quinta-feira, 7 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4299: Histórias de Juvenal Candeias (1): Pirofobia ou a mina que não rebentou por simpatia


Mina antipessoal PMD-6



Mina anticarro TM-46 

 Fotos de David Guimarães e Carlos Vinhal (editadas por Carlos Vinhal)

__________ 

 Nota de CV: 



1. Mensagem de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde, 1971/74, com data de 7 de Abril de 2009: 

 Caro Luís Graça, 

Espero que estejas bem! Não sei se ainda te lembras de mim, mas trocámos mails aqui há algum tempo, a propósito de alguém que o Nuno Rubim procurava! Na altura pediste-me para escrever alguma coisa sobre a minha experiência na Guiné! Acho que já tanta gente escreveu sobre a Guiné, com mais conhecimento do que eu, que não tive coragem!... 

Contudo, os meus filhos insistem há algum tempo, para que escreva algumas historietas, daquelas que eles sempre gostaram!... Comecei, então, a escrever, para eles... Não sei se vês algum interesse neste estilo, mas envio-te um dos textos para analisares! Se tiveres interesse, depois mando mais! Se não... não deixo de ser teu amigo! 

 Um grande abraço. Juvenal Candeias 

  PIROFOBIA 9 Março 1972 

 Cacine: derradeira povoação importante a Sul da Guiné, situada na margem esquerda do rio com o mesmo nome. Predomínio da população de etnia Nalú, convivendo com minorias Sossas e Fulas. Os Sossos, embora minoritários, tinham levado à Sossização dos Nalús, processo de aculturação que consistiu na adopção do dialecto Sosso e na conversão ao Islamismo da quase totalidade da população Nalú, que era feiticista. 

Daqui derivou a instituição do casamento por compensação e a abolição do casamento por troca. A repressão na arte Nálu, fez-se igualmente sentir, dado que o Islamismo proibia qualquer representação figurativa. À época, Mussé Camará era o único artista de arte Nalú existente em toda a Guiné e alguns dos seus maravilhosos exemplares de estatuária de madeira podiam ainda ser apreciados em Cacine, com procura elevada, mesmo do estrangeiro! 

 Cacine constituiu a base da Companhia de Caçadores 3520, um agradável aquartelamento à beira-rio, onde as casernas se distribuíam entre coqueiros, mangueiros e laranjeiras. Daqui saiu em 9 de Março de 1972, numa manhã fresca da época seca, em que, parece impensável, o frio entrava pelos ossos, um Gr Comb reforçado com uma Secção de milícias,  nativa! 

 A missão era simples, uma patrulha de rotina, ao antigo quartel de Cacoca, mesmo na fronteira com a República da Guiné-Conacri. O aquartelamento de Cacoca tinha sido desactivado há anos, dado o seu isolamento e provável ausência de interesse estratégico, mas as construções não tinham sido destruídas, não voltasse o interesse em reactivá-lo! 

 Pelas 7,30h iniciou-se a coluna auto até ao destacamento de Cameconde, donde a patrulha continuou a pé, por picadas e trilhos – a floresta era inexpugnável, salvo à força de catana, mas a uma velocidade que não ultrapassava alguns (poucos!) metros por hora! 

 O caminho foi lento, seguro e silencioso, interrompido, aqui e ali, pela algazarra dos macacos, em especial a ladração dos macacos-cão, o cantar dos periquitos e outra passarada, a rastolhada de javalis e porcos-espinho ou a corrida furtiva das gazelas! 

 Por volta do meio-dia, com o calor equatorial a fazer-se já sentir com intensidade, a segurança é montada para dar lugar ao almoço! Almoço? Que exagero! Quem pode chamar almoço ao conteúdo de uma ração de combate? Se bem me lembro… uma lata de chouriço, uma bisnaga com creme de sabor indefinido para barrar no pão, uma sobremesa constituída por gomas açucaradas e saborosas, um comprimido de café… e algo mais que a memória (oh! que tristeza, para onde foste?) já não me permite recuperar! 

 De novo a caminho, que Cacoca já não estava longe, sendo atingida por volta das 14 horas! A paisagem era desoladora! Qual farwest! Ao fundo os edifícios em completa ruína, antes deles a pista de aviação, de terra batida e completamente esburacada, o capim a crescer por todo o lado!... O tempo de observação foi curto… alguém clamou… miiiiiina! 

 A mensagem passou rápido, da frente para trás, e toda a gente parou, instalando-se em posição de defesa! Os especialistas na matéria, entre os quais o graduado dos milícias, Sarifo de seu nome, mas popularmente conhecido por “Xerife”, para quem as minas eram como ratoeiras, tal a facilidade com que as levantava, avançaram, de pica em riste, pesquisando o terreno que iam pisar! 

 O prémio era tentador! O Estado pagava 1000 pesos (o escudo da Guiné!) por mina anti-pessoal levantada, 3000 por mina anti-carro. Boa oportunidade para aumentar os parcos rendimentos! E afinal… não era apenas uma mina, havia mais, tratava-se de um campo de minas, instalado na pista de aviação, ao que consta por rumores chegados ao PAIGC de que os tugas iam reactivar o aquartelamento de Cacoca! Ai! A contra-informação a funcionar!... 

 Tratava-se, pois, de trabalho mais exigente a que, de imediato, deitámos mão!... As minas, a maioria antipessoal PMD6, foram progressivamente levantadas, mas algumas tinham surpresa, isto é, uma anticarro TM46 por baixo da antipessoal, o que, naturalmente, demorou a acção! 

 Numa destas situações, depois de levantada a antipessoal, pareceu que a anticarro estaria armadilhada, pelo que o seu levantamento provocaria o rebentamento imediato! Optou-se por não a levantar e proceder ao seu rebentamento no local! Espetou-se um pau no chão, junto à mina, no qual seria presa uma granada ofensiva, cuja cavilha seria puxada à distância, com uma corda… que ninguém tinha levado! 

 Nada estava perdido! Há sempre um mestre na arte da improvisação e alguém se lembrou que para o efeito seriam suficientes as ligaduras do cabo enfermeiro, que rapidamente chegou ao local! Presa a ligadura à cavilha da granada e escondido o mestre da improvisação atrás de um bagabaga (forte construção de terra feita por formigas), foi só puxar a ligadura e… só rebentou a granada! A mina tinha apenas o sistema de detonação danificado, pelo que se exigia uma segunda tentativa!... Não se consumou! O barulho da granada atraíra duas sentinelas avançadas do PAIGC, que foram vistas nas ruínas do quartel – atrás do quartel era a República da Guiné – o que nos obrigou a abandonar o campo de minas e a tomar posição defensiva e segura!  Tratava-se apenas de sentinelas avançadas que fugiram, não havendo qualquer contacto! 

 O caminho de regresso foi tranquilo, com alguns sorrisos irónicos em relação ao Xerife, que transportava as minas em pilha, à cabeça, como se transporta em África qualquer produto! Voltaríamos a Cacoca, mas isso é história para outra oportunidade! 

 O final foi feliz, com os milícias a aumentarem os seus rendimentos e o pessoal da companhia a beber algumas Sagres suplementares! A patrulha dava pelo nome de código PIROFOBIA! Para que conste… ninguém teve medo do fogo!

________

Nota de CV:

Vd. poste de 6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4294: Tabanca Grande (136): Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde (1972/74)

Guiné 63/74 - P4298: História da CCAÇ 2679 (17): A última partida e Unimog sublimador (José Manuel Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 29 de Abril de 2009:

Caros Editores, Carlos em especial.
Aproxima-se a partida de um Corpo expedicionário, com a ilha da Madeira por destino, onde terá como missão, a consolidação das relações entre aquelas gentes autóctones e os continentais. Trata-se de um Corpo bem preparado, com afinada pontaria aos pratos, e sobejas provas dadas na actividade decilítrica, com cursos, estágios e farta experiência em diferentes redutos. Espera-se, legitimamente, o reforço dos laços de solidariedade entre os participantes, oriundos daquela CCaç dignos de Cabrais e quejandos, que cimentaram as boas práticas, partilhando a água da bolanha.

Assim, dia um, pelas catorze horas, ficam informados os indefectíveis admiradores e admiradoras, de que o ponto de encontro é na nova gare de embarque do aeroporto da Portela. Se entre os bloguistas alguém quiser enviar queijos, paios ou presuntos para algum destino daquela Pérola, ofereço-me como portador.

Carlos, sei que ficas triste, mas a tua ocasião há-de chegar. E vamos à História.
Abraços fraternos


A Última Partida

De regresso a Piche, pensava voltar ao quotidiano, à vida alternativa que me impunha, noite sim, noite não, passar no mato ou no aquartelamento. As noites no aquartelamento significavam grande descontração, mau grado aquela pequena possibilidade de termos que sair inopinadamente. Depois de jantar, aproveitava-as para debicar uns gins até à ceia, enquanto lia ou conversava com os camaradas que aportavam à suite três, ou escrevia à namorada se me sentia de imaginação fértil, ou tomava apontamentos no meu diário, quando não me estendia na cama em busca de sonhos que me alimentassem a vida. Nada de especial, portanto.

Já aperitivado de gins chegava a ceia, composta, como usualmente, pelo cabritinho mais as batatinhas assadas no forno, que regávamos copiosamente com vinho branco-sêco do Rêno, cerveja Super-Bock ou dois-éme, até que, por fim, era a vez da parafernália de digestivos, bebidas para aconchegar o estômago, mas, também, para espairecer, como quem levita sobre um ninho de cucos.

Dos Antiquary e Monks, até aos Courvoisier e Napoleão, a sêco, ou com Perrier, negócio estranho que dispensava a nacional água Castelo, tudo bebidas que tinham o magnífico efeito de estimular raciocínios e conversas, porque nessas ocasiões não há matéria que não sirva uma boa discussão, ou estimulavam o sono retemperador do quebranto.

As paredes forradas de coelhinhas da Plyboy, convidavam aos brindes que, às vezes, traduziam-se em distintas bebedeiras, com o paradoxal efeito da aumentar a sede à medida que mais se bebia.

Uma destas noites aconteceu uma flegelação ao destacamento de Cambor, e nós colocámo-nos nas traseiras do edificio dos quartos, de onde assistíamos aos relâmpagos dos rebentamentos e ouvíamos distintamente a balbúrdia de tiros e deflagrações. Tinha bebido uns copos, não estaria muito católico, e o Branco da Silva referiu-se-me assim:

- Aqueles gajos já têm um morto, e tu estás tão bêbado que não podes lá ir ajudá-los.

Mas quero referir-me à última noite de pocker.

Reunimo-nos no quarto do capelão, homem prudente, que encavava cem paus em cada jogada, raramente ganhava, mas permitia-lhe estar sempre pronto para a jogada seguinte. A coisa corria com normalidade. Por entre o fumo espesso e a bebida toldante, cada um prestava atenção à sucessão de cartas, às alterações faciais de cada parceiro, à projecção de cartas que detinham, e estudavam-se pequenas alterações de expressão, que denunciassem o bluff como a confiança. Passadas algumas jogadas, já tinha um peculiozinho.
Até que numa jogada, baldados os parceiros a jogo, resto eu e o Zé Tito. Sobre a mesa estaria qualquer coisa como dois contitos, verba interessante para premiar quem tinha um fullen de ases por reis. Fazíamos as caves de cem paus, e apostávamos mais cem. Já sentia o dinheiro no bolso. O Zé, também igualava e aumentava, algo indiferente, como quem faz bluff, enquanto eu regozijava.

Este maluco vai ficar em cuecas, pensava para comigo. A minha confiança aumentava. Ele não podia ter pócker, a avaliar pelas cartas já vistas, nem o royal street. O gajo está doido, cogitava. Debicava no whisky e aumentava a aposta. Em redor era a espectativa. Estariam, entretanto, uns cinco contos em jogo (na moeda de hoje, cerca de vinte e cinco euros), quando o Zé pagou para ver. Alarve, atirei com as cartas referindo vitoriosamente azes-por-reis. Bom jogo o meu. O Tito, por cima dos óculos, ainda voltou a olhar e a identificar as cartas e, quando me preparava para arrecadar a massa, quase timidamente, ele anunciou que tinha uma sequência. Não podia ser! Mas era.

Fiquei muito envergonhado comigo mesmo, porque tinha identificado o poder da alienação que o jogo exerce. Eu não queria só ganhar. Também queria deixá-lo na penúria.

O Zé Tito aos comandos e eu no lugar do pisteiro, levamos o Unimog por caminhos indizíveis.

O Unimog sublimador

1 -
Com a nossa energia levávamos o Unimog para todas as direcções, em viagens delirantes de sonho e libertação. Facilmente passávamos os obstáculos, tanto na floresta, como na savana. A paisagem passava sem lhe atribuir grande importância. Era a transição. Um dia chegámos ao principado do Mónaco, onde fomos recebidos pelan princesa Grace e as suas lindíssimas filhas. O ambiente esplendoroso foi cortado pela voz macia e delicada da princesa:

- Tomem-nas e partilhem, que elas são boas para partilhar e vão sentir-se muito recompensadas pela satisfação que vos derem.

Em redor, as graciosas cortesãs pareciam suspirar, e contribuíam para ganharmos o céu.
No dia seguinte levantei-me com um sol radioso. Fui à varanda do palácio, e deparei-me com as soberbas montanhas a deslizar como um reposteiro, suavemente, sobre as águas claras do mar. O jardim conferia uma atmosfera cheia de romantismo, e fazia-me pujante. Abaixo da varanda, o casario do principado, pigmentado por árvores e jardins, onde se destacavam construções de elevado recorte arquitectónico, bordejava o litoral até às docas, onde a alvura dos iates pontilhava com estrelas flutuantes.
A terra imponente abraçava o Mediterrâneo, de onde ouvíamos cânticos de apelo ao regresso a África. Por entre os aplausos de esbeltas criaturas, atingimos a costa do outro lado, atravessàmos o deserto até à Guiné, sempre acompanhados de ossanas amorosas.
À chegada corri para o duche, e lavei-me da pomada de poeira levantada da picada, qual creme nas faces transpiradas.

2 - Outra vez, o Unimog deu-nos asas para irmos buscar duas jornalistas italianas, que tinham por objecto reportar a nossa guerra. Eram jovens, em princípio de carreira, uma loira, outra morena, muito bonitas e comunicativas. Entendiamo-nos num misto de franciulano e portonhol. Por momentos sentia comichão na cara, provocada pelo roçar suave dos seus cabelos finos e perfumados. Era o céu no chão fula. Sentia-me nas nuvens.

No caminho, pela picada, fomos emboscados e atirámo-nos para o chão arenoso, como primeira medida de defesa. Sob o cantar ameaçador da metralhalha, as delicadas repórteres agarravam-se-me na procura de protecção. Com alguma dificuldade a manusear a arma, consegui repelir o ataque, do que resultou uma grande alegria. Ali estávamos os três abraçados, e elas abriram-se com beijos e carinhos de sonho.

Mais tarde, depois de nos despedirmos, relatei à minha namorada esta acção humanitária, gloriosa e fantasiosa, e o tiro quase me saíu pela culatra, ruída que ficou pelo ciúme, reforçado pela distância de milhares de quilómetros, e pela relativa ignorância das oportunidades que tínhamos na terra fula, onde, parecia, eu levava uma vida de deleite e facilidades.


3. Comentário de CV:

Caro José Manuel, só um pequeno aparte para te dizer que não está descartada a hipótese de festejarmos no próximo ano, na Pérola do Atlântico, os 40 anos da saída da CART 2732 do Cais do Funchal, com destino à Guiné. Também irá daqui uma delegação bem representativa dos Continentais para confraternizar com aqueles excelentes e inesquecíveis camaradas de armas.
Oxalá se concretize.
Já agora, uma pergunta. Vocês organizaram-se, de algum modo, quanto à viagem de avião?

Parabéns pelas tuas histórias de hoje, tanto a do jogo de Poker, como as do Unimog sublimador são fantásticas.

Um abraço
CV
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4167: História da CCAÇ 2679 (16): Casais fiéis e solidários (José Manuel Dinis)

Guiné 63/74 - P4297: (Ex)citações (26): Falando da condição feminina e das enfermeiras pára-quedistas (Luís Graça)

1. Caros camaradas, desculpem lá, mas interrompi outras coisas que estava a fazer, porque ao ler este comentário do nosso Editor-mor, não pude deixar de o publicar.
Esta lição que o Professor Luís Graça nos ministra até é de borla. Aproveitemos.

Recorrendo à série, por mim criada, Comentários que merecem ser postes, aqui vos deixo as doutas palavras do Chefe.
CV

2. Comentário de Luís Graça ao poste
Guiné 63/74 - P4295: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (9): O dia-a-dia de uma Enf.ª Pára-quedista na Guiné (Giselda Pessoa):

Obrigado, Giselda, por teres querido e sabido responder, com tanta franqueza quanto elegância, às perguntas directas, chatas, quiçá até um pouco voyeuristas do editor-mor do este nosso blogue...

Não é defeito de sociólogo, é feitio, é saudável curiosidade, é querer saber para poder também responder a perguntas que seguramente já fizeram os nossos tabanqueiros...

Começo por sublinhar que continua a ser, para nós, uma honra e um privilégio ter-te nas nossas fileiras, sempre atenta e empenhada, embora discreta...

Muito obrigado pelo teu testemunho, pelo teu depoimento sobre o vosso quotidiano em Bissau e no resto do CTIG...

Deixa-me elogiar-te a tua memória e o teu talento para contar histórias, mais uma vez aqui comprovado.

Adorei esta, que traduz muito bem como vocês se integraram e foram integradas na Força Aérea. Cito o teu poste:

(...) "Para mostrar a empatia existente, dou um exemplo curioso: Dirigia-me a pé para o Grupo Operacional quando passa por mim, a grande velocidade, um jipe com vários pilotos. Vejo o jipe dar a volta e travar bruscamente ao meu lado:
"- Anda daí depressa que já estamos atrasados!

"Pensando que se tratava de uma evacuação meti-me no jipe, mas acabei por perceber que nos dirigíamos ao terminal civil. Quando lhes perguntei o que se passava, explicaram-me que iam ver o avião da TAP que estava a chegar. Argumentei que tinha mais que fazer que ir ver a chegada do avião, pelo que um tentou esclarecer-me:
"- Vamos lá ver as mulheres (as hospedeiras de bordo...) que vêm no avião!.
"- Mas eu também sou uma mulher!, disse eu. E retorquiu-me o outro:
"- Eh pá, tu és igual a nós!"
... (...)

Uma delícia de história, short story, daquelas que eu gostaria de saber contar e a que costumo chamar histórias com mural ao fundo...

Os grupos humanos são exogâmicos, os machos saiem para fora do círculo íntimo do clã ou da família alargada para acasalarem... E as fêmeas funcionam como um bem precioso e raro, constituem uma verdadeira moeda de troca... Daí o dote, o dom, a recompensa, as reparações materiais e simbólicas a que tem direito ao pai da noiva...

E daí também o tabu do incesto... A interdição do desejo dos machos em relação às fêmeas do seu inner circle... As minhas filhas e as minhas irmãs são para eu dar a outros homens, de outros grupos, não são para mim... Por que o casamento é (era) um negócio, uma troca, uma aliança entre dois grupos que reforçam assim, pela cultura, pela economia e pelo parentesco, os seus laços...

Tudo este caldo de cultura socioantropológica para te dizer que é magistral a resposta dos teus matchos:
- É, pá, tu és igual a nós. A gente quer é cocar as gajas da TAP...

Se calhar era nas subunidades do exército, no mato, que havia uma atitude mais machista e marialvista em relação a vocês... Quando vocês apareciam no final de operações, para uma curta visita, para descansar ou tomar uma refeição...

As minhas recordações de Bambadinca têm mais a ver com esses breves momentos em que vocês eram verdadeiras estrelas na parada, e os tais matchos (do tenente-coronel ao major, do capitão ao alferes...) se desdobravam em salamaleques, disputando o vosso lado esquerdo, enquanto se atropelavam uns aos outros e vos encaminhavam para o bar...

Afinal, sempre fomos um país de cavalheiros... E no entanto é preciso lembrar que as primeiras enfermeiras pára-quedistas tinham obrigatoriamente que ser solteirinhas e boas raparigas, com robutez física, bom comportamento moral e teor de vida irrepreensível (sic)... Quando muito, podiam ser viúvas, sem filhos... Viuvinhas, alegres, ma non troppo...

Não seria tanto por serem pára-quedistas, mas sim por serem enfermeiras, mulheres... Deixa-me recordar aqui que foi em plena II Guerra Mundial, no auge do Estado Novo, que se começou a dar início à modernização do ensino e da prática de enfermagem, com o D. L. n.º 32612, de 31 de Dezembro de 1942.

No entanto, este diploma legal veio impor uma medida que alguns especialistas dos estudos de género (historiadores, sociólogos...) consideraram infamante: a proibição de casar...

No mínimo, era uma medida sexista, obscurantista, discriminatória, que só se aplicava às mulheres, e que só será revogada mais de vinte anos depois (D.L. n.º 44 923, de 18 de Março de 1963). Em suma, a enfermeira ainda não era uma verdadeira profissão, mas uma vocação, embora secular...

Sabemos que as enfermeiras pára-quedistas foram um corpo estranho ao Exército. E que foi a Força Aérea a abrir, em 1961, no início da guerra de Angola, as suas fileiras às mulheres (curiosamente por mão de um homem hoje classificado como ultraconservador, o Kaulza de Arriaga).

Historicamente é um exemplo pioneiro... Mas há ainda uma pergunta que eu ainda te queria fazer, desculpa lá estar a ser chato e abelhudo: essa proibição (de casar) ainda se mantinha, no teu tempo (1972/74) ?

Um chicoração. E um Alfa Bravo para o teu matcho.
Com humor e camaradagem,
Luís
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4216: Comentários que merecem ser postes (4): Homenagem à memória do Capitão Pára-quedista João Costa Cordeiro (João Seabra)

Guiné 63/74 - P4296: Espelho meu, diz-me quem sou eu (2): António Matos

O António Garcia de Matos, Alf Mil CCAÇ 2790, Bula, 1970/72 (*) ... Dois momentos, duas fotos: o Matos, acabado de chegar à Guiné (foto de cima), e depois a meio da comissão... (Já completamente apanhado do clima...)

O nosso camarada Matos, na Guiné, era um homem que brincava com o fogo, um sapador, o tal das minas e armadilhas ( o terror de qualquer infante, de um lado e do outro), o tal que montava, desmontava, cavilhava, descavilhava... Felizmente regressou inteiro... Mas deixou lá dois anos de vida (só ?). Ei-lo aqui ao espelho, fazendo a sua autoscopia... Mais um texto de antologia do nosso blogue (entre centenas que temos publicado)... Obrigatório ler para quem quiser conhecer, do lado de cá do monitor, a angústia do sapador em acção... Um abraço para o António Matos e outro para o Luís Faria, que felizmente regressaram para contar aos filhos e aos netos essa estranha história de gente que aos 20 anos andava em cima do fio da navalha (quer eu dizer, da faca de mato)... (LG)


1. Mensagem do António Matos:

Meus caros editores,

Após o desafio do Luís Graça, aqui está uma pequena contribuição minha para o tema (**).
Anexo 4 fotos:

(i) Uma de quando cheguei à Guiné;

(ii) outra a meio da comissão, no campo de minas;

(iii) uma outra da mina descrita no texto;

(iv) e finalmente outra da actualidade.


Façam como entenderem melhor no seu aproveitamento.

Embora ande por aí um texto meu por publicar, gostava de pedir que este fosse mais rápido por uma questão de actualidade com o pedido do Luis.

Se puder, óptimo !

Se tiver que ultrapassar outros textos, .... óptimo !

Se não puder ... Stº António !

Um abraço,
António


2. Espelho meu, diz-me quem sou eu (2) > António Matos


Um dia, vejo-me de faca de mato em riste, camuflado desbotado de tanta lavagem ter suportado, olhando para o céu como que a implorar capacidade de compreensão da situação do momento, rodeado de alguns camaradas mais absortos uns do que outros, numa missão cujas consequências não nos era dado reflectir ainda que as alterações comportamentais pessoais viessem a ser extremamente condicionantes do que seria de supor se se observassem, exaustivamente que fosse, as apetências que o nosso ADN deixaria antever.

Em menino também fui dos que brinquei ao Zorro e ao Tonto (eu era o Zorro !), ao David Crocket, ao chefe da Brigada Montada, ao Major Alvega e neles via os heróis, os justiceiros, os aventureiros que queria imitar...

Eram saudáveis as lutas que travava de espada (de madeira e numa imitação de O Pirata Vermelho protagonizado pelo Burt Lancaster ) ou aos cowboys onde o cavalo mais não era do que o som imitativo dum galope (às vezes umas relinchadelas ) e a postura se assemelhava ao do equídeo a correr numa cadência de trote...

De quando em vez o nosso quintal que dava vida aos desfiladeiros do Grand Cannyon, transformava-se em palco de tiroteio de TÁTÁRÁTÁTÁ TRRRRRÁÁÁÁÁÁ e discutíamos acerrimamente que “tu já morreste !”, “eu acertei-te !”, “tens que morrer !”

Depois começava a escurecer e regressávamos a casa para jantar e fazer uma sabatina com o pai sobre tabuada ou os rios de Portugal...

Um dia, a faca do mato de lâmina afiada, emparelhando com objectos detonantes que não se destinavam às lutas do faz-de-conta, transportava-me para uma realidade abjecta e da qual eu participava activamente, calculando, milimetricamente, a colocação mais adequada do engenho para potenciar a sua eficácia destruidora ….



E ali estava eu, confrontado com o mata-ou-safa-te, não discernindo capazmente entre o Bem e o Mal, o Dever e o não-Dever, entre o conceito de Humanidade e o de não-Humanidade que uma guerra gera ….

E eis-me estupidamente no meio dum mato, a colocar minas estrategicamente pensadas, de acordo com sofisticadas tácticas de destruição, separadas a distância rigorosa umas das outras, numa densidade de penetração no terreno tal que não permitia a veleidade de alguém atravessar aquela zona sem accionar, pelo menos, uma delas...

E eis-me a esboçar um sorriso cada vez que concluía a montagem de mais uma, num claro sinal dos efeitos da guerra na integridade intelectual e psicológica dum menino de 22 anos obrigado a ser homem rapidamente, custasse o que custasse !

- PUM !
- Ah foda-se ! O que foi isto ?

O coração saía pela boca tal a pulsação perante o inesperado rebentamento.

- O que foi, porra ?

Desta vez o caso não foi grave. Tinha sido um macaco que acionara a mina e ficou espalmado no terreno.

Porém, a extrapolação do espectáculo para um cenário cujos protagonistas fossemos nós, criou reacções de grande constrangimento e os efeitos psicológicos não tardaram a aparecer.

O homem é um animal de hábitos e cai frequentemente no erro das rotinas.

Havia que lutar contra esse inimigo o que não era fácil pois a minha situação (como a de todos os outros, diga-se) ao estar envolvido com as “mãos na massa”, não me permitia controlar o pelotão que, entretanto, fazia a segurança.

Essa tarefa era passada para os outros graduados do grupo mas ficava-nos sempre o aperto no peito ao imaginar que as tais regras básicas de segurança pudessem ser alijeiradas .

O dia acabava para aquela equipa passadas que estivessem cerca de 3 ou 4 horas ou se, por outro lado, houvesse um acidente.

Nessa altura seríamos imediatamente recolhidos para tentarmos lavar as más imagens.

É, pois, fácil de imaginar a alteração do estado de estabilidade emocional de cada um. A cada passo, e para não baixarmos a guarda, dava-se mais um acidente e mais um e mais outro...

Tenho para mim que foi a prova mais difícil em toda a minha vida onde tive que dinamizar um grupo de pessoas na concentração num objectivo (regresso à Metrópole ) e, simultaneamente, tê-las despertas para um perigo eminente mas que podia ser avaliado e minorado.

Nessa grande aventura tive sempre a companhia do nosso camarada Luís Faria e com ele protagonizámos uma cena que tem tanto de dramático e aterrador como de patético.

A situação passa-se aquando da desmontagem desse famigerado campo de minas.

Fácil será de compreender que havia factores que tornavam a operação responsável por elevadíssimos níveis de stress e entre eles estava o fim da comissão à vista e o facto de as minas não estarem todas nos sítios onde tinham sido colocadas (chuvadas e animais ocasionaram a deslocação de muitos dos engenhos) e, finalmente, uma catadupa de acidentes que aconteceram nessa altura.

É nesse ambiente que eu e o Luís Faria nos propusemos neutralizar uma determinada mina. Fruto do tempo passado desde a sua instalação até esse dia, a vegetação cresceu à sua volta bem assim como um bagabaga.

Aquela mina estava complicada mas por razões que agora não recordo, não optámos pelo rebentamento puro e simples.

Com a coragem que os 20 anos fazem confundir com irresponsabilidade, começámos a tornear o terreno circundante com o auxílio das facas de mato.

Pé-ante-pé, ou melhor, mão-ante-mão, estávamos a conseguir o objectivo definido –levantá-la com a prévia neutralização.

A cena não foi cronometrada mas hoje arrisco que podem muito bem ter sido uns 20 minutos de tensão ao máximo e com os nervos à beira dum colapso.

Nisto, entrámos numa dimensão etérea... O suor escorria pela cara como se uma torneira se tivesse aberto...

A noção que tenho foi de que entabulámos uma conversa de mortos onde nos questionávamos o que tinha corrido mal para termos morrido...

A escassos dois palmos das nossas caras, nós accionámos a puta da mina !

Reconheço a incapacidade de traduzir por palavras as emoções, os desesperos, as aflições por que passámos naquele momento enquanto não nos apercebemos que aquela mina, AQUELA E NÃO OUTRA ! tinha apodrecido e, embora accionada, não rebentou !

A ter acontecido, e tratando-se da mina que se tratava, julgo que seria difícil a um qualquer instituto de medicina legal recompor o puzzle e dizer quem era quem.

Julgo que esta cena não foi do conhecimento geral e, após fumarmos meia dúzia de cigarros seguidos, respirámos fundo e continuámos, alarvemente, a levantar minas...

António

_______

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3390 Tabanca Grande (95): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula (1970/72)

(**) Vd. poste de 6 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4288: Espelho meu, diz-me quem sou eu (1): Joaquim Mexia Alves

Guiné 63/74 - P4295: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (9): O dia-a-dia de uma Enf.ª Pára-quedista na Guiné (Giselda Pessoa)

1. Mensagem da nossa camarada Giselda Pessoa, ex-2.º Srgt Enf.ª Pára-quedista, Guiné, 1972/74, com data de 6 de Maio de 2009:

Caro Luís
Tive em consideração as perguntas que me fizeste, inseridas nos teus comentários a um texto meu já publicado, em que pedias para eu dar uma ideia de como foi a integração das enfermeiras pára-quedistas no ambiente matcho de um Teatro de Operações.

Lembro as perguntas que me fizeste nesse comentário:

"Como é que os "matchos" (como se diz em crioulo da Guiné) se acomodaram, na BA12, em Bissalanca, com a chegada das senhoras enfermeiras pára-quedistas ?
Como era o quotidiano das enfermeiras ? Viviam à parte ? Conviviam ? Quantas eram em 1972/74? Frequentavam a messe e o bar dos oficiais, as que eram oficiais, e a messe e o bar dos sargentos, as que eram sargentos ?
As enfermeiras eram discriminadas pela positiva, como se diz hoje? Ou eram apenas militares, tratadas como militares, à luz do RDM?
Assisti algumas vezes à chegada de hélis com enfermeiras pára-quedistas. Elas tinham um tratamento quase VIP, em função não do posto mas da condição de mulheres... Era o machismo de caserna, o marialvismo castrense, a vir ao de cima... Também tinha muito a ver com a cultura da época, em que as relações entre os homens e as mulheres ainda eram muito desequilibradas, em desfavor delas
..."

Para além de alguns pormenores que achei importante referir também, tentei responder a essas perguntas, embora as minhas respostas possam pecar por ser um ponto de vista pessoal que pode não representar necessariamente o entendimento que outras enfermeiras têm desta vivência.
Giselda Pessoa

Base Aérea 12 > Bissau

Com a devida vénia à página dos
Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74, do nosso camarada Victor Barata, Especialista da FAP.

UMA ENFERMEIRA PÁRA-QUEDISTA NA GUINÉ

Com este texto pretendo dar uma ideia de como foi a integração das enfermeiras pára-quedistas no ambiente de um Teatro de Operações (neste caso específico, da Guiné) e qual o nosso dia-a-dia naquele território.

Estou naturalmente limitada ao período em que ali estive presente (1972 a 1974), embora com algum conhecimento de situações pontuais de que fui tendo notícia, referentes a épocas anteriores.

Na época que abordo, a nossa coexistência com as forças no terreno (dos 3 Ramos) já estava estabelecida, sendo pacífica e normalizada. É um facto que grande parte das dificuldades (se as tinha havido) já tinham sido ultrapassadas em 1972 e que qualquer estranheza pela presença das mulheres na tropa já se teria dissipado.

Sabe-se que os pilotos têm bastante tendência a zelar pela sua equipa. Nesse aspecto nunca me considerei marginalizada, pois também fazia parte da equipa: No caso das evacuações, afinal a nossa razão de existirmos, a enfermeira era um dos componentes do sistema, ao nível do piloto e do mecânico, e naturalmente aceite como tal. Por outro lado, no caso particular da Guiné, nós conhecíamos todos os tripulantes que operavam no território, e eles conheciam todas as enfermeiras que ali estavam colocadas, o que nos tornava uma grande família, com as suas diferenças, mas unida.

Para mostrar a empatia existente, dou um exemplo curioso: Dirigia-me a pé para o Grupo Operacional quando passa por mim, a grande velocidade, um jipe com vários pilotos. Vejo o jipe dar a volta e travar bruscamente ao meu lado:

- Anda daí depressa que já estamos atrasados!

Pensando que se tratava de uma evacuação meti-me no jipe, mas acabei por perceber que nos dirigíamos ao terminal civil. Quando lhes perguntei o que se passava, explicaram-me que iam ver o avião da TAP que estava a chegar. Argumentei que tinha mais que fazer que ir ver a chegada do avião, pelo que um tentou esclarecer-me:

- Vamos lá ver as mulheres (as hospedeiras de bordo...) que vêm no avião!.

- Mas eu também sou uma mulher!, disse eu. E retorquiu-me o outro:

- Eh pá, tu és igual a nós!

O nosso dia de trabalho decorria normalmente das 08H00 às 18H00, podendo prolongar-se nos dias em que entrávamos de alerta logo de manhã, pelas 06H00 - por vezes entrávamos todas às 06H00, quando havia operações no mato - ou sempre que as missões se alongavam, entrando por vezes pela noite dentro. Embora tivéssemos instalações no Serviço de Saúde para aguardar a chamada para uma missão, no meu caso pessoal optava na maioria das vezes por me manter na zona do GO1201, já com a mochila dos primeiros socorros a meu lado, pronta para embarcar. O tempo para accionar o alerta era reduzido, e assim eu garantia que não seria da minha parte que haveria atraso na saída do meio aéreo.

Já tive ocasião de referir noutro texto que, no caso de certas evacuações de DO-27, durante o voo de regresso à Base, se a enfermeira considerasse que a gravidade do estado do evacuado o justificava as Operações da Base eram alertadas e mandavam preparar um AL-III, fazendo-se a transferência do ferido na placa e prosseguindo o helicóptero directamente para o Hospital, sempre com o apoio da enfermeira.

No apoio a operações executadas em todo o território (por qualquer Ramo) eram muitas vezes destacadas tripulações de alerta, estacionadas em aquartelamentos próximos, o que incluía muitas vezes uma enfermeira para as evacuações. Passei muitos dias nesses destacamentos, compartilhando com a nossa tropa as suas condições de vida e por vezes ouvindo mesmo os seus desabafos.

Poucos dias houve em que não tenha sido solicitada para qualquer evacuação; pelo contrário, quando as coisas corriam mal para as nossas tropas, podia chegar a fazer 3 e 4 evacuações, algumas delas à zona de combate.

Periodicamente éramos designadas para acompanhar os militares evacuados do Hospital de Bissau para os Hospitais Militares em Lisboa (Estrela e Belém). Eram Boeings 707 (com um misto de passageiros e evacuados, estes colocados na parte traseira) ou DC-6 cheios de pessoal em estado grave ou que, pelas características das suas lesões, necessitavam de cuidados e recuperações prolongados na metrópole. Não eram voos fáceis pois, se já é traumático acompanhar e apoiar um ferido nosso num voo local na Guiné, imagine-se o que é fazê-lo com um grande número de feridos e doentes, muitos deles a precisarem da nossa atenção. Restava-lhes a consolação de estarem a afastar-se daquele inferno.

Durante as horas de serviço, o local das nossas refeições dependia da nossa disponibilidade e dos gostos pessoais de cada uma; no meu caso pessoal, muitas vezes tinha que tomar as minhas refeições nos aquartelamentos para onde era destacada, juntamente com as tripulações; quando estava na Base tanto podia almoçar no BCP12 como na messe de oficiais da BA12 (poucas vezes no entanto); na maior parte das vezes contentava-me em comer qualquer coisa no Clube de Pilotos, área de apoio às Esquadras de Voo e próxima destas, por ser o local mais apropriado para responder a qualquer pedido de evacuação. Era também o local de que tinha que me socorrer quando chegava tarde das evacuações e já não serviam almoços nas messes. E por vezes não almoçava...

Terminado o nosso trabalho, afastávamo-nos um pouco da vida da Base, pois habitávamos um apartamento (tipo república) no Largo do Liceu, em Bissau, onde não havia separação entre oficiais e sargentos - afinal éramos todas enfermeiras. No mesmo prédio e noutros próximos habitava outro pessoal da BA12 e do BCP12, alguns com as respectivas famílias. Em média, na nossa casa estavam três/quatro enfermeiras, embora estivessem previstas cinco. Também, o facto de periodicamente estar uma em diligência em Lisboa, acompanhando a evacuação de feridos ou doentes para o Hospital Militar Principal, na Estrela, ou Hospital Militar de Belém, justificava o número mais reduzido das presentes.

Fora das horas de serviço acabávamos por ser bastante caseiras, pois estávamos cansadas do dia de trabalho. Vivendo na cidade de Bissau, podíamos por vezes ir jantar a um dos vários restaurantes ali existentes.

Embora houvesse enfermeiras graduadas em Oficiais ou em Sargentos, a todas era autorizado o acesso às Messes de Oficiais - talvez porque fosse difícil distinguir-nos... No entanto não eram locais que eu apreciasse particularmente, até pela cara enjoada de umas tantas utilizadoras frequentes que não gostavam de nos ver aparecer por lá. O Clube da Marinha, ao lado da respectiva Messe, tinha um ambiente interessante e era talvez o local em que nos sentíamos melhor.

Mas, muito frequentemente, aos serões a nossa casa acabava por ser invadida, quer pelos vizinhos, quer por pessoal da Base que ali procurava refúgio. Por isso, paz e sossego era coisa pouco frequente entre nós...

Tenho boas recordações do modo como me recebiam nos locais onde aterrávamos; mas devo dizer que essa hospitalidade era alargada aos tripulantes do AL-III ou do DO-27 em que eu seguia; e quanto mais isolado fosse o aquartelamento, melhor era a recepção, pois estes eram momentos de contacto com a civilização que esporadicamente lhes eram permitidos. Por isso nunca tive razão de queixa quanto à maneira como era recebida nos aquartelamentos por onde passava - ou onde muitas vezes acabava por ficar grande parte do dia, em missões de alerta.

Se algum conflito surgiu no terreno com pessoal mais graduado do Exército, parece-me que não eram casos isolados envolvendo apenas a enfermeira; também os pilotos se queixavam por vezes das dificuldades de relacionamento com alguns dos responsáveis no terreno, talvez por haver a tendência para, com base no posto, pretenderem meter-se em áreas que não eram da sua competência.

Na Força Aérea talvez pudesse haver aqui ou ali algum espírito marialva que em certas ocasiões nos pudesse ter tratado com alguma condescendência, mas a verdade é que por norma também não dávamos motivos para reparos; embora, quando se tratasse da nossa área profissional, fossemos firmes nas nossas posições, o que poderia desagradar a alguns.

É possível que em algumas ocasiões tenhamos recebido um tratamento quase VIP nos locais por onde passávamos, por sermos mulheres; mas, se naquela época se via suceder isso em locais considerados muito mais normais, não me admira que tal também pudesse suceder nesses recantos em que a civilização chegava com tanta dificuldade. Afinal, quero crer que a nossa presença, nessas situações, fazia lembrar aos militares as irmãs, as mães (embora não fossemos muito mais velhas...) e também as namoradas. E o facto é que não senti qualquer sinal de desrespeito por parte deles em todas as minhas deslocações - embora em muitas delas, dada a gravidade da situação, não tivesse tido tempo para analisar o ambiente existente.

Por vezes, a presença de uma mulher - ainda por cima da tropa, como eles - podia provocar nos militares a vontade de apertar com a enfermeira; lembro-me de um alerta que fiz num aquartelamento em que, não tendo tido nada que fazer, ia folheando algumas revistas existentes. Aproveitando a minha ausência momentânea o pessoal aproveitou para as substituir por um conjunto de Playboys e ficou-se por ali, preparado para assistir a uma possível reacção escandalizada da minha parte. Pelo ar deles quando regressei, desconfiei que alguma me tinham preparado; por isso, quando vi as revistas não demonstrei qualquer reacção e folheei-as evidenciando a maior calma e interesse, como se estivesse a ler a Flama ou o Século Ilustrado... E o pessoal deve ter chegado à conclusão de que não valia a pena continuar a tentar apertar comigo...

Embora correndo o risco de generalizar aquilo que é afinal um ponto vista muito pessoal, espero que estas linhas possam ter esclarecido aqueles que, por estarem mais distantes, tinham uma ideia vaga ou até deturpada do que era o dia-a-dia das enfermeiras no Teatro de Operações da Guiné.

Guiné > Bissalanca > BA 12 > 1972 > A Giselda (à direita), com um militar do Exército e a enfermeira Rosa Mota

Giselda Antunes junto ao GO12

Fotos: © Giselda Pessoa (2009). Direitos reservados.


Giselda Pessoa
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4181: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (8): A dar ao Ambu (Giselda Pessoa)

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4294: Tabanca Grande (136): Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde (1972/74)

Parabéns a você e bem-vindo à Tabanca

1.
Mensagem de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde, 1971/74, com data de 5 de Maio de 2009:

Caro Carlos,
Um grande abraço e que estejas bem!
Só agora te respondo, porque este fim de semana, e por mera coincidência, fui até ao Funchal, para a comemoração do 35.º Encontro da CCaç 3520!
Mais tarde tentarei escrever algo sobre as emoções vividas!

Envio-te também mais um pequeno texto, para analisares e, se assim o entenderes, poderes publicar!

Como eu já tinha dito ao Luís, os meus textos têm normalmente algumas especificações desnecessárias para os antigos combatentes, mas a realidade é que eu os escrevo, primeiro que tudo para os meus filhos e a seu pedido! Portanto, se quiseres corrigir... estás à vontade!

Quanto ao teu convite para fazer parte da Tabanca... é para mim um privilégio!

Para esse efeito seguem as fotos do artista!

Quanto ao resto aí vai!

Era Alferes Miliciano, Atirador, com recruta e especialidade em Mafra a que se seguiu Tavira durante 3 meses!

Mobilizado para a Guiné, fui formar Companhia no BII19, no Funchal, donde saí com a Companhia de Caçadores 3520 para Bissau, onde cheguei ao fim da tarde de 24 de Dezembro de 1971 (que rica noite de Natal, no Cumeré!!!)

Após a IAO no Cumeré, fomos parar a Cacine (mais o destacamento de Cameconde), onde permanecemos até final de Outubro de 1973!

Calma! Já lá vão 22 meses mas ainda não estamos de regresso!

Somos então colocados em Quinhamel, ficando cada GCOMB com um aquartelamento desta região dos arredores de Bissau!

E foram mais seis meses e meio para esta Companhia Toyota (vieram para ficar!)!

Após 28 meses e meio, regressámos em final de Março de 74, a bordo do lindo navio de cruzeiros Niassa, tendo chegado a Lisboa em 3 de Abril de 1974!

Pode-se dizer que connosco veio o 25 de Abril!

Ah! A Companhia era Independente e dava pelo nome de "Os Homeopáticos de Cacine" (O Capitão era um verdadeiro intelectual!...)!

Actualmente vivo em Lisboa, fui Bancário no Credit Lyonnais durante 25 anos e no BBVA durante 5, e estou reformado e muito feliz há quase 5 anos.

Ah! Quanto à idade, posso dizer que entro amanhã na idade do sexo - calma, passo a ser sexagenário, faço 60 anos - portanto vamos lá cantar os parabéns!

Carlos, desculpa lá a seca! Mas isto quando começa... vai por aí fora!

Um grande abraço.
Juvenal Candeias


2. Recordemos agora como o Juvenal chegou até nós:

1 - Mensagem de Juvenal Candeias, para Luís Graça em 7 de Abril passado:

Caro Luís Graça,
Espero que estejas bem!

Não sei se ainda te lembras de mim, mas trocámos mails aqui há algum tempo, a propósito de alguém que o Nuno Rubim procurava!

Na altura pediste-me para escrever alguma coisa sobre a minha experiência na Guiné!
Acho que já tanta gente escreveu sobre a Guiné, com mais conhecimento do que eu, que não tive coragem!...
Contudo, os meus filhos insistem há algum tempo, para que escreva algumas historietas, daquelas que eles sempre gostaram!...
Comecei, então, a escrever, para eles...
Não sei se vês algum interesse neste estilo, mas envio-te um dos textos para analisares!
Se tiveres interesse, depois mando mais! Se não... não deixo de ser teu amigo!

Um grande abraço.
Juvenal Candeias

2 - Nova mensagem do J. Candeias para o nosso Blogue, com data de 29 de Abril:

Caro Luís Graça,

Enviei-te há algum tempo um texto sobre a Guiné, para o teu anterior mail!
Não sei se recebeste ou se, simplesmente, não lhe viste qualquer interesse!
De qualquer modo, agradecia que me dissesses algo!

Um abraço.
Juvenal Candeias


3 - No dia 30 de Abril foi enviada esta mensagem/resposta ao Juvenal:

Caro Juvenal
Um abraço para ti e votos de boa saúde.
Estou a responder-te na qualidade de relações públicas do Blogue.
Na Caixa de Correio do Luís existe uma troca de correspondência entre ti e ele, em Maio do ano passado.

Encontrei um texto teu com data de 7 de Abril deste ano, que me passou, pois este mês a gestão da correspondência era da minha responsabilidade. Desde já as minhas desculpas.
Se te referes a ele, está referenciado e já não esquece.

Já agora, teríamos muito gosto em que fizesses parte da nossa Tabanca.
Convido-te então a enviares uma foto actual e outra do teu tempo de Guiné.
Relembra-nos o teu Posto, especialidade, Unidade a que pertenceste, data de ida para a Guiné, data de regresso e locais por onde andaste, etc.

Do foro particular, se quiseres: local de residência, data de nascimento, contactos telefónicos que podem ser do conhecimento da tertúlia ou não, tu dirás, situação profissional, etc.
Como amigos que queremos ser, devemo-nos conhecer minimamente.

Agradeço que me respondas em relação ao convite. Farei primeiro a tua apresentação à tertúlia e publicarei depois o texto de 7 de Abril.
Caso queiras continuar como simples acompanhante do Blogue, farei imediatamente a publicação do referido texto.

Um abraço para ti do camarada
Carlos Vinhal


3. Comentário de CV:

Caro Juvenal, bem-vindo à Tabanca Grande. Obrigado por teres aceitado o nosso convite para integrares a nossa Tertúlia.

Dizes ter um estilo próprio de contar as tuas histórias da Guiné. Ainda bem, porque temos muitos leitores que não são ex-combatentes e todos os pormenores, mesmo aqueles que parecem irrelevantes, são preciosos. Manda também fotos, se as tiveres por aí, mas sempre acompanhadas de legendas.

Não podíamos deixar passar esta data sem te apresentar para, ao mesmo tempo, dar-te os parabéns por mais este aniversário. A partir de hoje deixaste de ser gente para passares à sub-categoria de sexagenário.

Esperamos que resistas mais 40 anos, porque depois dos 100 morre pouca gente.

Um abraço e parabéns em nome da Tertúlia.

Carlos Vinhal
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4214: Tabanca Grande (135): Fernando Oliveira, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné, 1968/70)

Guiné 63/74 - P4293: Agenda Cultural (12): Seminário “A Academia Militar e a Guerra de África”: 8 de Maio no Quartel da Amadora

Atenção camaradas é já no dia próximo dia 8 de Maio, com início marcado para as 10h00, o Seminario "A Academia Militar e a Guerra de África" no Aquartelamento da Amadora.

A entrada é livre.


__________

Nota de MR:

Vd. último poste da série de 5 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4284: Agenda Cultural (12): Memórias Literárias da Guerra Colonial, dia 7: Viagem ao Fim do Império, romance de Martz Inura

Guiné 63/74 - P4292: Em busca de... (72): BCAÇ 4615 (Teixeira Pinto 1973/74) (Francisco Teixeira)

Mais um camarada nosso com o pseudónimo "Gota d'Água", deixou um novo comentário no post P4267: 

Olá amigos,
Há algum tempo que sigo o blogue e a página sobre a Guiné, uma vez que também sou um antigo combatente na Guiné.

Tentei encontrar notícias do meu Batalhão 4615, que em 73/74 esteve na zona de Teixeira Pinto.

Se por acaso algum camarada, desse batalhão, ler este comentário agradeço que me mande uma mensagem para o e-mail: jlrodrigues.22@gmail.com

Um abraço,
 J.J. Rodrigues
 _______

Nota de MR:

Guiné 63/74 - P4291: In Memoriam (21): Faleceu hoje o nosso camarada Carlos Rebelo, ex-Fur Mil, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (Benjamim Durães)

1. Mensagem do nosso camarada Benjamim Durães, ex-Fur Mil do Pel Rec Inf, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72), com data de 6 de Maio de 2009:

Ex-Camaradas,

É com bastante mágoa e tristeza que vos estou a enviar este E-Mail (*).

Acabo de ser informado que o nosso ex-camarada Furriel Miliciano Sapador da CCS/BART 2917 - CARLOS AUGUSTO TRAVASSOS REBELO, faleceu hoje, 6 de Maio, pelas 10 horas na sua residência (Rua Diogo Cão, n.º 45, em GUEIFÃES (Maia).

O corpo está em Câmara Ardente na Igreja de Gueifães, e amanhã será rezada missa de corpo presente pelas 12,30 horas, seguindo depois o corpo para CARNIÇÃES (Trancoso/Viseu).

Para quem quiser contactar a família, poderá ligar para o filho CARLOS FILIPE REBELO – Telemóvel 933 539 459, ou para os seguintes E-Mails:


Esposa –
mane.sfaria@gmail.com
Filho Carlos Filipe –
djrebelo@gmail.com
Cunhado Ernesto Santos –
emagosa@sapo.pt

DURÃES
Guiné > Bissau > s/d > Da esquerda para a direita os Fur Mil,da CCS / BART 2917 (1970/72) , José Adelino Santos, Benjamim Durães e Carlos Rebelo

Da esquerda para a a direita: Carlos Rebelo, Luís Moreira e David Guimarães (os dois últimos camaradas do mesmo Batalhão emembros da nossa Tabanca Grande) no último convívio em Setúbal, em 2008. O pessoal da CCS do BART 2917 vai voltar a reunir-se, este ano, desta vez em Viana do Castelo. No dia próximo dia 16 de Maio de 1970 o pessoal deste batalhão partia para a Guiné (**).

2. Comentário de CV:

Em nome do Luís Graça e da nossa Tabanca Grande, apresentamos as nossas sentidas condolências à família enlutada e aos antigo camaradas de armas do Carlos, da CCS / BART 2917... O Luís Graça (o então Fur Mil Henriques, da CCAÇ 12, 1969/71) manda-me dizer que tinha as melhores recordações do Carlos Rebelo do tempo em que com ele conviveu em Bambadinca (entre Junho de 1970 e Março de 1971). Infelizmente nunca mais teve oportunidade de o voltar abraçar. Não podendo, por razões profissionais, estar em Viana do Castelo, no dia 16 de Maio, no encontro anual do pessoal do batalhão, e em especial do pessoal da CCS, vem pedir ao Benjamin Durães para transmitir a todos os amigos e camaradas daquele tempo e lugar(o Abílio Machado, o Vilar, o Puím, O Luís Moreira, o David Guimarães, O José Armando Ferreira Almeida...) a sua desolação e pesar pela perda irreparável do Carlos... "Que saibamos hoje, na adversidade, reforçar os nossos laços de solidariedade e de afecto, tal como o fazíamos em Bambadinca, nos duros anos de 1970/71" - foi, em síntese, a mensagem que ele me pediu para transmitir, a ti, camarada Durães.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. último poste da série In Memoriam > 18 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4207: In Memoriam (20): Para o António Ferreira e demais camaradas mortos no Quirafo (Juvenal Amado)
(**) Vd. poste de 16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4198: Convívios (111): 3.º Encontro/Convívio do pessoal da CCS/BART 2917, dia 16 de Maio de 2009, em Viana do Castelo (Benjamim Durães)

Guiné 63/74 - P4290: Blogpoesia (45): História de Portugal em Sextilhas (Manuel Maia) (III Parte): II Dinastia, até ao reinado de D. João II

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Cafine > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > O Periquito de Cafine, nas mãos do bardo Manuel Maia.

Guiné > Região do Oio > Nhacra > Fatim > O pouso das bajudas lavadeiras... Lugar de visita diária.

Guiné > Região do Oio > Nhacra > Fatim > "Cantada" à Segunda. Eu e a Moura.

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Cafine > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > Porto de Cafine, sujeito às marés mas incomensuravelmente melhor que o de Cafal.

Guiné > Região do Oio > Nhacra > Fatim > Representante da fome de África. A velha mais velha entre as velhas de Fatim.


Fotos (e legendas): © Manuel Maia (2009). Direitos reservados.

1. Continuação da publicação da História de Portugal em sextilhas, por bardo do Cantanhez .(O Manuel Maia, formado em história, foi Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74; quando esteve na Região, também passou por Fatim).


Mensagem de 3 do corrente:

Luís: Não queria que te sentisses "pressionado", mas vou aproveitar a aberta para ir enviando mais umas quantas sextilhas, pois infelizmente para mim será a única forma de publicação a que posso chegar...Não há editores livreiros entre a malta da tabanca...

Hoje chegarão ao nº 100... No fim vou tentar enviar, "se a tanto chegar o engenho e arte" ( como sabes sou incipiente nestas tecnologias...) o parecer do PROFESSOR DOUTOR, ANTÓNIO CARDOSO, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
~


A História de Portugal em sextilhas (III parte, 2ª Dinasta, até ao reinado de D. João II)


69-Castela vai tentar com insistência
impor aos portugueses a regência,
mas D. João não cede, vai à luta.
Grandeza em mil façanhas sobrehumanas,
as hostes bem treinadas lusitanas
mostraram ser capazes na disputa...


70-Valverde, Aljubarrota e Trancoso
são marcos dum processo bem moroso
com quase trinta anos de combates.
Garantes desta lusa identidade
que deve a Nun´Alvares, em verdade,
usança do quadrado nos embates...


71-Atento está o luso soberano
à movimentação do castelhano
que intenta vir cercar a capital.
No Crato estão as forças invasoras
que aguardam gentes lusas,vis,traidoras,
para engrossar "exército do mal"...


72-Fronteiro d´Alentejo nomeado,
Nun´Alvares aguardou-os apeado,
nos Atoleiros, perto de Fronteira.
Mau grado a minoria ser notória
registam portugueses a vitória
assente na estratégia de Pereira...


73-Por Entre-Douro e Minho se encontravam
el-rei e o Condestável que agrupavam
besteiros, lanças, muita peonagem.
Tão logo o inimigo o percebeu,
avança pelas Beiras, p´ra Viseu
pilhando as pobres gentes de passagem.


74-Beirãs internas rixas,descabidas,
"ajudam" castelhanas investidas
de Castanheda, capitão famoso.
Mais alto vai falar o pátrio amor
e as mãos se dão no ataque ao agressor
que humilham lá p´ra veiga de Trancoso...


75-P´ra lá de Aljubarrota,em Chão da Feira,
as lusas hostes,tomam dianteira,
preparam bem terreno p´ra disputa.
Estacas aguçadas são cravadas
em fossos,covas, lobo disfarçadas,
montada foi estratégia para a luta...


76-Num dia bem escaldante em mês de Agosto,
quadrado no terreno foi disposto
por trás da paliçada defensora.
Inglesa foi a táctica de guerra
que, usando os virotões, deita por terra
as intenções da força agressora...


77-Notável feito heróico lusitano
ao pôr em debandada o castelhano,
de enorme contingente bem armado.
P´ra quatro de Castela,há um português,
dotado de amor pátrio e altivez,
disposto a defender solo sagrado...


78-O Condestável Nuno (**) se aventura,
mostrando possuir grande bravura,
em terra estranha além do Guadiana.
Depois de Aljubarrota, em mês de Outubro,
as gentes portuguesas leva ao rubro,
dobrando ali a hoste castelhana ...


79-Valverde,junto a Mérida,o local
da escolha p´ro combate terminal,
perdido por Castela que fugiu.
Vitória lusa é tida convincente,
selada pois foi paz conveniente
das guerras que interregno pariu...


80-No Condestável está o cabo de guerra
capaz de mil façanhas sobre a terra,
morando na estratégia a sua lança.
Reconhecendo o mestre dá-lhe então
poder, riqueza, luxo,ostentação,
benesses de que não faria usança...


81-E findo o tempo heróico renuncia
ao peso da importância, honraria,
sustendo as armas, opta p´la clausura.
P´ro povo foi um bem-aventurado,
beato o fez a Igreja por tratado,
louvando-lhe da vida a postura...


82-P´ra uns Brites de Almeida,outros Beatriz,
padeira entrou na história,a lenda o diz,
por sete castelhanos abater.
Usando o instrumento de trabalho,
a pá que utilizou,tal qual um malho,
em quem no forno seu se foi esconder...


83-Meticulosamente foi urdida
a paz alegremente recebida
que satisfez desejos já profundos.
Depois se cria armada e marinhagem
que busque na aventura da viagem
razão de "dar ao mundo novos mundos"...


84-E teve el-rei João no seu reinado
labor das descobertas encetado,
em Ceuta epopeia irá nascer.
Depois vem Porto Santo e Madeira,
p´ra mais tarde os Açores, ali à beira,
certezas deste reino a crescer...


85-Não teve Fernão Lopes cepa nobre,
tão poucoa sua origem era pobre,
nos meios mesteirais se situava.
Mercê dos seus estudos e leituras,
ascende a guardador das escrituras,
do Tombo, onde o passado "repousava"...


86-Vassalo foi d´el rei, nobilitado,
tabelião geral, escrivão dotado,
do paço um valido bem famoso.
De D.Duarte, infante, teve o mando
das crónicas reais até Fernando
e a do seu pai João,"mui virtuoso"...


87-Ínclita geração,Camões o diz,
ao reportar-se à prole que Deus quis
nascesse de Filipa e de João.
Se Afonso e Branca não vão resistir,
dos outros seis o reino irá sentir
orgulho por servirem a Nação...


88-Duarte,o primogénito,escritor,
mui viajado Pedro, com valor,
Henrique as Descobertas encetou.
Fernando em Fez, morrendo, é chama acesa,
Borgonha vê Isabel sua duqueza,
João, a Condestável, se guindou.


89-A DJoão sucede D. Duarte,
cinco anos de reinado e muita arte,
um homem "Eloquente" e de cultura.
Em Tânger tem desastre bem marcante
que leva à morte,irmão,o Santo Infante,
sujeito à humilhação e à tortura.


90-Mui dado às letras foi el-rei Duarte,
deixando escrita "Ensinança da arte
de bem se cavalgar a toda a sela".
"O leal conselheiro" foi tributo
legado à mulher,antes do luto
que a peste, em o levando, afastou dela...


91-Durante a guerra o pai distribuíra,
de paga pela ajuda que surgira,
imensos bens da c´roa em Portugal.
A nova fidalguia emergente,
agora com poder terratenente,
levou Duarte a impor a "lei mental"...

92- De italiana oriem, Perestrelo,
zarpou p´ra Porto Santo, do Restelo,
a comandar navios com mestria.
Chegou a donatário desta ilha,
casou com Isabela, teve filha,
Filipa a desposar Colombo um dia.


93- Afonso Quinto é ainda uma criança
que tem no tio Pedro a segurança,
regente que mantém à sua beira.
Urdidas são p´lo conde de Barcelos,
intrigas contra Pedro, quais libelos,
levando à malfadada "Alfarrobeira"...


94- Os lusos nautas são incentivados,
daí os novos mundos logo achados,
a Mina, Cabo Branco, Cabo Verde,
"Bom Ano",Senegâmbia, S.Tomé...
domínio de Castela intenta até,
no Toro,essa ilusão depressa perde...


95- Para animar as tropas se exigia
medida a enaltecer a valentia
que o Toro estremecera com fragor.
Mitificou-se então "O Decepado",
Duarte Almeida, alferes dedicado,
oficial bandeira portador...


96- "O Príncipe Perfeito", D.João,
catorze anos ao leme da nação,
visando reforçar poder real.
Em Cortes ouve em Évora o seu povo,
fazendo Inquirições p´ra achar de novo
grandeza do seu reino, Portugal...


97-Impulso às Descobertas tem alento
na força, no engenho e no talento,
de Bartolomeu Dias que dobrou,
o Cabo das Tormentas ou Esp´rança
levando ao caminho da abastança
que a Mina com o ouro iniciou...


98- Prepara-se uma armada para Gama
que havia de gerar riqueza e fama
e D.João, por morte,não veria.
Colombo,o genovês, à c´roa lusa
pediu apoio que esta lhe recusa
por não ver, no projecto,garantia...


99-No nauta a persistência é uma aposta
que o leva até à Espanha co´a proposta,
aceite sem reservas, quem diria...
Persuasão, a arma utilizada?
palpite,sorte,crença, a forma achada?
certeza, foi a América um dia...


100-Em busca da fusão peninsular,
o rei fez primogénito casar
co' a infanta Isabel, de Espanha herdeira.
Efémera ilusão, prazer fugaz
que a queda de um cavalo luto faz
e Afonso se apagou dessa maneira...

Manuel Maia

[Continua]

[Fixação / revisão de texto: L.G.]


____________


Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores do Manuel Maia:

2 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4274: Blogpoesia (43): A história de Portugal em sextilhas (Manuel Maia)

3 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4278: Blogpoesia (44): A história de Portugal em sextilhas (II Parte) (Manuel Maia)

(**) Vd. poste de 4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3405: Efemérides (12): Nuno Álvares Pereira, um dos primeiros Portugueses em África (José Martins)

Foi canonizado como São Nuno de Santa Maria em 26 de Abril de 2009:
Vd. site oficial da Comissão São Nuno de Santa Maria

Guiné 63/74 - P4289: O Nosso IV Encontro Nacional, Ortigosa, Monte Real, 20 de Junho de 2009 (4): Preços da ementa e dormidas (J. Mexia Alves)

IV ENCONTRO NACIONAL DA TERTÚLIA DO BLOGUE LUÍS GRAÇA & CAMARADAS DA GUINÉ, DIA 20 DE JUNHO DE 2009, QUINTA DO PAÚL, ORTIGOSA, MONTE REAL, LEIRIA

1. Mensagem de J. Mexia Alves, o organizador do IV Encontro (Ronco) da Tertúlia, com data de 5 de Maio de 2009:

Meus caros

Aqui vai a ementa para o almoço. Saliento que o valor inclue o lanche.

Quanto às dormidas na Pensão Santa Rita [, Rua Leiria 35, Monte Real
2425-039 MONTE REAL], temos valores iguais aos do ano passado, ou seja:

Duplo - 45,00€
Single - 35,00€

Fico à espera de decisões, quanto a este assunto.

Abraço amigo
Joaquim Mexia Alves


EMENTA PARA O ALMOÇO DO IV ENCONTRO DA TERTÚLIA

APERITIVOS/ENTRADAS


Martinis; Porto sêco; Moscatel;
Vinho Tinto; Vinho Branco;
Vinho Verde; Vinho Rosé;
Aguas; Refrigerantes; Cervejas;
Espumante Natural

Mimos de Bacalhau;
Rissois;
Croquetes;
Chamussas;
Moelas de frango campestre;
Tacho de Entrecosto regional c/ Castanhas;
Espetadinhas de Morcela e chouriço
Grelhados à Camponês
Leitão assado à Bairrada
Presunto fatiado c/nacos de frutas;
Fritada à moda da região;
Azeitonas
Queijos de várias regiões de Portugal
Paios de Lamego
Pãezinhos Regionias; Pão integral; Broa; Pãezinhos c/ frutos secos
Miniaturas de Pastelaria


AGORA À MESA

SOPA
Sopa de Legumes ou...

CARNE
Assado de Novilho com molho do assado e cogumelos frescos

SOBREMESAS
Cabaz c/6 Doces Tradicionais
Frutas Laminadas

BEBIDAS
Vinhos DOC/Vinho Verde em Buffet
Águas
Refrigerantes
Café c/bombom
Centro de Miniaturas

LANCHE

Caldo Verde
Frutas Laminadas
Pastelaria Variada
Mesa de Queijos
Franguinhos churrasco
Picanha Churrasco
Fritas/Saladas
Presunto Laminado
Pãezinhos Regionais/Broa

Por Pessoa - 30,50 €uros


DORMIDAS NA PENSÃO SANTA RITA

Duplo 45 €uros
Single 35 €uros

2. Comentário de CV:

Caros companheiros, são estes os preços para este ano. Sendo que as dormidas não sofreram alteração, como salienta o camarada Mexia Alves, o almoço sofre um agravamento de 1,5 €uros. Julgo não ser significativo, apesar de tudo.

Face a estes novos dados, espero a vossa inscrição.

Entretanto, como já repararam, a lista dos inscritos encontra-se afixada na nossa página (coluna do lado esquerdo) e será actualizada sempre que houver alteração. Se alguém que se tenha inscrito, não aparece nela, por favor alerte para o facto.

As inscrições devem ser feitas para mim, Carlos Vinhal, concentrando assim toda a informação num só local e pessoa.

Quando se inscreverem, digam sempre o nome da vossa bajuda, de onde se deslocam e, caso precisem, peçam a reserva para a dormida.

Ficaremos, os que assim quiserem, na Pensão Santa Rita, a mesma do ano passado. As instalações são razoáveis e tem parque privativo para o carro.

Como aconteceu em anos anteriores, os tertulianos poderão fazer-se acompanhar de outros camaradas não pertencentes à nossa Tertúlia. Todos os ex-combatentes da Guiné serão bem-vindos.

Para os mais distraídos fica a informação de que o IV Encontro será no mesmo local do III, realizado o ano passado, em Ortigosa, Monte Real, Leiria, e o Restaurante (Quinta do Paul) será o mesmo.

Quinta do Paúl, Actividades Turísticas

Mail: info@quintadopaul.com

TEL 244 613 438 FAX 244 613 703 Telemovel 917 210 432

Sítio na Net: http://www.quintadopaul.com/
__________

Notas de CV:

Vd. postes de:

14 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4186: O Nosso IV Encontro Nacional, Ortigosa, Monte Real, 6 de Junho de 2009 (1): Abertura das hostilidades (Editores)

18 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4210: O Nosso IV Encontro Nacional, Ortigosa, Monte Real (2): Mudança de planos (Editores)

29 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4267: O Nosso IV Encontro Nacional, Ortigosa, Monte Real, 20 de Junho de 2009 (3): Primeira lista de inscritos (Editores)

Guiné 63/74 - P4288: Espelho meu, diz-me quem sou eu (1): Joaquim Mexia Alves




















Guiné > Três fotos do Alf Mil Op Esp J. Mexia Alves : uma na altura da partida (em finais de 1971); e duas, passados uns meses, em 1972, já no comando do Pel Caç Nat 52, uma tirada no Mato Cão, na margem direita do Rio Geba (Estreito) e outra numa visita a Bambadinca, sede do Sector L1, Zona Leste. O Mexia Alves esteve 24 meses no CTIG, de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973.

Recorde-se que o nosso camarada (ou camarigo, como ele prefere) pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e, por fim, na CCAÇ 15 (Mansoa). A CART 3492 pertencia ao BART 3873 (Bambadinca, 1971/74). O Pel Ca Nat 52 estava igualmente às ordens do comando do Sector L1 (*).


1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves, com data de ontem:

Ao ler/ver o post 4280 do Magalhães Ribeiro, (Rangers...Ya!), veio-me à ideia uma nova série de postes muito simples, que até podiam nem ter texto.

Refiro-me a fotografias na partida para a Guiné em comparação com fotografias da chegada, ou de alguns meses passados no "teatro de operações", ("engalinho" com esta expressão).

Se acharem por bem, aqui vão três fotografias, uma da partida e duas passados uns meses no comando do Pel Caç Nat 52, uma no Mato Cão e outra numa visita a Bambadinca, sede do sectoir L1, Zona Leste. É escolher uma das duas do "depois".

Mais uma abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves


2. Comentário do L.G.:

Joaquim: Apoiado!... Até sugiro um título para a série: O que fizeram de nós... Ou: O que fizeram de ti, rapaz ? Ou então: Metamorfoses... Ou: (Trans)formações: Ou ainda: Tão meninos que nós eramos... Ou ainda: Espelho meu: Diz-me quem sou eu...

Que achas, Joaquim ? Eu prefiro o último... Na Guiné não me via ao espelho. Voltei a ver-me, no regresso, e não me reconheci... Aliás, a última barba que fiz, fi-la na Guiné, como eu costumo dizer, para explicar o estranho hábito, hoje obsoleto, fora de moda, de usar barba, desde Março de 1971...(Começou por pêra, ainda em Bambadinca, com o afrouxamento da disciplinar militar, fenómeno inexorável apesar dos esforços patéticos do senhor major Anjos de Carvalho, até se cansar de andar com o RDM em punho, ameaçando bichos e homens).

Na realidade, nos três anos de tropa e de guerra por que passámos, operou-se uma série de transformações: a nível físico, mental, psicológico, social, cultural... Muita coisa mudou nas nossas vidas... Umas mais visíveis (como o aspecto físico: emagrecemos, chegávamos a perder 1, 2 e 3 quilos em operações...), outras menos visíveis (como a sanidade mental)...

Os outros (amigos, pais, irmãos, namoradas, noivas, mulheres, colegas de trabalho...) foram os primeiros a dar conta, quando fomos de férias ou regressámos de vez, "sãos e salvos"... Só depois disso é passámos a olhar para o espelho...

Vamos pedir à malta para juntar as duas/três fotos do antes e do depois com uma uma "observação ao espelho".Façamos a nossa austoscopia (s. f., Exame ou auscultação de si próprio).

Quanto ao texto, gosto sempre de um legenda, mesmo que curta...

Um abraço. Luís


PS - Lembrei-me de um poema que há tempos publiquei no meu blogue de poesia, e que tomo a liberdade (ou a insensatez) de aqui reproduzir (com algumas alterações, a começar pelo título):

Abril 15, 2009 > Blogantologia(s) II - (78): A guerra como forma (heróica) de suicídio... altruista

De cordeiro a lobo, a metaformose

Quem terá sido o grafiteiro
(avant la lettre)
que escreveu:
"Em Mueda, os cordeiros que chegam,
são lobos que saem" ? (**)

É um pensamento que é válido
para todas as situações de guerra.
E a guerra é uma situação-limite.
Os jovens, quase imberbes,
os meninos de sua mãe
(como diria o grande Pessoa),
que chegam à frente de batalha,
ainda são cordeiros,
inocentes,
virgens,
imaculados...
O horror e a violência da guerra
irão transformá-los em lobos,
em duros,
em violentos,
em conspurcados...
Não necessariamente predadores,
assassinos,
criminosos...
(que é o estereótipo
que o ser humano ainda guarda
do pobre do lobo mau!)...

Mas há, seguramente, uma perda de inocência:
não foste para a Guiné
e vieste de lá impunemente,
igual...
Não eras mais o mesmo,
o expedicionário que partiu no Niassa,
e o veterano que regressou no Uíge.
Os teus amigos e familiares deram conta disso:
já não eras o mesmo,
nunca mais foste o mesmo...

Acho que é isto
que o inspirado autor do mural de Mueda quis dizer.
É claro que há também aqui
a dose habitual de bravata e de fanfarronice:
é uma frase de caserna para intimidar
os checas,
os piras,
os maçaricos,
os novatos...

Também os militares, profissão de risco,
têm a sua ideologia defensiva,
as suas crenças,
os seus talismãs,
os seus mesinhos
(usavam-nos os guerrilheiros
na Guiné,
em Angola,
em Moçambique,
não obstante a sua formação racionalista,
marxista-leninista,
dita revolucionária)...
A bravata e a fanfarronice,
além das praxes e do álcool,
ajudavam-nos, a todos nós,
a lidar com o medo,
as situações-limite,
o risco,
a morte,
o sofrimento, físico e moral,
a impotência,
o desespero…

Não há, nunca houve,
super-homens,
super-heróis:
há apenas deuses,
que inventámos,
à nossa imagem e semelhança,
e para quem transferimos
qualidades e defeitos humanos...
Deuses que inventamos todos os dias…
Precisamos dos mitos,
das lendas,
da efabulação,
do imaginário,
do pensamento mágico,
mesmo sob a roupagem (frágil e enganadora)
da ciência e da tecnologia.

Daniel Roxo deve ainda funcionar,
para os nostálgicos do paraíso perdido do apartheid
(Moçambique, Rodésia, África do Sul...),
como o Che Guevara
que também funciona, ainda,
como um ícone,
tanto para os jovens sem ideologia de hoje,
como para os cotas,
os seus pais e tios,
os velhos revolucionários românticos
que queriam, nos anos 60 e 70,
incendiar o mundo,
criando um, dois, três, muitos Vietnames!...

Há homens que são incapazes de deixar de combater...
Mesmo, no limiar da decadência física,
a adrenalina da guerra
é mais forte que a razão...
É um pulsão quase irresistível.
O que terá levado este
e outros compatriotas nossos
a alistar-se nas forças especiais
do regime racista da África do Sul
e a morrer em Angola
por uma pátria que não era a sua ?
Poderei perguntar o mesmo pelos cubanos
que morreram em Angola (mas também na Guiné).
Dir-me-ão que lutavam
por um mundo em que acreditavam,
por uma bandeira,
por uma causa que era a sua razão de vida,
e não apenas por um punhado de dólares,
como nos filmes do Oeste da nossa infância...
Mesmo os mercenários de guerra
não matam nem se deixam matar por dinheiro...
Pura e simplesmente recusam admitir
que estão velhos e acabados...
Sou céptico,
nem optimista nem pessimista:
o ser humano é motivacionalmente muito complexo
e manipulável
e moldável…
Creio que a guerra também pode ser viciante,
havendo homens que nela entram
e dela nunca mais saem...
A guerra pode ser uma forma (heróica) de suicídio...
altruista.

_________

Notas de L.G.:

(*) Da vasta e sempre apreciada colaboração de Joaquim Mexia Alves, aqui fica uma selecção:

7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1056: Estórias avulsas (1): Mato Cão: um cozinheiro 'apanhado' (Joaquim Mexia Alves)

12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)

2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1912: Um buraco chamado Mato Cão (Nuno Almeida, ex-mecânico de heli / Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 52)

25 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1997: Álbum das Glórias (22): O Alf Mil Pires, cmdt do Pel Caç Nat 63, em Mato Cão, na festa do meus 24 anos (Joaquim Mexia Alves)

15 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2179: Fado da Guiné (letra original de Joaquim Mexia Alves)

19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2364: O meu Natal no mato (5): Mato Cão, 1972: Com calor, muito calor, e longe, muito longe do meu clã (Joaquim Mexia Alves)

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2631: Dando a mão à palmatória (5): Recado para uma ida à Guiné (Joaquim Mexia Alves)

30 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2701: Blogpoesia (10): Olhando para uma foto minha, no Mato Cão, ao pôr do sol, com o Furriel Bonito... (Joaquim Mexia Alves)

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)

19 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2961: O Nosso III Encontro Nacional, Monte Real, 17 de Maio de 2008 (11): Às vezes dá-me umas saudades da Guiné... (J. Mexia Alves)

1 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3261: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (7): o meu amigo e conterrâneo Jaime Brandão (J. Mexia Alves)

26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3940: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (2): J. Mexia Alves, ex-Alf Mil (Xitole, Mato Cão, Mansoa)

6 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4146: Parabéns a você (3): No dia 6 de Abril de 2009, ao camarigo Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp, Guiné 1971/73 (Editores)


(**) Vd. postes de:

6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1933: Questões politicamente (in)correctas (30): os cordeiros e os lobos de Mueda ou a adrenalina da guerra (Luís Graça)

6 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2032: Estórias de vida (4): Ainda sobre o meu irmão, o Srgt Mil Sérgio Neves, que foi amigo em Moçambique de Daniel Roxo (Tino Neves)

24 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2127: Estórias de vida (5): Sérgio Neves, meu irmão, um homem bom (Tino Neves)