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quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15098: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIII Parte): Conversa em Brá e Nunca digas adeus a Cuntima

1. Parte XIII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 1 de Setembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XIII

Conversas em Brá

A nossa função é militar, os nossos objectivos são militares, repor a ordem na província. A política não é connosco, reafirmava, convicto, o capitão responsável pelo serviço de informações do batalhão.

Querem a independência, dizem que querem ser livres, que querem ser eles a traçar os destinos da pátria deles, é por isso que dizem que lutam, insistia um dos alferes. Se estivéssemos no lugar deles, se calhar fazíamos o mesmo!

O que faria o nosso alferes é consigo, o que eu faria no lugar deles não vem para aqui chamado. Foi o PAIGC que começou com o terrorismo, todos os dias desencadeiam acções terroristas, nem as populações indefesas poupam e ainda dizem que é por elas que lutam! E nós vamos deixar? Temos armas suficientes para combater, vamos deixar que eles continuem a matar pessoas?
Armas para combater? 

Ó meu capitão, temos G3, Fox e Daimlers compradas em Inglaterra, dizem que foram todas as que estavam num canto, arrumadas desde a 2.ª Guerra. Parece que o Estado Português até nem queria tantas, os ingleses é que insistiram, levem-nas todas! Parece que nenhuma estava operacional, tiram peças de uma para se meterem noutras. E, certamente, acontece o mesmo com os T-6 e com as Dorniers, tudo material da década de 40! A arma mais recente que temos ainda é a G3!

É o que o alferes tem e tem muita sorte porque dispõe dos melhores soldados do mundo. Olhe para os soldados do seu pelotão, do que eles são capazes, a troco de quê, dinheiro não é! Sempre prontos para arrancar, sempre dispostos para tudo. Alferes, se perdermos a guerra, que só acontecerá se houver uma catástrofe, não vai ser devido ao armamento, nem às praças. Seja o nosso alferes digno deles e os saiba comandar. Para o bem do País e para o seu. Boa noite a todos!
Sabiam, continuava o mesmo alferes, que os F-861 tiveram que ser retirados? E sabem por quê? Um avião qualquer pediu licença para aterrar, em Bissalanca, a torre deu-lhe o ok, fez-se à pista, não aterrou, uns dias depois apareceram fotos nas Nações Unidas, uma esquadrilha de F-86 da NATO, alinhada em Bissalanca. A NATO a colaborar na guerra colonial dos portugueses? Um escândalo, os F-86 tiveram que retirar para o Sal. É por isso que estão lá, não é por questões logísticas. E há quem diga que vêm aqui de vez em quando, fazem o que têm a fazer e depois regressam ao Sal.


Na messe dos oficiais em Brá.

Todas as noites, no fim do jantar, a messe de oficiais do aquartelamento de Brá transformava-se num centro de conversa sobre os assuntos mais variados. O ar que se respirava, no que à guerra dizia respeito, não era realmente muito animador. Dispersos em pequenos grupos falavam de futebol, do que se passava em Lisboa e um grupo ou outro de política.

Alguns oficiais, subalternos quase sempre, sobretudo quando havia notícias de baixas das NT numa acção qualquer, por regra começavam a falar da qualidade ou da falta de material, da impreparação para esta guerra e inevitavelmente acabavam por vir à tona as razões da luta de um lado e do outro e a justiça ou a falta dela da guerra em que estávamos a participar.

Os alferes milicianos, os que diziam alguma coisa em voz alta e os que por ali ficavam sentados a seguir as conversas, eram quase todos contra a guerra, os poucos oficiais do quadro que se manifestavam eram invariavelmente a favor, mas os outros, a maioria, os que se mantinham calados ninguém sabia ao certo o que pensavam. Uma coisa parecia uni-los, o regresso à metrópole, às terras e às ocupações deles, e que os 24 meses de comissão voassem.

Este batalhão tinha chegado há cerca de três meses. Primeiro, fez algum treino operacional, depois as companhias rodaram pelo norte e pelo leste, em acções de reforço a unidades em quadrícula. Coabitavam com os Adidos e com a companhia de comandos, em Brá.

Com tão pouco tempo de comissão já se notava, entre eles, a falta de convicção na luta contra a guerrilha. Alguns admitiam publicamente estarem numa guerra injusta, uma guerra dirigida contra um povo que se queria libertar.

Em frente, num dos quartos dos comandos, um, deitado na cama, folhava uma revista que tinha apanhado no QG, a "U. S. News & World Report" quando parou para ler uma entrevista com um coronel americano no Vietname. Ouçam esta!

"A arma individual é a AR-15, da Colt, em Hartford, no Connecticut. Uma espingarda ponto 22 com um impacto tremendo, destrói e mata onde quer que acerte. Se acertar na mão parte os ossos do braço todo. Apesar disso é muito leve. Transportamos 400 balas no cinto quase sem sentirmos o peso. Temos um novo lança-granadas, o M-79, a arma de elefante. Lança uma granada a cerca de 200 jardas, parece uma caçadeira, a granada introduz-se pela culatra, como qualquer cartucho, liquidando 8 a 10 onde cair!”

Nem com material deste conseguem travar os norte-vietnamitas! Quando cá cheguei, há um ano, o armamento ligeiro da guerrilha era bom, é o que eles têm agora, só que agora têm muitas mais Simonovs, Kalashs, Degtyarevs, PPSHs, canhões sem recuo, antiaéreas quádruplas, morteiros 82… Uma manhã em Cuntima, estava o meu pelotão com as milícias a capinar a estrada para Jumbembem, um soldado veio com um papel. “Obrigado tropa, estrada capinada fica melhor para bazucada”.

Guerrilheiro do PAIGC com RPG2. Foto na net.

Só ameaçavam naquela altura. Agora, RPGs e morteiros aparecem em todo o lado, qualquer dia, pelos vistos, temos aí foguetes, artilharia, blindados, aviões, helis. Ainda vamos assistir a muitas inaugurações.

Para já, malta, o que está em causa é a nossa capacidade e motivação, se a temos ou não. Queremos ganhar a merda desta guerra ou queremos que a comissão acabe depressa, desafia outro.

Há unidades junto às fronteiras que se fecham nos abrigos, fazem umas fosquinhas à volta do arame farpado, a guerrilha não os incomoda muito porque precisa de passagem para o Cantanhez ou para o Oio. Outras não trabalham a zona como devem, o PAIGC a minar, de um momento para o outro, ataques, emboscadas, minas, mortos, feridos. E depois reclamam reforços, somos poucos, não temos condições, gritam contra os gajos do ar condicionado.

E quando por qualquer motivo, cunha ou outro não interessa, os capitães dessas companhias vão para o QG, no dia seguinte já não se lembram de nada, esquecem tudo.

Quem está a aguentar isto somos nós, pá, os milicianos, essa é que é essa! Alferes, furriéis e soldados! E alguns capitães, que se contam pelos dedos, o tipo da varinha de Tite3, o Tomé Pinto que foi da 675 de Binta, um grande capitão, o Osório, o Calvão dos fuzos, que também já acabou a comissão, não são precisas as duas mãos para os contar, acrescenta outro.

Claro, muitos deles já vão na 2.ª comissão, alguns até a caminho da terceira, a família na metrópole, a filharada a crescer, quando vão de férias, os filhos encontram um estranho em casa, a mãe casou com este tipo? Cansa, claro que cansa. Mas não acham que se nota demais, que muitos deles fogem do mato, encostam-se ao ar condicionado do QG a dar palpites, a ver o tempo a passar e a guerra dos alferes, dos furriéis e dos soldados. Ofereceram-se voluntários, não foram obrigados, frequentaram cursos, o Estado investiu neles! As condições de vida é que os obrigaram? Que tivessem ido para padres! Se não têm competência operacional, ao menos que não atrapalhem, que porra!

O problema não está nos capitães, pá, é daí para cima. É nos comandantes de batalhão que está o problema, aprenderam em livros ninguém sabe de que guerras. Até agora só vi um comandante4 de batalhão que falava de bolanhas com o conhecimento de quem as tinha atravessado, que falava de barracas de mato porque entrou nelas de G3 nas mãos, em Farim até diziam que era o melhor alferes do batalhão!

A malta vem da metrópole com a preparação básica, cortam-nos o cabelo, mandam-nos tomar banho, farda em cima, passam-nos a G-3 para as mãos quando cá chegamos, ainda não nos habituamos ao clima e já estamos a levar no toutiço! E quando já estamos aclimatados, ao clima e à guerra, a comissão está no fim. E recomeça a história com mais maçaricada5 a desembarcar em Bissau para outros dois anos. Os turras não fazem comissões, não perdem experiência, ganham-na todos os dias a toda a hora!

Uma guerra destas não se ganha só com armas. Se é que alguma guerra deste tipo pode ser ganha! Os franceses perderam na Indochina e na Argélia, os americanos estão atolados no Vietname!

E são bons exemplos os franceses e os americanos? Há quantos anos a França não ganha uma guerra? Já ninguém se lembra, não? E os americanos? Atenção, aqui em Brá, enquanto estamos a discutir as razões da guerra, se se deve ou não participar, o PAIGC está neste momento a montar minas, a preparar emboscadas, a atacar aquartelamentos, essa é que é essa!


Coluna de guerrilheiros do PAIGC. Foto na net.

Não falavam muito nos dias que faltavam para o fim, nem perdiam tempo com as dificuldades da guerra, ocupavam-se com a vida deles, os treinos diários, as preparações para as saídas. Todas as semanas havia grupos no mato, à caça da guerrilha, embora muitas vezes não os encontrassem. Sentiam que o IN estava cada vez menos ingénuo, melhor preparado e mais atrevido. Mas eles também estavam e não devia ser por eles que a guerra se iria perder.

Nas apreciações que, entre eles, faziam sobre algumas unidades dispersas pelo mato, custava-lhes ver o ar crítico com que frequentemente eram recebidos por alguns profissionais do quadro, do género, lá vêm estes tipos complicar-me a vida. E, quase sempre, eram eles que os chamavam. Diziam que tinham informações novas de um acampamento, guia para os levar, que tinham tudo, era só irem lá e apanhavam-nos logo.

Estavam habituados a testemunhar cenas caricatas. Quando os comandos chegavam ao local, a primeira tarefa era falar com o tal guia e, quase sempre, a história não fora bem contada, nem era assim tão raro concluir-se que não havia qualquer dado concreto. Que havia lá guerrilha nem se discutia. E guia havia, da zona, o que já não era nada mau! Caçador quase sempre, acampamento, sim, ouvira contar que estava na mata de Buba Tombó, em Morés, no corredor de Sitató, com manga de turra e manga de armas.

São muitos? Sim, manga de pessoal bandido! Quantos pessoal? 10? Sim, são! 50? Sim, são! Tem armas? Tem! Muitas? Muitas, sim! Blindados também? Sim, tem também! E mais uma saída para o galheiro, curvas e mais curvas na mata e nas bolanhas, é já ali e nunca mais era. Mais uma noite às voltas, com muita atenção para não acabarem embrulhados. Percorreram quilómetros e quilómetros em saídas abortadas.

A partir de certa altura, com a experiência ganha, os comandantes de grupo desconfiavam quando viam tanta informação. E, por vezes, surgiam problemas, quando reparavam que os estavam a querer levar. Diziam que assim não, não era missão para comandos. Só que já estavam no local e, embora defraudados, custava-lhes virar a cara.

Os comandantes dessas companhias, o que queriam era dar ronco6 à tropa deles, a parte melhor destinavam-na para a tropa que comandavam. Lógico, se estivessem tão seguros da informação é claro que não chamavam os comandos, o ronco era para a unidade deles. Pediam-lhes para executarem um golpe de mão a um acampamento inimigo e, depois de os terem na zona, utilizavam-nos como elemento de dispersão, pondo-os a trilharem carreiros que desconfiavam estar armadilhados, a servirem de rebenta-minas, ou, na melhor das hipóteses, há muito abandonados. E quando acontecia, e aconteceu mais que uma vez, que, apesar da pouca informação, por uma execução feliz, apanhavam guerrilheiros desprevenidos, quando regressavam à base com o material capturado já não davam importância ao facto de serem recebidos com frieza pelos comandos da companhia ou do batalhão. Interessava-lhes muito mais terem tido sucesso e ficavam satisfeitos pela forma calorosa com que geralmente eram recebidos pelos soldados, sargentos e alferes.

O Comandante Militar, especialmente depois do caso de Teixeira Pinto, viu-se na necessidade de elaborar uma directiva esclarecendo as condições da utilização dos grupos de comandos tal era a resistência das chefias das unidades espalhadas pelo mato. E este foi um factor com que os grupos tiveram sempre de lidar até ao final da comissão e que só terminou com a chegada das companhias formadas em Lamego, que vinham já com um estatuto melhor definido. De resto, esta foi esta uma das razões que levou o Capitão Rubim a bater com a porta e a dizer ao Comandante Militar, venha outro que eu prefiro comandar uma companhia no mato, nem que seja em Guilege!

A vida no mato era difícil para as NT, as instalações eram precárias, muitas vezes não eram reabastecidos a tempo, estavam fartos de viverem dentro do arame farpado. Era o que acontecia a praticamente todas as unidades que estavam sediadas fora de Bissau, de Bolama, de Bafatá, de Farim, de Teixeira Pinto, dos centros de decisão onde normalmente estavam sediados os comandos de batalhão. E naturalmente estavam ansiosos de saírem dali.

Claro, o pessoal dos comandos também ansiava por uns dias na metrópole, uns abraços à família, passear com a namorada, ir até à praia, apanhar um ar mais fresco. Um ou dois dias depois do regresso a Brá, ainda com o cheiro de Lisboa no nariz, já estavam no Oio, no Cantanhez, em Guilege, em qualquer lado, G-3 na mão, T-6 no ar, manga de chocolate7, água dos charcos das últimas chuvas para matar a sede.

Ainda a semana passada... A semana passada? Anteontem, porra! Anteontem então, o bife no Toni dos bifes, no Saldanha, a ida até ao Ritz, ao Comodoro, ao Fontória da Praça da Alegria, o twist, o rock!
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Notas:
1 - Oito F-86F foram para a Guiné em 9 de Julho de 1961, no início mais como efeito dissuasor. Com o agravamento da situação acabaram por desenvolver várias acções de combate a partir de Julho de 1963. Entre Agosto de 63 e Outubro de 1964, os F-86 voaram 577 missões, a maioria das quais de ataque ao solo ou apoio aéreo próximo. Dos oito aviões destacados, sete foram atingidos por fogo inimigo, conseguindo todos regressar a Bissalanca, à BA 12. Dois foram destruídos, um a 17 de Agosto de 1962 numa aterragem de emergência, ainda com as bombas nos suportes externos e o outro a 31 de Maio de 1963 abatido por fogo antiaéreo inimigo. Em ambos os casos os pilotos foram recuperados. Pressões políticas da Administração Norte-Americana obrigaram ao regresso dos aviões a Portugal, já que os mesmos tinham sido fornecidos no âmbito da NATO, com a missão de proteger o flanco Sul.
 
2 - Lança-granadas foguete, “Rocket-propelled grenade”.
 
3 - Capitão Carlos Fabião
 
4 - Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro 

5 - Militares recém-chegados
 
6 - Festa
 
7 - Confusão, em dialecto local

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Nunca digas adeus a Cuntima

28 Março, 06H00, céu limpo na Base Aérea de Bissalanca.


Esquadrilha dos Alouettes III, alinhados na BA 12, em Bissalanca. Imagem da net.

30 comandos recebem ordem de embarque nos 6 Allouettes III, motores a trabalhar, formados em 2 colunas.

Ganham altura, rumam a Norte, fumos aqui e além sobem das matas. Às 06h30 desviam-se para leste, baixam a altitude e, alguns minutos depois muda o tempo. O nevoeiro cobre a zona a norte de Farim. Que estavam na zona da fronteira os pilotos não tinham dúvidas, tinham era sobre que território estavam a sobrevoar e o local previsto para a largada não o conseguiam ver. O comandante da esquadrilha, Major Mendonça, decide recuar para a área de Jumbemebem e, depois, voltam para nordeste, a rapar as copas das árvores, directos até ao local previsto.
Frente à larga bolanha que procuravam, abrandam e aproximam-se em linha da orla da mata. Recebida a indicação para abrir portas preparam-se para saltar. Aos pares, um por cada porta, saltam para a bolanha com mais água do que aparentava, enterram-se no lodo com água pela cintura e era uma vez o pão com chouriço que levavam nas calças. Internam-se na mata, enquanto vêem os helis, graciosos, virarem à esquerda, a recuperarem altitude, de regresso a Bissau. De joelhos, aguardam instruções enquanto os dois chefes de grupo consultam o mapa e verificam os rádios.


Estavam na fronteira com o Senegal a cerca de uma quinzena de quilómetros de Cuntima, aquartelamento das NT flagelado diversas vezes nos últimos meses. Nos trilhos de acesso à povoação minas anti-carro e anti-pessoal tinham causado estragos.

O grupo helitransportado tinha recebido a missão para nomadizar na zona durante dois dias, procurando o IN e dando-lhe caça, posto o que se deveria dirigir pelos seus meios para Cuntima, onde aguardaria o regresso a Farim em coluna auto.

Regressaria a Bissau, logo se via se por via aérea ou marítima. Previsto um único contacto visual e rádio pelo sobrevoo de uma Dornier-27 para as 11h00 do dia seguinte. Montada a segurança, dispostos em círculo, ouvem as indicações específicas da missão. Alguns aproveitam para ficarem mais leves, comem os pães encharcados em molho de água da bolanha. Em coluna por um, bem separados uns dos outros, como estavam habituados durante o dia, iniciam a marcha sem pressas.
Arbustos intercalados por árvores de algum porte, montes de baga-baga aqui e além. Procuram trilhos. Na maior parte conseguem andar fora deles e progridem sem dificuldade. Pesquisam-nos, vêem pegadas, sinais de movimento recente. Decidem-se por um, metem-se por ele, pelas margens, rumo a noroeste, em direcção a Cuntima.

Estavam claramente na fronteira e em dúvida se já não estariam mesmo em território senegalês. Por volta das 10h00 atingem o final da mata com nova bolanha, com pouca água, pareceu-lhes, em frente. Dispõem-se em linha na orla da mata e, sem pressas, instalam-se ali a observar o movimento.

Decidem atravessá-la e entrar na mata. É uma bolanha larga. Começam a travessia, cada homem separado uns 3 a 4 metros da sua parelha, em linha, vista e ouvidos alerta para a floresta em frente.

Mais de metade da travessia feita, um tiro. Instintivamente param e ajoelham. A bala não lhes pareceu ser de pistola, não lhes tinha sido dirigida, mas naquele momento não têm dúvidas, tinham sido detectados. Ali é que não podiam ficar. Cautelas reforçadas, retomam a travessia. Minutos depois, começam a chegar à orla da mata de onde foi feito o disparo. Abrigam-se, à escuta, quietos.

Uma rajada curta, três ou quatro tiros. Surpresos, ouvem conversas e gargalhadas muito perto. Estão à porta de um acampamento IN. Não perdem tempo. Por sinais, são dadas indicações a três equipas para progredirem pelo trilho, enquanto as outras três se mantiveram em linha, abrigadas.

Vagarosamente, passo a passo, dão com uma das entradas da base inimiga. As outras três equipas chegam-se à frente e vêem a cerca de cinco metros, no máximo, o interior do acampamento com alguns guerrilheiros lá dentro.

Guerrilheiros em limpezas dentro de um acampamento. Imagem da net. Com a devida vénia ao autor.

Cinco, segundo uns, seis, viram outros, estão sentados, armas desmontadas, na limpeza. Voz de fogo, rajadas curtas à queima-roupa. Não há qualquer hipótese de reacção, há gritaria, tentativas de fuga, um salve-se quem puder, uns pelo meio de outros. Um guerrilheiro com um lança-roquetes numa mão escapa-se entre eles, dois no encalço dele. Dentro do acampamento começa a caça às armas, às granadas de mão e de roquete, munições, documentação, material diverso. Casas de mata vasculhadas, lançam granadas incendiárias. Seriam mesmo? Só fumo!

O golpe de mão8 dura pouco mais de meia hora. Os homens da equipa do Black, os últimos do grupo, saem do acampamento a tossir, no meio da fumarada. A corta mato, fora dos trilhos, pisgam-se em corrida da zona. Minutos depois, ouvem rajadas e alguns rebentamentos de granadas de morteiro no acampamento assaltado. Riram-se para dentro quando viram que o fogo IN não tinha nada a ver com eles.

Bem lhes parecia. No regresso, no trilho que julgavam ser para Cuntima, os primeiros homens do grupo avistam, a cerca de uma centena de metros, junto a uma mangueira, dois guardas fronteiriços senegaleses, as armas encostadas à árvore. Abrigam-se e ficam uns momentos a observá-los. Depois, conforme o ajustado na altura, um dos chefes do grupo, cano da arma para o ar, começa a caminhar em direcção aos guardas. A meia dúzia de metros, bonjour, os senegaleses surpreendidos, levantam-se. Olham para todos os lados, desconfiados.

Guardas fronteiriços senegaleses na zona de Cuntima

Nous nous sommes perdus! Nous cherchons le chemin pour Cuntima!
Mais, Cuntima, c’est lá!
É em frente, então. Pouvons-nous passer par ici, non?
Mais oui, certainement!
Excusez-nous, bonjour!
Çá va, bonjour!

Com os últimos homens do grupo a olhar para trás, o sol a cair, o pessoal acantonado em Cuntima viu-os chegar do lado do Senegal.

O capitão Leandro estivera no final da manhã no aeroporto a informar-se das condições em que o grupo tinha sido largado lá em cima na fronteira e pelas indicações do comandante da esquadrilha correra tudo sem problemas. Agora, restava-lhe aguardar o dia seguinte. Logo pela manhã apanharia uma Dornier e lá para as 11, 11 e 30 estaria em cima da zona, a inteirar-se do decorrer da acção. Em Brá, dentro do gabinete a pôr a papelada em dia, vê o soldado Napier bater à porta. Uma mensagem para o meu capitão.

“De Cmdt CArt 732 para Cmdt BArt 733, com inf. a CEM, Cmdt Agr 16 e Cmdt Comandos Vamp terminada(.) Armamento capturado Faquina Fula(.) 2 met ligeiras Degtyarev 1 PPSH 1 Thompson 1 Beretta 1 Mauser 2 carabinas e mais material(.) Grupos recolhidos em Cuntima.”
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Nota:
8 - Assalto a acampamento inimigo

(Continua)
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Nota do editor

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quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15044: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XII Parte): Guia em fuga; Um descapotável em Bissau e Entram os Alouettes

1. Parte XII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 26 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XII

Guia em fuga 

O Capitão Leandro era o novo Comandante da Companhia. Trazia boas referências operacionais, tinha vindo de Sangonhã, bem lá para o sul, encostado à Guiné do Sékou Touré.
Alguém no QG teria dito que o Comandante Militar se impressionara com uma acção da Companhia1, um ataque em beleza a um acampamento IN, ao raiar de um dia. Entraram tão sorrateiros que, conta quem viu, o capitão, curioso, espreitara para uma barraca e viu um tipo lá dentro com duas bajudas ao lado. Não pediu foi licença. O comandante IN como uma mola, atirou-se com toda a honra ao capitão, engalfinharam-se um no outro, as bajudas aos gritos, até que um soldado entrou na hora, e o meu capitão com a mania de resolver isto tudo com diplomacia.

É de um capitão destes que os gajos precisam, imagina-se que terá pensado. Mande-o cá vir. O Chefe do Estado-Maior enviou um rádio para o Batalhão, que se apresentasse com urgência no QG, ao Comandante Militar.

O capitão encarregou-o de os pôr na ordem. Tomou-lhes o pulso no início, os alferes desconfiados de um capitão de outra família. Com o tempo, a competência administrativa e operacional impôs-se, ganhou ascendência, confiança, corrigiu a organização, alterou alguns procedimentos, tudo embalado em diplomacia, acompanhando os processos todos, desde a escolha e preparação das saídas, até à logística de Brá, e sobretudo moralizara o pessoal, cada dia que passava mais satisfeito com a escolha.

Menino da Luz,  tinha conhecimentos por todo o lado, sabe-se como eles são, o Brigadeiro acertou na mouche. Ficaram a dar-se bem, fricções iniciais resolvidas, era sempre com satisfação que se encontravam.

E na primeira saída de um grupo fez questão de o acompanhar.


Informações referiam a existência de um acampamento IN na mata de Sabá. O grupo, com o novo comandante como observador, deslocou-se até Mansoa em viaturas. Para evitar detecção prematura, mantiveram-se dentro das Mercedes, com as lonas corridas. A seguir, incorporou-se numa coluna da ronda, saindo de Mansoa até à extremidade da pista de aterragem, onde se apeou discretamente.

Noite de intensa luminosidade.  Permaneceram imóveis no local cerca de um quarto de hora. Depois, apoiados por um experiente Grupo de Combate adstrito ao Comando de Batalhão sediado em Mansoa, começou a progressão apeada, a corta-mato, paralelamente à estrada Mansoa-Mansabá, até atingirem Caur.

À frente, um guia com as mãos atadas atrás das costas por uma corda que rodeava a cintura de um dos homens das milícias de Mansoa. Um trilho levou-os até Mancofine. Rodeada a tabanca, seguiram para a antiga tabanca de Sabá. Passaram ao largo, em direcção à bolanha. Localizaram um ponto de cambança utilizado pelo IN. Sempre nas margens da bolanha viram outro local de cambança, com algumas tábuas desfeitas. O guia disse existir outro local de cambança mais à frente, perto do acampamento e com acesso directo. Entraram na mata, progressão difícil.
Cerca de meia hora depois, barulho, correrias, vozes, uma rajada do primeiro homem do grupo. O guia tinha-se escapado. Alguém terá aliviado as cordas que o prendiam, não havia dúvidas. A procura no local não resultou, não havia qualquer hipótese de sucesso. Às 05h30, um carreiro levou-os a atravessar a mata até voltarem a ver a antiga tabanca de Sabá. Retiraram por Mancofine até à estrada que liga Mansabá a Mansoa.
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Nota:
1 - CCaç 640

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Um descapotável em Bissau

Desde que o Toni Ramalho fora para o mato formar milícias, deixara de ser frequentador do Hotel Portugal, parava lá, de longe a longe, só na esplanada para beber qualquer coisa, encontrar-se com alguém, muito raramente jantava. A mesa continuava no mesmo sítio, as pessoas é que tinham mudado.

Da mesa antiga só o Carlos e a sua Helena, os outros eram todos conhecimentos recentes. No final de um dia, viu-os na esplanada do hotel com uma roda de machos à volta, um fuzileiro de que não percebeu o nome e um conhecido capitão de artilharia, o Capitão Marques.

Apresentaram-se e foi aí que viu pela primeira vez as caras dos novos companheiros de mesa do Carlos. Demorou-se um quarto de hora, se tanto, o tempo suficiente para ouvir de rajada relatos do capitão em batalhas que travou no Comodoro do Rossio, no famoso Ritz e na Cave da Avenida António A. Aguiar.

Então não se senta, fica de pé, o capitão a virar o pescoço, enquanto lhe vinham à lembrança os amigos de há uns tempos atrás. Mudado o carregador, o capitão virado para um felizardo a passar as últimas noites na Guiné. Então, as escadas para a cave, o salão grande, o ambiente de tango, as mesas para dois, duas gentilezas em cada, uma no balde de gelo a aguardar que a abram, a outra sentada de perna traçada à espera que alguém as destrace, o pianista de brilhantina na careca, o do contrabaixo a abanar os cabelos encaracolados até aos ombros. Era como estivesse lá, os pormenores todos.

E você, para o que se mantinha de pé, não se esqueça, tome nota, que estou a ser seu amigo. Quando regressar, reserve para si a primeira noite em Lisboa, deixe a família e os amigalhaços para depois, que vai ter tempo para eles até se chatear. Diga adeus ao Depósito de Adidos, apanhe uma boleia da Ajuda para a baixa, suba o Chiado, encoste-se à Brasileira e deixe os olhos habituarem-se, deixe-os ver o que quiserem, até não quererem mais. Jante por aí, se quiser vá até ao Pic-Nic, um filme no Condes ou no S. Jorge serve para fazer tempo, suba depois até ao Marquês, aqui já sabe, com este nome é só coisa boa à sua espera, seja para que lado vá.

Fontes Pereira de Melo acima, pelo lado esquerdo, corte para a António Augusto de Aguiar, e suba a avenida pelo passeio da direita, vá olhando até dar de caras com a Cave e um porteiro fardado, lá para o meio da avenida. Só tem que abrir a boca, diga-lhe que o Capitão Marques manda cumprimentos, aquele que está agora com os ossos na Guiné, é só o que tem a dizer, ele mete-o lá dentro, sem mais. Ao descer as escadas, preste atenção, ouça, mas não quer jantar com a malta, olhe que isto é tudo bom pessoal.

A insinuante Helena nem parecia a mesma de quando chegou, a voz mais rouca, um vestido preto, brilhante, pendurado só no peito, como é que aquele vestido consegue ficar assim, tão seguro? Os joelhos cruzados um em cima do outro, o cabelo apanhado, uns brincos aos saltinhos. O Carlos parecia-lhe mais adulto, um ar quase indiferente para os outros, e também para a Helena, pareceu-lhe. Só um sorriso para cima, envergonhado.

Já apanhara com a artilharia toda, cansado de imaginar o percurso até à Cave. Despediu-se deles, um aperto de mão para aqui e para ali, o Carlos dá cá um abraço, quando apareces para jantar?

A Helena estava alugada ao mês. O pai do Carlos convencera-a, finalmente, a fazer companhia ao filho, depois tratara de tudo com ela, o salário base, as diárias, as condições todas. A Helena fizera questão que todas as despesas em Bissau, todas mesmo, ficassem a cargo do Carlos. E ainda um carro para as deslocações em Bissau. Foram ao J. J. Gonçalves2 em Lisboa escolher a cor, a marca e o modelo ela já tinha dito qual era. Ficaram instalados no Hotel Portugal, numa espécie de suite.
Um ou dois meses depois, mais dia, menos dia, o Carlos, acompanhado da Helena, foi ao cais levantar o Austin Sprite, de um vermelho lindo. Um brinquedo, a subir devagar a Avenida, a capota para baixo, o Carlos ao volante, a brisa a cuidar dos cabelos dela, o maralhal no Bento e na avenida de boca aberta, olhos arregalados.

Depois dos primeiros tempos, em que para onde ia um, o outro ia atrás, pelo que se estava a ver, o Carlos estava a aprender depressa, mais calado ainda, mas menos submisso. Noites dentro era visto quase sempre só, quando lhe perguntavam pela companheira, se achava que o dono da pergunta merecia resposta, dizia que tinha ficado no Hotel ou em casa de alguma gente conhecida e não adiantava muito mais. Levavam uma vida cada vez mais independente e a certa altura o Carlos tirou as coisas dele do hotel Portugal e mudou-se para a base de Bissalanca. Depois, ela começou a ser vista hoje com este e com aquele amanhã.

O Gabriel, empregado do hotel, contou mais tarde que uma noite apanharam um empregado do hotel em cima de um escadote, pano na mão a passar pelo vidro, os olhos todos lá para dentro. A limpar vidro que a senhora mandou! Contaram também outras coisas, sabe-se como é.
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Nota
2 - Empresa imortadora de automóveis, nomeadamente os Austin.

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Entram os Alouettes

6 de Março, domingo. Manhã quente. Carregador fora da G3, balas extraídas, um pano macio nelas. Uma a uma dentro outra vez. Os outros três carregadores cheios em cima da cama, para o cinturão. 100 projécteis ao todo, como de costume. Arma aos pés da cama. Granadas de mão, duas defensivas, uma ofensiva e uma incendiária para o cinturão, mais duas de fumos laranja para o bolso esquerdo do dólman3. Em cima da cama o camuflado e as meias. Botas de borracha junto à mesa da cabeceira. Tudo conferido outra vez. Duche.

À civil, meteu-se no ME-14-04, com o Alegre ao volante, em direcção a Bissau. Às 11 e pouco, na esplanada do Bento cheia de militares, um bolo de coco e um café. Volta a pé pelo quarteirão, olhar para o Geba, mexer pernas. De novo com o Alegre, regresso a Brá.

Camarata do grupo. O Sargento Valente e o Furriel Azevedo com as equipas conferiam o material, G3, MG 42, granadas de mão, lança-rockets, tudo a ser vistoriado e limpo.
Reunião do grupo para informação sobre a missão. Heliportagem4 de assalto a uma base IN nas imediações de Jabadá. Pertencente ao batalhão aquartelado em Tite, o destacamento de Jabadá estava a ser flagelado, há meses, quase todas os dias, às vezes mais que uma vez no mesmo dia.

13h00, Bissalanca. 30 homens em 6 Alouettes-III da esquadrilha comandada pelo Major Piloto Mendonça iam finalmente pôr em acção as práticas treinadas desde meados de Janeiro.


Minutos depois descolaram, formados em duas colunas, aos pares. Ganharam altura, sobrevoaram Bissau e começaram a subir o Geba castanho-escuro. Flectiram para a outra margem do rio, baixaram e, junto à orla, subiram o rio, a rasar as árvores.

De súbito, viraram à direita, dispuseram-se em linha, separaram-se, 3 helis para uma ponta da mata, os outros três para a outra.

Fumo a escapar-se das casas no mato em frente. Sinais do piloto, preparar para saltar. Portas abertas, olhos ansiosos. Junto ao solo, um metro para aí, saltar!


Um descampado seco, capim mais alto do que contavam. As equipas correram para a mata, em linha, torta como uma cobra a fugir.

Alguns guerrilheiros começaram a reagir. Rajadas de PPSH e Kalash, rebentamentos de morteiro, granadas, silvos de disparo de rockets, barulho das pás dos Allouettes.
Surpreendido, o IN retirou sem oferecer grande resistência, deixando baixas no terreno. Recolhidas crianças, mulheres e um velho. E algum material, meia dúzia de granadas, munições, correspondência vária, documentos.

13h45. Problemas na 2.ª Equipa. O Roberto à procura da parelha, o António Silva5. Deixara de o ver quando saltaram. Ouviam-se ainda chicotadas de disparos. A equipa do comandante do grupo voltou atrás, ao local de lançamento, a vasculhar o capim. Encontraram-no deitado, desajeitado, de barriga em cima da G3. Alguém o virou. Olhos abertos, um fio de sangue a espreitar da boca aberta e do nariz. Uma bala alojada no peito. Respiração boca a boca, uma golfada de sangue quente foi a única resposta.

Diabo Maior chama Lebre, evacuação, pediu e repetiu. Lebre chama Diabo Maior, indique local com fumo.

Até o capim estava contra, recusava-se quase sempre a arder quando lhe atiravam granadas incendiárias, agora até uma simples granada de fumos lhe pegara, o vento a empurrar-lhes as chamas, nem sabiam para onde ir, o Silva na maca improvisada, nem sabes quanto pesas, pá, desabafa um! Esgotados, meteram-no no heli, junto ao rio.


Explosões de granadas, berros, chicotadas de projécteis, crepitar do capim a arder e o barulho das pás do heli a curvar rapidamente para a outra margem do Geba, directo ao Hospital Militar de Bissau.


Soldado Comando António Alves Maria da Silva, o segundo a contar da direita

Uns dias antes, os olhos do Silva molharam-se quando o Furriel Azevedo lhe disse que não ia mais para o mato, que a comissão já estava terminada e que não queriam mais nenhuma edição do Furriel Morais dos Fantasmas, morto no sul, em Maio do ano passado, duas semanas depois de ter terminado a comissão. O alferes transigiu, a história repetiu-se.

Às 17h30 dessa tarde de domingo, o Soldado-Condutor Alegre deixava o alferes, já à civil, em Bissau frente à esplanada do Bento.

(Continua)
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Notas
3 - Casaco justo e curto que fazia parte do fardamento camuflado.
4 - Operação "Hermínia", a primeira heliportagem de assalto efectuada na Guiné.
5 - Soldado António Alves Maria da Silva, oriundo da CCaç 674, natural de Erada, Covilhã, ficou sepultado na campa 247, no Talhão Militar do Cemitério de Bissau.

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Nota do editor

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quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15024: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XI Parte): Mornas e Segundo Encontro com o RDM num mês

1. Parte XI de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 17 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XI

Mornas

Tinha-a conhecido em casa da Dora. Uma cabo-verdiana linda, a pele morena clara, lábios um pouco salientes, desenhada sobre o magro, à volta dos 20.
Trocaram as palavras do costume quando a Dora os mostrou um ao outro.
Teresa.
Teresa quê?
Teresa!
Olhos grandes, claros, esverdeados, ficavam bem com aquela pele. Voz doce, ar curioso. Esquiva e desinteressada, virou-lhe logo as costas, cada um foi para seu lado.
Esteve ali, conversou com este e aquele até se fazerem horas. Quando descia as escadas, ela chamou-o, ar atrevido, pareceu-lhe até demais. Mas já vai, não se despede da gente?
É, voltamo-nos a encontrar um dia, atirou ela, vemo-nos por aí, não? Bissau não é assim tão grande!
Se é meu desejo? Saiu a desconversar, meio desconsolado.

Dias depois, sentado no Bento, viu-a passar. Os olhares dos outros chamaram-lhe a atenção. Todos se viraram, não era fácil passar despercebida. Parecia-lhe mais alta. Os olhos com um verde mais magnífico ainda, levemente sombreados, cabelo liso preto, a pousar nos ombros, elegante num vestido sem mangas, azul-escuro pintalgado de bolinhas brancas, a balançar um pouco acima dos joelhos, sandália de meio tacão. Como se tivessem combinado, dirigiram-se um para o outro, mãos estendidas, cumprimentaram-se com alguma timidez. Os olhares dos outros não os largavam.
Ai, não, não me sento aí no café!
Vamos então andar um pouco, por aí?
Meteram-se no carro1, uma volta pelas ruas, por aí não, é a minha casa. Então para onde quer ir? Saíram da cidade, para os lados da Sacor, estacionaram de frente para o Sol, a desaparecer no Geba. O rádio a passar Capri, c’est fini, ela a cantarolar baixo, até começar a falar.


Quem sou eu? Sou este que está aqui, Teresa!
Mas quem és tu, porque estás aqui?
Aqui, como?
Porque estás aqui comigo? Sabes lá, que resposta!
A conversa assim, até encontrar o fio. Esta guerra, os desencontros, as pessoas para um lado e para outro, muita gente deslocada das suas casas, todos a virem para Bissau, muita tropa também, onde é que isto vai parar. Assim, de um momento para o outro, de rajada.
Depois mais suave, as origens, as famílias, os amigos, os interesses. Frequentava o 7.º no liceu de Bissau, os pais eram de Cabo Verde, tencionava fazer Medicina em Lisboa, estava com "As vinhas da Ira" nas mãos, acabara um livro de Hervé Bazin. “Só ódio”, conheces? Queres que to empreste?
Para quê, se é só ódio?
Pode ser interessante para ti, como sabes que não gostas sem o ler?
O que estava ali a fazer, perguntou-se. Como se tivesse adivinhado ela adiantou que gostava de estar ali, de olhar o Geba, de o conhecer, de olhá-lo nos olhos. Mas quem és tu, ainda não falaste de ti!
O dia a cair como cai em África, noite num momento. Temos que ir, não é?
Deixou-a à porta da Sé, junto à rua dela. Até amanhã, Teresa. O grupo dele saía na madrugada seguinte, para o norte.

No regresso procurou-a. Os olhos, grandes na mesma, pareciam de cor diferente, o rosto mais fechado, algum problema?
Uma semana à espera este tempo todo, começou ela, porque não apareceste? Olha-me de frente, assim não, olha-me nos olhos, assim! O que sou para ti, ora diz? Porque me foges com os olhos?
Séria, os olhos a entrarem por ele dentro, porque andas atrás de mim? Não falas? Responde! Porque não falas? Gosto que me contes tudo! Mais calma, encostada a ele, tão baixo que mal a ouviu, vamos sentar-nos no jardim? Estamos mais à vontade, a mamã não está, se ela aparecer apresento-ta, qual é o mal?
Que gostava, mas agora não. Então logo? Os papás ficam no varandim a aproveitar o fresco, até às 11, depois vão-se deitar.
Que é que te deu, não falas? Tens namorada na metrópole? Todos vocês têm, sei muito bem, como é ela? A boniteza não é só na cara, sabias? Não gostas de mim? Então que estás aqui a fazer?
Estás a olhar assim para mim porquê? Achas que não temos cabeça para pensar, que só somos corpo para vocês gozarem?
Vens logo à noite? Quando os papás se vão deitar fico sempre um bocado à janela.
Atordoado, saiu dali, sem saber o que fazer, nem para onde ir até. Uma mulher diferente!
Depois o tempo passou, o entusiasmo teve altos e baixos, até esfriara, há quase um mês que não se viam.

Do portão viu a Dora ao cimo das escadas. Ambiente animado, pessoal a dançar cá fora, meia dúzia de pares, tudo gente cabo-verdiana, colados uns aos outros, aquele jeito deles, os corpos no ritmo das mornas e coladeras.
Então, bem aparecido, zangado comigo?
Que não, nada de que se lembre, os olhos dele pelo baile, a Teresa a dançar, a um metro bem medido do par, a saia do vestido acima dos joelhos, o decote a mostrar. Mal os olhos se cruzaram, ela encostou-se ao parceiro, a cara para o outro lado.
Passa-se alguma coisa que eu não saiba? Que não, não havia problema nenhum, andava ocupado, aos fins dos dias não tinha vontade de sair, só isso, mais nada.

Despediram-se da Dora, isso agora vai, olhar maroto para as mãos deles. Tinham dançado uma e outra vez, quase só os dois no fim, tão colados que os outros até repararam.
Meteram pela rua de Santa Luzia, de mãos dadas, a brincarem um com o outro, a rirem-se por ali abaixo.
À porta dos pais dela, os rebentamentos que ouviam há já algum tempo soavam mais fortes. Agora é todas as noites isto! Estes tiros onde são?
Jabadadas2, menina, chega-te para cá, para onde vais, Teresa?
Tenho medo, não posso, encosta-te então, não te sentes mais abrigada assim, não é das explosões que tenho medo, então de que é?
Uma mão na perna, a subir, ai, aí não! Respirações atrapalhadas, afastados, um momento que não acabava, a olharem um para o outro, uma sirene bem perto, os lábios a rasparem-se, o gosto da boca dela, a mão dele nos seios, aqui não, anda, não podemos ficar aqui, mãos amarradas, que malucos, que é que estamos a fazer?
Na espreguiçadeira onde se recostava a ler e a sonhar nas tardes quentes de Bissau, ansiosa, não sabia o que queria, a mão dele fazia-lhe comichão no joelho, riso abafado das cócegas e do nervoso. A mão em cima da dele, parecia-lhe que a acalmava. As duas mãos juntas, a subirem por ela acima, não posso, tem cuidado, miminhos só, não me faças mais nada!

Não ando a fazer nada com ela, nem pretendo nada da Teresa, só passar uns momentos entretido. Não sei é se me vou aguentar assim!
Esta história com a Teresa pode dar chatices, pode trazer-te problemas!
No 14-04 com o pára-brisas no capô, vento na cara, a falar com ele, a caminho de Brá.
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Notas
1 - Volkswagen alugado
2 - Flagelações quase diárias a Jabadá, do outro lado do Geba

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O 2.º Encontro com o RDM num mês

‘Nunca louvarei capitão que diga não cuidei’

Tal há-de ser quem quer, com o dom de Marte,
Imitar os ilustres e igualá-los:
Voar com o pensamento a toda parte,
Adivinhar perigos, e evitá-los,
Com militar engenho e subtil arte,
Entender os inimigos, e enganá-los,
Crer tudo, enfim, que nunca louvarei
O Capitão que diga: "Não cuidei".

Lusíadas
Luís de Camões
Canto VIII, 89

Uma história que não gostava nada de recordar e que se esforçava por esquecer, passara-se em Jolmete, na zona de Teixeira Pinto, no noroeste, ainda não há muito tempo.
Uma zona calma, de um momento para o outro transformou-se num barril de pólvora seca.
O grupo “Centuriões” tinha regressado de lá com três feridos, um dos quais logo evacuado para o Hospital da Estrela. A única acção de fogo em que estiveram metidos consistiu na reacção ao primeiro ataque ao aquartelamento de Jolmete, com o grupo acidentalmente lá.
Era a primeira vez que a companhia lá estacionada via fogo a sério. Sabe-se qual é a reacção da grande maioria de quem é atacado. Primeiro, procura-se abrigo, depois se vê.
Só que naquela noite, o vê-se ficou-se no grande celeiro que os abrigava, a ver se o IN se chateava e ia embora. O que não aconteceu, claro. Se não fosse o grupo do Rainha estar cá fora, por não caber mais ninguém no armazém, abrigar-se e responder, muito provavelmente os atacantes podiam ter feito mais estragos.
Ficaram bem impressionados com a resposta do grupo e o capitão das operações do batalhão estacionado em Teixeira Pinto pediu que, ou continuassem ou fossem outros deles para lá. E foi assim que outro grupo apareceu em Teixeira Pinto e nesta história.

Quando chegou, viu uma povoação agradável, para as proporções locais. Arrumada, uma rua larga fazia de centro e de passagem para tudo à volta.
Foi recebido por um tenente-coronel, voz esganiçada, pequena estatura, careca, franzino, pouco mais de 50, talvez, uma caricatura de militar, pareceu-lhe.
Na sala de operações, um quarto com um mapa grande da zona pregado com pioneses na parede, o Tenente Coronel explicou a situação militar da zona do batalhão sob o seu comando. Para além do alferes do grupo de comandos estava presente também o capitão das operações, um homem diferente como veio a comprovar mais tarde.
Estava tudo em ordem, insistia o comandante do batalhão, a pacificação era um acontecimento, só umas pequenas borbulhas lá para os lados do tal Jolmete. Pingalim para o mapa, quero que você e o seu grupo vão aqui, depois ali, para aí a 10 centímetros para norte do primeiro local e depois venham para aqui, Jolmete no pingalim, outros 10 centímetros para leste. Não deixou de esboçar um sorriso, lá no íntimo e não está mesmo seguro que o sorriso não tenha sido visto pelo estratega. No mapa, aquelas voltas todas dava para aí meio metro. Depende da escala, claro, mas meio metro para um dia, mesmo naquele mapa, pareceu muito. Mesmo assim, se houvesse motivos suficientes, iam a isso que era para isso que ali estavam.
É de notar que o tenente-coronel, soube-se depois, ficara algo incomodado com o relatório que o alferes Rainha fizera e que lhe chegara do QG uns dias antes com um pedido de esclarecimento do chefe da 3.ª Rep. indagando as razões que tinham levado o comando do batalhão a permitir que o nativo de nome Antigas, capturado pelo IN e solto dias depois de ter estado num acampamento IN na área de Bugula, quando se apresentou na sede do batalhão, em vez de ter explorado imediatamente o sucesso o deixou abandonar o quartel e andar pela povoação a contar a história.
Nada de processos de intenções, mas é um aspecto que se deve considerar, tendo em conta os acontecimentos que se seguiram.

Para quantos dias, meu tenente-coronel?
Tudo de seguida! Depois de regressarem logo se vê, peremptório.
O alferes olhou-o e viu que tinha pela frente um guerrilheiro com uma larga experiência em secretarias e departamentos similares, sem imaginar que a especialidade que tirara ainda fora mais apurada.
Tribunais Militares, RDMs e secretarias, veio a saber depois, tinham sido os principais campos de batalha que praticara até à data.
O alferes com um ar, diga-se, nada adequado para um caso daqueles, ora bem, meu tenente-coronel, então V. Ex.ª quer que o grupo vá aqui, depois para aqui e depois para aqui, não é? Tudo de seguida?
Porquê um esforço destes, tantos quilómetros de mata, rios e tarrafos, bolanhas, em plena época das chuvas, sem qualquer conhecimento da localização de acampamentos INs que não seja o que se diz aí pelas ruas? Porque não fazer uma saída de cada vez, com objectivos bem definidos, em vez de andar a passear pelo mato?
Os comandos são grupos reduzidos, meu tenente-coronel e até aqui têm sido empregues em golpes de mão, com objectivos bem localizados e com guias de confiança. Outras missões são para outro tipo de tropas!
Não lhe compete dizer o que se deve fazer, aqui quem manda sou eu e o nosso alferes executa.

Uma miséria de abandono, Jolmete era um barraco enorme, onde estavam lá metidos nas piores condições cerca de 100 homens, arame farpado à volta, logo junto ao barracão. O capitão Corte-Real, comandante da companhia, o que não queria era chatices, e verdade seja dita, só deixou de as ter quando, meses mais tarde, foi estraçalhado por uma mina entre Farim e o K3.
O grupo saiu naquela noite como estava combinado, chuva em cima, trilhos e trilhos, tarrafo intransponível, poderiam andar lá dias se não tivesse decidido ir por outro lado. À hora marcada lá estava o PCV3 no ar, o tenente- coronel então onde estão?
Aqui em baixo, onde havia de ser? Assinalar com uma granada de fumos para saber onde estamos? Uma granada de fumos não lanço. Estamos aqui junto a esta bolanha, para norte do seu PCV.
Aí? Mas não foi isso que eu determinei! Volte já para lá, para o local combinado!
A conversa assim toda animada, indique então a posição para onde quer que a gente vá.
Viemos desses lados, vamos voltar aí para quê, está a ver aí de cima alguma posição IN? Nós é que temos que ver aqui em baixo? Olha Álvaro, o soldado do rádio, desliga mas é essa merda!
E o Álvaro cumpriu a ordem.
E andaram por aqueles trilhos dentro de água, o dia todo até à noite quando chegaram mais mortos que vivos a Jolmete.
Espaço para dormirem no barracão não havia, para comer havia umas excelentes bolachas, daquelas que só vão para baixo com meio litro de água.
Abrigaram-se debaixo das árvores que havia por ali, a tentar dormitar, com pingas de água a cair-lhes em cima.
De madrugada, tocaram-lhe no ombro, o comando do batalhão estava a enviar-lhe uma mensagem.
Explique com urgência os motivos do não cumprimento da missão. Que a missão estava em marcha, voltaria a sair, para o outro ponto indicado, às 5. Não! Vai sair mas é para outro lado, para aqui, para Teixeira Pinto, debaixo de prisão, vou mandar uma coluna buscá-lo.
Foi assim que o alferes foi transportado, numa viatura, por um compreensivo capitão com os elementos do grupo a fazerem o caminho a pé.
No quarto de operações, o tenente-coronel aguardava-o, com o capitão das operações. Que não tinha cumprido a missão e ainda fora mal educado para um oficial superior.
Um auto de averiguações, duas horas para responder por escrito a 34 quesitos.
Um criminoso de guerra, um desertor, ou quê?
Veja lá como fala, sou seu superior, sou tenente-coronel, sou o comandante deste Batalhão! E o nosso alferes está aqui às minhas ordens, com todas as consequências, não se esqueça!

Tinha na frente um bravo militar, esqueceu-se e não devia. Está-se a ver o que aconteceu. Um auto de averiguações transformou-se num auto corpo de delito, numa hora ou menos, uma rapidez que nem no tribunal militar territorial de Tomar!
E 5 dias de prisão disciplinar, o máximo da competência do tenente-coronel.
Tinha acabado de ouvir as razões do castigo, os oficiais, todos em sentido no tal quarto. Sim, que ouvira o que fora lido, que ouvia bem. E que ia reclamar da redacção da punição por, no seu ponto de vista, a redacção não corresponder aos factos. Aguente aí, alferes, o capitão das operações a murmurar baixo, a mexer-se.
Tem que pedir licença para reclamar! De qualquer maneira, concedo-lha.
Cá fora, em conversa com alguns alferes que assistiram à cerimónia ficou a saber que o tenente-coronel era muito disciplinador.

Depois foi o regresso a Bissau. Mal chegou não descansou enquanto não contactou com um dos ajudantes de campo de Governador-Geral, um alferes conhecido de outros gabinetes. Dias depois foi chamado ao Palácio, apresentou-se no gabinete do General Schulz. O General veio até cá fora, ao jardim, e foi aí que teve conhecimento, pela sua boca, dos factos.
Se acha que está a ser injustiçado, recorra, senhor alferes, foi a primeira resposta que ouviu.
Agradeceu ao general o conselho. Mas a principal razão que o levara a pedir que o recebesse tinha a ver com o crachá que o General lhe tinha entregado em mão no final do curso. E que estava ali para o devolver se o general, a partir deste caso de Jolmete, não o considerasse apto a chefiar uma unidade de comandos.
O General mudou o charuto para a outra mão, deu dois passos e olhou-o.
Continue o seu trabalho e faça tudo para que não voltem a ocorrer situações dessas, rematou o Governador-Geral de mão estendida.

Um caso que se arrastou meses e meses. Mudou o capitão dos comandos, mudou o Brigadeiro Comandante Militar, o tenente-coronel de Teixeira Pinto foi transferido para o sul, Catió mais precisamente, muita coisa andou, nada de resposta à reclamação que apresentara. Nem ninguém, desde a 1.ª à 4.ª Rep. sabia onde parava a folha de papel de 25 linhas.

Em meados de Fevereiro do ano seguinte, o novo comandante da Companhia de Comandos disse-lhe que o Comandante Militar, o Brigadeiro Reymão Nogueira, queria pôr ponto final naquela questão, que era melhor ir lá falar com ele.
Alferes, estas questões não adiantam nada ao andamento da guerra, só atrapalham. Claro que são importantes, especialmente quando, como parece ser o caso, não houve motivos assim tão sérios para uma tão severa punição. O que aconteceu foi que o alferes demorou a cumprir uma ordem de um oficial superior. Facto grave! Por outro lado, há que ver as atenuantes que eu acho que não validam a sua atitude, ajudam a compreendê-la.
É do seu conhecimento que a sua punição não sofreu até agora qualquer agravamento. Nem eu nem o nosso Governador-Geral a agravaram. Bom, o que tenho a dizer é o seguinte. O alferes retira a queixa contra o nosso tenente-coronel e eu, não lhe agravo a punição. E é de regra, o Ministro não mexer em penas que não tenham sido agravadas pelos Comandantes Militares.
Finalmente, e isto é muito importante, a sua punição, já publicada em Ordem de Serviço, está registada, não há nada a fazer. Não ocorrendo mais nenhum problema disciplinar, ainda temos de pensar como vamos encerrar o assunto, ok? Entendido?
Cansado, aquele processo há meses a moê-lo, muitas outras coisas na cabeça, optou pela retirada. Dá licença que me retire, meu Brigadeiro?
Enquanto descia as escadas o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi pirar-se dali para fora, desertar!
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Nota
3 - Posto de comando volante ou de comando aéreo, normalmente a bordo de um Dornier.

(Continua)

Texto e foto: © Virgínio Briote
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Nota do editor

Postes anteriores da série de:

28 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14803: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (I Parte): Introdução, Dedicatória e A Caminho

30 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14814: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (II Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

30 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14817: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (II Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)

2 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14827: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (III Parte): Morreu-me um gajo ontem

7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14845: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IV Parte): Comandos do CTIG

9 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14857: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (V Parte): Brá, SPM 0418

14 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14876: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VI Parte): A nossa causa é uma causa justa

23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles

30 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14951: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VIII Parte): "Hotel Portugal"; "Um guia" e "Artigo 4.º do RDM"

6 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14975: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IX Parte): Mais dois lugares è mesa; Bomba em Farim e Rumo a Barro
e
13 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14998: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (X Parte): Barro, Bigene; Bigene, Barro

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14998: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (X Parte): Barro, Bigene; Bigene, Barro

1. Parte X de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 10 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - X

Barro, Bigene

Isto por aqui estava tudo calmo. Agora parece que chegou a nossa vez, parece não, chegou mesmo. Isto é complicado, o nosso governo tenta manter esta merda sob controlo, estamos aqui quê, 15, 20 mil gajos, não? Não é pela Guiné, claro, esta terra não tem nada, por outro lado é preciso ver, os soviéticos querem manter o Salazar sob pressão, estás a ver, dispersão de esforços, para a malta não se concentrar em Angola, petróleo, diamantes, madeira e tal, a Guiné é água e mosquitos, fazem-me a vida num inferno, os filhos da puta picam-me até dentro dos lençóis, grandes cabrões, aqui não há mais nada, é ou não é?
É pá, falam da ONU, a ONU é outro buraco, dali não sai nada para nós, pá, o Johnsson está atolado no Vietname, os Américas nem a cabeça podem pôr de fora, caladinhos que nem cucos, votam a nosso favor nas coisas de merda, votam contra nós nas outras, querem lá saber da malta!
E Barro, o que é Barro? Um buraco, num buracão que é a Guiné, correcto?
Mas nada de grandes problemas, mais ou menos calmaria até à semana passada, percebes? Agora, aquela bronca de Farim, é que foi o caraças! Está aqui a malta metida, meia dúzia de gatos-pingados, ainda por cima meias-fodas, que não têm onde cair mortos, a ver se o tempo passa, agora chegam vocês, só me faltava mais esta!
Mas qual ajuda, qual merda! Vocês montam aqui as barracadas e tal, e depois é como os enxames de abelhas, abanam a árvore, as putas das abelhas, dá-lhes não sei o quê, parecem stukas a cair em cima de nós, e depois como é?
Depois vocês vão para o quentinho, para Bissau não é, p'rás cabo-verdianas, para o meio da coxas delas, lençoizinhos brancos que elas gostam, mosquiteiro e tudo, não é, que eu bem sei, também passei por Bissau, ainda me lembro, que é que julgas, a malta aqui nem o padeiro vê, há que tempos que já nem me lembro, ó pá, aqui só tropa, mais nada!
Ouviste, desculpa lá, cabo-verdianas, pois, obrigado, agora estou sempre a lembrar-me é da mão, sim é com esta, sou canhoto, porquê importas-te? Ah bem, era só o que me faltava vir agora um guerrilheiro de Bissau dizer-me para mudar de mão, nem a professora, a D.ª Eugénia, lá de Vinhais, boa senhora, coitada, aquilo é que era uma professora, agora já não há disso, o que é que estava a dizer, ah já sei, olha que nem a D.ª Eugénia, coitada da senhora, se cansou de falar à minha mãe, não me puxavam as orelhas, qual quê, amarravam-se a elas, foda-se, estás a ver como ficaram, espera aí, acabo já, de que é que estávamos a falar, ah a mão, claro já me lembro, estou a dizer-te, amigo, nem a D.ª Eugénia conseguiu mudar-me a mão, ouviste?
Ainda há bocadinho, antes de vocês chegarem, dei com uma revista, ai nossa senhora, uma revista qualquer, sei lá, qual Playboy qual quê, essas ficam todas em Bissau nas mãos do ar condicionado e tal, espera aí, já sei, Estúdio ou Studio, agora não tenho bem a certeza pá, era uma revista de cinema, a Ava Gardner, uma artista, sabes quem é? Sentada num banco alto, ai nossa senhora, não vais acreditar, umas pernas, o vestido um bocadinho acima, os joelhos à mostra, quando fui à sentina, baixei as calças pá, não sei como, sai-me o pau virado p'ra cima, quase encostado ao umbigo, não acreditas? Estás a rir-te, pá? Não acreditas?
Desculpa, amigo, agora a sério, desculpa pá, estavas a falar de quê? Estou meio zuca, não repares pá! Não era só eu que estava a falar, desculpa lá, mas tens que ver, estou aqui há não sei quanto tempo, há dias que não falo, há dias em que só falo comigo! Espera aí, o que é que eu estava a dizer? Ah, sim! Então, vocês levantam a caça, põem-se na alheta, depois é que é o caraças, nós é que vamos apanhar com os cagalhões em cima, foda-se, fodam-se todos mas é!
Não é trovoada, não! Não ouves, porra? Ouvidos de Bissau, claro, é só carros, não têm ouvidos para outra coisa. Aqui em Barro não há surdos, ouvimos tudo!

Pouco mais de um metro e meio, cabelo farto dos lados mais que em cima, bigode farfalhudo, Toilas, o alferes Toilas como era conhecido, comandava aquele destacamento com uma garrafa de Vat 69 mesmo à mão. O outro ao lado, numa esteira presa aos pilares da casa onde estava alojada a inteligência deste posto avançado, Barro, na fronteira norte com o Senegal.
Do quarto ao lado, onde funcionava o posto rádio, o radiotelegrafista a gritar, Bigene está a ser atacado!

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Bigene, Barro

Em Bigene bebia-se bem, capitão à cabeça. Ou comando ou não comando, o comandante à rasca com as palavras.
Não fico nem mais uma noite neste quarto, daqui a bocado, ponho-me na alheta. Ou acordava com os arrotos ou com as idas do capitão ao quarto de banho, amarrado às paredes, vómitos, água do autoclismo.

Estremunhado, parecem estrondos! O barulho da locomotiva na cama ao lado entrara em velocidade de cruzeiro. Rebentamentos? Ai são, são, calças enfiadas, botas sem meias, p'rá rua já!
Clarões para os lados de Barro. Um espectáculo magnífico e assustador, tal e qual como vira uma vez, quando numa noite de um Agosto longínquo, regressava das festas da Agonia em Viana.
Galgou as duas escadas para a sala do rádio, o telegrafista de serviço na cama, a sono solto. Não se passa nada aqui, o rádio aflito a chamar, não se calava nem o militar acordava. A pé, baixinho, só para os ouvidos do radiotelegrafista. Um pulo, o coração dele também pelos vistos, ligação estabelecida, finalmente! Barro à morteirada, há meia hora pelo menos, temos feridos.
Pessoal cá fora, todos com os olhos para Barro. Chamou o Valente, falaram à parte, outra vez para o quarto. Pepsodent, cuecas e meias no saco, água na cara, porta fora.

Para Barro, margens da picada, em coluna por um, bem espaçados, a 1.ª equipa à frente, destacada uns 50 metros, cuidados mais ainda que os habituais. Uma madrugada fresca, boa para andar. À medida que iam andando, os rebentamentos iam espaçando, até que deixaram de se ouvir.
Chegados a dois ou três quilómetros da povoação, meteram-se para dentro da mata, e deixaram-se estar ali até o dia começar a clarear. Quando voltaram à estrada, um dos homens da frente chamou a atenção para o que lhe parecia ser um papel, pregado numa árvore. Duas folhas dactilografadas, tudo em maiúsculas.

"Chamais bandidos aos que lutam pela sua terra e pela liberdade do seu povo. Vós bem sabeis contudo, que verdadeiros bandidos, são vosso patrão Salazar e a camarilha de ladrões que roubam o bom povo português, mandando os jovens da vossa pátria morrer ingloriamente por uma causa injusta e por isso de antemão perdida.
Sabeis que vossas mães, noivas, irmãos e amigos choram de dor pelos vossos camaradas que morrem neste país que não é o vosso, longe da vossa pátria e da vossa família. Os nossos chefes não estão no chão francês, estão dentro do nosso país!
Vós sois escravos de um tirano, de um velho caótico de 75 anos, peru vaidoso, que demonstrando claro desprezo pelas gerações modernas do vosso país, em conferência concedida ao chefe do "Bureau da Reuter", nas Nações Unidas, declarou que gostaria de se demitir das funções que ocupa mas que não o poderia fazer pela necessidade de dirigir a política portuguesa em África. O vosso patrão considera-se o único homem em Portugal com valor para dirigir o vosso país!
Nós não passamos fome!
Nós não passamos frio!
Porque estamos na nossa terra e a lutar pela nossa pátria.
Na vossa pátria milhares de vossos compatriotas passam fome e toda a miséria possível, vendo-se obrigados a imigrar clandestinamente para o estrangeiro para não morrerem de fome. Só para a França fugiram nestes dois últimos anos mais de cinquenta mil operários, conforme declarações oficiais francesas.
O nível de vida do vosso povo é o mais baixo da Europa e um dos mais baixos do Mundo! A tropa não vai embora?
Sim, infelizmente para vós, muitos ficam!
Não voltarão mais aos seus lares, não voltarão mais ao convívio dos seus, jamais voltarão a receber os carinhos dos pais, das esposas, dos amigos.
Ainda estais a tempo de ir pelo vosso próprio pé!"

Foram entrando devagar em Barro, povoação fantasma. Ouviam risadas de alguns nativos que se iam apagando à medida que os iam vendo, fechavam a cara, ficavam a olhar para eles.

Barro. 
Foto: © A. Marques Lopes, in Luís Graça e camaradas da Guiné.

Uma loja de uma família libanesa, daquelas que vendem arroz, agulhas de coser, frigoríficos, panos, mancarra, o que havia, sentado cá fora, cara de infeliz, chávena de café na mão, o Toilas a olhar para ele.
Calmaria em Barro era uma vez. Por acaso até estava acordado, foi um estrondo a abrir, só queria que ouvisses, não, trovoada não, pá, vai gozar com o caraças, um estrondo mesmo em cima de nós, merdas a partirem-se. Não tive dúvidas, só gritei, é malta, p'rós abrigos!
Sei lá que horas eram, nem me lembrei de olhar para o relógio. Do lado do rio não, fogo foi só daquele lado, do lado do Senegal. Respondemos pois, ai não, à morteirada para não ficarmos atrás e umas bazucadas de brinde. Para onde?
P’ráqueles lados. Queres ver as marcas dos balázios dos gajos? Uma vintena de passos dados, lá estavam as paredes da pequena casa que servia de posto de comando de Barro crivada de furos.
Não, ainda não saímos daqui, o Toilas, agitado. Como é que havíamos de os perseguir, que porra!
Temos cabrito para logo! E temos mais ali, para ocasiões especiais, como esta é que espero que não! Não pode ser tudo mau, não é? Quando voltais a sair? Esta noite não, porra! E o capitão, meteu-se muito nos copos? Aquele gajo já veio bêbado da metrópole, é um profissional do mergulho!

Cabrito arrumado com cerveja, a lua e o sono misturados, num momento parou tudo. Estás a ouvir, outra vez, ouviste? Filhos da mãe, os gajos outra vez! É Bigene, o telegrafista, como se os outros não ouvissem.
Outra vez para Bigene, a mesma caminhada, quase as mesmas horas, procedimentos idênticos. Só o barulho de helis para os lados de Bigene é que foi diferente. À entrada da povoação flagelada nessa noite, os nativos remexiam no chão, nos buracos frescos e, ou não os viam a chegar ou então faziam de conta.
Ar de apardalados, caras desanimadas, uma noite infernal. O capitão, decidido, tinha pedido apoio a Farim. Chegara há momentos uma equipa médica e mais um pide. E havia mais gente dentro das cadeias improvisadas.
Bigene estava a ser atacada de fora, mas também de dentro, as trajectórias das balas, da casa do administrador e de outras casas também, para o edifício onde os oficiais dormiam, não lhes deixavam dúvidas.
Militares num magote, a uma centena de metros além do arame farpado, rodeavam dois tipos brancos com ar de polícias e um desgraçado, àquela distância parecia cabo-verdiano, no meio deles.
São os pides que estão a interrogar o administrador do posto! Está farto de enfardar, toda a maralha já molhou a sopa no gajo, um soldado para outros que corriam para lá, no meio de grande agitação.
Diga lá, senhor Sony, como combinaram então o ataque? Recapitulando, o senhor veio até aqui, esperou junto a esta árvore o Ramos, não foi? E depois, abra lá essa cloaca, conte tudo, que a gente não sai daqui sem o senhor contar tudo, não é?
O desgraçado com marcas de sangue fresco na cara, nos braços, nas costas, os olhos exaustos! Até bocados de pele e carne lhe faltavam!
É guerra, é guerra, um militar inflamado!
O espectáculo continuava, sem intervalos, agora com mais gente, população local também, todos num magote, numa agitação ainda maior.
Um dia para esquecer, ou para não esquecer nunca mais!
O grupo tinha o regresso a Bissau marcado para dois ou três dias depois, por via marítima. No dia seguinte, ao alvorecer, partiriam para Barro, onde aguardariam instruções sobre a data e hora exactas de embarque. Durmo com o grupo na “arrecadação”.

A mulher do chefe de posto, de vestido preto sem mangas, o gabinete do capitão, o tipo a levantar-se, beijo na mão, o sentar elegante e digno dela, o capitão a passar a mão pela careca, olhos de uísque, a porta a fechar-se com estrondo, o coração aos pulos, a querer abrir a porta, não abria, a maçaneta soltou-se com a força, a mão com a maçaneta aos murros na porta, capitão, capitão, não!

Acordou sobressaltado, os estrondos enormes lá longe, outra vez Barro, toda a gente a pé, a correr para a rua, o mesmo espectáculo.

Os ataques às povoações de Barro e Bigene, fisicamente não os tinham apanhado, nunca souberam nem como nem porquê, coincidências apenas.
Alguém alvitrara que as mudanças constantes terão sido um motivo, outros que talvez o IN estivesse a jogar ao gato e ao rato. Chegaram a sair aí pelas três ou quatro da tarde, fizeram grandes desvios pelo mato para disfarçar, dispuseram-se em frente a Barro uma vez e outra em Bigene, aguardaram emboscados noite fora até o Sol nascer, que os guerrilheiros flagelassem para tentar apanhá-los na retirada, eufóricos como costumavam mostrar-se quando não tinham baixas.
Nunca aconteceu. Emboscadas, patrulhamentos, nem um contacto.
Donde vêem eles? De Sano, toda a gente falava em Sano. É de lá que os gajos vêem, é um acampamento grande!
Onde fica isso, o que é que há lá, algum guia para nos levar? Uma noite destas vamos lá acordá-los. Nem penses, comigo não contes, só com uma ordem de operações na mão, arrumara definitivo o Toilas, com um cigarro a cair da boca.

E, na noite desse dia em que chegaram a Barro, prepararam-se para irem a Sano, ao Senegal, sem mais informações a não ser os caminhos que os guias de Barro conheciam. Era o 1.º dia de Dezembro, uma data festiva. O Toilas a insistir, esta noite não pode ser, hoje até é feriado! Toilas, é uma noite muito conveniente.
Um incidente à partida, invulgar para os costumes deles. O sargento Valente pegou-lhe num braço e afastaram-se uns metros.
Estamos com um problema na equipa do Black. O Bacar Jassi recusa-se a levar o lança-rockets e as munições.
Como? Recusa-se? Sempre foi assim, desde sempre, outros carregaram sempre com o material, porque não quer, porque é que o Black não consegue que ele entenda?
Que é muito peso, só quer levar 4 munições, os outros que levem as restantes!
Cheira-me a esturro, Valente, não pode ser, o Albino leva a MG, as fitas, mais de 10 quilos!
Foi ter com o Jassi, ouviu-lhe as razões, uma birra muito estranha.
Os rockets vão, contigo ou com outros, Jassi!
Não posso, meu alferes!
Algemas nas mãos, enfiaram-no num galinheiro com suspeitos apanhados nos últimos dias, arame farpado à volta, enquanto o grupo se aprestava para sair. Um comando estar preso com turras, o Jassi1 a chorar, aos gritos!
Tudo pronto para a saída, duas secções do pelotão do Toilas incluído, e o Valente outra vez, que o Bacar Jassi queria falar com o comandante do grupo. Jassi achava ter razão, que era peso a mais, que na instrução o alferes sempre dissera para pensarem com a cabeça, mas que estava pronto para cumprir a ordem e pedir desculpa.
Enquanto o resto do grupo aguardava que o sargento Valente soltasse o Jassi, o grupo começou a sair de Barro equipa por equipa. Duas ou três centenas de metros adiante, aguardaram que o grupo se recompusesse e puseram-se a caminho, os dois guias à frente, o Jamanca logo a seguir e o grupo todo atrás.
Cerca de uma hora depois arrancou a tropa de Barro, iria ficar instalada a cerca de um quilómetro de Sano. Uma noite boa para andar, lua fraca, noite seca, um pouco fresca.
Aí pelas quatro horas viram luzes, ouviram galos, estavam perto de uma povoação, os guias a dizerem que Sano era em frente, aquelas casas que se recortavam ao fundo. Fizeram o que deviam, colaram-se ao chão, em linha, bem separados. Curvado, percorreu o grupo, parelha por parelha, tudo em ordem.
Estamos em Sano, parece não haver dúvidas, Valente.
Pois, uma povoação no Senegal, se calhar só civis, guerrilheiros o que se sabe até agora é só conversa, mais nada, histórias que têm um acampamento aqui nesta zona. Isto aqui à nossa frente é uma povoação, galos a cantarem, é melhor pensar bem, não? E o meu alferes nem ordem escrita tem!
Mais de meia hora a mirarem Sano. Ok, Valente, não vamos fazer nada2. Civis lá dentro, amanhã o Shenghor, o Touré3, os N’Krumahs4 todos, um barulho danado na ONU, o Salazar furioso, inquéritos, mais chatice, ninguém nos mandou entrar no Senegal, é, vamos mas é dar meia volta, decidiu algo contrariado.
Foi o que fizeram, não sem um perguntar, então, e os rockets voltam outra vez? E outro, nem um aviso deixamos? Achas que é preciso, o furriel Azevedo a cortar.

Regressaram a Brá todos enlameados, por fora e por dentro. A guerra era para ser feita sem alardes, com inteligência. Havia que preservar o grupo de tarefas inúteis, de algumas guerras que uns escritores de relatórios gostavam de desenhar, para depois realçarem no papel a intrepidez da acção, a argúcia do ataque, os resultados brilhantes, que em vários casos só eles viram. Quem os lia no QG, achava uma autêntica felicidade, tanto fogaréu, ataques tão violentos, tantas baixas no In e a NT sem uma beliscadura, ou então uns feridos ligeiros só.
Várias vezes ouvira apartes deste tipo, das bocas de pessoal das 2.ª e 3.ª Rep., em pleno QG em Bissau.

Já à noitinha em Brá, tão exausto que se deitara só para matar saudades da cama, antes de tomar um bom banho, a cara ainda preta de carvão e suor, a voz do Vilaça, com a corda toda, a contar histórias de Bissau, ficara colado ao colchão como um íman, a noite toda.
Quando abriu os olhos viu os dentes brancos do Sany, sentado a olhar para ele. Estava sem calças, sem botas, sem meias, em cuecas só. Sem dar por nada, o Sany tirara-lhe a roupa toda mal chegou pela manhãzinha. Saco arrumado no canto, o quarto outra vez um brinco.
Infamara Sany, herança do capitão Saraiva, era um tipo raro na Guiné daqueles tempos. Uma dedicação tão treinada que incomodava. Em frente do Sany nem se arriscava a tirar a camisa. Quando ia pegar nela outra vez, já tinha ido para lavar. Botas a reluzir, fardas lavadas a cheirar a Tide, engomadas que era um regalo, o quarto a brilhar, nunca em casa alguma em que estivera antes, vira tanta coisa tão limpa ao mesmo tempo!
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Notas:
1 - Bacar Jassi nasceu em Fulacunda, em 7 Janeiro 1944. Foi incorporado em 13 Set. 1964. Tenente da 3.ª CCmds Africanos em 1974. Fuzilado no Cumeré em data não apurada.
2 - 01/12/65, Op. "Soquete", base de Sano, zona de Barro-Bigene. Apoio do BArt 733. Com a base/aldeamento à vista, bem dentro do território do Senegal, foi decidido não atacar.
3 - Sékou Touré, Presidente da República da Guiné-Conacry
4 - Kwame Nkrumah foi Presidente do Ghana de 1960 a 1966

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 6 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14975: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IX Parte): Mais dois lugares è mesa; Bomba em Farim e Rumo a Barro

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14975: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IX Parte): Mais dois lugares è mesa; Bomba em Farim e Rumo a Barro

1. Parte IX de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 2 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - IX

Mais 2 lugares à mesa

Regressado de uma saída qualquer, com o estômago roído de saudades de um frango assado com batata frita, pediu ao Alegre que o largasse no Portugal. Viu-os cá fora sentados na esplanada a observarem a Praça cheia de movimento àquela hora. Estavam ainda nos cumprimentos e o “Carlos Morais” a chegar, acompanhado pela jovem.

A “Helena”, deslumbrante, já mais ambientada com o calor, perturbava. Todos repararam, uns a disfarçarem mais que os outros, que vinha de acordo com as noites quentes, um vistoso vestido claro, de seda ou do género, a cair-lhe muito bem, seguro nos ombros brancos, o decote em vê, o sutiã cor de carne a espreitar lá de dentro. E a brancura da pele, rara por aqueles lados, um ou outro talvez até já nem se lembrasse que havia mulheres com aquela cor.
Dentro da sala de jantar, alguma cerimónia nos lugares, nada de admirar, era a primeira vez que os 4 tinham companhia. Fico aqui, o Carlos com a mão numa cadeira. Em frente deles, a Helena tinha o Vilaça de um lado, e do outro o Gião com os olhos minúsculos dentro dos óculos da cor e da grossura do fundo de uma garrafa de champanhe. Ficaram de pé, à espera que o Vilaça chegasse a cadeira da senhora para a mesa, depois sentaram-se todos, devagar, os cuidados com as cadeiras, guardanapos nos colos, as cerimónias todas.

Quando ainda eram quatro, não tinham sentido qualquer necessidade de marcar os lugares, iam-se sentando à medida que iam chegando. A entrada em cena de uma senhora obrigou-os a alterar os procedimentos. Não que tivessem tido necessidade de fazer uma reunião para o efeito, apenas concordaram que a presença da “Helena” alterava tudo, obrigava-os a cuidados que antes não eram necessários. Cada um senta-se onde lhe der na gana, desde que nós fiquemos com os olhos virados para a rua, não é? E atenção à língua!
Passaram a ser seis. Nos primeiros tempos as cadeiras estiveram sempre ocupadas, coincidências, claro. Quando algum falhava apareciam outros, uns conhecidos e outros nem tanto, grandes cumprimentos como se tivessem andado todos na mesma turma, perguntas e mais perguntas, o pessoal sentado a levantar-lhes os olhos, os conhecidos não sabiam donde a perguntar-lhes está ocupada?
No fim do jantar saíam para a praceta, conversavam ainda um bocado antes de cada um seguir aos seus destinos.

“Passou mais uma semana sem que tivesse recebido notícias tuas. Começo a ficar preocupada com o teu silêncio. Espero ainda receber carta até terça-feira de manhã mas já não tenho grandes esperanças de que isso venha a acontecer e vejo que terei de esperar mais uma semana inteirinha que me parecerá interminável.”

No quarto tentava pôr as cartas em dia, depois de amanhã era dia de S. Avião, a correspondência mais importante a apertar, queria saber datas de férias. Férias? Ainda nem pensara como descalçar a bota, o que fui arranjar! 

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Bomba em Farim

Uma das mulheres do Camará à porta de armas, que o marido, não dava dinheiro há manga1 de tempo, tinha que pagar arroz, ele não dá dinheiro, nosso alfero! E porque vens falar comigo, eu não sou teu marido, fala com o Tomás!
Mas, nosso alfero, ele não vai a nossa casa, meninos não têm que comer, eu não tem que dar!
Como te chamas, qual é teu nome? Binta? Nome lindo, e quantos pesos bó2 precisa?

Um dia normal, igual a tantos outros. Aplicação militar de manhã, banho, carreira de tiro, almoço, uma sorna a seguir. Lá para as quatro, frente a Brá, exercícios com as equipas, progressão das parelhas por lances, projécteis nos troncos das palmeiras quando mostravam o quico, eles outra vez aos ziguezagues, granadas ofensivas para cima, reunir as equipas para o regresso. No caminho em direcção ao aquartelamento, alguns mais descontraídos, já relaxados, a conversa a alargar-se, uma granada ofensiva para cima, para lhes lembrar que nas guerras não há descansos. E nove deles para o hospital, dar trabalho ao pessoal de enfermagem, para retirar um a um, os pequenos estilhaços e areias que lhes tinham calhado em sorte.
À noite, crosse até à entrada de Bissau, pelas margens da estrada, a cantarem, eu vi a BB na avenida marginal, a andar de lambreta, mas que lasca bestial, toda nua, nua, nua, toda nua, volta à rotunda, para trás até Brá, eu vi a BB3.
Para o quarto de banho, para o chuveiro, para onde há-de ser? E depois, tens alguma ideia? Ideias, Vilaça, não me fales em ideias, às vezes são tantas que até atrapalham.

Um dia, curso terminado nem há uma semana, tinha tido uma que, passados meses, ainda o moía. Fora até uma carreira de tiro que tinham improvisado, uns quilómetros para lá da base aérea. Pegara na G3, um cunhete ainda fechado, sozinho, jeep na esgalha, como de costume. Mirara os alvos, garrafas de cerveja, de uísque, latas e mais latas, umas pelo chão, outras penduradas nos arames, umas atrás das outras. Do cunhete sobrara a caixa de madeira, pisava cápsulas, pelo chão mais de cinco mil de certeza, as que tinha gasto mais as que por lá tinham ficado de sessões anteriores. Depois, mais calmo, com o final da tarde a aproximar-se, sentara-se no jeep, arma com o cano a deitar fumo no banco de trás, ouvidos a zunirem, de regresso a Brá, uma brisa a dar-lhes. Arma no quarteleiro, para limpeza completa.
No dia seguinte, acordara com a voz esganiçada do Sany, capitão Saraiva quer falar com nosso alfero.
Encontrou o capitão no gabinete às voltas com o relatório do final do curso. Os bons dias que dera não tiveram resposta, se calhar não ouviu, embrulhado com a papelada, nada que fosse da especialidade do Saraiva.
Viu-o levantar-se, o olhar de poucos amigos, e o que ele tinha para lhe dizer.
Uma G3 na mão, o capitão disparou, quem foi o asno que fez esta merda? Olhou para a arma, era a sua! Um pequeno lanho na ponta do cano, sem tapa chamas.
Não foi um asno, fui eu, a arma é a minha, não, não há dúvida, é mesmo a minha, admitiu depois de ter passado os dedos pela racha.
Ora bem, os olhos do capitão, como é que o alferes quer resolver isto? Vou pagar, tem que ser, olhos nos olhos.
Pagar vai, isso está fora de dúvidas, agora vamos ver como quer pagar, não é?
Aqui há sempre alternativas, responde o capitão. A expulsão ou um par de chapadas, a escolha é sua! Chapadas, expulsão?
A expulsão é pública, sabia-o bem, já a fizera a um cabo. Os grupos formados em sentido, o clarim, o cabo em frente, a tremer todo, saco de objectos pessoais no chão, escolta ao lado, a nota de expulsão em voz alta, o chefe de equipa a arrancar de uma vez o crachá, os distintivos, o lenço, a entrega da guia de marcha para o QG, a escolta a conduzi-lo à porta de armas, esta a fechar-se, tudo seguido.
O par de chapadas devia ser em privado, mas mesmo assim, chapadas? Na cara?
Quem lhe costumava dar umas chapadas era o pai, há uns bons anos já. Depois, que se lembre, só lhe foram aos focinhos nas aulas de boxe, claro.
Não, não sabia o que fazer, as alternativas não eram fantásticas. Vou pensar, meu capitão.
Aqui e agora, alferes. Ficamos os dois, à espera, até se decidir.
Ao lembrar-se como tudo terminara saiu-lhe uma gargalhada. O Saraiva a passar-lhe algodão e água oxigenada, o nariz a ferver, um abraço e o convite para jantar no Grande Hotel.
Ideias, Vilaça, não me fales em ideias!

Ao sair do banho, tinha visitas, o capitão Rubim passava os olhos pelos títulos arrumados na estante.
Há bocado, em Farim, num batuque com muita gente, a tabanca em peso e alguns militares nossos também, um gajo qualquer lançou para o meio deles um saco com granadas de mão, defensivas e ofensivas, à mistura com pregos, bocados de metal, garrafas, eu sei lá que mais. Acabou o batuque, foi tudo pelos ares!

Tabanca de Farim morucunda

O Dakota aterrou lá de noite, com os faróis das viaturas a iluminar o campo. O hospital está a abarrotar, vai por lá um pandemónio.
Tem o dia de amanhã para preparar o seu grupo. Vai até àqueles lados, uns dias.
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Notas:
1 - Crioulo: muito
2 - Crioulo: você
3 - Brigitte Bardot, actriz francesa muito famosa na altura.
4 - A PIDE, em mensagem por rádio existente nos arquivos de Salazar na Torre do Tombo, escrevia que, no dia 1 de Novembro de 1965, cerca das 20 horas, fora lançado um engenho explosivo para o meio dos africanos que se encontravam num batuque em Farim. A explosão teria provocado 63 mortos e feridos, na sua maioria mulheres e crianças. Foi detida uma meia centena de pessoas. Confissões obtidas levaram à detenção de um tal Issufo Mané, que declarou pretender atingir alguns militares. Para o fazer teria recebido 14 contos de Júlio Lopes Pereira, o qual, por seu lado, actuara por indicação do chefe da Alfândega de Farim, Nelson Lima Miranda. E este teria vindo a declarar que a bomba fora lançada a mando da direcção do PAIGC. (AOS/CO/UL- 50-A, Informações da PIDE, 1965-1966, 86 subdivisões, pasta 2, fls. 636, 637, 638, 641 e 642).

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Rumo a Barro

A caminho de Bula, atravessaram o Rio Mansoa em João Landim, meteram-se outra vez a subir até embarcarem em S. Vicente, Cacheu acima, numa LDM5. Sentados no convés, a dormitarem, um marinheiro de ordenança a perguntar, quem é o comandante do grupo, ah aquele ali, é alferes, tenente ou quê, cumprimento militar para o alferes, de quico em cima dos olhos, a passar pelas brasas.
O marujo, cheio de maneiras, como se estivesse num Hilton, o senhor comandante tem muito gosto em convidar o senhor alferes para almoçar.
Uma pequena sala de refeições, mesa redonda para os dois, pão e manteiga na mesa, grumete a servi-los, de travessa na mão, um luxo! Não havia dúvida, o pessoal da marinha tratava-se bem.

Pés na margem, Unimogs à espera, todo o pessoal em cima das viaturas a caminho de Barro.
Toilas, Alferes Toilas, é assim que sou conhecido aqui. Mas, espera aí, já te conheço, porra, estive contigo em Buba, lembras-te? Não? Duma vez em que andamos perdidos a noite toda, naquele tarrafo6, lodo por todo o lado, nem conseguimos entrar, não te lembras?
Estava a ver que não te lembravas! Como vai isto? Por aqui, até agora, tudo ok. Em Bigene é que as coisas têm estado mais para o aquecido. A PIDE está lá, prenderam lá uns gajos, aquilo está tudo minado, os turras estão infiltrados em todo o lado, pá!

O Sargento Valente alojou o grupo num sítio precário como era tudo ali. Uma rua e pouco mais, algumas casas de tijolos e cimento, um comerciante libanês que vendia tudo e a tabanca atrás.
Aproveitou para dar uma volta pela pequena povoação com o Alferes Toilas. Este, enquanto ia partindo mantenhas7 com pessoal que se cruzava, aproveitava para perguntar se tinham visto pessoal novo a chegar nestes dias. Não, alfero, cá tem8 chegado, o negro descalço. Atenção Mané, vê lá, se pessoal novo chegar avisa alferes, correcto?

Povoação de Barro. 
Foto: © Coronel A. Marques Lopes. Com a devida vénia.

Na manhã do dia seguinte, ao nascer do sol, despedira-se do Toilas. Vamos dar uma volta por aí. Arrancaram para Bigene, pouco mais de uma dúzia de quilómetros a pé, pelas margens da picada.


Tudo calmo. Bigene à vista, um Barro um pouco maior. Foram entrando, espaçados, em coluna por um, como era hábito, com os nativos a olharem para eles.
Capitão Rosas, baixo, atarracado, para o forte, a caminho dos 40. Boa ideia terem vindo, os gajos ontem estiveram aqui. Umas morteiradas e rajadas de metralhadora. E depois rajadas também de dentro. Uma hora e tal que durou esta merda!
Sim, de dentro também! Sei lá como entraram, entraram, como quer que saiba?
Não, felizmente, dois feridos ligeiros só, nada de grave, com estilhaços de uma morteirada para além daquela casa, ali. Tinha lá um pelotão alojado!
A PIDE está cá, parece que um gajo de Farim está a falar, temos metido uns gajos dentro.

Os gajos, ah, senhor capitão, a comer à vossa mesa, ah? Agora sente-se capitão Rosas, sente-se, se não cai... o pide, camisa de caqui de cor indefinida, cabelo a cheirar a Panténe, a entrar no posto de comando da Companhia, Venha comigo, o capitão para o alferes recém-chegado, vamos ali fazer uma visita, com este senhor. Venha, venha daí, vamos conversando!

Uma casa ampla, flores em vasos à entrada, pequena horta nas traseiras.
"Panténe" a abrir o portão, o capitão com o alferes atrás, duas ou três escadas.
Uma senhora de trinta e poucos, graciosa, cabo-verdiana, mão na porta, surpreendida com as visitas. Meu marido está no banho, vou-lhe dizer, voz de medo, o pide, desconfiado, a olhar para o capitão. Nós entramos, com a sua licença, minha senhora.
Mas ele está no banho, eu vou chamá-lo, não demora!
Uma sala espaçosa, mesa, as cadeiras, mais duas grandes para a preguiça, motivos africanos, estatuetas de pau-preto, coisas assim. Bons momentos devem escorrer aqui, os dois, as tardes a irem-se na calmaria, a imaginação a falar com ele.
O administrador do posto de Bigene, algemado com as mãos atrás, cabelo ainda a escorrer, um equívoco, senhor agente, só pode ser, a mão do pide nele.
Deixa apertar a camisa, Sony, tira as sandálias, calça o sapato, a senhora ajoelhada, aos soluços, lágrimas pela cara abaixo.
Bem boa, ah, mesmo no ponto, não digam que não marchava já, cá fora o capitão, gorduroso, os olhos pequeninos.
Que merda! Mão na cara, a limpar os perdigotos. Um cheiro a uísque, uísque estragado, azedo.
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Nota
8 - Não

(Continua)
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Nota do editor

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