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Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho
Nota prévia: O texto que segue é, apenas e só, destinado à difusão no Blogue-fora-nada. O autor.
Creio que é esta a primeira vez que alguém traz ao blogue uma figura concreta dum comandante da campanha da Guiné. Não se trata dum vulgar panegírico, que seria natural nas palavras do seu primeiro-sargento, mas sim duma homenagem devida ao Homem que transformou e comandou a CART 1613/BART 1896, desde 25 de Dezembro de 1966 até duas semanas depois de 9 de Setembro de 1968.
Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.
Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia.
No dia 25 de Dezembro vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia.
Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM e dum sistema de detecção de velocidade discutível.
O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BEng [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária.
Estas conclusões não foram do agrado do comandante. Atirou o processo para as mãos do Capitão e ordenou-lhe que reformulasse os autos porque me queria punir.
O Corvacho voltou a pôr o processo em cima da secretária do comandante e disse-lhe que a única solução era ele nomear um oficial (teria de ser o 2º comandante) para lhe instaurar, a ele Capitão, outro processo, este por desobediência, porque se negava, terminantemente, a alterar uma vírgula que fosse no que ali estava escrito.
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© José Neto (2005)
Este gesto valeu-lhe a inscrição na lista dos coirões mal-amados do comandante, onde já figuravam, desde fins de Maio, a 2ª Companmhia de Instrução do RAP 2 (mais tarde CART 1613) no seu todo, o seu falecido comandante e este vosso modesto escriba.
O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:
- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.
Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.
Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.
Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.
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Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do comando-chefe, era outra.
Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.
Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a “minha tropa” foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
- O nosso comandante / é o capitão Corvacho.
Com a voz embargada pela comoção o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.
Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.
Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de “vai e volta”. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).
Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.
Ironicamente, saliento que o "meu Capitão” tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói.
E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.
Com “torneados e floreados” foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta.
Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guilege, onde “morámos e combatemos” cerca de um ano.
Podia terminar aqui a minha narrativa.
Porém, falta esclarecer o motivo porque, no princípio, eu escrevo os limites temporais do seu comando entre 25 de Dezembro de 1966 e 9 de Setembro de 1968 e mais duas semanas.
O dia 9 de Setembro de 1968 foi o do embarque de regresso da CART 1613. Nessa altura nós ainda andávamos às voltas com a liquidação das três cargas de materiais à nossa responsabilidade. Uma deixada em Colibuia para entregar a quem aparecesse; outra entregue aos nossos substitutos de Guilege, cheia de “falta isto, falta aquilo”; e a última a de Buba e destacamentos de Nhala e Chamarra. Até das Mauser entregues à população em auto defesa éramos responsáveis sem nunca as termos visto.
Perante a situação de eu ir ficar sozinho com 124 (cento e vinte e quatro) autos de ruína, extravio, etc. em curso, e alguns a elaborar, pois o reles 1º sargento das cargas, na Bolola, tinha o prazer sádico de ir descobrir mais uma ficha que não estava a zero e chapar-ma na cara, em face disto, dizia, o Capitão Corvacho resolver adoecer e faltar ao embarque.
Usando a sua influência junto dos seus conhecidos (por sorte o chefe do Serviço de Material tinha sido seu condiscípulo na Academia Militar) em dez ou onze dias coleccionamos os carimbos, vistos e despachos para, posteriormente, ficar tudo a zero, com algum ressabiamento do “reles da Bolola”.
Duas semanas depois o Niassa voltou e levou o “meu Capitão”.
Eu fiquei até meados de Outubro, dependente do fecho de contas do CA (Conselho Administrativo) do BART 1896 nas quais a minha (conta da CART 1613) estava incluída.
Este, embora descrito a traços largos e descoloridos, foi o Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho, ainda hoje o meu Capitão. O seu envolvimento no 25 de Abril de 1974 e período subsequente (1), considerado, por muitos, algo controverso, para mim foi absolutamente coerente, não obstante o meu modo de ver possa não coincidir com o meu modo de ser.
Nos dias que correm o meu Capitão emprega a sua enorme coragem na luta contra uma doença grave.
No passado dia 4 de Junho de 2005, amparado pelo nosso grande amigo Dr. Joaquim de Oliveira Martins, o ex-Alferes Médico do Batalhão que preferia estar connosco em Guilege em vez da ainda calma Buba, não deixou de ir almoçar a Braga com os seus homens. Vi muitos ex-soldados a disfarçar os soluços ao verem a dificuldade de locomoção do Homem que, nos seus imaginários, era o primeiro a avançar lá longe nas matas da Guiné.
José Afonso da Silva Neto
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Nota de L.G.:
(1) Foi brigadeiro graduado em 1975, tendo estado à frente da região Militar do Norte.