quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5037: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (9): Súmula sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

1. Publicamos hoje um trabalho escrito pelo então Alf Mil Carlos Geraldes (*) da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, à ordem do seu CMDT, sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu), enviado em mensagem de 26 de Setembro de 2009.


Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

(Súmula dos conhecimentos adquiridos no período de Out. 1964 a Abr. de 1966)

Situação Geral:


Presentemente, não existem “tabancas” (aldeamentos indígenas) aliciadas pelo “IN” (Inimigo), embora em 1963, um grupo de terroristas que pretendia actuar na zona de Paúnca se tivesse acoitado em Madina Mamadu Sanússi (da etnia “Fulas-pretos”).

Foram escorraçados e mantida a população da tabanca sob vigilância, tendo-se criado lá um posto de cipaios. Todavia, tendo, os elementos suspeitos da tabanca, procurado refúgio no Senegal, nunca mais a referida população manifestou tendências suspeitas.

Durante o período 64/66, não se registaram quaisquer infiltrações ou tentativas de aliciamento por parte do IN.

Poucas são as tabancas e os caminhos que não estão devidamente assinalados na carta de 1/ 50.000, sendo, no entanto, de chamar a atenção para o traçado do caminho que vai de Fasse à ”cambança” (sítio onde se atravessa um rio), que não é o que vem indicado na carta. Na realidade, o caminho inflecte para Norte, cerca de 45 graus, atravessando por completo o Mato de Sacaio e localizando-se a cambança no ponto de intersecção de uma linha que fosse traçada de Fasse a Sare Bacar, com o rio Gêba.

Pelo facto de quase toda a região estar protegida, a Norte pelo rio Bidigor, a Oeste pelo rio Gêba e a Sul pelo rio Cumtimbo, goza naturalmente de certos privilégios no que diz respeito às defesas naturais contra possíveis acções do IN. Apesar disso, apenas na época das chuvas se poderá confiar nessas “muralhas”, pois somente o rio Gêba mantém, durante todo o ano, um nível de caudal suficiente para impedir a passagem a vau.

Existem três tabancas-chave, situadas junto de outras três cambanças utilizadas por quem vai ou vem do Senegal: Guiro Iero Bocari (Sinchã Queuto), Madina Mamadu Sanússi e Fasse.

Em todas elas a população tem-se mostrado digna de confiança, colaborando activamente com as “NT” (Nossas Tropas), no controle e vigilância das respectivas cambanças. Todas as canoas, durante a noite, ficam presas a cadeado, na margem de cá.

Em Guiro Iero Bocari existe uma ponte feita com troncos e “carentins” (grandes esteiras feitas de entrançado de bambu), de construção recente, mas apenas utilizável em tempo seco. É também de fácil controlo, pois só permite a passagem, em fila indiana, de três pessoas de cada vez, no máximo.

Todo o “chão” (território, nação) tem demonstrado estar incondicionalmente do lado da tropa, posição que não deixa de aproveitar largamente em seu favor, com constantes pedidos de transporte dos seus haveres, além de ajuda material em armas e munições, medicamentos, etc. No entanto, evidenciam um forte sentido de hospitalidade, notando-se até uma certa rivalidade entre as tabancas mandingas e fulas, nos actos de bem receber os visitantes.

A tabanca do interior, de maior importância, é, sem dúvida, Fasse, não só pelo valor estratégico, como pelo valor que tem por ser o centro mais importante no ensino do Alcorão, em todo o regulado. O “mouro” (sacerdote) da mesquita de Fasse é tido como uma das personagens mais importantes da região. O próprio traçado das ruas do interior da tabanca de Fasse, chama a atenção pelo seu traçado geométrico, pela largueza e higiene, denotando um elevado nível cultural da população, relativamente a todos os habitantes do resto do “chão”.

Existe uma mesquita, coberta com folhas de zinco, oferta do Governo da Província.

Pertencendo à etnia “Fula-Forro”, dedicam-se com êxito às culturas tradicionais, assim como à manutenção de um Horto de bananeiras e outros frutos comestíveis.


Situação Particular: Paúnca

1) A Povoação:

É um dos centros populacionais e comerciais mais importantes da zona de Gabu e Bafatá. Com um perímetro de pouco mais de 4 mil metros, está cercada por uma rede de arame farpado c/ aba.

Todas as casas ficam situadas no interior da rede e existem abrigos para atiradores deitados ao longo da face Norte e Oeste.

De Paúnca partem caminhos, para todas as tabancas da periferia, perfeitamente transitáveis pelos carros militares em qualquer época do ano.

As vias mais importantes são: Paúnca-Fasse; Paúnca-Sinchã Queuto e Paúnca-Sinchã Molele. A mesquita de Paúnca é uma das maiores e mais característica da região, pois obedece a um estilo de construção já pouco comum neste género de edifícios.

Outra casa que se destaca, no interior da tabanca, é a casa do régulo, de forma rectangular e com um mastro para hastear a bandeira nacional em dias de festa.


2) A População:

É quase toda constituída por indivíduos de etnia “Fula-Forro”, seguindo-se por ordem numérica, os de etnia “Saracolé” e os “Mandingas”, estes em menor número. Existe também uma numerosa colónia de “Balantas”, “Papéis” e “Manjacos” que constituem os grupos de trabalhadores das casas comerciais. Vivem separados numa espécie de bairro, situado nas traseiras do aquartelamento. São ordeiros, embora se embriaguem frequentemente, pois não praticam a religião muçulmana, como o resto da população.

Os fulas dedicam-se ao cultivo da “mancarra” (amendoim), do milho, do arroz e da mandioca, além da secular criação de gado vacum. Outros dedicam-se ainda ao pequeno comércio e outros são alfaiates.

São amigos de festas, que promovem com assiduidade, pedindo sempre a prévia autorização, à tropa.

Existem 3 ferreiros situados junto das entradas da povoação e o mais importante é o que tem a oficina à entrada do caminho que vem de Sinchã Queuto.

O “cherno” (pessoa de respeito) é o velho Amadu Bari, que apesar de idade avançada (mais de 80 anos) mantém uma excelente saúde e um humor muito especial. É um grande amigo da tropa e, sempre que pode, não deixa de visitar o quartel. O filho, Iaia Bari tornou-se um excelente colaborador da tropa como intérprete e informador. Domina com facilidade o dialecto Mandinga, o dialecto Saracolé, assim como alguns outros dialectos do Senegal e da Gâmbia. Fala e escreve bem o Português e dedica-se à prática de enfermagem, auxiliando o 1º Cabo Enfermeiro do Destacamento, no tratamento de civis, com os medicamentos destinados ao serviço da “Psico”. Tem um irmão, quase cego, que goza da fama de ser informador directo do Governador.


3) O Comércio:

Reveste-se de características especiais, diferente do que é praticado noutras localidades da fronteira, pois não depende do trânsito dos “gilas” (contrabandistas semi-autorizados), nem dos senegaleses que vêm ao nosso lado fazer compras. O comércio mantém-se sempre em qualquer altura do ano, abastecendo, tanto a população deste regulado como a dos outros, situados no interior. Durante a campanha da mancarra (Janeiro a Março) é muito intensa a circulação de burros carregados com os habituais dois sacos e a das camionetas de caixa aberta que depois os transportam para Bafatá. Não existem, durante todo o ano, períodos mortos, mas apenas pequenas flutuações.

As casas comerciais existentes são seis, com representação das firmas, “Barbosas”, “Gouveia” e “Pinheiros”. Todos os comerciantes mantêm boas e cordiais relações com a tropa, sendo de destacar o que dirige a filial dos “Barbosas”, o Sr. Correia. É o comerciante mais antigo de Paúnca, com amplos conhecimentos sobre os problemas do regulado. É, também, o único comerciante que se preocupa em manter uma certa rede de informações, que tem sido muito útil à tropa. No entanto, tem medo de prováveis represálias do IN sobre a sua pessoa, pois em 1963 foi alvo de um atentado na estrada Paúnca-Bafatá. Actualmente tem adoptado, por isso, uma atitude fria e de quase completo mutismo, quando a tropa o aborda directamente ao balcão da loja. Mas abre-se em confidências se a “entrevista” for mantida num clima de discrição.

Por vezes o receio dele chega a parecer excessivo e até infundado.

É muito amigo do Administrador Barros, de Gabu, a quem fornece sempre em primeira mão as informações que recebe, algumas de interesse apenas militar e que, não raras vezes, têm servido para criar situações falsas, à tropa, que se encontra destacada.

É de evitar fornecer-lhe quaisquer informações referentes ao IN, de acção imediata.


4) O Régulo:

É um velho sem energia e espírito de mando. É pouco conceituado pelos súbditos, pela fraqueza de ânimo dele. No entanto é apoiado por alguns homens “grandes” de grande poder e prestígio.

Nas relações com a tropa mostrou-se sempre de grande humildade, fazendo amiudadas visitas para “partir mantenhas” (apresentar cumprimentos) e também com o fito, menos louvável, de pedinchar um pão ou um pouco de açúcar.

Colaborou sempre de forma eficiente quando o furriel encarregado do rancho necessitava de comprar galinhas ou cabritos.

Tem muito medo da guerra, da qual nem gosta de ouvir falar.

Cavaleiro Embaló, um chefe terrorista, de pouca importância, é seu sobrinho, mas ele renegou esse parentesco, ameaçando-o de morte.


5) Os Cipaios:

Existe um corpo de cipaios comandados por um Cabo, directamente dependentes do Chefe de Posto de Sónaco. Têm uma actividade bastante reduzida, limitando-se à cobrança dos impostos e à resolução de pequenos litígios entre os civis. São muito reservados em relação à tropa.


6) A Milícia:

É uma força constituída por 18 elementos, comandados por um “alferes” e por um “cabo”.

Fornecem, para o serviço de transporte de água e lenha para o aquartelamento, 3 homens por dia, que durante a noite fazem também um posto de sentinela à entrada da Casa da Milícia. São integrados nas Secções do Pelotão, quando estas efectuam patrulhamentos. Psicologicamente são pouco aguerridos e bastante preguiçosos. Contraem dívidas sem grande dificuldade e abusam facilmente se lhes são concedidos alguns favores.

Quase todos se ofereceram para cumprir o serviço militar, na próxima incorporação. Os que são casados são bastante ciumentos, surgindo atritos entre eles e os soldados europeus que estão menos esclarecidos quanto ao modo de tratar a mulher indígena.

Constituição do grupo:

Comandante: Samba
1.º Cabo – Bamba Jamanca
N.º 61 – Manca Baldé
N.º 64 – Demba Embaló
N.º 65 – Aliu Candé
N.º 67 – Bobo Jau
N.º 70 – Puloro Candé
N.º 75 – Samu Baldé
N.º 76 – Jarga Jaló
N.º 80 – Turá Baldé
N.º 82 – Bobo Quitá
N.º 85 – Umaro Jau
N.º 86 – Braima Jaló
N.º 87 – Aliu Embaló
N.º 89 – Ussumane Camará
N.º 90 – Sare Jaló


7) Os Soldados Africanos:

São quatro: Sadú, Jau, Santos e Sáco. Os dois primeiros são fulas, os outros balantas. O Santos é natural de Bissau, onde foi empregado comercial. É o mais culto e o mais pretensioso. Tanto ele como o Saco embriagam-se com frequência se não forem reprimidos. Os outros dois são mais sossegados e nunca deram origem a qualquer distúrbio. Estão todos desarranchados.


8) A Escola:

É um edifício de construção recente, com apenas uma sala de aula e alojamento para o professor que, em caso de necessidade, já tem albergado um pelotão de reforço, durante dois ou três dias.

A frequência é bastante reduzida, devido ao natural costume do fula de evitar que os filhos tenham outra educação que não a tradicional.

O professor, Timóteo, é de etnia manjaco, protótipo de negro meio civilizado, arrogante com a pouca sabedoria que adquiriu sem a necessária profundidade e preparação, mas que julga ser muita. Tem grande dom de palavra e gosta de organizar festas onde se possa evidenciar. Levando uma vida de estroina, descura por completo as suas funções de ensino, tendo até criado a fama de tratar brutalmente os alunos.

É um elemento de forte poder aliciante, imiscuindo-se entre os soldados de quem, facilmente, conquista a confiança. Por mais de uma vez, e por motivos diversos, se mostrou suspeito, embora nunca tenha havido provas concretas. Todavia evidencia uma forte tendência racista.


9) A Taberna:

Situa-se em frente do quartel e é propriedade de João Vieira (por alcunha “O Passarinhas”), casado com uma cabo-verdiana. O resto da família é constituído por duas filhas e uma sobrinha, que o auxiliam no balcão. Alberga também hóspedes ocasionais.

Todos têm procurado, sempre, captar as simpatias das tropas recém-chegadas, na mira de benefícios futuros, pois vivem na expectativa de poder explorar, o mais possível, quem lhes frequenta o estabelecimento.

Os conflitos entre esta família e os soldados são pois inevitáveis e frequentes, provocados quase sempre pela existência das raparigas, utilizadas pelo “Passarinhas” como um autêntico chamariz.

Em 1963 levantaram suspeitas de colaborar com o grupo IN acoitado em Madina Mamadú Sanússi, mas não apareceram provas.

O “Passarinhas” dedica-se também à prática ilegal de dar injecções, deslocando-se até às tabancas do interior.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5032: Blogoterapia (128): Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5013: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (8): A Poderosa Rainha

Guiné 63/74 - P5036: Historiografia da presença portuguesa em África (20): Monografia da Agência Geral do Ultramar, 1961 (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Beja Santos:

Caríssimo Carlos,

Por causa da minha 'Mulher Grande', voltei à Sociedade de Geografia de Lisboa à procura de referências da 'Royal Society of London', onde o marido da minha heroína [Comandante Teixeira da Mota] iria fazer uma conferência. Não é que no meio da molhada de papéis não me aparece esta pequena monografia da Guiné? Não resisti a lê-la de fio a pavio e dar conta de um mundo que praticamente conhecemos em vias de extinção ou em profunda transformação.

Um abraço do Mário



2.Histpriografiada presença portuguesa (*) > Pequena monografia da Guiné, Agência Geral do Ultramar, 1961por Beja Santos

A Agência Geral do Ultramar publicava com regularidade pequenas monografias dos territórios ultramarinos, chegando mesmo a actualizá-las periodicamente. Só encontrei a monografia da Guiné com data de 1961. A estrutura era muito simples: situação geográfica, clima, flora, população, governo e administração, bosquejo histórico, comunicações, transportes, economia, ensino, espectáculos, turismo, etc.

À data, a Guiné tinha, segundo o recenseamento, mais de 510 mil habitantes, dos quais 2200 eram brancos. Bissau [foto à esquerda, postal ilustrado, edição Foto Serra, s/d] contava com mais de 18 mil habitantes, dos quais 4 mil eram europeus.

Havia 21 escolas do ensino primário oficial, e os estabelecimentos a cargo do Estado tinham ao seu serviço 45 professores; as escolas missionárias dispunham de 185 professores, além do pessoal eclesiástico.

O Liceu Honório Barreto teve no ano lectivo 1960 – 1961 uma população escolar de cerca de 300 alunos e a Escola Industrial e Comercial de Bissau tinham uma população de 200 alunos.

As estradas pavimentadas não excediam os 60 quilómetros. No tocante à aviação, a TAP [Transportes Aéreos Portugueses] viera substituir os TAGP. (Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa). Os TAGP ligavam Bissau a Dakar duas vezes por semana, utilizando um quadrimotor Heron e Bissau à Ilha do Sal, uma vez por semana. Via Dakar e Sal era possível ter ligações com Lisboa. Com a TAP, as coisas mudaram, devido à linha Lisboa – Bissau – S. Tomé – Luanda. De acordo com uma errata publicada nesta monografia, foram realizadas viagens experimentais de uma ligação aérea Bissau – Lisboa via Tenerife ou Sevilha.

Bissau tinha um jornal diário, o Arauto, com uma tiragem de 1500 exemplares e o mensário Bolamense também com uma tiragem de 1500 exemplares. A grande atracção turística era a caça, não esquecendo belezas naturais como a mata do Cantanhez e a Lagoa de Cufada. Referia-se igualmente a praia de banhos de Varela e casas de espectáculos como o Cine Udibe e o Cine Bafatá.

Não há referência aos hotéis, o que é de estranhar, isto quando o Anuário da Guiné Portuguesa, de 1946, menciona o Grande Hotel, o Hotel Miramar e o Hotel Avenida-Bar, com gerência de Maria Queiroz (desconfio que era a pensão da D. Berta).

1961 é o ano de viragem: em meados do ano, S. Domingos, Varela e Suzana serão atacadas e vandalizadas por forças do Movimento de Libertação da Guiné. A militarização será um facto em 1963, com a entrada em cena do PAIGC.

O mundo desta pequena monografia extinguiu-se, tudo quanto aqui se lê passou ao domínio das curiosidades históricas.
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 29 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4756: Historiografia da presença portuguesa (20): 1º Cruzeiro de férias às colónias de C. Verde, Guiné, S. Tomé... (Beja Santos)

Guiné 63/74 – P5035: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (21): A noz-de-cola


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a sua 21ª estória:

Camaradas,

Arranjando sempre um bocadinho do meu super-ocupado tempo, nomeadamente nas minhas lides profissionais diárias, lá vou rebuscando no meu baú das memórias da guerra e, para minha surpresa, vou encontrando alguns dos meus velhos textos que há dava como esquecidos e, outros, que até já os julgava perdidos.

Este é mais um deles:

A NOZ-DE-COLA

Confesso que sempre me fez confusão os elementos da Milícia, ou os elementos do Pelotão de Nativos, que saíam connosco regularmente para o mato, estarem sempre a mascar uma semente parecida com uma noz, a que chamavam COLA.

Eram homens que não comiam e pouco bebiam durante o tempo que duravam as nossas missões. Sendo seres humanos como nós deviam naturalmente, no mínimo, terem necessidades idênticas como os restantes.

A desidratação provocada pelo calor, provocava-nos a inevitável sede e a consequente necessidade de água, que se tornavam era um tormento permanente e comum a todos.

Esta estranheza, fazia-me questionar sobre o comportamento dos elementos nativos, apesar de eu logicamente saber que eles estavam perfeitamente habituados às tão adversas condições climatéricas do território, nomeadamente nas temidas e indesejáveis épocas das chuvas.

Um dia, para meu espanto, os mesmos militares mostraram-me uma semente, a que chamavam Cola, muito parecida com uma noz de cor escura.

Eles não paravam de as mascar, e foram-me dizendo que a Cola, lhes dava força, tirava a sede e cortava a fome.

Pedi-lhes um bocado para experimentar o sabor e o efeito do produto.

Se quanto ao sabor conclui que era amargo, áspero e seco, já quanto ao efeito não retirei qualquer resultado prático.

Levado pela minha curiosidade, fui perguntar ao Furriel Enfermeiro Agostinho da minha Companhia, o que sabia sobre a Cola.

O mesmo por estar ocupado, ou não me querer aturar, deu-me um dicionário e disse-me: “Procura”.

Não me fiz rogado e com uma bojeca a acompanhar lá fui procurando naquelas páginas o eventual “segredo” da coisa.

Encontrei, Noz-de-cola, que estava assim descrita: (É um forte estimulante, antioxidante, melhora a concentração, aumenta o poder de resistência e diminui o apetite. Afrodisíaco ligeiro.).

Fiquei esclarecido, numa época em que os narcóticos eram desconhecidos e tabu, já os nativos os usavam para fins de subsistência física e psíquica.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Fotos: Mário Pinto (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Guiné 63/74 – P5034: Agenda Cultural (29): 2º Ciclo de Colóquios-Debates, “Fim do Império: Olhares Civis” (Beja Santos)


1. O nosso Camarada Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52,Missirá e Bambadinca, 1968/70, reenviou-nos o seguinte mensagem/convite, com data de 29 de Setembro de 2009, tornando-o extensivo a todo o pessoal da Tabanca Grande:

Boa tarde.

Envio a V. Ex.ª o convite para o 2º ciclo de colóquios-debates “Fim do Império: Olhares Civis”.

Grata pela atenção,
Fernanda Marta Marques


Um abraço,
Beja Santos
Alf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P5033: Poemário do José Manuel (30): O sol queima em Colibuia...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > O heliporto de Mampatá, um héli aguarda que alguém chegue da mata...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > Avançando pela mata...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250/72, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > A descansar na mata...

Fotos, legendas e poema: © José Manuel Lopes (2009). Direitos reservados.

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250/72, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > O Zé Manel, ou o Josema (pseudónimo literário), que durante a sua comissão na Guiné escrevia todos os dias um poema (*)...

Infelizmente, destruiu a maior parte deles... Salvaram-se umas escassas dezenas, que têm vindo a ser aqui publicados (**)...

Neste poema há uma referência à estrada em construção que, vinda de Mampatá, seguia para Colibuía, Cumbijã, Nhacobá e Salancaur, em pleno corredor de Guileje.

Amanhecer em Colibuía

O sol queima em Colibuía,
e nas tendas de campanha
sentimos o seu abraço,
logo, logo, pela manhã
e é só o começar
de uma semana de rações,
sete dias de suores,
milhares de comichões,
de bons e maus humores
e outras complicações.

Os dias lá vão passando
entre picagens,
patrulhamentos,
em cordões de segurança
à construção da estrada
que avança lentamente,
como cobra gigantesca,
pelo matagal imenso.

A semana chega ao fim,
volta-se a Mampatá,
um paraíso afinal
e o bálsamo ideal
do inferno quinzenal.

Colibuía 1973

josema

[Enviado em 4/4/2008. Revisão / fixação de texto: L.G.]
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Notas de L.G.

(*) Sobre o José Manuel Lopes, vf. poste de 3 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3165: Os nossos Seres, Saberes e Lazeres (6): Com o José Manuel, in su situ, um pé no Douro e uma mão no Marão (Luís Graça)

(**) Vdc. postes anteriores desta série:

29 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4757: Poemário do José Manuel (29): Como eram belas as bajudas que conheci...

2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4451: Poemário do José Manuel (28): Matar ou morrer ? Não...

11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4011: Poemário do José Manuel (27): Um ruído vem do céu / e há cabeças no ar, / hoje é dia de correio...

13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3884: Poemário do José Manuel (26): O regresso a Mampatá, 35 anos depois...

24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3787: Poemário do José Manuel (25): A Morte

17 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3468: Poemário do José Manuel (24): Sabes o que é morrer... ?

9 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3289: Poemário do José Manuel (23): Naquela mata o silêncio magoa...

23 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3145: Poemário do José Manuel (22): (...) Como os dias passam devagar / Contados a riscar um calendário...

22 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3084: Poemário do José Manuel (21): O recordar dos sentidos: como é bom ver, sentir, ouvir, cheirar, saborear, falar...

9 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3039: Poemário do José Manuel (20): Mãe, se eu não regressar, lembra-te do meu sorriso...

1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3010: Poemário do José Manuel (19): Aqueles assobios por cima das nossas cabeças...

22 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2973: Poemário do José Manuel (18): Não se morre só uma vez...

15 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2946: Poemário do José Manuel (17): A Companhia dos Unidos

2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2911: Poemário do José Manuel (16): Saudades do Douro e do Marão...

25 de Maio de 2008 >Guiné 63/74 - P2884: Poemário do José Manuel (15): Dois anos e alguns meses

17 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2852: Poemário do José Manuel (14): É tempo de regressar às minhas parras coloridas...

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2844: Poemário do José Manuel (13): A matança do porco, o Douro, os amigos de infância, os jogos da bola no largo da igreja...

9 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2824: Poemário do José Manuel (12): Ao Zé Teixeira: De sangue e morte é a picada...

2 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2806: Poemário do José Manuel (11): Até um dia, Trindade, até um dia, Fragata

24 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2794: Poemário do José Manuel (10): Ao Albuquerque, morto numa mina antipessoal em Abril de 1973

19 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2776: Poemário do José Manuel (9): Nós e os outros, as duas faces da guerra

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2757: Poemário do José Manuel (8): Nhacobá, 1973: Naquela picada havia a morte

10 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2739: Poemário do José Manuel (7): Recuso dizer uma oração ao Deus que te abandonou...

5 de Abril de 2008 Guiné 63/74 - P2723: Poemário do José Manuel (6): Napalm, que pões branca a negra pele, quem te inventou ?

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

Guiné 63/74 - P5032: Blogoterapia (127): Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas (Carlos Geraldes)

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 26 de Setembro de 2009:

Caro amigo Vinhal:

Quando me atrevi a enviar os meus escritos para a Tabanca Grande nunca poderia adivinhar a recepção de que estou a ser alvo.
Fiquei tão emocionado como na véspera do dia em que embarquei de regresso à, então chamada Metrópole, após aqueles dois anos de incertezas, dúvidas e terrores por que passei. Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas. As atitudes que por vezes alguns tomam de machismo violento, não passam de uma máscara a que recorrem os fracos e os cobardes, receosos de os tomarem por isso mesmo.

Assim, não poderei afastar-me por muito tempo nem para muito longe. Estou irremediavelmente ligado ao blogue como se um cordão umbilical ainda me ligasse ao ventre materno. Os comentários que me foram dirigidos são as vozes dos meus irmãos que julgava mortos e enterrados no meio do matagal para lá da curva do rio.

Felizmente estão aqui bem vivos e vão-se juntando cada vez mais para ajudar a sufragar a dor e o sofrimento que um povo fez a outro povo. Levaremos ainda muito tempo a tentar compreender como foi possível aquela guerra, as cruezas daquela guerra entre homens bons e simples, sonhadores e sábios, que no dia do armistício se abraçaram comovidos com a memória lavada, mas com o coração quente de alegre fraternidade.

Como foi possível esquecer os massacres, os assassínios, as humilhações, os roubos, as violações? Só pela presença de um outro poder, que nunca quisemos admitir, constatar. Não, não me refiro a Deus, esse ser criado pelo homem, para lhe servir de panaceia e o livrar de pensamentos vertiginosos quando se debruça nos porquês do Universo. Não, refiro-me talvez a um poder que provém das profundezas do Cosmo, que nos antecedeu, nos guiou até aqui e irá conduzir toda a Humanidade até ao fim dos tempos. Uns dirão: é o Amor! Balelas! É fácil demais.

Eu diria antes que é o progresso das civilizações, o aperfeiçoamento das relações humanas. Hoje já não olhamos com estranheza outro ser humano só porque é de outra cor. Mas era assim há 300 anos atrás, quando o considerávamos um objecto, um ser sem alma, tal como um animal ou um vegetal? Agora é muito diferente não é?

Bom, mas desculpa-me estar para aqui a filosofar sem jeito. O que eu queria dizer também é que vou anexar a este e-mail um documento escrito em Paúnca, a pedido dos chefões daquela altura (1965) e que é mais ou menos um Relatório de Situação que obedecia a um esquema já predeterminado para aquele tipo de relatórios usados pelas NT (e para mostrar serviço, é claro). Fui eu que o escrevi por ordem do meu capitão e o que é facto é que não contém qualquer facto empolado ou embelezado. Naquela data, a situação ali era mesmo aquela, pelo menos aos meus olhos.

Hasta siempre,
Carlos Geraldes
__________

Notas de CV:

O texto referido pelo nosso camarada Carlos Geraldes, por ser muito extenso, vai ser publicado na sua série Gavetas da memória.

Vd. último poste da série de 16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4963: Blogoterapia (126): Pensar em voz alta: Em noite e dia de "cerrar dente" (Torcato Mendonça)

Guiné 63/74 - P5031: Notas de leitura (25): "Memórias de um guerreiro colonial", de José Talhadas - Parte III (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 25 de Setembro de 2009:

Caríssimo Carlos,
Aqui vai o terceiro e último texto sobre a obra do sargento Talhadas, muito digna da nossa atenção.

Já tenho mais dois livros para ler: “Um amor em tempos de guerra” do Júlio Magalhães e “Os heróis e o medo” de Magalhães Pinto.

Não prometo para quando há recensões, estou num momento crucial da escrita da "Mulher Grande" e tenho afazeres profissionais inadiáveis.

Um abraço do
Mário


Memórias de um guerreiro colonial (3)
Beja Santos

A Guiné, entre 1970 e 1971

O Destacamento de Fuzileiros Especiais 12, a Unidade do Sargento Talhadas, entrou em ritmo frenético operacional, ao longo de 1970. Como ele escreve:

Foram assaltados acampamentos no interior do território. Foram feitas acções armadas contra aldeias, onde podiam pernoitar grupos de guerrilha. Foram realizados golpes de mão em áreas junto, ou mesmo dentro, do Senegal, que culminaram com a mais espectacular, a entrada na base de Sanou, dois quilómetros internada na região de Casamansa, no prolongamento das então portuguesas bolanhas de Sano e Bucaur. Mas, no ritmo operacional, a nossa fronteira verdadeira era o rio Cacheu. Saltitávamos, entre as duas margens, por um território extenso, com a parte sul totalmente despovoada de quartéis”.

Comparativamente à comissão anterior (entre 1967 e 1969), havia cada vez mais operações e os fuzos eram a única Unidade de intervenção do COP 3. O Sargento Talhadas dá a sua opinião sobre a evolução da guerra:

As unidades do Exército limitavam as suas deslocações ofensivas à volta dos seus acampamentos, que sofriam, constantemente, bombardeamentos, que os desgastavam. Havia muita desmoralização entre as tropas, chegadas à colónia, cada vez mais, com uma instrução deficiente, ainda por cima dirigida por capitães cansados. Qualquer deslocação entre dois aquartelamentos exigia a organização de toda a máquina militar desse quartel, e o movimento dessas tropas transformava-se mesmo em pesadelo, em termos de segurança”.

E relata a emboscada a elementos da Companhia de Bigene montada pelo PAIGC que, perante a fraca capacidade dos emboscados, permitiu a aproximação dos guerrilheiros. Pediu-se apoio aos fuzos que, quando chegaram, encontraram soldados completamente desorientados, encolhidos debaixo das viaturas:

Contaram então que os guerrilheiros os tentaram apanhar à mão, tendo eles escapado, andando à volta dos veículos, numa correria que mais parecia uma brincadeira entre o gato e o rato. Os homens do PAIGC, que não quiseram – ou não puderam – abater os soldados, acabaram por retirar, levando algumas armas e equipamento rádio. Fez-nos recordar um episódio da guerra do Solnado”.

O Sargento Talhadas não esqueceu Sambuiá, o cemitério de fuzileiros na Guiné. Era um ponto estratégico, uma zona de cambança do PAIGC do interior do Senegal para sul do Cacheu, terreno de vegetação frondosa, mata fechada, muito palmeiral e abertas com capim alto. O inimigo tinha na região alguns grupos de combate. Foi aí que em 24 de Outubro de 1970 morreu o telegrafista Max Mine. O inimigo fez uma emboscada perfeita, com diferentes grupos, os fuzos perderam capacidade de manobra. Max Mine fora atingido gravemente com uma bazucada. Os helis vieram salvar a situação, com o Lobo Mau à frente. Escreveu então à namorada:

Fomos emboscados e quase todo o destacamento foi apanhado em campo aberto. É terrível sentir a morte de um colega, com o qual vivíamos há nove meses. Era um jovem satisfeito com a vida e que assim de um momento para o outro desaparece”. E o autor explica Max Mine: “De seu nome Ulisses de Pereira Correia, adquiriu essa alcunha nas andanças de comboio entre a sua Beira Baixa e Lisboa. Quando lhe perguntaram em que carruagem vinha ele, respondeu: na do Max-Min, referindo-se ao facto de estar indicado apelas os lugares a informação de mudança de temperatura, conforme se queria mais calor ou mais frio”.

As recordações de Max Mine permitiram ao autor regressar à base de Sano e a novas Operações com destruição de moranças e captura de material.

Da base de Ganturé, donde os fuzileiros vigiavam o Cacheu, a Unidade do Sargento Talhadas partiu para dar protecção à construção de uma estrada alcatroada entre Teixeira Pinto e Cacheu: durante 24 horas consecutivas, uma Unidade de Fuzileiros patrulhava a região e ao fim desse tempo era substituída por uma Companhia de Comandos. Depois do assassinato de três majores e um alferes, em Abril de 1970, o estado de espírito em Teixeira Pinto era de desalento e frustração. Cresceram as tensões e ouve mesmo confrontação entre militares, entre fuzos e soldados africanos. A Unidade do Sargento Talhadas foi punida, foram metidos numa lancha, ficaram três dias ao largo de Bissau. Daí foram transferidos para Porto Gole. Foi a partir daqui que passaram a intervir na região do Corubal. Voltaram a destruir acampamentos e, na região de Gampará capturaram imenso material e destruíram um hospital. Recebe o segundo prémio Governador da Guiné, é condecorado com a medalha de Valor Militar com Palma, casou.

Na segunda metade de 1971 voltou a Ganturé, recomeçaram as Operações, capturaram o Comandante, mas a vida no COP 3 passara a ser desinteressante. A qualquer momento, a guerra reacendia-se, as tropas especiais pouco mais podiam fazer que fazer recuar temporariamente as forças do PAIGC.

A comissão acabou, o Sargento Talhadas ficou na Marinha, foi destacado para a capitania de Setúbal.


Por fim, Angola

Tudo começara em Angola, tudo iria acabar em Angola. A seguir ao 25 de Abril, foi-lhe feito o convite para integrar uma Unidade que iria preceder à transição dos postos navais para os antigos guerrilheiros ao longo do rio Zaire. Ele pensava que ia voltar à Luanda dos tempos maravilhosos da sua adolescência. Encontrou uma cidade cheia de medo onde se movimentavam os refugiados à procura do primeiro meio de transporte para fugir. Partiu para o rio Zaire e precedeu à entrega do posto da Pedra Feitiço à FNLA. Surgiram os desacatos e as tensões. O Sargento Talhadas não apreciou o que viu em gente que renegava aos seus princípios. Volta à Luanda e assiste ao caos, que ele descreve minuciosamente. E por fim deixou Angola abordo do paquete Uige:

Eu que fora um guerreiro colonial de alma e coração, abandonava a terra de expansão portuguesa, sem glória”.

Encostado à amura do navio, as lágrimas rolam-lhe pela face. A pátria em que acreditara deixara de existir.

As memórias do Sargento Talhadas são expressivas, na singeleza de alguém que não precisa de promover vanglórias ou dourar a imagem. Tudo ressuma a sinceridade, sente-se que ele responde por tudo quanto experimentou e observou. Disciplinado, não deixa de protestar perante inúmeras injustiças que presenciou. Por todas estas razões, o registo de todas as suas recordações merecia ser amplificado pelo próprio, juntando-se a ele muitos outros testemunhos das forças especiais.

Este livro passa a pertencer ao património do blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5011: Notas de leitura (24): "Memórias de um guerreiro colonial", de José Talhadas - Parte II (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (7): Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam

1. Mensagem de José da Câmara (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Setembro de 2009:

Olá Carlos,
Junto encontrarás mais uma página das minhas memórias.
Como sempre faz aquilo que entenderes por bem.

Um abraço amigo com votos de muita saúde para ti e para toda a tabanca.
José Câmara


Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam

Acabada a cerimónia de recepção às forças agora chegadas à Guiné, o Comandante da CCaç 3327, Cap Mil Rogério Rebocho Alves, reuniu com todos os graduados. Nessa reunião ficámos a saber que um GCOMB iria de imediato para o destacamento de Dungal, o qual seria rendido de quinzenalmente. Para além do Grupo de Combate, uma Secção foi reforçar o destacamento de Nhacra. O objectivo era adaptar a Companhia ao mato da Guiné. Os outros dois GCOMBS e duas Secções ficariam em Bissau, tendo como principal missão a segurança de algumas instalações militares, o patrulhamento dos bairros de Bissau, das tabancas e zonas limítrofes da cidade, e os serviços próprios de qualquer quartel. A tudo isso se juntava a Guarda de Honra que, semanalmente, se fazia no cemitério na exumação dos nossos camaradas caídos pelos diferentes pedaços da Guiné. Traumatizante demais para os soldados da minha Companhia. Antes da sua guerra já tinham contacto com a morte.

As instalações, cuja segurança militar ficariam à guarda e responsabilidade da CCaç 3327, eram as seguintes:

1 – Palácio do Governador da Guiné
2 – Quartel da Amura
3 – Instalações da Rádio
4 – Hospital Militar 241
5 – O Laboratório

Naquela reunião, o Comandante da Companhia solicitou três voluntários para chefiarem os serviços da Guarda ao Palácio do Governador. Ninguém se ofereceu para este trabalho, aparentemente fácil, mas de uma grande responsabilidade. Assim, a escolha do próprio Comandante recaiu no Fur Mil de Operações Especiais, Carlos Alberto R. P. da Costa, no Fur Mil de Armas Pesadas Manuel Lopes Daniel e em mim. Nós, os indigitados para o serviço ao Palácio do Governador, ficámos ainda com a responsabilidade de fazermos um serviço de Sargento de Dia, na rotação normal, que acontecia de oito em oito dias.

O trabalho em Bissau era intenso, embora não oferecesse os perigos que o mato escondia. Para se ter uma ideia daquela intensidade, ao fim de trinta e sete dias de Guiné ainda foram encontrados três soldados sem um dia de folga. A intensidade do trabalho aliado à disciplina imposta pelo Comandante do AGRBIS transformou esta estadia em Bissau num autêntico pesadelo.

Nesta contenda inglória que foi a nossa guerra em Bissau, os únicos felizardos fomos nós, os Sargentos da Guarda ao Palácio. O nosso trabalho era, comparativamente com o trabalho dos nossos camaradas, bastante mais suave. Mesmo assim, um dos meus camaradas de serviço ao Palácio, não se livrou do castigo à ordem. O furriel viu-se obrigado a participar de um soldado adido à nossa Companhia, na altura sob o seu comando, que se ausentou do seu posto de serviço, sem a devida autorização ou substituição. Na sua primeira e única participação que fez, o furriel não indicou o artigo do RDM infringido e esse lapso foi o suficiente para que fosse castigado com cinco dias de detenção. O soldado foi punido com vinte dias de prisão.

Entrámos de imediato ao serviço (28 de Janeiro de 1971) ao Palácio, embora, os primeiros dias fossem apenas de sobreposição e sem qualquer responsabilidade da nossa parte. Tomámos o primeiro contacto com aquilo que seria a nossa responsabilidade. A nossa missão principal seria, sem dúvida, a segurança diária do Palácio, e, todo o aparato que englobava o içar da bandeira e o render da guarda ao Domingo. Nas tarefas diárias e no Render da Guarda a colaboração dos cabos e dos soldados era fundamental. O seu aprumo, destreza e rapidez em todos os processos envolvidos eram primordiais para o sucesso da missão. Acrescento, com algum orgulho, que os soldados da minha Companhia estiveram à altura da missão.

A guarda ao Palácio englobava as seguintes forças essenciais:

a) - Uma Secção de tropa regular, comandada por um Sargento da Guarda, que tinha a seu cargo os postos de sentinela ao fundo do jardim e ainda um posto de sentinela ao lado direito do jardim. A segurança era feita durante o dia do lado de fora do jardim. Com o render dos postos de sentinela às seis horas da tarde a segurança passava a ser feita do lado de dentro dos muros.
b) - Uma Secção da Polícia Militar, incluindo um sargento e um oficial, que tinha a seu cargo o pórtico principal do Palácio e o portão lateral de serviço geral.
c) - Durante a noite, entre as dezoito e as seis horas, a segurança era reforçada com um elemento da Polícia de Segurança Pública, que ficava encarregado do espaço entre a casa da guarda e do pessoal civil servente do Palácio e o edifício principal.
d) - Também durante a noite, a segurança era ainda reforçada com um cão treinado em segurança e respectivo tratador, na altura um pára-quedista, que tinha a seu cargo o patrulhamento do interior do jardim


Com a devida vénia ao autor da fotografia. Vista aérea de Bissau sendo bem visível o complexo do Palácio. 1 – Casa da Guarda 2 – Casa da Polícia Militar

Toda a responsabilidade da segurança recaía nos ombros do sargento da guarda. Cabia-lhe a implementação das regras estabelecidas. Mantinha em ordem todo o material de guerra à sua disposição: metralhadoras, munições e granadas de mão. Era responsável por encaminhar todas as mensagens chegadas via CTT, conforme o seu grau de segurança. Respondia directamente ao Oficial Ajudante de Campo do Governador sobre qualquer assunto de segurança julgado pertinente. Elaborava e assinava o seu relatório de serviço que era entregue no Comando do AGRBIS logo após a sua chegada a este complexo militar.

Durante cerca de dois meses, essa foi parte do meu trabalho, esta foi a minha Guerra em Bissau. Mantive, sempre, óptimas relações com todas as forças de segurança, incluindo os oficiais da Polícia Militar, que nunca me regatearam a sua compreensão. Encontrei no Ajudante de Campo do Governador, na altura um capitão, muito mais que um militar. Nesse oficial encontrei alguém que compreendia que nós, militares obrigados ao serviço, éramos pessoas que cometíamos erros, que falhávamos, mas que também tínhamos qualidades humanas a respeitar.

Fev71 - O Fur Mil José Câmara, Sargento da Guarda, no interior do jardim do Palácio do Governador da Guiné

Devo confessar que as boas manobras militares sempre me fascinaram. A organização, a ordem, a unidade, a beleza do movimento são, essencialmente, a base desse fascínio. Ainda hoje isso acontece.

Em Bissau, em frente ao Palácio do Governador, iria ter a oportunidade de ver essas manobras ao mais alto nível, e, eventualmente, participar nelas, quiçá a pior parte. A responsabilidade era grande, pois milhares de pessoas observavam, ao pormenor, essas manobras na praça do Império e o desfile das tropas na Avenida da República.

No Domingo de manhã acontecia ronco grande em Bissau

O atavio militar das Praças da Guarda era o fardamento n.º 2, com cordões brancos nas botas, tendo como armamento a G3. O Sargento da Guarda também vestia o fardamento n.º 2, com luvas brancas e cordões das botas da mesma cor. O seu armamento era a FBP. Durante a cerimónia o carregador na arma estava vazio. Em verdade se diga, os carregadores que estavam nas cartucheiras estavam devidamente carregados.

Postal da época da Guerra na Guiné - Aspecto do Render da Guarda

Para além das Praças da Guarda, as Forças em Parada eram, normalmente, as seguintes: dois Grupos de Combate reduzidos, nesta nossa participação, da CCaç 3327, com fardamento n.º 2 e G3, um Pelotão da Polícia Militar em camuflado e G3, e um Grupo do Destacamento de Fuzileiros Navais em fardamento branco e G3. Os Leopardos (se a memória não me falha essa era a sua sigla e sujeito a correcção) de Bissau, com os seus inconfundíveis turbantes vermelhos, eram a Banda Militar que nos acompanhavam nestas cerimónias.

Após o içar da bandeira e o render da Guarda, as forças desfilavam pela Avenida da República indo destroçar junto ao Quartel da Amura.

Postal da época da Guerra na Guiné – A excelente Banda Militar de Bissau

Nunca poderei esquecer a atenção e o respeito que os guineenses demonstravam nestas cerimónias. Novos e velhos, homens e mulheres seguiam com muita atenção todos os pormenores do içar da bandeira e do Render da Guarda. Vi muitos deles saudar com continência a Bandeira que subia no mastro, e senti o calor de milhares de palmas quando as nossas tropas acabavam as manobras em frente ao Palácio e desfilavam pela Avenida da República. Nestas ocasiões, devo confessar, não sentia que os guineenses procuravam a sua independência. Quanto muito desejavam a paz, a mesma paz que nós procurávamos. Nós éramos a sua esperança.

Foi essa atenção, respeito e calor humano que eu senti das populações da Guiné, num simples içar de uma Bandeira Nacional e de um desfile militar, que começaram a despertar em mim o amor por aquela terra mártir e a sua gente que, ainda hoje, perdura e... perturba.

José Câmara
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4935: Os Nossos Enfermeiros (4): Valioso trabalho desenvolvido pelo Fur Mil Enf Rui Esteves (CCAÇ 3327) e a sua equipa (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4906: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (6): AGRBIS, um inferno no meio da guerra

Guiné 63/74 - P5029: Meu pai, meu velho, meu camarada (16): Expedicionário no Mindelo, S. Vicente,1941/43,1º Cabo Inf Luís Henriques (3) (Luís Graça)

Luís Henriques (n. 1920, Lourinhã) é mobilizado para Cabo Verde durante a II Guerra Mundial. Com 21 anos por completar, era o 1º Cabo Inf, nº 188/41, 1º Pelotão, 3ª Companhia, 1º Batalhão, Regimento de Infantaria nº 5 (Caldas da Rainha). Esteve no Mindelo, S. Vicente, entre Julho de 1941 e Setembro de 1943. Neste episódio, conta como foi de táxi da Lourinhã para Lisboa, em estrada de macadame (70 km), com mais camaradas, chegando atrasado à formatura para o embarque, em 15 ou 16/7/41... Ouve, pela última vez, marchando a caminho do Cais da Rocha Conde de Óbidos, a voz da sua amiguinha Fernandinha que se veio despedir dele e dos demais "soldados que iam para a guerra"...

Vídeo (4' 15''): Luís Graça (2009). Alojado em You Tube > Nhabijoes

Lourinhã > Rua Grande (ou Roão Jpão Luís de Moura)> Praça de táxis > Finais dos anos 40, c. 1950 (?) > Postal da época... Do lado esquerdo, não visível na foto, a Escola do Ensino Primário Conde de Ferreira onde estudei (1954/58), infelizmente já deitada abaixo tal como o coreto, do Largo Coreto, ao lado da Igreja Matriz, antiga igreja do convento dos Franciscanos, coreto de que se vê, na foto, à esquerda, uma nesga da cobertura...

É uma rua bonita, do Séc. XVIII... Para ñós, era a Rua Grande, por onde passva todo o trânsito local, regional e nacional (Felizmente, hoje é uma rua pedonal... A política do bota-abaixismo do presidente da Câmara Municipal deposto com o 25 de Abril de 1974, levou à perda deste belíssimo património edificado, a escola e o coreto... O edifício, nas traseiras da praça de táxis, também já não existe... O resto da praça mantêm-se de pé, em especial os edifícios do lado esquerdo (antigos edifícios da Repartição de Finanças e do Tribunal da Comarca; neste último está instalado o Museu da Lourinhã, onde se pode ver uma das mais valiosas colecções paleontológicas da Europa).

Caldas da Rainha > "15/7/41. A despedida das tropas expedicionárias de Cabo Verde. R.I. 5, Caldas da Rainha. Luís"



Cabo Verde > S. Vicente > Mindelo > S/ legenda nem data. O Serpa Pinto ao largo da Baía do Porto Grande, Mindelo (presume-se). Esteve ao serviço da Companhia Colonial de Navegação desde 1940 a 1954, senão me engano. Foi comprado em 2ª ou 3ª mão...

Cabo Verde >S. Vicente > Mindelo > "23/7/1941. Chegada ao 1º Batalhão Expedicionário do R.I. nº 5 a São Vicente, Cabo Verde. Na fotografia estou eu com alguns camaradas da minha companhia. No porto do Mindelo fomos entusiasticamente recebidos. Luís Henriques". [Partida a 15 (?) ou talvez 16 de Julho de 1941, do Cais da Rocha Conde de Óbidos, Lisboa].

Cabo Verde > S. Vicente > Mindelo > "Luís Henriques em 10 de Maio de 1942. Na praia do Monte Branco, Lazareto, S. Vicente".

"Todas as manhãs depois do trabalho é o banho, a nossa alegria. Nesta altura pouco sabia nadar. Julho de 1942 [, um ano depois de ter chegado à ilha]. Luís Henriques". [ Devido à frequente presença de tubarões, a praia de banhos tinha algumas protecções; o mai pai contava-me histórias dos temíveis tubarões que infestavam a costa de Cabo Verde...]

Cabo Verde > S. Vicente > Mindelo > "Um número de ginástica feito pela 2ª Companhia que deixou uma boa impressão à assistência. Lazareto em festa, aos 23 de Julho de 1942 [, 1º aniversário da chegada à Ilha]. Luís Henriques".

Cabo Verde > Ilha de S. Vicente > Mindelo > "Comemoração de Aljubarrota em S. Vicente. Desfile de todas as tropas e viaturas.. A 1ª e a 3ª Companhias do [1º Batalhão do] R.I. 5. Mindelo, 14/8/43". (*)

Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservadas

Cabo Verde > Barlavento > Ilha de S. Vicente > Mindelo > Belíssima "vista da cidade de Mindelo na baía do Porto Grande, com o Monte Cara (à esquerda) e Santo Antão (ao fundo, à direita)"...

A cidade "ocupa uma área total de 67 km² a noroeste da ilha, na Baía do Porto Grande, porto natural formado pela cratera submarina de um vulcão com cerca de 4 km de diâmetro. O Ilhéu dos Pássaros com 82 metros de altitude e que hospeda um pequeno farol, sinaliza a outra extremidade da cratera"...

Capital do concelho de S. Vicente, Mindelo, cidade cosmopolita, é a segunda maior do arquipélago (a seguir à Praia, capital política e administrativa do país), tendo cerca de 70 mil habitantes... No seu liceu (o único do Barlavento), estudou Amílcar Cabral (foi para lá aos 17 anos, em 1941). É também o berço da morna, a terra do Bana e da Cesária... Tem um ciclo de fomes, secas e epidemias mas também de contestação social que marcaram as suas gentes...

Para saber mais sobre a sua história (económica, social e cultural) do Mindelo, vd. excelente artigo da Wikipédia (que é omisso, no entanto, sobre o importante contingente de tropas portuguesas expedicionárias durante a II Guerra Mundial).

Foto: Pitt Reitmaier (2005). Imagem copyleft. Fonte: Wikipédia (com a devida vénia...)
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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de

28 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5022: Meu pai, meu velho, meu camarada (15): Expedicionário no Mindelo, S. Vicente,1941/43,1º Cabo Inf Luís Henriques (2) (Luís Graça)

27 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5021: Meu pai meu velho, meu camarada (14): Expedicionário no Mindelo, S. Vicente, 1941/43, 1º Cabo Inf Luís Henriques (1) (Luís Graça)

27 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5019: Meu pai, meu velho, meu camarada (13): Mindelo, ontem e hoje ( Lia Medina / Nelson Herbert / Luís Graça)

20 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4059: Meu pai, meu velho, meu camarada (1): Memórias de Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 1941/43 (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P5028: (Ex)citações (48): Leiam os lábios dos poetas: O Portugal Futuro, de Ruy Belo (Luís Graça)

1. Comentando o poste de 28 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5024: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (13): Portugal é um país de tolerância e humanismo

(...) Caro António Graça de Abreu!

O poeta Ruy Belo [foto à esquerda] (não meu familiar) escreveu:
-O meu país? O meu país é o que o mar não quer! (...)

As palavras são de outro Belo, o José, um camarada da Guiné, um português da diáspora em terra de Vikings, ...

Deixem-me que cite um dos meus poemas preferidos do Ruy, que a Pátria, ingrata, deixou morrrer ou matou precocemente... em 1978. Como tem deixado morrer ou matado, precocemente, alguns dos melhores de nós... Permitam-me também a pequena vaidade de citar a minha dedicatória, à Alice, à Joana e ao João, constante da minha tese de doutoramente em saúde pública, Política(s) de saúde no trabalho: um inquérito sociológico às empresas portugueses (Universidade Nova de Lisboa, 2004). (*)

Dedicatória

À minha mulher Alice e aos meus filhos Joana e João. Eles têm sido os meus grandes companheiros da aventura da vida. E são as únicas pessoas do mundo a quem eu tenho o dever de não decepcionar. Eles foram uma fonte estimulante de inspiração e um ponto fulcral de apoio no decurso da realização deste trabalho. A investigação e a escrita são um longo e às vezes doloroso exercício de solidão. Com eles e por eles consegui vencer a minha atávica síndroma do ponto final. Espero que eles tenham sempre orgulho em mim. Eu tenho orgulho neles. E sobretudo confiança. Porque eles fazem parte da ideia do Portugal futuro, aqui tecida por um homem de palavra(s) como eu, e um dos meus poetas favoritos, Ruy Belo. LG.
___________

É também uma homenagem, a minha homenagem pessoal, aos nossos dois camaradas que hoje fazem anos, o António Bastos e o Manuel Vieira Moreira... Que eles continuem a poder dizer, tal como o poeta: Portugal será e lá serei feliz... (**) L.G.

Ruy Belo:

O Portugal futuro


O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro


In Belo, R. (2000) - Todos os Poemas.
Lisboa: Assírio & Alvim. 366-367.

______________

Notas de L.G.:

(*) Último poste desta série (Ex)citações:

20 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4983: (Ex)citações (47): Sexo e amor em tempo de guerra (Juvenal Amado / S.N.)

(**) Vd. postes de:

29 de Setembro de 2009 >Guiné 63/74 - P5026: Parabéns a você (30): Manuel Moreira, ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746, Ponta do Inglês e Xime, 1967/69 (Editores)

29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5025: Parabéns a você (29): António Bastos, ex-1.º Cabo do Pel Caç Ind 953, Teixeira Pinto e Farim, 1964/66 (Editores)

Guiné 63/74 – P5027: Estórias do Fernando Chapouto (Fernando Silvério Chapouto) (6): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – A morte do Fur. Mil. Tomé!

1. Continuamos a publicar as memórias do nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426, que entre 1965 e 1967, esteve em Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda. Este é o 6º poste desta sua série, continuando os postes P4877, P4890, P4924, P4948 e P4995:


AS MINHAS MEMÓRIAS DA GUINÉ 1965/67

A morte do Fur Mil Tomé!

Camamudo. Da esquerda para a direita: O Autor, o Furriel Tomé e o Amareleja (soldado da Secção do Furriel Tomé)

Em Março, entramos num programa de rotatividade entre Camamudo, Cantacunda, Banjara e Geba. Dois meses em cada lugar. Começamos por Camamaudo/Cantacunda, onde a vida era comer, dormir, caçar, jogar à bola e, de vez em quando, dar uma volta pelas Tabancas a fim de verificarmos se tudo estava normal e se era necessário alguma coisa da nossa parte.

Em princípios de Maio de 1966, seguimos para Banjara, mais umas operações, mais emboscadas do IN, sem quaisquer resultados práticos ou nefastos para as nossas tropas.

No perímetro exterior, em volta do destacamento, haviam inúmeras armadilhas colocadas pelo Furriel Tomé, para nossa segurança interna.

Por volta de meados deste mês a alimentação escasseou, pelo que, tivemos que recorrer à caça, chegando muitas vezes a irmos até Mansaina em busca de javalis da bolanha, mas, além de alguns rastos, nem vê-los.

Até que no dia 22JUN66 o pior aconteceu, por volta das 07h00/07h30 da manhã, o Furriel Tomé passou por mim, quando eu estava a escrever um “bate-estradas” para a família e me disse, para eu lhe guardar o pequeno-almoço (dado que era eu o responsável pela alimentação, além de estar sempre pronto para todo o serviço), dizendo-me que ia à caça.

Como era costume ele fazer essas saídas sozinho não me preocupei. Passados uns minutos largos, ouvi um forte rebentamento na direcção para o lado onde ele se tinha deslocado.

Eu saí cá fora e pensei: «O Tomé já se foi!».

Por volta das 10h00/10h30, ainda não havia qualquer sinal do Tomé. O Alferes disse-me: «O Tomé ainda não chegou, mas não há problemas pois já é hábito ele, só chegar tarde».

11h00 nada, 11h30 nada. Fui ter com o Alferes e disse-lhe: «Aquele rebentamento está-me a cheirar a esturro, temos que ir à procura dele.»

Nem uma resposta do Alferes. Ao meio-dia, ainda não havia qualquer sinal do Tomé.

Perante a passividade do Alferes, pedi-lhe autorização para ir à procura dele.


Com a sua anuência, chamei um elemento da secção que tinha andado com ele a armadilhar a periferia e, acompanhado da minha secção, da secção do Tomé e da do Furriel Catrola, que também se ofereceu para ir, fomos pela picada fora à sua procura.

A picada era pouco usada, encontrando-se coberta de mato alto e denso. Passados mais ou menos uns quinhentos metros, detectamos a primeira armadilha por ele montada e verifiquei que estava tudo em ordem. Continuamos a marcha em fila indiana, mais uns quinhentos metros em linha aproximadamente, a que se seguia uma curva. Eu ia na retaguarda e, a dado momento, vi todos os que seguiam à minha frente atirarem-se para o chão. Eu fiquei em pé sem saber o que se passava. Fui então ter com o pessoal mais avançado, que me disse que estava alguém deitado no chão, a uns duzentos e cinquenta metros.

Logo me apercebi que aquele vulto era o meu Camarada Tomé.

Combinei com o Catrola a estratégia a adoptar para nos acercarmos do corpo. Eu ia por um dos lados da picada, por dentro do mato, e ele ia pelo outro lado. A secção mais avançada ficou onde estava e só avançaria, se eu desse ordem nesse sentido, ou em caso de emergência, se fosse preciso, avançaria em nosso auxílio sem qualquer ordem.

Também ficou estabelecido que eu verificaria se o corpo estava armadilhado.

Iniciamos então a movimentação conforme o previsto e quando passei ao lado do corpo, pois fui mais até mais à frente um pouco bater a zona, verifiquei de imediato que o corpo era o do Furriel Tomé.

Como não detectei nada suspeito e depois de tomar todas as precauções necessárias à nossa segurança, desloquei-me até ao local onde estava o corpo prostrado e fiz uma pesquisa, em volta e por baixo do cadáver, a ver se encontrava alguma armadilha.

Não encontrei nada, pelo que passei à verificação se o corpo estava mal tratado e, para meu espanto, nem um arranhão se via, excepto um pequeníssimo orifício por baixo da orelha esquerda.

A bandoleira da G3 estava toda estilhaçada, mas a minha maior surpresa era a posição em que ele se encontrava, de joelhos com os braços em cima das pernas e a cabeça metida entre os joelhos.

Perguntei a mim mesmo como foi possível, cair numa armadilha colocada por ele próprio, o que só pode ser justificado pelo seu esquecimento do local da colocação.

Arranjaram-se uns voluntários para irem buscar uma maca e outros para transportarem o corpo.

Como a maca nunca mais chegava, carregamos o Tomé às costas até ao aquartelamento, ficando estendido na cave, em cima dumas tábuas o resto do dia e durante a noite, porque só no dia seguinte é que uma coluna o veio buscar.

Secção do Furriel Tomé (o quinto a contar da esquerda), na foto ajudando a construir o abrigo em Banjara, em DEZ1965, e que faleceu em 22JUN66, numa armadilha montada pelo próprio

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp/Ranger da CCAÇ 1426

Fotos: © Fernando Chapouto (2009). Direitos reservados.
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Nota de MR:

Vd. postes anteriores desta série, do mesmo autor, em: