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Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena e simples história das minhas andanças pela Mata dos Madeiros. Os segredos militares, quando bem usados, eram muitas vezes as bases dos sucessos e da disciplina. O Cap Mil Rogério Rebocho Alves usava-os com mestria ponderada.
Para ti e para os nossos camaradas vai um abraço imenso do
José Câmara
Memórias e histórias minhas (28)
Quando os segredos da guerra se tornam em surpresas
No regresso de Bissau a coluna da CCaç 3327 foi pernoitar ao Bachile, sede da CCaç 16. Ali, talvez por falta de instalações ou pela falta de lembrança de quem comandava, não éramos acomodados ou recebíamos instruções de defesa em caso de ataque. Nas poucas noites que ali pernoitei, sempre estranhei esse procedimento.
Independentemente dos motivos que me faziam sentir parte de uma outra guerra, chegada a hora do recolher, acomodei-me, juntamente com os meus camaradas, no alpendre de um dos edifícios ali plantados. A minha amante, como era seu costume, recolheu-se entre as minhas pernas, encostou o seu corpo ao meu e apoiou a sua cabeça no meu ombro. No nosso primeiro contacto surgira um sentimento profundo, aquilo a que bem poderíamos chamar amor à primeira vista. Os adornos, amarrados à minha cintura, pareciam sorrir daquele inocente amor, prontos para ajudar em qualquer pezinho de dança que acontecesse nas imediações.
José Câmara com a sua amante, par inseparável, algures na Mata dos Madeiros
A noite avizinhava-se longa, cheia de visitas indesejáveis. Estas, talvez deliciadas com o meu cheirinho natural e pela falta daquele perfume pestilento, com o qual normalmente me besuntava, eram de tal maneira agressivas que me faziam perceber que não estava necessariamente no paraíso. Mesmo assim sonhei, de olhos bem abertos, com chuvas torrenciais que me levariam a Teixeira Pinto e aos seus destacamentos. Chuvas que só tinham aparecido uma vez e que tardavam em reaparecer.
Passei em revista a minha ida a Bissau. Naquela cidade as pessoas, dentro do possível, tentavam passar pela vida. Eu, ali sentado contra uma parede, só podia fazer pela vida. Não podia aspirar a mais.
Pela manhã, a nossa coluna juntou-se à escolta matinal que viera do acampamento e rumámos à Mata dos Madeiros. Ali ainda não havia notícias quanto à nossa saída daquele lugar. Tínhamos entrado em compasso de espera.
Na noite de 10 para 11 de Junho fomos surpreendidos com outro temporal. Tal como acontecera no primeiro, fiquei extasiado com aquele espectáculo da natureza que tinha tanto de belo como de pavoroso. Os relâmpagos e os trovões deflagravam por todos os lados, o firmamento transformava-se numa autêntica bola de fogo e a chuva caía como um caudal. Esses elementos naturais chegaram repentinamente e com a mesma ligeireza se foram, dando lugar à lua e às estrelas.
Sempre confessei à minha madrinha de guerra o meu fascínio por esses dons da natureza. Desta vez não foi diferente. Mas estas chuvas trouxeram outra novidade, em tudo muito semelhante às primeiras, as que levaram os capinadores a regressar aos seus lares com as primeiras chuvas e às sementeiras do arroz.
Agora, com este novo temporal, foi a vez dos trabalhadores das máquinas recusarem continuar a trabalhar na estrada.
Sobre este assunto escrevi o seguinte:
Mata dos Madeiros, 11 de Junho de 1971
“Há algumas coisas novas por aqui, entre elas a proximidade da nossa saída deste sítio. A minha afirmação é bastante contingente pois que, formalmente, nada se sabe. Falar assim é proveniente da recusa dos trabalhadores das máquinas que estão a trabalhar na estrada, em continuarem os trabalhos.”
Essa recusa, melhor a saída destes últimos trabalhadores da estrada, deixou-nos apreensivos. Sabíamos que sem civis ficaríamos mais vulneráveis. Compreendíamos isso, mas nada se poderia fazer. A nossa ordem de marcha tardava a chegar, ou se existia e alguém sabia dela, neste caso o nosso comandante de companhia, mantinha muito bem o segredo.
Escrever à minha madrinha de guerra não era um passatempo, mas uma necessidade
Por incrível que pareça, na correspondência seguinte, não voltei a tocar na saída da CCaç 3327, diria iminente, da Mata dos Madeiros.
No dia 15 de Junho de 1971, escrevi à minha madrinha de guerra aquele que foi, sem saber que o era, o último aerograma que escreveria no acampamento da Mata dos Madeiros. Sobre a situação militar foi isto que lhe escrevi:
“Cá vai mais este bate estradas ao teu encontro para uma pequena conversa, dando assim algumas notícias minhas. Estas são poucas e sem interesse, daí o serem breves. Por aqui tudo continua bem, felizmente.
Mais uma saída para o mato, sem problemas na ida e no regresso. Isso, por si só, é motivo suficiente de regozijo; aliás, nem poderia ser de outra maneira.”
No dia 16 de Junho de 1971, dois grupos de combate, sendo um deles o meu, saíram normalmente para mais uma acção de patrulha e emboscada com a duração de 24 horas. Como todas as outras que fizéramos antes, esta também correu bem. A surpresa estava reservada para o nosso regresso, na manhã do dia 17.
Ao entrarmos no acampamento, como vinha na frente com a minha secção, reparei de imediato que algo de anormal se passava no acampamento, sobretudo, não vi os grupos preparados para nos substituir no mato. Apesar das minhas observações quase nem tive tempo para perguntar o que se passava.
Que teria sido de mim, de nós, sem a sua protecção
As ordens breves e rápidas voavam por todos os lados. Passar de imediato pela cozinha de campanha, beber o café, levantar nova ração de combate, preparar as malas pessoais, carregá-las nas viaturas, acima de tudo não destruir nada no acampamento. Tudo cumprido sem confusões, sem rasgos de alegria, disciplinadamente. Nessa altura, apenas sabíamos que tínhamos cumprido uma missão e que iríamos embalar noutra.
Ao fim da manhã, a coluna da CCaç 3327 punha-se em marcha a caminho de Teixeira Pinto. Para trás ficava a Mata dos Madeiros, um acampamento intacto, as antenas de rádio montadas e alguns dos nossos camaradas das Transmissões, entre eles o Fur Mil João Nunes Correia, agora protegidos apenas e só por uma das outras forças de intervenção.
Aquilo que deveria constituir um motivo de alegria, a nossa saída daquele inferno, acabava por ser um motivo de grande preocupação. Tudo levava a crer que a nossa missão na Mata dos Madeiros ainda não tinha terminado.
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Nota do Editor
Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8597: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (27): Algumas fotos de Tite