaço de publicação, conta ainda com ligações a outros sítios e blogs da mesma área temática, existe inclusive a possibilidade de consultar cartas militares da Guiné (muito interessante), enfim, um projecto muito bem organizado, uma mais valia para a memória da guerra colonial (...).

Guiné 63/74 - P1776: Convívios (9): CCAÇ 3 (Barro, Binta, Guidaje, 1967/74) (A. Marques Lopes)













Texto: A. Marques Lopes / Fotos: Xico Allen (2007). Direitos reservados

O nosso camarada A. Marques Lopes, coronel (DFA) na situação de reforma, vive hoje em Matosinhos. Foi alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968). O Xico Allen, por sua vez, pertenceu à CCAÇ 3566 - Os Metralhas (1972/74) e é um competente conhecedor da Guiné-Bissau, organizando viagens até lá (Vive em Canidelo, Vila Nova de Gaia; telemóvel 938459828; não tem e-mail) (1) .

Texto do A. Marques Lopes:

Juntámo-nos no passado dia 12 de Maio no Restaurante Arte Xávega, da Nazaré, alguns dos que passaram pela CCAÇ 3. A maior parte não se conhecia entre si, dado tratar-se de uma companhia de "recrutamento da Província", com a maior parte dos quadros de passagem em rendição individual. Esta companhia teve um historial longo. Começou por se chamar CCAÇ 1. Dados colhidos do livro da CECA (Comissão para o Estudo das Campanhas de África), editado em 2001 pelo Estado-Maior do Exército (Tomo II, Guiné, 7º Volume -Fichas das Unidades).


História da CCAÇ 3 (1961-1974)

A CCAÇ 1 era uma unidade da guarnição normal, com existência anterior a 1 de Janeiro de 1961 e foi constituída por quadros metropolitanos e praças indígenas do recrutamento local (2), estando enquadrada nas forças do CTIG então existentes.

Em 1 de Janeiro de 1961 estava colocada em Bissau, com um pelotão destacado em Nova Lamego, onde foi transitoriamente instalada, na totalidade, em 3 de Abril de 1961, com pelotões destacados em Sedengal e Cacheu e depois em S. Domingos. Após a reorganização do dispositivo de 23 de Agosto de 1961, foi substituída em Nova Lamego, por troca, pela 3ª CCAÇ, regressando a Bissau, tendo destacado efectivos para várias localidades da zona Oeste, nomeadamente em Ingoré, Enxalé, Susana, Mansabá e Bigene e também, na zona Sul, em Cabedú.

A partir de 1 de Julho de 1963, foi colocada em Farim, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 239, com pelotões destacados em S. Domingos e Ingoré e secções em Susana, Mansoa, Mansabá, Bigene e Barro, tendo depois ainda deslocado efectivos para Bissorã, Cuntima, Olossato, Binta, Guidaje, Canjambari, Porto Gole e Enxalé, sucessivamente integrada no dispositivo e manobra dos batalhões que assumiram a responsabilidade do sector de Farim.

Em 27 de 0utubro de 1966, foi colocada em Barro, onde assumiu a responsabilidade do respectivo subsector, então criado na área do BCAÇ 1887 e transferido, em 3 de Novembro de 1966, para a zona de acção do BCAÇ 1894, mantendo, no entanto, dois pelotões destacados no anterior sector, em Binta e Canjambari, este último deslocado para Jumbembem, a partir de meados de Janeiro de 1967.

Em 1 de Abril de 1967, passou a designar-se CCAÇ 3.

E a CCAÇ3 foi assim (segundo a mesma fonte, que temos vindo a citar):

Em 1 de Abril de 1967, foi criada por alteração da anterior designação de 1ª CCAÇ. Era de praças indígenas do recrutamento local. Continuou uma companhia da guarnição normal do CTIG, constituída por quadros metropolitanos instalada em Barro, mantendo-se então integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 1894, com dois pelotões destacados em reforço do BCAÇ 1887 e estacionados em Binta e Jumbembem, este depois em Canjambari a partir de finais de Setembro de 1967. Ficou sucessivamente integrada no dispositivo e manobra dos batalhões e comandos que assumiram a responsabilidade da zona de acção do subsector de Barro.

Após recolha dos pelotões instalados em Binta e Canjambari em 20 de Julho de 1968, destacou, em meados de Outubro de 1968, um pelotão para Guidaje, tendo assumido, em 9 de Março de 1969, a responsabilidade do subsector de Guidaje por troca com a CART 2412 e destacando então dois pelotões para Binta, sendo especialmente orientada para a contrapenetração no corredor de Sambuiá, onde em 21 e 22 de Janeiro de 1969 tomou parte na operação Grande Colheita, realizada pelo COP 3.

Em 22 de Fevererio de 1972, rendida em Guidaje pela CCAÇ 19, assumiu a responsabilidade do subsector de Saliquinhedim, onde substituiu a CCAÇ 2753 e ficou integrada no dispositivo e manobra do COP 6 e depois do BART 3844.

Em 8 de Dezembro de 1972, foi substituída, transitoriamente, por forças da CART 3358 no subsector de Saliquinhedim e foi colocada em Bigene para onde se deslocou, por escalões, em 26 de Novembro de 1972 e 8 de Dezembro de 1972 e onde assumiu a responsabilidade do respectivo subsector em substituição da CCAÇ 4540/72, ficando então novamente integrada no dispositivo de contrapenetração no corredor de Sambuiá.

Em 31 de Agosto de 1974, as praças africanas tiveram passagem à disponibilidade e, após desactivação e entrega do aquartelamento de Bigene ao PAIGC, o restante pessoal recolheu a Bissau, tendo a subunidade sido extinta.


Convívio na Nazaré, em 12 de Maio de 2007


A maior parte dos que estiveram na Nazaré estiveram em Binta e Guidaje, não tendo passado por Barro. Aqui estiveram comigo o ex-alferes Oliveira, os furriéis Neto (o organizador do encontro, comando mandado de castigo para Barro), Fernandes, Pereira e Idálio, entre os que vieram à Nazaré.

Não foi possível trazer outros, entre eles o capitão Carlos Marques Abreu, que eu bem conheci em Barro, e alguns guineenses, soldados da CCAÇ 3. Foi pena. O capitão não pôde vir por questões de saúde, quanto aos guineenses (4) ficou visto que não basta dizer-lhes para vir... é preciso ir buscá-los. Há que pensar que, vivendo eles, sabe-se lá em que condições, naqueles bairros dos arredores de Lisboa, não terão muitas condições para se deslocarem para o interior do país... Tentei incutir esta ideia, tanto mais que se decidiu que o próximo encontro seria em Trás-os-Montes.

Foi bom. Mando algumas fotografias que o nosso amigo Xico Allen tirou.

A 2 de Junho próximo é o convívio da CART 1690 (Geba, onde estive em 1967) (3)...

Abraços
A. Marques Lopes

__________

Notas de L.G.:

(1) Sobre o Xico Allen, vd. posts:
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVI: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)

1 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P828: Cancioneiro de Empada (Xico Allen)

28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1555: Xico Allen: Viagens terrestres até às terras do Cacheu, Geba, Corubal, Buba e Cacine (A. Marques Lopes / Zé Teixeira)

(...) "O Chico Allen está a organizar uma viagem por terra à Guiné - a sua paixão. Pede para passares no Blogue a informação se por assim o entendres. Informo que estou a organizar viagens por via terrestre à Guinè, com passagem por Marrocos, Mauritânia e Senegal.
Já efectuei várias viagens com diversos camaradas e cada vez me seduz mais este percurso, pela aventura, pela partilha e experiência que se adquire e pelas belezas que se desfrutam. Contactem-me pelo telemóvel 938459828. Francisco Allen - Os Metralhas / Empada. [CCAÇ 3566, Empada e Catió, 1972/74) (...)

Foram publicados 26 posts sobre a viagem Porto-Bissau, , que decorreu em Abril de 2006: Vd. o primeiro e o último post desta série:

4 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXI: Do Porto a Bissau (1): o jipe está de saída (Albano Costa)

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P854: Do Porto a Bissau (26): leitão à moda de Jugudul (A. Marques Lopes)

(2) Vd. post de 2 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1640: A africanização da guerra (A. Marques Lopes)

(3) Vd. post de 12 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1751: Convívios (4): CART 1690 (Geba 1967/69): Sever do Vouga, Couto de Esteves, 2 de Junho de 2007 (A. Marques Lopes)

(4) Sobre a CCAÇ 3 e Barro, vd posts:
15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LIV: Cacuto Seidi, chefe da tabanca de Barro (Afonso M.F. Sousa)

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIII: Barro, trinta anos depois (1968-1998) (A. Marques Lopes)
10 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DXVIII: A sanha revolucionária e os meus Jagudis (A. Marques Lopes)

23 Maio 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIII: Do Porto a Bissau (21): revisitando Barro (A. Marques Lopes)

25 Maio 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCV: O colaboracionismo sempre teve uma paga (1) (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1775: O Nosso Livro de Visitas: Altamiro Claro, ex-Presidente da CM Chaves e ex-Alf Mil Op Especiais da CCAÇ 3548 / BCAÇ 3884

Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 (1967/69) > Croqui do monumento erigido, em Geba, aos "mortos que tombaram pela pátria"... Em 1995, a jornalista Diana Andringa visitou Geba e escreveu, a propósito deste monumento, semi-destruído, uma belíssima peça, pungente, no Público, de 10 de Junho de 1995, que merece ser retranscrita (1). Ainda recentemente ela me contactou, por telemóvel, por causa de um projecto cinematográfico que tinha em mãos, com filmagens na Guiné-Bissau, em colaboração com o conhecido realizador Flora Gomes, autor de Nha Fala (2002). Desejo, a ambos, boa sorte. Infelizmente não pude ajudá-la muito, com contactos, por estar fora de Lisboa.

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.

Guiné > Região de Bafatá > Geba > 2001 > O ex-presidente da Câmara Municipal de Chaves e ex-Alf Mil Op Especiais Altamiro Claro junto aos restos do monumento erigido em Geba aos mortos e desaparecidos da CART 1690, a que pertenceu, em 1967, o nosso camarada A. Marques Lopes.

Guiné > Região de Bafatá > Sare Banda > 2001 > O ex-presidente da Câmara Municipal de Chaves e ex-Alf Mil Op Especiais Altamiro Claro, em Saré Banda (vd. Carta de Banjara).

Fotos: © Altamiro Claro (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem de Altamiro Claro:

Caro Camarada:

Só agora tomei conhecimento do teu blogue, que desde logo despertou em mim um enorme entusiasmo.

Chamo-me Altamiro R. Claro e também eu estive na Guiné entre 1972/74, mais concretamente em Geba, como Alferes Miliciano de Operações Especiais, pertencendo à CCAÇ 3548, do BCAÇ 3884 (2).

Chamou-me especial atenção no teu blogue anterior (Abril 2005 / Maio 2006 ) as crónicas do A. Marques Lopes sobre a CART 1690 que também esteve em Geba e em especial "Guiné 69/71 - XLVI : Em memória dos Bravos de Geba..." (3), onde nos fala dos mortos e desaparecidos da sua companhia e do monumento que então erigiram na sede de companhia.

Pois bem, no ano de 2001, quando eu exercia as funções de Presidente da Câmara de Chaves, fiz uma geminação entre Chaves e Bafatá e desloquei-me à Guiné, tendo visitado Geba, Sare Banda e Cantacunda, lugares referenciados pelo Marques Lopes.

Envio duas fotos tiradas, uma em Geba junto aos destroços do dito monumento e outra em Sare Banda.

Voltarei a contactar-vos.

Um grande abraço para todos os camaradas da Guiné.

Altamiro Claro


2. Comentário do editor do blogue:

Camarada Altamiro: És bem vindo. Fazendo jus à vossa proverbial hospitalidade transmontana, direi apenas: Obrigado, amigo, entra, a tabanca é grande e é toda tua. L.G.

3. Comengário postreior do A. Marques Lopes:

Caros camaradas: As minhas muito boas vindas ao Altamiro Claro, da CCAÇ 3548, que se designou por Panteras de Geba. Andou por onde eu andei e é bom tê-lo por cá.
Um abraço de boas vindas.


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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 22 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXIII: Antologia (4): 'Homenagem aos mortos que tombaram pela pátria': Geba, 1995 (Diana Andringa)

Mortos. Estes nomes não podem ser senão de mortos. Guimarães, ...ndo Fernandes. Carlos A. Peixoto. ...ul C. Ferreira, ...ostinho Câmara, ...o Alves Aguiar, ...ime M.N. Estevão, ...sé A. V. Sousa, ...tónio D. Gomes.

Tudo em redor, aliás, fala de morte. As paredes em derrocada do que terá sido um quartel português. As viaturas a apodrecer sob o intenso sol africano. Os cacos de garrafas de cerveja. (Bebidas para enganar o medo? Suspensas por arame para, tinindo umas contra as outra, despertar os que dormissem ainda?).

E esta pedra caída, tumular.

Vivos, apenas os meninos que se cutucam, sorrindo, a olhar para nós, estranhos fotógrafos deste cemitério de metal e pedra.

A outra pedra, de pé, tem nomes de cidades, vilas, aldeias: Lisboa. S. Tirso. Moçâmedes. Alcobaça. Madeira. (Nas ilhas não haverá também povoações?) Ponte de Lima. Vila Nova de Ourem. Vila Pouca de Aguiar. Bissau. O tempo, ou a guerra, quebrou-lhe a parte de cima, e agora é uma pirâmide truncada, rasgada do lado direito, onde se inscrevem as primeiras letras dos postos, ou dos nomes, dos naturais dessas terras, que presumimos mortos.

De novo a primeira pedra, a que jaz por terra. A frente dos nomes dos que se presumem ter morrido, inscrevem-se o que supomos serem as datas dessas mortes: 1967, 1968. A última, na pedra, não em tempo, sobressalta-me: 21 de Agosto de 1967. Fiz vinte anos nesse dia. Nesse mesmo dia morreu António D. Gomes. Teria feito, sequer, os vinte anos?

Lembro-me de ter feito vinte anos. Das prendas dos meus pais. E pergunto-me como terão os pais do soldado António D. Gomes suportado a morte do seu filho. Se terão chegado um dia a conhecer este local onde uma pedra caída por terra assinala a data em que o perderam.

"Nós enterramos os nossos mortos nas nossas aldeias, ao lado das nossas casas... Os portugueses deveriam ter, também, um lugar para honrar os seus mortos, os que morreram aqui, durante a guerra", dissera-me, algumas horas antes, um antigo adversário. Aqui. Tão longe de casa, tão longe dos seus. Longe de mais para que possam trazer-lhes flores, arranjar-lhes as campas, preservar-lhes a memória.

Olho de novo as pedras, tentando compreender como se juntavam. Será a que jaz por terra a continuação da outra? Releio as terras e os nomes. Câmara pode ser da Madeira... Será mesmo? Sim. Lá estão em frente de Madeira o posto, sold., e as primeiras letras do seu nome: Ag...-

Agora cada morto tem o posto e a terra onde nasceu, excepto o primeiro, que parece ser de Lisboa, mas cujo posto e nome próprio se perderam, e João Alves Aguiar, de Ponte de Lima, a que o tempo corroeu o posto. Dois alferes, um furriel, sete soldados. Em cima, fragmentado, aquilo que parece a indicação do regimento a que pertenciam: ...RAL-1. ...Combate.

Postas assim as duas pedras em conjunto, apercebo-me de que o soldado que morreu no dia dos meus vinte anos era de Bissau, e de certa forma isso tranquiliza-me, porque não está, afinal, tão longe de casa- como se isso tivesse alguma importância depois de se estar morto, como se me tivesse contagiado essa lista de terras inscrita sobre a pedra, ou outras, sobre outras pedras encontradas ao longo da viagem, onde outros soldados, cabos, furriéis, escreveram como se a naturalidade fosse a sua primeira identificação e a mais forte, o nome da terra natal, primeiro, e só depois o posto, o nome, a data em que escreviam, por vezes uma frase de desesperança, algo como "até quando Deus quiser" — como que temendo que esse "até" fosse curtíssimo, coisa de poucas horas, minutos, talvez, e houvesse que inscrever urgentemente, sobre esses caminhos, placas, pontes, esse sinal de vida e de memória.

Parece estranho que alguém possa ter tido medo aqui, neste local tão calmo, com o tempo suspenso e o silêncio apenas cortado pelo ruído persistente das cigarras. É difícil imaginar, enquanto os meninos se agrupam à nossa volta, curiosos do que fazemos e olhamos, que em tempos houve aqui tiros e gemidos — e homens cumprindo a triste tarefa de escrever sobre estas pedras os nomes dos companheiros mortos.

Um pouco mais adiante, numa das paredes que ainda se mantêm de pé, alguém desenhou um rinoceronte e um leão. Tê-los-á visto realmente? Tê-los-á imaginado? Em frente, sobre uma paisagem aparentemente urbana de prédios e chaminés, voa uma ave. Uma gaivota? Uma pomba? Um símbolo de paz? Um piscar de olho a esse adversário que, a todo o momento, lembrava que a sua luta era "contra o colonialismo português e não contra o povo de Portugal"? E que, muito antes de disparar o primeiro tiro, advertira: "A via pela qual vai ser feita a liquidação total do colonialismo português na Guiné-Bissau e em Cabo Verde depende exclusivamente do colonialismo português. (...) Ainda não é tarde para proceder à liquidação pacífica da dominação colonial portuguesa nas nossas terras. A menos que o Governo português queira arrastar o povo de Portugal para o desastre de uma guerra colonial."

"O desastre de uma guerra colonial". Legenda para fotografia de pedras com listas de mortos, veículos destruídos, quartéis em derrocada — e, contrastando, os sorrisos dos meninos a dar-nos as boas-vindas.

Todos os anos, pelo 10 de Junho — esse dia que o regime colonial-fascista celebrava como Dia da Raça, e em que condecorava, no Terreiro do Paço, os pais, as viúvas e os órfãos dos militares caídos em combate —, ressuscitam algumas vozes saudosas do Império, a criticar a descolonizaçáo e a independência das ex-colónias portuguesas. Fazem-no, muitas vezes, usando a memória dos soldados mortos na guerra colonial. Escamoteando sempre que essas mortes se deveram, exclusivamente, à intransigência de um regime incapaz de compreender a inevitabilidade das independências, e à teimosia de um homem que, nunca tendo posto um pé em África, cuidava saber, bem melhor do que eles, o que melhor convinha aos africanos.

Releio a lista de mortos sobre a pedra e pergunto-me se, vinte anos depois, não será tempo de aceitar, claramente, que foram esses os únicos responsáveis dessas mortes... ».

Diana Andringa. Público. 10 e Junho de 1995.

(2) Sobre o BCAÇ 3884 (1972/74), vd. posts de:

9 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIV: Camaradas do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74), procuram-se! (Maurício Nunes Vieira)

17 Outubro 2005 > Guiné 63/74 - CCXLV: Notícias do BCAÇ 3884 (Bafatá, Contuboel, Geba e Fajonquito, 1972/74) (Manuel Oliveira Pereira)

Estandarte do BCAÇ 3884 (Bafatá, Contuboel, Geba, Fanjonquito, 1972/74)

Foto: © Oliveira Pereira (2005). Direitos reservados.

(3) Vd. post de 5 de Junho 2005 > Guiné 69/71 - XLVI: Em memória dos bravos de Geba... (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1774: A morte do Fernando Ribeiro: eu ia nessa fatídica coluna e era seu amigo (Joaquim Peixoto, CCAÇ 3414)

Guiné > Zona Leste > Sare Bacar > CCAÇ 3414 (1971/73) > O Fernando Ribeiro, de pé, ao lado do seu amigo Joaquim Peixoto (hoje professor do ensino básico, em Penafiel). Morreu em Julho de 1973, já no final da sua comissão. A viatura blindada que aparece atrás, na fotografia, parece ser uma Chaimite... (LG)

Foto: Joaquim Peixoto (2007). Direitos reservados


1. Mensagem do Joaquim Peixoto:

Caro Luís Graça:

Muitas vezes recorro à Internet para saber notícias dos camaradas da CCAÇ 3414. Fiquei muito surpreendido ao verificar que alguém queria saber algo sobre o meu amigo Fernando Ribeiro (1)

Tal como ele, também eu fui furriel. Pertencíamos à mesma companhia, mas a pelotões diferentes. Formámos batalhão no BII 17, em Angra do Heroísmo. Partimos para a Guiné em 26 de Junho de 1971, a bordo do navio Niassa.

Durante um mês fizemos o IAO em Bolama. Depois partimos para Sare Bacar, a poucos metros do Senegal. Estivemos aqui muitos meses e, quando pensávamos regressar, (felizmente não tínhamos sofrido qualquer baixa) soubemos que ainda tínhamos de cumprir mais alguns meses. Ficámos em Bissau e então começaram os azares.

Numa coluna apanhámos uma mina anticarro que vitimou o condutor Parreira. Mais tarde, quando regressávamos de uma missão, sofremos uma emboscada, que vitimou o Furriel Fernando Ribeiro. Fiquei muito chocado com esta morte, porque poucas horas antes tinha estado a ter uma conversa com ele.

Pouco antes da emboscada tivemos que atravessar um rio.( Onde anos antes tinha havido um grande desastre). Essa travessia foi feita em jangadas. A minha vez de fazer essa travessia era anterior à do Fernando Ribeiro, mas este fez questão de me acompanhar e nessa viagem falou-me da namorada, do irmão, etc … Essa emboscada aconteceu numa estrada alcatroada. O F. Ribeiro seguia duas viaturas à frente da minha.

Foi muito sentida esta morte. Quando chegámos ao quartel houve alguns camaradas que ficaram em estado de choque e precisaram de receber assistência médica. Esta CCAÇ 3414 era formada por soldados açoreanos e nós, os graduados, éramos de cá.

Algum tempo depois de regressarmos da Guiné fizemos um almoço em Coimbra e fomos depositar um ramo de flores no cemitério em Condeixa. Haveria muito a dizer deste amigo que nos deixou tão cedo.

Envio também uma fotografia em que estou com ele. (O Fernando está de pé.) Chamo-me Joaquim Carlos Peixoto, vivo em Penafiel, sou Professor do 1º Ciclo .

Um grande abraço

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Joaquim, pelo teu testemunho. Tu eras camarada e amigo do Fernando. O teu depoimento é muito importante. Tu estavas lá, nessa emboscada fatídica... Foste o primeiro, da tua unidade, a CCAÇ 3414, a responder ao nosso pedido... Bem hajas. Gostaria que te juntasses a nós. Temos muito gosto em que faças parte da nossa tertúlia, tabanca grande ou caserna virtual. Como queiras. (LG)

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Nota de L.G.:

(1) Sobre o Fernado Ribeiro, vd. posts de:

24 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1544: Quem conheceu o Furriel Mil Art Fernando J. G. Ribeiro, morto na picada de Binta-Farim em Julho de 1973 ? (Luís Graça)

25 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1547: O Furriel Mil Atirador Fernando Ribeiro pertencia à açoriana CCAÇ 3414 e morreu entre Mansabá e Mansoa (A. Marques Lopes)

28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1554: As mulheres que ficaram na rectaguarda (Luís Graça /Paulo Raposo / Paulo Salgado / Torcato Mendonça)