quinta-feira, 23 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25554: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (44): Premonição



"A MINHA IDA À GUERRA"

João Moreira


PREMONIÇÃO

A CCAV 2721 chegou à Guiné em 11 de Abril de 1970.
Foi colocada em OLOSSATO, na região do OIO, próximo da famosa base do MORÉS.

Ao longo da nossa permanência no Olossato os nossos soldados começaram a dizer que a nossa Companhia ia para Nhacra.
Era muito bom, porque em Nhacra não havia guerra.

Este boato começou a correr mais ou menos em Junho, ou seja 2 meses após a nossa chegada.
Nós, graduados, dizíamos-lhes para não acreditarem nisso e não criarem falsas ilusões.

- "QUANDO A ESMOLA É GRANDE O POBRE DESCONFIA". Mas, de 2 em 2 meses lá voltavam os soldados a dizer que a Companhia ia para Nhacra.

Apesar de nós, graduados, continuarmos a dizer-lhes para não acreditarem, eles insistiam.
E o boato ia-se repetindo de 2 em 2 meses.
E em Abril de 1971, num domingo de Páscoa, confirmou-se que a CCAV 2721 ia para Nhacra.

O capitão estava de férias e a Companhia era comandada pelo Alferes Salgado.

Eram cerca das 4 horas da tarde e o alferes Salgado apareceu de jeep em frente ao bar de oficiais e sargentos e convidou-me para o acompanhar na visita que ia fazer à tabanca.

Passado pouco tempo informou-me que tinha recebido uma mensagem a dizer que a Companhia ia para Nhacra.

Trocamos comentários acerca da persistência dos soldados que de 2 em 2 meses não deixavam de afirmar que a Companhia ia para Nhacra, onde NÃO HAVIA "GUERRA".

A chegada da CCAV 3378 em 13 de Maio foi a confirmação da nossa ida para Nhacra.

Em 31 de Maio foram 2 GComb e parte do comando e especialistas da Companhia para Nhacra.
5 de Janeiro de 1972 > João Moreira junto à piscina de Nhacra

Ficaram os 2.º e 4.º GComb para fazermos a sobreposição à CCAV 3378.

O resto da Companhia foi no dia 9 de Junho para Nhacra e sofremos um ataque, após termos instalado os soldados nas futuras instalações do Posto Retransmissor da Emissora Oficial da Guiné.

Íamos para Nhacra - ONDE NÃO HAVIA GUERRA - e fomos recebidos com um ataque.


(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 16 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25531: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (43): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Sobreposição à CCAV 3378

Guiné 61/74 - P25553: Viagem a Timor: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte III: uma igreja ou uma escola ? está decidido, vamos construir uma escola


 
 Tmor > Dili  > 2018 > Festa de noivado (barlak)


Foto (e legenda): © Rui Chamusco (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Timor > Liquiçá > Manati > Boebau > 2019 > Visita do Ministro Provincial dos Capuchinhos à Escola de São Francisco de Assis (ESFA) (inaugurada em 19 de março de 2018).  Em segundo plano, do lado esquerdo, vê-se o nosso amigo Rui Chamusco a tocar viola (ele é o homem dos sete instrumentos, toca tudo, do violino à gaita de foles, do acordeão ao órgão). 

Foto (e legenda): © Capuchinhos (2019). Todos os direitos reservados. [Edição  e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Rui Camusco e Gaspar Sobral (2017)

1. Continuação da publicação das crónicas do Rui Chamusco, relativamente à sua primeira viagem e estadia de dois meses em Timor-Leste (de 5 de maio a 7 de julho de 2016) (*).


O Rui Chamusco, nosso tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, a viver na Lourinhã. Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião). É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste.

A ASTIL irá construir e inaugurar, em março de 2018, a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo).

A primeira viagem do Rui a Timor Leste, em maio de 2016, foi exploratória mas é nessa altura que ficará decidido construir-se uma escola nas montanhas de Liquiçá, em Manati / Boebau. Nesta viagem (e estadia de dois meses) , fez-se acompanhar do luso-timorense Gaspar Sobral, outro histórico da ASTIL, que há 38 anos não visitava a sua terra natal. Em Dili eles vão ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral. Acompanhamos também o dia a dia desta família, que vive no bairro Ailoc Laran.

Dessas crónicas de 2016, sob a forma de diário, decidimos publicar a maior parte dos apontamentos, dado o interesse documental que nos parece ter para os nossos leitores que, como nós, ainda sabem pouco da história, da geografia, da cultuare  e dos usos e costumes  dos nossos amigos e irmãos timorenses.


Viagem a Timor: maio/julho de 2016 - Parte III:    uma igrela ou uma escola ? está decidido, vamos construir uma escola

por Rui Chamusco


(Continuação)

Dia 23 de maio de 2016, segunda feira  – Carta aos amigos



Desde Timor: Se outros calam, falemos nós...

Amigos, venho de chegar das montanhas de Liquiçá onde estive uns dias em contactos e a conhecer a realidade para a implantação da escola em Timor - Projeto de solidariedade.

Como em todo o lado, o interior é esquecido enquanto não houver negócios interesseiros que explorem os recursos e as pessoas. Muita pobreza. mas muita vontade de progredir. 

A estima por Portugal e pelos portugueses é algo que nos surpreende pela positiva, um valor que é transmitido às gerações mais novas constantemente. Como é que nos confins do mundo, nas montanhas timorenses, encontramos tanto interesse pela língua portuguesa? Estão-se a imaginar eu e o Gaspar a tocar o acordeão e a cantar canções portuguesas e a ser acompanhados, mesmo sem saber o que cantam, por crianças e adultos timorenses?.

Em Boebau / Manati há 110 crianças que vão à escola, mas há 300 que não vão devido às distâncias e às dificuldades do caminho. Sabem o que representa andar duas a três horas a pé para frequentarem uma escola? 

A decisão de construir uma pequena escola em Boebau está tomada depois de uma reunião com os interessados locais, pais das crianças, chefe do suco (presidente da Junta de Freguesia) e os promotores da obra (Gaspar Sobral e Rui Chamusco). 

Esperamos ser inaugurada em Janeiro de 2017, início do ano letivo em Timor. [Na realidade, só um ano depois, em 2018. LG]
 (...)

Dia 24 de maio de 2016, terça feira

Depois de confirmar com o Pe. Fernando, resolvi aproveitar a boleia para ir com eles a Laleia e Cai-rui onde vai ser inaugurada (benzida) uma nova igreja, construção promovida pelos Capuchinhos de Laleia, particularmente obra do Frei Hermano Filipe. Uma obra de arte fruto de um grupo de artistas portugueses (arquiteto, professor de artes, trabalhadores da empresa de Paredes).

Depois de mais ou menos duas horas e meia de caminho. chegamos a Laleia, terra natal de Xanana Gusmão, onde se faz sentir uma forte presença dos Capuchinhos graças aos seus serviços religiosos e sociais. Ao visitar a comunidade senti-me como se fosse em casa. Tudo me era familiar. Não admira pois vivi tantos anos este estilo de vida!...

Para surpresa de D. Basílio apareci na sala onde estava reunido com o seu colega australiano D. Michael e o frei Filipe a preparar a cerimónia da inauguração. Levantou-se, dei-lhe um abraço e disse-lhe: "Eh pá, está mesmo velho!" Ao que ele retorquiu: "Olha e tu, estás todo branco!"...

Ganhei eu porque quem estava todo vestido de branco era ele,  devido à batina desta cor.

Em Cai-rui foi um dia de festa grande. Com muitas cerimónias oficiais (chefes de suco, liurais, representantes, delegados, autoridades, discursos, etc…etc….). Uma representação clara de uma sociedade de classes clero, nobreza e povo. Aqui, ainda é assim. E ninguém tente pensar doutra maneira. Valores tradicionais ou outras coisas?
[ Antes da administração portuguesa, Timor-Leste era composto por vários reinos, divididos por vários sucos e povoações. Estes reinos eram governados por régulos, designados por liurais. Fonte_ Wikipedia. LG]
 
A mim o que me encheu a alma foram as músicas, as danças, o empenho e dedicação deste povo. Parabéns a Cai-rui, parabéns aos Capuchinhos, parabéns a Laleia. Que sejam felizes…

Dia 26 de maio de 2016, quinta feira - Carta aos amigos


Hoje, dia do Corpo de Deus também em Timor, dou comigo a pensar neste profundo mistério da fé: um Deus presente em realidades humanas. O pão e o vinho transformados em corpo e sangue de Cristo.

 Crentes ou não, temos de respeitar e de venerar este santíssimo sacramento que se expressa em procissões e outras manifestações de fé. Mas não posso deixar de pensar nestes corpos franzinos de crianças que pedem ajuda para o seu desenvolvimento. A razão principal da nossa vinda a Timor foi tomar consciência desta realidade de modo a podermos ajudar o que nos for possível.. A construção da escola em Boebau vai ser uma realidade que, em janeiro próximo, queremos inaugurar.

Irá começar com uma turma de 30 crianças, a cargo de um professor timorense que já lecionou também o português, e ao qual teremos de pagar um ordenando de 250 dólares por mês. Depois, conforme as possibilidades, tentaremos alargar a nossa ação uma vez que há mais de 300 crianças em Boebau /Manati que não frequentam a escola devido às dificuldades de deslocação. A pé são mais ou menos 5 horas por dia, o que torna dificílima a frequência escolar.

Outro programa complementar será o apadrinhamento de crianças, de modo a sustentar o desenvolvimento das crianças apadrinhadas. É um processo fácil de concretizar pois não há leis que nos condicionem, e que poderá ser uma alavanca importantíssima para o desenvolvimento.

Da minha parte já dei o passo e estou a acompanhar Adobe, uma menina de 9 anos,  que, para felicidade dela e dos pais, frequenta uma escola onde pode aprender o português.

Caros amigos,  se puderem e quiseram ajudar não hesitem. Pouco custa e faz a diferença. Estamos a formalizar o programa de ajuda: O contributo monetário será bem vindo mas confesso que o apadrinhamento de uma criança me entusiasma. O dossiê com a ficha de dados de crianças necessitadas do nosso apoio está a ser elaborado e penso podê-lo apresentar na primeira quinzena de julho. Apelo desde já à vossa generosidade.

Diz a canção brasileira: “Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas, nas mãos que sabem ser generosas”. Diz o povo: ” Quem dá aos pobres empresta a Deus”. Então comecemos a preparar o nosso futuro e a ganhar pontos para a eternidade. (...)

Dia 27 de maio de 2016, sexta feira - As contingências dos pobres

Há dois dias que não há abastecimento de água. O bairro Pité, local onde moramos durante a nossa estadia em Dili, é um aglomerado de casas e floresta enorme que, apesar da proximidade da capital (arredores),  a maioria das casas não tem água corrente nem saneamento básico.

Esta é talvez a maior dificuldade de adaptação de um comum cidadão europeu. Mas tem que ser, e o que tem que ser tem muita força. Este bairro que foi tão castigado pelos indonésios, com casas incendiadas, pessoas mortas ou presas, construções arrasadas (ainda se vêm algumas) depressa se tornou uma referência para o bem e para o mal.

Sem vias de acesso condignas, com muita circulação de pessoas ( a pé, de mota, em microlete, de táxi ) está votado ao esquecimento dos poderes estatais. 

Em boa verdade vale a capacidade e o engenho de cada habitante que sabe desenrascar-se como ninguém. A água é abastecida tantas horas por dia, tendo os utentes de encher tudo o que seja depósito ou vasilha. Para os amantes de um bom duche com pressão não está nada fácil. 

A somar a estas privações, o costume dos orientais de não utilizarem papel higiénico mas sim lavagem do “sim-senhor”. [Rabo, traseiro, em certas zonas do país. LG]  . Tudo complicado para um ocidental todo bem lavadinho e bem penteado.

Ainda sobre o bairro Pité, há dias um amigo do Gaspar que trabalha no governo de Dili, e que combinavam a maneira de se encontrarem, perguntava ao telemóvel: "É seguro passar por aí?"...

Ainda dizem que não há “guetos”! Visitem estes mundos e depois tirem as vossas conclusões…

Dia 27 de maio de 2016, sexta feira - Histórias interessantes

O sargento Maurade era uma figura típica da região e, pelos vistos de Timor Leste. Dizem que foi o primeiro graduado de Timor pelo governo português. Fazia jus do seu posto, passeando o seu estatuto aqui pelas redondezas, sempre vestido impecavelmente, de botas e polainas bem engraxadas, impondo respeito e veneração. Muita coisa se conta desta personalidade ímpar. Relato apenas dois episódios:

(i) Conta-se que o sargento, como gente de alguns recursos e dando sinal de progresso, foi comprar quatro rádios, cada um já sintonizado em sua estação (rádio Timor, rádio Austrália, rádio Indonésia, rádio Portugal) ocupando os quatro cantos da sala. Sempre que queria ouvir notícias ou música de determinado país,  dirigia-se para o respetivo canto e era só ligar o rádio. 

Isto porque o sr. sargento não sabia sintonizar as emissoras.

(ii) Num determinado ano conseguiu ir passar algum tempo de férias a Portugal. Quando voltou, e face àacuriosidade dos amigos em saber notícias sobre a sua estadia em Portugal, o nosso homem contou: "Ei,  camarada! No Portugal eu vi carro cum carro, cum carro, cum carro…i muito carro!"...  

Com certeza que já adivinharam do que se trata. Pois é: um comboio!...

(iii) Não sei o seu nome,  mas houve um senhor que deixou de fumar pela seguinte razão: “ fuma, fuma cigarro preto, castanho e a gente não mija preto? Onde ficou a cor? Ficou dentro, a fazer mal”.

Dia 27 de maio de 2016, sexta feira– Festa de noivado (barlak)

Os costumes e as tradições de um povo são uma revelação da sua identidade. Ontem foi dia de festa no bairro Ailoc Laran, porque houve pedido de casamento. Festa rija e farta de tudo, em que os paladares, as músicas e as danças primaram em demasia. A potência elevada de decibéis destoava do conjunto harmonioso da celebração ritual.

De resto, foi um desfilar de surpresas: a chegada do noivo, o contrato entre famílias, os dotes ( não percebi se as duas cabras que a família do noivo trouxe já fazia parte dos dotes ), muitos convidados que chegam. O tempo de negociações foi longo.

Por fim, que seria o início, aparecem os noivos que sob aplausos ocupam a tribuna. O noivo coloca na noiva um colar (fio) de oiro, e a noiva investe o noivo com um tais (o tradicional cachecol timorense).

A festa continua com o repasto onde todos se saciam. Tudo come e tudo bebe menos os noivos que observam pacientemente o desenrolar do festim. Dizem que é assim, enquanto houver comensais que se servem. O que é certo é que eu, que estava de frente, não me dei conta que alguma substância tenha entrado nas sua bocas durante toda a festança.

Depois começou o bailarico , que ainda dura hoje, às 8h00 da manhã. Mais um postal ilustrado deste Timor que a cada dia nos surpreende, nos envolve, nos cativa…

Dia 28 de maio de 2016, sábado – visita à praia de Areia Branca

Atrás do mentiroso alfaiate, lá fui eu mais o Eustáquio de mota, que é o melhor transporte em Timor particularmente em Dili, à procura das fardas da Adobe. Mais uma vez a encomenda ficou a meio: uma estava pronta, a outra foi esquecida talvez por conveniência uma vez que já está paga. Mandaram-nos lá voltar de tarde para a levantar. Mas,  pelo sim pelo não,  vale mais só lá passar uns dias depois.

Aproveitando a viagem o Eustáquio quis me levar a conhecer um outro mundo, a praia de Areia Branca onde os grandes (políticos, empresários, figuras de relevo) têm as suas mansões. Uma zona muito bem cuidada, com bons parques, boas estradas, hotéis, restaurantes, tudo o que é bom. Vi e confirmo as boas condições de vida deste “quartier”.

Se for este o paradigma de um futuro Timor, tudo bem. Que as pessoas que aí moram o merecem, tudo bem. Mas para quem já viu tanta pobreza e tanta miséria noutros recantos da cidade, noutras terras de Timor,  o contraste e o choque é tão grande que interiormente me revoltam. Por que uns com tanto e outros com tão pouco?

Cá por mim, prefiro a praia da Areia Branca na Lourinhã, onde os parâmetros de sociedade são mais nivelados, o céu mais azulado e as águas mais frias. Alô, alô casa mia, a tantos milhares de quilómetros de distância…

Dia 28 de maio de 2016, sábado - “Senhor fazei de mim um instrumento da vossa paz”

De repente, sem que ninguém esperasse, o céu vira inferno, capaz de impressionar quem de mais estranho estava no local. Em ambiente de harmonia estava quase toda a família junta, quando os ânimos se alteram e começa a desordem, com tentativas de agressão, que se foi espalhando por todo o lado. Servi-me do meu estatuto de malaio, tentando acalmar os ânimos, segurando o exaltado Anô que, alterado pelas cervejas consumidas,  ameaçava o seu tio Eustáquio, chegando mesmo a vias de facto.

Vi cair grossas lágrimas da face do amigo Eustáquio. Por isso, agi de imediato interpondo-me entre ambos e levando o Anô para lugar mais calmo. Apesar de tudo consegui acalmá-lo, ficando o resto do tempo sentado a seu lado, prevenindo assim a situação. 

O Gaspar estava no descanso quando foi alertado para este cenário. Apareceu, falou, chamou a atenção para a vergonha do que se estava a passar, apelou ao sentimento de cada um para que a família não se separe. Muita gente chorava, tentando defender os seus.

Eu continuava de intermediário dos ânimos exaltados. Senti que estava a ser um instrumento de paz. Passadas algumas horas tudo estava tranquilo, penso mesmo que pacificado. A mim foram-me pedidas desculpas pelo que aconteceu, mas é ao ofendido que as desculpas devem ser dirigidas. É assim este povo: uma capacidade enorme de perdoar.

Como Francisco de Assis apetece-me dizer (rezar): "Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz. Onde houver ódio que eu leve o amor; onde houver ofensa que eu leve o perdão; onde houver discórdia que eu faça a união. Porque é perdoando que somos perdoados”. (...)

Dia 30 de maio de 2016, segunda feira – pequena festa de despedida do Benedito

O Benedito é um rapagão de vinte e tais anos que, embora não sendo filho da Benedita – é simplesmente afilhado – um dia apareceu em casa vindo da sua terra natal, e a partir daí passou a ser parte integrante da família.

Aqui em Timor é assim. O sentido de pertença e de laços familiares é tão forte que de um momento para o outro um agregado familiar pode passar de dez para quinze pessoas sem problema algum. Perdão, minto porque alimentar quinze bocas e não dez não é a mesma coisa visto que os rendimentos são os mesmos. Mesmo assim ninguém é rejeitado ou posto à margem.

A Benedita que é enfermeira, tem a seu encargo os filhos, que são 7 e este filho afilhado. Com um ordenado que não ultrapassa os 300 dólares mensais, vejam como pode governar esta casa. Daí que Benedito tenha decidido ir trabalhar para a Coreia do Sul. 

Esta pequena festa de despedida para a qual eu também fui convidado como fazendo parte da família, teve o condão da simplicidade e de dar um abraço de boa sorte a quem parte.

Dia 31 de maio de 2016, terça feira – O Gaspar teve que ir ao médico

Pois é, nem sempre as nossas opções são as melhores. Este teimoso resistiu até não poder mais. Por fim, pressionado por todos e particularmente por mim, aceitou ir ao médico porque já suspeitava ter a febre malária. Análises feitas, concluiu-se que não era a malária mas sim uma virose qualquer para a qual o médico receitou uma boa quantidade de medicamentos, inclusive antibióticos.

Estão a ver o Gaspar, sempre relutante em tomar qualquer tipo de medicamento químico, a ter de engolir durante o dia tantos comprimidos? Não sei a quem o hei de comparar se a uma criança ou a um velho rabugento que só abre a boca para falar. Irra que o gajo é chato! 

O que é certo é que a medicação está a dar bons resultados. Já nem parece o mesmo. E eu é que sou o fraco?!... Tem juízo, amigo!

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25546: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II - A caminho das montanhas

Guiné 61/74 - P25552: O Cancioneiro da Nossa Guerra (23): Os Gandembéis - Canto II, Estrofes de I a XVI (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)











Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (8 de abril de 1968 a 28 de janeiro de 1969) > Aspetos da dura vida quotidiano dos homens-toupeira, que tiveram de construir de raíz e defender, num curto espaço de tempo (inferior a nove meses), dois aquartelamentos, Gandembel e Ponte Balana. Total de ataques e flagelações: 372.  

De abril a maio foram ainda auxiliados pelos veteranos da CART 1689 / BART 1913 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69)... com quem, entre outras subunidades,  fizeram, por ex., a Op Bola de Fogo... Na última foto, já de janeiro de 1969, "uns dias antes do abandono de Gandembel/Balana [ em 28 de Janeiro de 1969] Spínola também viria cá despedir-se". Mas a primeira visita terá sido em 26 de maio de 1968. 

Fotos do notável álbum de Idálio Reis e seus camaradas.


Fotos (e legenda): © Idálio Reis (2007). 
Todos os direitos reservados. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 



1. Continuação da publicação de "Os Gandembéis", poema épico-burlesco, parodiando "Os Lusíadas", de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010), escrito em 1969, que retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana (*), recolhido e reproduzido pelo nosso camarada e amigo Idálio Reis, engenheiro agrónomo reformado, ex-alf mil at inf da CCAÇ 2317, no seu livro "A CCAÇ 2317 na guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana", edição de autor, s/l, 2012 (il, 250 pp.). (O livro é ilustrado por mais de meia centena de fotos dos arquivos do Idálio Reis e dos seus camaradas.) (*)


O lançamento do livro, uma peça fundamental para a historiografia da guerra colonial na Guiné, foi feita feito no Palace Hotel, em Monte Real, em 21 de abril de , no âmbito do VII Encontro Nacional da Tabanca Grande.(**)

Os Gandembéis > Canto II, Estrofes de 1 a XVI

 

Capa do livro do Idálio Reis



I
Em Gandembel, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas as vezes a morte apercebida;
No arame farpado, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida;
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida?
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno.

II
Dali para Changue-Iaia se parte (9)
Onde as tropas estavam temerosas
Para que à gente mande que se aparte
Da mata inimiga e terras suspeitosas
Porque mui pouco vale esforço e arte
Contra infernais vontades enganosas;
Porque na estrada rebentam fornilhos
E há mais noivas por casar e mães sem filhos.

III
Agora nestas partes se nomeia
Simões furriel, o africano Fome,
Coelho transmissões, que se arreia (9)
Das vitórias da Pátria sem nome.
Aqui, enquanto as minas não refreia
O soldado Pacheco fica informe.
Um braço do forte Quicão aparece
E o coração de todos, pela dor, escurece.

IV
Assim, nesta incógnita espessura
Para sempre deixámos os companheiros
Que, em tal caminho e em tanta desventura
Sempre connosco foram aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer negras terras, quaisquer outeiros
Estranhos, assim mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o Ilustre os ossos.

V
Mas o magriço, que já então lhe convinha
Tornar a Bissau, acostumado, (10)
Que tempo concertado e ventos tinha,
Para ir buscar o descanso desejado.
Recebendo o piloto que lhe vinha
Foi dele alegremente agasalhado;
Rapidamente no helicóptero entrou
E, sadicamente, c'o a mão ligada acenou.

VI
Jorge de Moura, o forte Capitão (11)
Que a tamanhas empresas se oferece,
De soberbo e altivo coração,
A quem a Cunha sempre favorece,
Para aqui se deter não vê razão,
Que sequiosa a terra lhe parece
Por diante passar determinava
E assim lhe sucedeu como cuidava.

VII
Tamanho o ódio foi e a má vontade,
Que ao soldado súbito tomou,
Sabendo ser sequaces da Verdade
Que o Filho de David nos ensinou.
Pois o Maia, com gana e virilidade (12)
Da companhia as rédeas tomou.
E foi assim, à base de mérito e favores
Que este se encheu de louvores.

VIII
Corrupto já e danado o mantimento,
Danoso e mau ao fraco corpo humano;
E, além disso, nenhum contentamento,
Que sequer da esperança fosse engano.
Cremos nós, se este nosso ajuntamento
De soldados não fora lusitano,
Que durara ele tanto obediente?
Porventura, o que será desta gente?

IX
Imagine-se agora quão cuidados,
Andaríamos todos, quão perdidos,
De fomes, de tormentas quebrantados.
Por climas e por terras não sabidos!
E do esperar comprido tão cansados
Quanto a desesperar já compelidos,
Por céus não naturais, de qualidade
Inimiga da nossa Humanidade.

X
Enquanto os deuses do QG famoso
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em jantar lauto e guloso
Formando um concílio indiferente;
Bebendo vinho fino e espumoso
Vão para a piscina conjuntamente
Convocados da parte do Melhor
Onde domina o Chefe do Estado Maior.

XI
E enquanto isto se passa na formosa
Ilha do Bissau omnipotente,
Defendia a terra a gente belicosa
Lá da banda do Guilege muito quente,
Entre a fronteira da Guiné e a famosa
Base de Salancaur, o sol ardente
Queimava então os homens, que Tifeu
C'o temor grande em heróis converteu.

XII
E o velho careca, de aspecto venerando,
Chefe da Secretaria, cheia de gente,(13)
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes o lápis, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que em nós em volta ouvimos claramente,
C'um saber só de guerras feito,
Tais palavras tirou do esperto peito:

XIII
Ó gloria de mandar, ó vã cobiça,
Desta vaidade, a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades nos soldados experimentas!

XIV
A que novos desastres determinas
De levar esta Companhia e esta gente?
Que perigos, que mortes lhes destinas,
Debaixo de algum louvor proeminente?
Que promessas de paz e de minas
Levantadas, que lhe farás tão facilmente?
Que vida lhes prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

XV
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o quartel amigo,
Se enfraqueça e se vá deitando ao longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor inteiro
De Gandembel, do Balana e do Carreiro. (14)

XVI
E tu, Comandante, de grande fortaleza,
Da determinação que tens tomada
Não olhes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se da cousa começada.
E mais, pois excedes em ligeireza
Ao vento leve e à bala bem mandada,
Não esqueças de defender o quartel
A que nós outros chamamos Gandembel.


(Continua)

(Revisão / fixação de texto: IR / LG)

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Notas de IR/LG:

(9) Referência ao trágico dia 4 de agosto de 1968 em que a CCAÇ 2317 perde, em combate, 4 dos seus elementos, na sequência de uma coluna logística, proveniente de Aldeia Formos, perto da ponte sobre o Rio Changue Iaia. 

Foram eles o fur mil at inf Abel Gomes Simões (natural de Montemor-o-Novo), o sold at inf António Pereira Moreira e o sold at inf Eduardo Costa Pacheco, ambos de Paços de Ferreira, e ainda o sold trms inf Manuel Roxo Coelho, natural de Castelo Branco. Morreu ainda um soldado do Pel Caç Nat 69 (referência no poema ao "africano Fome" ?). Há ainda dois feridos graves, que serão evacuados para Lisboa.

(10) "Magriço": referência a Spínola ou mais provavelmenet ao capitão (mais ausente que presente) da Companhia ?... De qualquer modo, no dia 26 de Maio [de 1968]  Spínola, ainda com poucos dias no cargo das suas funções de comandante-chefe, visita Gandembel logo pela manhã e sem qualquer aviso prévio.

(11) Cap inf Jorge Barroso de Moura,  hoje ten-general,  terá ficado estava longos períodos em Bissau por razões de saúde.   Parece haver um contencioso (uma "pedra no sapato") entre ele e os seus homens.  Na prática foi substituído pelo alf mil at inf Mário Moreira Maia, o segundo comandante da companhia. Já no fim da comissão, em Nova Lamego,  a Companhia teve um capitão do quadro, de nome Pinto Guedes, e que fora integrado ab initio na CCS, segundo informação do Idálio Reis.

(13) O chefe de secrataria era o o 1º srgt inf  António Conceição Martins.

(14) Carreiro: corredor de Guileje, corredor da morte (NT), "carreiro do Povo" (PAIGC)...



Guiné > Região de Tombali > Carta de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gandembel e Changue Iaia.
  
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

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Leiria > Monte Real > Palace Hotel > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande >  21 de Abril de 2012 > 

Sessão de lançamento do livro do Idálio Reis,  "A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné - Gandembel / Ponte Balana" >  Os seis magníficos (Ou "gandembéis") gandembelenses presentes na sala... Ao centro, o Idálio Reis que, juntamente com o Joaquim Gomes Soares (o da ponta direita), eram os únicos representantes da CCAÇ 2317. Os restantes representam outras subunidades que passaram por (ou intervieram em) na mítica Gandembel/Ponte Balana: da esquerda para a direita,   o Eduardo Moutinho dos Santos, ex-cap mil grad inf  (que comandou a CCaç 2381,  "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Buba, Empada, 1968/70),  o José Manuel Samouco, ex-fur mil armas espadas, também da CCAÇ 2381 (e natural de Torres Vedras), o Hugo Guerra (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, Gandembel, Ponte Balana,Chamarra e S. Domingos, 1968/70, hoje Cor DFA reformado, e que fazia anos nesse dia), o nosso Zé Teixeira, outro Maioral (que nos emocinou a todos, em 1 de março de 2008, na sentida homenagem que fez nas ruínas de Gandembel a todos os combatentes que ali, em pleno "carreiro" ou "corredor da morte" ( lutaram, morreram, foram feridos, sofreram, entre abril de 1968 e janeiro de 1969)... 

Esteve no encontro mas faltou à foto de grupo o José Ferreira da Silva (ex-fur mil op esp da CART 1689/BART 1913, CatióCabeduGandembel e Canquelifá, 1967/69)... Faltou também o Alberto Branquinho, que desta vez não pôde comparecer ao encontro. Faltou também, infelizmente para sempre, o João Barge (1944-2010)... Faltaram outros camaradas ligados à história de Gandembel, de 1968/69 (os páras do BCP 12, as enfermeiras paraquedistas, embora uns e outros estivessem representados, e bem,  no nosso encontro, etc.).

Foto (e legenda) © Luís Graça  (2012). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série >

21 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25547: O Cancioneiro da Nossa Guerra (22): Os Gandembéis - Canto I, Estrofes de XII a XXVII (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69

19 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25541: O Cancioneiro da Nossa Guerra (21): Os Gandembéis - Canto I, Estrofes de I a XI (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)

(**) Vd. poste de 27 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9813: VII Encontro Nacional da Tabanca Grande (16): Um momento alto: o lançamento do livro do Idálio Reis (Parte I): um abraço solidário para todos os nossos amigos guineenses, na pessoa do Pepito e do Cherno Baldé, nossos grã-tabanqueiros, que estão em Bissau... Um voto de esperança e de confiança no futuro da Guiné-Bissau!!!

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25551: Historiografia da presença portuguesa em África (424): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
O período versado neste apontamento, súmula da primeira e única história da Guiné existente corresponde ao período pós-Restauração, a presença portuguesa centrava-se em Cacheu e Bissau, teve companhias majestáticas, foram todas rapidamente ao fundo, fez-se fortaleza em Bissau, a terceira ainda está de pé. Como diz abertamente João Barreto, até ao trabalho admirável de Honório Pereira Barreto, a Guiné está praticamente esquecida, pesa o comércio estrangeiro, os franceses e ingleses afrontam-nos, a França pretendeu mesmo fazer uma fortaleza em Bissau, a Grã-Bretanha queria mais terreno entre a Gâmbia e a Serra Leoa. Barreto relata a verdade dos factos, uma decadência em que a própria tropa era fretada entre criminosos e degredados. Convém não esquecer que a Guiné até ao século XIX vivia primordialmente do comércio do resgate, o mesmo é dizer do negócio da escravatura.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (3)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Este distinto facultativo viveu os últimos anos da sua vida em Lisboa, é praticamente certo e seguro que foi aqui que investigou bastante documentação e consultou ou adquiriu obras de referência. Foi cuidadosíssimo na diacronia, inicia o seu trabalho com o reconhecimento da Costa da Guiné, o processo de colonização de Cabo Verde e o modo de instalação no litoral da Guiné, deu-nos um quadro do domínio filipino e as suas dramáticas consequências, veio depois a resposta de D. João IV, numa tentativa de consolidar o pouco que nos ficara da Senegâmbia; Barreto também nos presenteia com o quadro dos estabelecimentos estrangeiros na envolvente. E assim chegamos à fundação da Capitania de Bissau e ao aparecimento da segunda Companhia de Cacheu.

Refere o autor que por volta de 1685 o porto de Bissau era um centro comercial de relativa importância, para onde começavam a convergir os produtos agrícolas e escravos do interior; a sua pequena população era constituída, além dos indígenas por comerciantes portugueses e alguns estrangeiros. Bissau principiara a formar-se nos fins do século XVI, aqui se fixaram alguns moradores de Cabo Verde, que tinham ao seu serviço um certo número de escravos, os seus serviçais passaram a ser conhecidos pela designação de Grumetes, designação que mais tarde se tornou extensiva a todos os naturais que, convertidos ao cristianismo, tivessem adotado nomes e apelidos portugueses. Não havia em Bissau um representante oficial, embora a população vivesse sob a bandeira portuguesa, e por essa razão os mercadores franceses envidaram esforços para ali construir uma fortaleza, tentativa que foi combatida pelo régulo do chão Papel. Em 1687, as autoridades portuguesas instalaram-se no porto de Bissau com o objetivo de a defender contra as pretensões dos franceses. Encontrou-se um expediente para pagar as obras da fortaleza, criou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde (recorde-se que a primeira Companhia de Cacheu tivera vida efémera). É um período em que, graças à presença do bispo, Frei Vitoriano da Costa, se estabelece um bom relacionamento com o régulo local, da etnia Papel, que aceitou batizar-se. Bissau passa a ter Capitão-Mor, a Guiné tem duas Capitanias, a de Cacheu e Bissau, na época Bissau fica subordinada a Cacheu. Constrói-se a primeira fortaleza de Bissau e começaram as hostilidades das populações da ilha. Haverá novas tentativas francesas de se apoderarem em Bissau, todas fracassaram, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde fracassa, extingue-se a Capitania de Bissau e a fortaleza degrada-se. Vive-se um período de decadência.

É nisto que o Governo de D. José I se interessa pela ocupação do rio Geba, decide-se criação de nova fortaleza em Bissau, o régulo inicialmente mostra-se agradado pela ideia, mas cedo começaram as hostilidades. A resposta de Lisboa foi enviar mais tropa, não faltaram criminosos e indesejáveis. As obras da nova fortaleza custaram muitas vidas, segundo João Barreto mais de mil vidas, vitimadas por doenças locais.

As companhias que iam aparecendo foram todas votadas ao insucesso, depois das de Cacheu, deu-se a dissolução da Companhia do Grão-Pará e Maranhão. E assim, em 1783, decidiu o Governo Central arrendar a cobrança dos rendimentos públicos a uma empresa particular, a Sociedade do Comércio das Ilhas de Cabo Verde. São tempos em que a nossa soberania na Costa da Guiné se circunscreve aos estabelecimentos de Ziguinchor, Cacheu, Farim, Bissau e Geba. Como escreve Barreto, ninguém mais voltara a pensar na ocupação do rio de Bolola, e foi assim que se extinguiu praticamente a nossa influência a Sul de Bissau. Iam-se estabelecendo colónias autónomas, sobretudo de negreiros.

Enquanto na região do Casamansa a França procurava instalar-se, os ingleses, que já tinham presença na Serra Leoa e no rio Gâmbia quiseram apoderar-se de Bolama, em 1792 desembarcou nesta ilha uma estranha expedição composta por 275 ingleses, a pretensão era criar uma colónia agrícola, comprar terrenos, empregar neles serviçais, livremente assalariados. Mas tudo correu mal, primeiro os indígenas de Bolama foram hostis, roubaram e raptaram, a maior parte dos expedicionários resolveram abandonar a empresa e regressar a Inglaterra, ficaram poucos ingleses que foram morrendo aos poucos. Mas a Inglaterra não desistiu de tomar Bolama, o Governo veio a alegar os seus direitos à ilha, fundamentando-se na tentativa da colónia que era dirigida por Philip Beaver e nos contratos feitos por este com os régulos de Canhabaque e Guinala.

Estamos chegados ao século XIX e João Barreto escreve:
“Tínhamos assente definitivamente a soberania entre os rios de Casamansa e de Bolola, com duas capitanias: em Cacheu e Bissau; mas os seus comandantes tinham de sustentar uma luta permanente contra três adversários: os indígenas vizinhos, as dificuldades financeiras e a indisciplina dos comerciantes e dos próprios militares a quem estava confiada a missão de manter a ordem.”

E conta-nos peripécias da pouca abonatória desordem na Capitania de Bissau:
“O Capitão José António Pinto, que tomara conta da Capitania em 4 de maio de 1793, vira-se obrigado a fugir para Geba, por causa da insubordinação dos soldados que o acusavam de violências. Seguiu-se-lhe, em 1799, o Capitão João das Neves Leão e pouco depois António Cardoso Faria, que em 1803 era vítima de um envenenamento. Para acudir ao abandono em que a Praça se encontrava, o Governo da metrópole convidou Manuel Pinto de Gouvêa, que já servira em Cacheu, a tomar conta da Capitania de Bissau.
O novo comandante embarcou em fevereiro de 1805, acompanhado de 150 condenados retirados do Limoeiro de Lisboa, aos quais, na vila da Praia se juntaram mais 80 criminosos de Cabo Verde. Com tais homens foi organizada a guarnição militar de Bissau, porque não havia soldados que se dispusessem a ir voluntariamente suportar as inclemências do clima, com a agravante de não receberem os seus soldos em dia.”


E João Barreto passa em revista uma série de revoltas em Bissau e Cacheu; começaram as restrições num comércio de escravos, minguavam os recursos financeiros, Bissau e Cacheu não ficaram de fora das lutas entre liberais e miguelistas. Vai ser criado um posto em Bolama, dá-se a ocupação da ilha das Galinhas, a Guiné conhece uma restruturação administrativa: implanta-se um regime de Prefeitura e o distrito da Guiné foi convertido a uma comarca, com sede em Bissau. 

É neste contexto de desmotivação, falta de recursos, de um quase total abandono missionário, de rivalidades até entre governadores, que Honório Barreto ascende ao comando, dá-se a invasão dos franceses no Casamansa, o governador natural da Guiné começa a adquirir parcelas que oferece à coroa portuguesa, a revolta dos Papéis é permanente, um presidente norte-americano profere sentença sobre Bolama a nosso favor, e eis que se dá o massacre de uma coluna de operações em 1878, e o Governo Central decretou a autonomia da província da Guiné, torna-se província.
Planta da Praça de S. José de Bissau em 1796
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Nota do editor

Último post da série de 15 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25528: Historiografia da presença portuguesa em África (423): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25550: Convívios (997): Rescaldo do Almoço / Convívio dos combatentes, e respectivas famílias, da CCAÇ 2796 ("Os Gaviões de Gadamael"), levado a efeito no passado dia 18 de Maio de 2024, em Fátima (Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf)


1. Mensagem do nosso camarada Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 (Gadamael e Quinhamel, 1970/72), com data de 21 de Maio de 2024, também com a notícia do Convívio da CCAÇ 2796, em Fátima

Encontro Anual CCAÇ IND 2796 “OS GAVIÕES” - Guiné 70/72

E foi mais um Encontro / Convívio, desta vez, nos arredores de Fátima.

E contámos com a disponibilidade e vontade de um número significativo de Amigos, alguns dos quais aproveitando para um fim de semana em Família, todos imbuídos de um espírito fraterno que não se desfaz, com o tempo.

E, ao mesmo tempo, uma oportunidade de Homenagem a todos os que, por uma ou outra razão, não podem estar presentes.

A dedicação e empenho dos organizadores destes eventos continuam a merecer, naturalmente, todo o nosso reconhecimento, fazendo votos para que assim se mantenham.

Um Abraço para Todos Vós!
adolfo cruz

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Nota do editor

Último post da série de 15 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25525: Convívios (996): 56º convívio da Magnífica Tabanca da Linha, Algés, 5ª feira, 23 de maio de 2024: inscrições precisam-se!... Já temos 36 e alguns vêm de longe, como o Paulo Santiago, de Águeda (Manuel Resende)

Guiné 61/74 - P25549: O segredo de... (43): Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72): na guerrra não valia tudo...



Angola > Leste > O alf mil paraquedista Jaime Silva, do BCP 21 (1970/72), em 1970,  a norte do Rio Cassai.


 Angola >  Norte - Montes Mil e Vinte > 26 de junho de 1970 > Heli SA-330 Puma na  recuperação do 3º Pel da 1ª CCP /BCP 21 (1970/72)... Nesta operação morreu um soldado do meu pelotão, 
o soldado Ramos, no dia 25 de junho de 1970, nos Montes 1020. 


Angola > BCP 21 (1970/72) > Leste > Chiume > Dezembro de 1971 > No Leste de Angola, Chiume (Cú de Judas), heli AL III  no apoio ao 3º pelotão,  1ª CCP /  BCP 21.

Fotos (e legendas) © Jaime Bonifácio Marques da Silva (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Jaime Silva (ou, de seu nome completo, Jaime Bonifácio Marques da Silva) tem cerca  de 8 dezenas de referências no nosso blogue. No passado dia 7 aceitou participar numa conversa sobre a sua  experiência como antigo combatente (*).  O evento realizou-se no ISCSP - Instituto de Ciências Sociais e Políticas, e teve a presença (inicial) do reitor da Universidade de Lisboa. 

Contrariamente aos restantes convidados (Luís Graça, Hélder Sousa e Marta Martins Silva, jornaalista), o Jaime Silva fez questão de ler uma comunicação previamente escrita.  Mandou-nos agora esse texto, fazendo questão de o partilhar com a Tabanca Grande, a que ele pertence desde 31 de janeiro de 2014 (**). 

Acrescente-se o seguinte à laia de nota biográfica: foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72), tem uma cruz de guerra por feitos em combate, viveu em Angola até 1974, é professor de educção física reformado, foi autarca em Fafe, em dois mandatos, nos aos 90.  com o pelouro de desporto e cultura, vive atualmente na Lourinhã, donde é natural. 



O segredo de ... (43):  Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCPC 21 (Angola, 1970/72): na guerra não valia tudo (***)


ISCSP/ULisboa,  7 maio 2014


1. Começo por agradecer, à prof associada Sónia Frias, do ISCP/UL, o honroso convite para estar presente neste evento, que é também comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril.

E quero, em especial, sublinhar e saudar o facto de a a guerra colonial ser finalmente, discutido na academia e ser tema associado e visível nos festejos do 25 de abril.

2. Introdução

Ao longo da minha vida, por inúmeras vezes, fui convidado para dar testemunho sobre a minha participação e vivência na guerra colonial. No entanto, é a primeira vez, com este objetivo, que me dirijo a uma comunidade académica e, por esse motivo, decidi escrever um texto com o objetivo de enquadrar o meu percurso de vida - a minha circunstância, até chegar às portas da guerra em Angola, onde, durante dois anos e meio, comandei, como alferes miliciano, um pelotão de soldados e sargentos, integrado nas tropas paraquedistas e sempre no “gastalho”. 

O texto tem um caracter autobiográfico em que relato alguns dos momentos mais marcantes que vivi na guerra.

3. A minha circunstância:

- Este ano de 2024 Portugal comemora os 50 anos da Revolução de 25 de Abril de 1974 e o final da guerra colonial que rebentou há 63 anos no Norte de Angola, a 16 de março 1961.

o Jornal Público, na edição de 28 de abril, editou um artigo da jornalista Teresa de Sousa, que destaca a intervenção do deputado do Livre, Rui Tavares, na Assembleia da República em dia 25 de abril.

“Rui Tavares recordou-nos a todos de uma forma pessoal e simples o que era o Portugal bafiento, repressivo, mesquinho, paupérrimo da ditadura.

(…) A pobreza era descarada e generalizada. O obscurantismo
era imposto pela censura e pela ideologia. A violência escondida. A liberdade individual era nula. O medo era a arma mais poderosa.”


- Voltando à minha circunstância, eu nasci em 1946 e cresci neste Portugal de “pobreza descarada e generalizada” , numa aldeia de trabalhadores rurais, pertencente ao concelho do Lourinhã.

Nesse tempo, uma grande percentagem das crianças não terminavam a 4.ª classe (vindo, os rapazes, a concluí-la, mais tarde, na tropa) e, muito menos, prosseguiam os estudos

- Calhou-me, na minha sorte, ter uma catequista, esposa do agrário para quem o meu pai trabalhava de sol a sol,  que, depois de me apresentar ao pároco da freguesia, convenceu os meus pais a deixarem-me ir para o seminário. Foi nos finais da década de 50.

Tinha doze anos quando transpus o portão de acesso a uma “casa” desconhecida. Nos primeiros tempos senti-me completamente fechado, desenraizado e perdido, ambiente bem retratado por Vergílio Ferreira na obra "Manhã Submersa" e, depois, no filme de Laura António.

4. A entrada no serviço militar

Em 1968, decidi sair do seminário e, quando em junho daquele ano, com 22 anos, transponho a porta de saída, só tinha uma certeza (ainda não era senhor de decidir sobre o rumo a dar à minha vida):  tinha de cumprir o serviço militar obrigatório, imediatamente.

Por via da formação do seminário acedo a frequentar o COM – Curso de Oficiais Milicianos.

Logo em setembro (de 1968)  recebo a convocatória para me apresentar em Santarém, para a inspeção militar, cujo resultado foi ficar “Apurado para todo o serviço militar” e com guia de marcha para me apresentar no quartel em Mafra, na EPI (Escola Prática de Infantaria), para frequentar o 1.º Ciclo do COM.

Entretanto, no final de outubro de 1968 sou desafiado, por um amigo, para desertar para França, "a salto". Como era preciso pagar 10 contos ao “passador” (ceca de 3800 euros, a preços de hoje) e,  como eu não os tinha, fiquei entregue à minha sorte! Ir para a guerra.

5. Selecionado para os comandos,  decido pelos Paraquedistas.

 Gorada a hipótese de desertar, a 8 de janeiro de 1969 dou entrada na EPI, onde completo o 1.º Ciclo – a recruta e, depois, o 2.º Ciclo – na especialidade de atirador de infantaria.

Em junho de 1969, termino o 2.º ciclo do COM e, antes de recebermos a guia de marcha para nos apresentarmos nas novas unidades militares, fui selecionado, com mais de uma dezena de cadetes, para me apresentar no Centro de Instrução de Comandos, em Lamego, tropa que se supunha ser só constituída para voluntários.

Fiquei siderado! Nunca me tinha oferecido para nada na tropa, nem tentado destacar-me, em coisa nenhuma durante a instrução.

No final, o grupo selecionado junta-se e há um que toma a palavra para nos desafiar:

–  Nós já não conseguimos escapar à mobilização para a guerra, por isso, é melhor oferecermo-nos para os Paraquedistas.

 E enumerou, a favor da opção – Paraquedistas  – um conjunto de fatores muito mais favoráveis em relação à nossa ida para os comandos em Lamego. 

Além do ordenado e outros fatores, o principal argumento foi: como os paraquedistas pertenciam à Força Aérea, isso permitia que tivessemos sempre o apoio imediato dos Helicópteros no transporte para as operações no mato e melhor apoio nos momentos nos dos combates mais duros e nas
evacuações dos feridos e mortos. 

E, no final, remata. 

 Além disso, ainda, vamos ter o prazer de saltar da porta de um avião em andamento, o que será fantástico”!.. 

Vim a verificar, mais tarde, que ele tinha razão.

E foi, para não ir para os comandos, que em julho de 1969, um grupo de cinco cadetes, vindos da EPI, deram entrada no RCP – Regimento de Caçadores Paraquedistas, em Tancos, para iniciarem, durante seis meses, um novo ciclo de instrução militar, sempre com um único objetivo: treinar para a guerra... “Instrução dura, combate fácil” – era o lema!

Terminado este ciclo de especialidade, fomos todos mobilizados para a guerra e no dia 8 de fevereiro de 1970 embarcámos para Angola, para o BCP 21 (Batalhão de Caçadores Paraquedistas),  os três primeiros alferes milicianos.

A partir dessa data e até 30 de julho de 1972 estive sempre no “gastalho” - em guerra comigo, contra o inimigo e nunca mais a esqueci. 

Foi uma experiência brutal, atroz e, em parte,  irresolúvel, para quem regia a sua vida por princípios humanistas e cristãos: apontar para matar, para eu próprio e os meus camaradas que comandava não morrêssemos, foi uma experiência brutal e marcou-me vivamente.

Por isso, nunca esqueci:

(i) Eu não esqueci..., a 29 de maio de 1970, o meu batismo de fogo.

Foi na primeira operação de combate em que tive a responsabilidade de comandar o meu pelotão. No decorrer da operação vi o cabo Onofre correr na direção de um guerrilheiro armado e capturá-lo à mão. Este indicou-nos um trilho que nos levou ao local onde, mais tarde, encontrámos diverso material de guerra, material médico e escolar e outras provisões. Mas antes, ao aproximarmo-nos do objetivo, somos travados e atacados com um forte poder de fogo de metralhadoras, armas ligeiras e morteiro 60.

Um mundo surreal!

(ii) Eu não esqueci...  o primeiro estropiado do meu Pelotão, o  soldado Santos, que pisou uma mina antipessoal, minutos depois dos helicópteros nos terem lançado no alto de um morro na zona de Santa Eulália. 

Foi uma visão aterradora dos efeitos da guerra. Foi a primeira vez que vi a perna de um homem esfacelada.

A perna tinha desaparecido abaixo do joelho, o enfermeiro injetou-o com morfina, um camarada levou-o às costas morro acima e, eu, enquanto contactava o helicóptero, via rádio, para o evacuar, olhava, incrédulo, para o que restava da tíbia e do perónio, cujo sangue jorrava e deixava um rasto vermelho no capim verde. 

Vinte minutos depois, empurramos o Santos para dentro do Héli e, lembro-me, de lhe gritar: 

 Aguenta, já te safaste! 

O Santos continuava a gritar: 

 Ai! Minha mãe que eu vou morrer! 

O Santos safou-se.

Nesse momento, lembrei-me do meu camarada Peralta que nos motivou a vir para os paraquedistas. Estava bem informado e tinha razão.

A mesma sorte não teve o meu primo Arsénio, soldado pertencente a uma companhia do exército,  que, na mesma zona, pisou, também, uma mina. Eram cerca das dez horas da manhã quando se deu o acidente e só, as quatro da tarde, teve o helicóptero para o evacuar para o hospital, onde veio a morrer!

(iii) Eu não esqueci... o único morto do meu pelotão,  o soldado Ramos, no dia 25 de junho de 1970, nos Montes 1020. 

O meu grupo foi transportados num helicóptero SA 330 e, simultaneamente, com a nossa aproximação ao objetivo, dois aviões de combate - T6 da FA (Força Aérea), lançavam quatro bombas de napalm sobre a base guerrilheira. 

De seguida, saltámos do helicóptero e corremos para a base guerrilheira, onde fomos recebidos com um grande tiroteio e, pouco depois, o Ramos apanha com um tiro certeiro nas carótidas que lhe ceifou a vida.

(iv) Eu não esqueci.... os dois feridos do pelotão: o 2.º sargento Galvão, a 10 de agosto 1970 na região da serra Vamba;  e o soldado Lamas,  a 6 de novembro de 1970, na região do rio Cassai, no Leste.

(v) Eu não esqueci... o cabo Lourenço, do 4.º Pelotão e meu amigo.

Morreu em combate na última operação e já com a sua comissão de serviço no final.

(vi)  Eu não esqueci...
a operação em que decidi não atacar. Na guerra não vale tudo.

Lembro-me, bem, dessa operação no Leste, a norte do rio Cassai.

Progredimos durante dois dias e, na madrugada do segundo, descobrimos um trilho. Enquanto estava a avaliar a situação, vejo um grande grupo de mulheres e crianças que vinham do rio com as cabaças cheias de água à cabeça, filhos às costas, dirigindo-se na direção do seu acampamento.

O soldado que estava na minha frente dispara uma rajada, sem consequências. Mando parar o fogo. As mulheres atiram os utensílios ao chão, agarram nos filhos espavoridas de medo, correm na direção da base e gritam numa grande algazarra para alertar os guerrilheiros: "tropa, tropa!"...

Os guerrilheiros disparam algumas rajadas, mas como entre nós e os guerrilheiros estavam as mulheres e crianças, decidi não assaltara base, evitando uma mortandade evidente que ocorreria se ordenasse o ataque.

De seguida, montei uma emboscada no local que, pelas características do terreno e pela minha experiência, previa que seria o ponto de fuga dos guerrilheiros. Passados pouco tempo, vejo vir, na nossa direção, um guerrilheiro armado que protegia um grupo com cerca de dez crianças que, em fila, fugiam do local.

Pelas crianças, dei ordens para ninguém abrir fogo e deixar o grupo prosseguir em paz.

(vii) Eu não esqueci...
a última estadia no Leste com a minha companhia, decorria o mês de abril de 1972, quando o meu pelotão foi destacado para assaltar uma base do MPLA. 

A PIDE entregou- nos um guia, pertencente aos Flexas, que se entregou às nossas tropas denunciando o local onde, antes, com os seus camaradas, tinha combatido contra a tropa portuguesa. Levou-nos direitinho à base dos ex-camaradas e, do combate, resultou a morte de cinco guerrilheiros e mais alguns feridos e a captura de várias armas.

(viii) E eu não esqueci, ainda.... no mês de abril, os breves momentos em que assisto ao interrogatório de um guerrilheiro capturado por um agente da PIDE/DGS. 

Foi em Léua, no Leste de Angola. A meio da tarde aterraram, no nosso destacamento, quatro helicópteros, donde saiu um agente da PIDE e o guerrilheiro. A chegada dos Hélis tinha como objetivo transportar um grupo de combate para assaltar uma base guerrilheira que, segundo o pide, o guerrilheiro iria confessar e dizer onde se situava.

 Foi destacado o meu pelotão para a assalto e, a determinada altura, o comandante da esquadra e Helicópteros chama a atenção para o adiantado da hora e que, dificilmente haveria luz do dia para efetuar o percurso de ida e volta.

Esperámos, mas do pide não havia novidades. O meu comandante ordena-me, então, que vá perguntar ao agente para saber se ainda demorava muito o interrogatório. Chego ao local e transmito a mensagem ao pide que, face ao silêncio absoluto do guerrilheiro, ainda não tinha conseguido “sacar-lhe” nenhuma informação e, incomodado pelo seu fracasso, julguei, diz-me: 

 Espere aí, sr. alferes, ele vai já bufar tudo. 

De seguida pergunta-lhe:

– Como te chamas? 

Um silêncio absoluto por parte do guerrilheiro e, ato contínuo, o agente rapa de um pau – tipo taco de basebol – e acerta-lhe com força no nariz e pergunta: 

 Como te chamas?

Depois, face ao silêncio daquele homem, repete o mesmo golpe nos joelhos, nas canelas e nos tornozelos e, eu, perplexo saio dali, imediatamente. Felizmente para o guerrilheiro – homem de grande coragem - que não traiu os seus camaradas - e para o meu grupo de combate, a operação foi abortada. Para nós, foi menos uma no pelo!

Nunca esqueci, apesar da Guerra, que não valia tudo! 

Durante os dois anos e meio da minha comissão de serviço obrigatório, nunca o meu grupo de combate cometeu alguma atrocidade perante a população civil capturada, violou mulheres ou matou qualquer guerrilheiro gratuitamente, fora, evidentemente, nas situações de confronto direto entre nós: em que sobrevive quem dispara primeiro!

Mas eu vi!.. Eu presenciei! Nem sempre alguns dos meus camaradas procederam, assim!

Em julho sai da tropa, passei á “peluda”. Depois da tropa, licenciei-me em Educação Física no INEF e fui em 1978, ainda, o primeiro licenciado da minha aldeia!

Neste ano que se comemora o 25 de abril e, simultaneamente,  faço 52 anos que terminei a minha comissão em Angola - a guerra continua! Não consegui escapar! Foi o que me calhou na rifa da vida.

Se em setembro de 1968 tivesse os 10 contos para pagar ao passador e desertar para França, a minha vida teria sido diferente?

Talvez, não sei!

Obrigado

Lourinhã, Seixal,  5 de maio de 2024

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de maio de  2024 > Guiné 61/74 - P25485: Os 50 anos do 25 de Abril (17) : Conversas sobre "Portugal-África. Guerra Colonial. Madrinhas de Guerra", com Marta Martins Silva e 3 antigos combatentes, Hélder Sousa, Luís Graça e Jaime Silva. 3ª feira, dia 7 de maio, no ISCSP-ULisboa, Campus Universitário do Alto da Ajuda