Queridos amigos,
É facto que a paródia, a gargalhada e o dito inconveniente deixam de pé atrás todos aqueles que entendem que a guerra é um assunto muito sério, insuscetível de dichotes e paródias.
Facto é que a gargalhada saudável não se deixa impressionar por esses espíritos que exigem uma associação clara e perfeita entre a geografia da guerra e a panóplia de virtudes militares.
“Soldadó” é uma gema literária da literatura de guerra, sente-se quando se lê ou relê que já não se compadece com o figurino temporal, é uma derrisão que pertence ao melhor que a literatura de guerra produziu entre nós.
Um abraço do
Mário
Relendo uma obra-prima: Soldadó, por Carlos Vale Ferraz
Beja Santos
![](http://4.bp.blogspot.com/-mp0M2wDNZ0s/UuKIsrZExqI/AAAAAAAAz4s/Zs1W0t-m1_w/s1600/Soldad%C3%B3.jpg)
![](http://4.bp.blogspot.com/-IoCw5Q_1_ew/UuKIqg4iHrI/AAAAAAAAz4k/Uylv-L_7H9E/s1600/Carlos+Vale+Ferraz.jpg)
O nosso herói chama-se Fergusinho do Ó, não sabia ler nem escrever, era básico, mas não havia ninguém mais disponível do que ele: cangalheiro, sacristão, fiel de armazém, projecionista de filmes pornográficos, estivador e até piloto e guarda-costas de cíclicas excursões de prostitutas, vindas para animar os infortunados guerreiros.
Tudo se passa em Mueleka, um comandante recém-chegado promove uma reunião para apreciar o insólito caso do Soldadó. É este processo delirante que se vai desenovelando como portentosa comédia de costumes de corporação militar. Estão presentes o tenente-coronel, comandante de Mueleka, o segundo comandante e mais uma data de gente, como é o caso do narrador. O comandante quer tudo em pratos limpos, ao capitão Gorgulho cabe as primícias, Fergusinho do Ó nasceu em Cabeça Seca, terra de hereges, lá no ermo nortenho. O Soldadó foi apurado para as fileiras se bem que completamente blindado de inteligência, coube-lhe como escola o Regimento de Infantaria 13. Ficou demonstrado que não lhe podiam entregar uma G3, o Soldadó, por artes mágicas, disparava em todas as direções, só a boa sorte evitou acidentes mortais, foi assim que o reclassificaram em soldado básico, não sentiu qualquer pesar, depois foi mobilizado para a guerra.
Passo a passo, o Soldadó aparece associado a peripécias descomunais: durante uma missa campal deitou no cálice da consagração bagaço da intendência, o capelão contorcia-se de sufocação, com a goela em chamas. O tenente-coronel mais congestionado fica com a descrição das gentes de Cabeça Seca, a chegada das putas de Kampuka e a missão do Soldadó em receber as verbas pela prestação de serviço, controlando os tempos da mesma. A trama narrativa é uma delícia e não deixa desfalecer o leitor, à volta daquele tenente-coronel desfilam oficiais e sargentos de vária ordem, cada um é mais hílare que o outro, a facécia seguinte é mais divertida e descomposta que a anterior. Os testemunhos prosseguem, é preciso descobrir-se como é que o Soldadó está prestes a acabar a segunda comissão em Mueleka, querem fazer do Soldadó um herói e acabam por descobrir esta terrível irregularidade que em termos de justiça militar vai custar uns bons castigos a uma certa hierarquia negligente.
O Soldadó impôs-se, não há missão em que não se revele imprescindível e não dê bom andamento ao serviço, já zelou pelas meninas que visitam regularmente o quartel, foi cangalheiro, é exemplar como fiel de armazém, eis senão quando uma visita à habitação do Soldadó revelou algo de surpreendente: aqui se descobriram fios de ouro e de prata, carteiras todas limpas de dinheiro, algumas contendo fotografias de familiares, enfim, coisas que o soldado achara um desperdício irem para o fundo da terra numa urna de pinho, havia até mesmo dinheiro enrolado em notas o que indiciava que o Soldadó também descobrira as delícias com as meninas vindas de Kampuka. E não menos impressionante foi descobrir-se uma metralhadora HK, uma caixa de cinco dúzias de granadas de mão, uma G3, uma faca de mato e uns binóculos que ninguém soube como tinham ali ido parar. Acontece que este material terá tido muita utilidade quando começou um misterioso ataque a Mueleka, saiu do quarto, disparou infatigavelmente até ser ferido por um estilhaço.
Aquele ato veio mesmo a calhar, Mueleka estava nesse dia a ser visitada pelos altos comandos, aquele herói dava jeito, ainda por cima o general tinha ouvido o farto fogachal, o comandante viu ali a boa circunstância para conquistar uma medalha. Iniciado o processo para a condecoração, descobre-se que o soldado anda por ali há quase duas comissões, desaparecera a nota de substituição, ninguém deu por nada quanto à falta de rendição do Soldadó. Voltara-se o feitiço contra o feiticeiro. Quem fez o relatório do foguetório descobriu que este fora uma brincadeira combinada entre a companhia de caçadores e a artilharia para assustar o general e os oficiais do Estado-maior. O comandante tudo ouvia, já com os olhos revirados e exigiu que constasse que a guarnição de Mueleka sofrera um violento ataque do inimigo, do qual resultara um ferido e danos em instalações. E foi perentório, quem afirmasse o contrário iria a tribunal militar por traição. Atendendo ao tempo de serviço, disseram-lhe que iria rapidamente para casa, ele opôs-se: “Meu alferes, eu fico cá e o exército escusa de mandar vir outro soldado da metrópole para me substituir!”. Quis o destino cruel que a história, até agora pícara, tivesse um desfecho truculento, mesmo o comportamento dos soldados obedientes é imprevisível, e depois do que aconteceu o comando, oficiais e sargentos estavam radiantes, não percebiam a dor daquele Soldadó que se afeiçoara, de alma e coração, a Mueleka.
É uma novela espantosa, este “Soldadó”, pela arquitetura da irreverência, pela graça transbordante, pela galeria de gente pícara. Não dá para entender o silêncio à volta desta obra-prima, tão necessitada está de reedição.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 22 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12622: Notas de leitura (555): “Magrheb/Machrek – Olhares luso-marroquinos sobre a Primavera Árabe”, por Raul M. Braga Pires (Francisco Henriques da Silva)