sábado, 18 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P540: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (A. Marques Lopes, cor inf , DAF, na reserva)

A. Marques Lopes, coronel, DFA, na reserva.

Selecção e comentários do A. Marques Lopes:

Também sei dos massacres da UPA no Norte de Angola, e acho que ninguém os esqueceu. O Mário Dias (1) não sabe, mas eu também sei do massacre de Mueda, em 16 de Junho de 1960, em que as autoridades coloniais mataram centenas de nativos; do massacre da Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961, durante uma revolta dos trabalhadores da Cotonang, tendo a tropa e a aviação matado, segundo o MPLA, mais de 10.000 angolanos; ou do massacre de Wiriamu, em 1973.... e também sei de quem, em Barro, matou, duma vez, 10 elementos de população civil controlada pelo PAIGC. Preto também foi massacrado...

Este é o texto que o Luís Cabral (2) escreve no seu livro Crónica da Libertação” (Lisboa: O Jornal. 1984. 65-73) a propósito do massacre de Pidjiguiti (3). Ele fala em mais de 50 mortos. Como ele refere nem a PIDE acreditou que a greve tivesse sido espontânea. E vejam-se os nomes que ele refere como empregados da Casa Gouveia, além dele próprio. E a Casa Gouveia é que tinha a maior parte dos marinheiros amotinados, também refere.

1. Excertos de Crónica da Libertação, de Luís Cabral (1984):

(...) A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de "civilizado». Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.

O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé, quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.

Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.

Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho, se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua açção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.

A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido [ PAIGC ] tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.

A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné [Conacri] e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.

Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.

A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.

Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens estavam estacionados no recinto do cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.

Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia, mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.

As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer - mais pão, mais justiça.

No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.

A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.

Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem, voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.

A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.

Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heróicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.

Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.

À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.

À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais, iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.

Guiné-Bissau > Bissau > Cais do Pidjiguiti
© Paulo Salgado (2005)

Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguití e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin (4) e outros colegas. Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.

Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.

Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.

Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pêlos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.

Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides [Pereira] e o [Fernando] Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar [Cabral] que se encontrava nesse momento em Angola. No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.

Entretanto, o Aristides tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.

Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade ?

O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto. O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo —disse o director-geral — e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.»

Toda a gente sabia o que eram os interrogatórios da PIDE, em Lisboa. Quantos não foram os patriotas portugueses e africanos que sucumbiram às torturas e maus tratos da polícia fascista!

O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela policia.

Carlos saiu nesse mesmo instante à minha procura. Foi primeiro à minha casa, embora isso tivesse sido imprudente, pois se alguém o visse a entrar no fim da tarde no prédio de três andares onde eu era o único africano residente, saberia logo que ele só podia dirigir-se à minha casa; procurou-me em seguida em casa da dra. Sofia Pomba Guerra.

A noite acabava de cair bruscamente quando finalmente me encontrou na Sede do Benfica. Chuviscava um pouco, mas mesmo assim saí à rua para falarmos longe de possíveis ouvidos curiosos. Carlos estava acompanhado de um amigo, quando me pôs ao corrente da situação. Disse-lhe que fosse imediatamente esconder-se e que só se mostrasse quando eu mandasse chamá-lo. Pedi-lhe o seu impermeável, e confirmei que tudo seria tratado de forma que ele pudesse sair do país ainda naquela noite.

Tomava-se indispensável encontrar o Elysée Turpin, o homem do nosso grupo capaz de conseguir um meio de transporte. Com a ajuda do meu irmão Toi, que tinha uma motorizada, saímos à procura do Elysée que sempre considerámos o homem mais difícil de encontrar em Bissau, depois das horas de trabalho. Encontrámo-lo finalmente e, informando-o da situação, disse-lhe que tinha de conseguir um carro para pôr o Carlos na fronteira naquela mesma noite. O único indivíduo das suas relações que tinha uma camioneta era conhecido notoriamente pelas relações com a polícia, mas não tínhamos outra escolha e não havia tempo para hesitações. Ficou combinado que o Elysée pediria o carro explicando abertamente qual o objectivo da missão. Confiámos assim nas boas relações existentes entre os dois, e também porque o Carlos era um jovem com muita simpatia e respeito, em Bissau, para o que concorria, além da sua idoneidade moral, o facto de ser um excelente praticante do futebol.


Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade, da época a seguir à independência.
© A. Marques Lopes (2005)

Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem. Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos. Estava muito escuro e continuava a chuviscar. Aproximava-me da casa da sua mãe, no Chão de Papel. Ia todo envolvido no seu impermeável, quando senti que um carro se aproximava muito devagar atrás de mim. Não parei. Os faróis chegaram tão perto que pareciam queimar-me. O pára-choques do carro quase bateu nas minhas pernas, quando parou.

Voltei-me então e vi que se tratava de um jipe militar cheio de homens fardados; pensei logo que a sua chegada estava relacionada com a prisão do Carlos. Os militares riam quando arrancaram de novo, continuando a sua ronda em direcção à Central Eléctrica. Confesso que, apesar do fresco da chuva, estava a transpirar dentro do impermeável de borracha. Felizmente, os homens só quiseram divertir-se à minha custa.

Voltei para trás e aproximei-me da casa do Carlos. Tive de pedir ao irmão que o fosse procurar. É que eu tinha-lhe dito que se escondesse bem, mas não ficou estabelecido onde.

O Elysée apareceu confirmando que tinha conseguido o carro. Ele seguiria pela estrada do Aeroporto e o Carlos, na sua motorizada, iria juntar-se-lhe, logo que o víssemos. Ficou ainda assente que o Elysée faria tudo para estar de regresso antes das sete da manhã, para não faltar ao trabalho, não fosse a polícia ligar a sua ausência com a fuga do seu colega de serviço.

Chegou finalmente o Carlos. Via-se que estava preocupado, apesar da sua calma aparente. Dei-lhe o dinheiro e o impermeável, abraçámo-nos, tomou a motorizada e partiu. Eram mais ou menos dez horas da noite. O seu irmão mais novo devia passar pela Gouveia à hora da abertura dos escritórios para dizer que o Carlos estava doente.

Foi só depois da partida do Carlos, quando regressava a casa na pequena motorizada conduzida pelo meu irmão, que me apercebi dos erros e imprudências que foram cometidos: ele andou à minha procura em minha casa e noutros lugares e era muito natural que nos tivessem visto juntos conversando à porta do Benfica; entretanto, na manhã seguinte, nada se sabia do Carlos em Bissau. Convenci-me de que a PIDE, a famigerada PIDE que acabava sempre por saber tudo, facilmente me identificaria como sendo uma das pessoas que intervieram directamente na fuga do Carlos.

O meu estado de excitação era, pois, bastante grande no dia seguinte. Tentava imaginar como seria interrogado pela polícia e ia formando mentalmente as respostas que daria às suas perguntas. Recorri à dra. Sofia e ela aconselhou-me a tomar um calmante que me ajudaria a controlar. Arranjou-me um medicamento a que chamou a «pastilha da felicidade». Eu precisava de facto de muita calma, no caso de ser interpelado pela PIDE...

À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7.30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda.

Antes das oito horas, já o irmão do Carlos aparecia para dizer que ele estava doente e não podia apresentar-se na Gouveia. Alguns minutos depois, chegavam os homens da PIDE. Contactaram a direcção e perguntaram pelo Carlos. Saíram imediatamente e foram à casa da sua mãe, mas o Carlos tinha desaparecido sem deixar rastos.

O Elysée, entretanto, pedira licença para sair. Ia dormir...

Logo que recebeu a comunicação sobre o massacre de Pijiguiti, o Amílcar fez-nos saber que passaria por Bissau o mais breve possível, para fazermos o balanço dos acontecimentos e definir o caminho a seguir. (...)


Comentário do A. Marques Lopes:

Naturalmente, as consequências trágicas desta greve foram aproveitadas pelo PAIGC. Como refere o Luís Cabral, a páginas 75 e 76 do seu livro:


2. Excertos de Crónica da Libertação:

O massacre de 3 de Agosto, com todo o seu terrível conteúdo de horror e desespero, servira para acordar a consciência de muitos nacionalistas hesitantes. Veio provar a necessidade de lutar por todos os meios para destruir o colonialismo, o que exigia um trabalho longo e duro, pleno de sacrifícios.

Guiné > Amílcar Cabral (1924-1973), o líder do PAIGC, soube tirar as devidas ilações dos terríveis acontecimentos do dia 3 de Agosto de 1959. Ainda hoje se discute se a greve dos marinheiros e trabalhadores portuários do Pidjiguiti foi conduzida pelo PAIGC, ainda em fase incipiente de organização, ou se foi apenas aproveitada pelo PAIGC, em termos políticos... (LG)

Foto: © CaboVerdeOnline.com(2001-2006). Com a devida vénia...

Na reunião com o Amilcar (19/9/959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios domártires de Pijiguiti.

Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.

Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.

Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.

A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo. Não devíamos sacrificar os nossos homens, o capital mais precioso da nossa vida, numa confrontação desigual na cidade. Devíamos, sim, organizar a nossa gente cada vez melhor, prepará-la cuidadosamente para a grande batalha que seria desencadeada, primeiro, no campo, onde acumularia as forças necessárias para se alastrar às cidades.

Impunha-se, desde então, começar a seleccionar os jovens mais capazes que teriam de sair do país, para receberem no estrangeiro uma preparação especial com vista à realização da grande tarefa que tínhamos à nossa frente. Depois da criminosa e sangrenta repressão aos corajosos grevistas de 3 de Agosto — mártires da gloriosa libertação do nosso povo — íamo-nos preparar cuidadosamente para entrar com força irreversível numa nova fase da luta (5).
____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)

"Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (...).

(2) Luís de Almeida Cabral, meio-irmão de Amílcar Cabral (1924-1973), nasceu a 10 de Abril de 1931, tendo sido o primeiro presidente da República da Guíné-Bissau (1973-1980). Na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal reconhece, em 10 de Setembro de 1974, de jure e de facto, a independência da sua antiga província ultramarina (colónia, até 1951).

Luís Cabral assumiu a liderança do PAIGC após o assassinato de Amílcar, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973. Foi derrubado em 1980 por um golpe militar, liderado por João Bernardo Vieira ('Nino' Vieira), que jogou a facção guineense contra a facção dita cabo.verdiana do PAIGC . Após 13 meses de detenção, foi para o exílio, primeiro em Cuba e depois em Portugal. Voltou à sua terra em 1999, depois de 'Nino' Vieira ter sido, ele próprio, derrubado por um outro golpe de estado...

Luís Cabral era empregado da Casa Gouveia, contabilista,  em 3 de Agosto de 1959.

Vd. ainda a cronobiografia de Amílcar Cabral, em formato.pdf, disponível no sítio da Fundação Mário Soares.

(3) Repare-se que na edição de O Jornal, de 1984, a grafia que é usada é Pijigutí... Opta-se por usar a mais corrente ou vulgarizada (Pidjiguiti), mesmo que não seja a mais correcta, do ponto de vista lexicográfico...

(4) Sobre este fundador do PAIGC, vd posts de:

(i) 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC

" (...) O intensificar de actividades e constantes movimentações políticas levaram a que a PIDE reforçasse as perseguições e, consequentemente, muitos activistas foram sendo aprisionados e torturados nas diferentes celas de prisões. Este facto e outros, nomeadamente os acontecimentos de Pidjiguiti em 1959, levaram à tomada de decisão do Partido de instalar a sua Direcção no país vizinho independente - Guiné Conakry" (...).

(ii) 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVIII: Memórias de Turpin e da Bissau do seu tempo

"Mais informações, pormenorizadas, sobre o Turpin, por parte do Sargento Mário Dias, dos comandos, ex-camarada do Virgínio Briote (por cujo intermédio chegou esta mensagem) (...)

(5) Hoje esta data é feriado nacional na Guiné-Bissau e no local foi construído ao monumento aos heróis do Pidjiguiti.

Guiné 63/74 - P539: Os filhos de branco (Zé Neto)

1. Mensagem do Ze Neto:

Luis:

Acabo de ler a tua conversa com o Zé Teixeira. E apanhei-te na primeira falha. Então tu não sabias, nunca ninguém te disse, que os nascituros de raça negra vêm ao mundo tão branquinhos como nós?. É verdade. Adiante.

Se te for possível diz ao Zé Teixeira, aliás já o disseste, mas eu gostaria que ele soubesse que sou um grande apreciador dos seus escritos não só pelo sentido humano que lhe é intrínseco (não se inventa) como também pela minha enorme admiração pelos pastilhas, os abnegados enfermeiros militares.

Por alguma razão os meus Fur Mil Cadima Ferreira e 1ºs cabos Soares da Silva, Gentil Fernandes e Celso Igreja, arrecadaram à sua conta 7 (sete) louvores por feitos em combate. E não dispararam um tiro!

Quanto aos nossos descendentes furtivos (desgraçadamente deixei um em Macau) disse-me o Pepito que o Dauda foi sempre tratado por Viegas pela população, era camionista (tinha um camião em Cacine) e morreu em Junho do ano passado antes de atingir os quarenta anos de idade.

A Sona, sua mãe, ainda é viva e está em Guileje. Também é justo referir que o pai teve conhecimento do nascimento do filho, fez algumas diligências para o trazer, mas a esposa, então em Bissau, se opôs terminantemente.

Boa noite e até breve.

O sacramental abraço do Zé Neto


2. Comentário de L.G.:

Zé: Infelizmente o meu curriculum vitae é muito mais pequeno do que o teu... Ou, pelo menos, andámos por sítios diferentes a fazer coisas diferentes. O mais importante é esse sentimento de confiança e essa auto-estima que tu transmites. Bem podes dizer, como o poeta Pablo Neruda: Confesso que vivi!

Obrigado

PS - Essa dos putos negros nascerem brancos, eu já tinha lido... Mas não me ocorreu... Pensei que o Zé Teixeira estivesse a insinuar que o pai da criança poderia ser um tuga.. De qualquer modo, não sendo médico, nunca assisti a nenhum parto africano... Poderia ter acontecido, andei também por algumas tabancas em autodefesa com os meus nharros e privei, com alguma intimidade, com a respectiva população.

Guiné 63/74 - P538: Estórias avulsas: Teresa: amores e desamores (Virgínio Briote)


Luís,
Envio-te em anexo uma pequena história que faz parte das minhas memórias.
Se vires que ela se enquadra no tema, publica-a.
Um abraço,
vb


VB:
Esta é já (ou pode vir a ser) uma das mais belas novelas sobre o amor em tempo de guerra (colonial)... Vem confirmar o teu já suspeitado talento de escritor... Que garra, que (con)tensão, que ritmo!... É um privilégio, para mim e para os demais tertulianos, podermos ler esta tua mininovela em primeira mão !
LG


1. TERESA. TERESA SÓ!

Sempre em festa, a casa da Dora era uma animação quase todas as noites. Gente conhecida, quase todos da grande família cabo-verdiana da Guiné, amigas e amigos que chegavam, de Santo Antão, de Santiago, S. Vicente. Novidades, a loja que abriu, a Dona que morreu finalmente com 94, coisas assim. Duas estudantes repartiam-lhe as despesas, pagavam-lhe os quartos, mais alguns pesos para a manutenção da casa, os outros trocados, nunca o soube como os arranjavam, nem nunca quis saber.

A Dora era só um conhecimento, mais nada. Um dia, atacada com paludismo, viu o Gil entrar pela casa dentro, com médico, medicamentos e comida. A partir daí, o conhecido que aparecia às vezes, sempre sem avisar, passou a ser um amigo chegado, daqueles que estão sempre à beira, sem outro interesse que se visse. Amizade, só isso. Como se fossem irmãos muito chegados, a Dora confiava-lhe segredos, mesmo alguns que se calhar não devia, mandava-lhe recados para Brá, convidava-o para pequenos convívios com os amigos, quase todos cabo-verdianos de Bissau. Para aquela festa, tinha-lhe dito que o iria apresentar a uma pessoa de quem ele iria gostar.

Conheceram-se em Bissau numa pequena festa em casa da Dora. Viu-a logo, mal entrou. Uma cabo-verdiana linda, a pele morena clara, desenhada sobre o magro, à volta dos 20.

Trocaram as palavras do costume quando a Dora, olhar cúmplice para eles, os mostrou um ao outro.

Teresa. Teresa quê, que não ouvi? Teresa só. Olhos grandes, claros, esverdeados. Que bem que ficavam com aquela pele! Voz doce, ar curioso. Algo esquiva e desinteressada, virou-lhe logo as costas e cada um foi para seu lado. Ouviram músicas, mexeram os braços e as pernas, conversaram com este e aquele até se fazerem horas.

Quando descia as escadas, ela chamou-o, ar atrevido, pareceu-lhe até demais. Mas já vai, tão cedo, nem se despediu, os outros não nos deram oportunidade de falar um pouco mais, uma pena, não foi? Voltamo-nos a encontrar? Um dia, disse-lhe ela, vemo-nos por aí, não? Afinal, Bissau não é assim tão grande… Se é meu desejo? Saiu a desconversar, meio desconsolado.

Dias depois, sentado no Bento, viu-a passar. Os olhares dos outros chamaram-lhe a atenção. Todos se viraram, não era fácil passar despercebida. Parecia-lhe mais alta. Os olhos com um verde mais magnífico ainda, levemente sombreados, cabelo liso preto, a cobrir as orelhas, elegante com um vestido sem mangas, azul-escuro pintalgado de bolinhas branca, a balançar acima dos joelhos, sandália preta de meio tacão. Como se tivessem combinado, dirigiram-se um para o outro, cumprimentaram-se com alguma cerimónia.

Sentados, os olhares dos outros em cima, vamos andar, por aí fora? Meteram-se no carro, uma volta pelas ruas, por aí não, é a minha casa. Saíram da cidade, para os lados da Sacor, estacionaram de frente para o Sol, a desaparecer no Geba.

O rádio a passar Capri , c’est fini (1), ela a cantarolar baixo, até começar a falar. Quem és tu? Sou este que está aqui! Mas quem és tu, porque estás aqui? Como? Porque estás aqui comigo? Sabes lá, que resposta! Vamo-nos embora, então! A conversa assim, até encontrar o fio.

Esta guerra, os desencontros, as pessoas para um lado e para outro, muita gente deslocada das suas casas, todos a virem para Bissau, muita tropa também, demasiada até, onde é que isto vai parar. Assim, de um momento para o outro.

Depois mais suave, as origens, as famílias, os amigos, os interesses. Estava a concluir o 7º no liceu de Bissau, os pais eram de Cabo Verde, queria tirar Medicina em Lisboa, estava com As vinhas da Ira nas mãos, tinha acabado um livro de Hervé Bazin. Só ódio, queres que to empreste? Porquê, se é só ódio? Pode ser interessante para ti, como sabes que não gostas sem o ler? Vou trazê-lo. Ficou assim marcado o próximo encontro.

O que estava ali a fazer, perguntou-se. Como se tivesse adivinhado ela adiantou que gostava de olhar para ele. Que gostava de estar, de o conhecer. Mas quem és tu, fala!
A noite a cair como cai em África, noite num momento. Temos que ir, não é? Deixou-a à porta da Sé, junto à rua dela. O grupo dele saía na madrugada seguinte, para o norte.

No regresso procurou-a. Os olhos, grandes na mesma, pareciam de cor diferente, o rosto mais fechado, o que se passa, algum problema?

Uma semana, esperara este tempo todo, começou ela, parecia que tinha fogo. Porque não disseste nada, Gil Duarte? Saíste para o mato, não? Para onde foste? Para Norte, para o Oio, não? O que fizeram? A fama que vocês têm, Duarte!

Olha-me de frente, Duarte, assim não, olha-me nos olhos, assim! O que sou para ti, ora diz? Porque me foges com os olhos? Séria, os olhos a entrarem por ele dentro, porque andas atrás de mim? Duarte, não falas? Responde, porque não falas? Gosto que me contes tudo! Gil! Encostada a ele, tão baixo que mal a ouviu, vamos sentar-nos antes no jardim? Estamos mais á vontade, a mamã não está, se ela aparecer apresento-ta, qual é o mal?

Que gostava, mas agora não. E logo? Os papás ficam no varandim a apanhar o fresco, até ás 11, depois vão-se deitar. Gil, que é que te deu, não falas? Tens namorada na metrópole, todos vocês têm, sei muito bem, como é ela? A boniteza não é só na cara, sabias? Não gostas de mim? Então que estás aqui a fazer?

Duarte, que estás aqui a fazer na Guiné, que estão vocês todos aqui a fazer, a desinquietar-nos? O que vocês fizeram na Associação Comercial (*), orgulhas-te disso? Que vergonha, entrarem sem serem convidados, estragarem a nossa festa! A causar-nos sofrimento, a matar pessoas, a ocupar a nossa terra, a impedir o nosso povo de ser livre, é isso?

Estás a olhar assim para mim porquê? Achas que não temos cabeça para pensar, que só somos corpo para vocês gozarem? Porque nunca te vejo fardado, porque será, tens vergonha de vestir a farda? Aliás odeio fardas, nunca me esperes fardado à porta do liceu, ouviste?

Vens logo à noite? Quando os papás se vão deitar fico sempre um bocado à janela. Saiu dali atordoado, sem saber o que fazer. Uma mulher diferente!


2. NOS ANOS DA DORA

Do portão viu a Dora ao cimo das escadas. Ambiente animado, pessoal a dançar cá fora, para aí uma dúzia de pares, gente cabo-verdiana, colados uns aos outros, aquele jeito deles, os corpos no ritmo das mornas e coladeras.

Então, bem aparecido, zangado comigo? Porquê, Dora, a consciência pesa-te?
Não lembro de nada, mas sempre pode ter acontecido alguma coisa de que me não tenha dado conta, não é?

Que não deve ter ocorrido nada, que se recorde, os olhos dele pelo baile, a Teresa a dançar, a um metro bem medido do parceiro cabo-verdiano, a saia do vestido bem acima dos joelhos, o decote a mostrar. Mal os olhos se cruzaram, ela encostou-se ao parceiro, a cara para o outro lado.

Que não, não havia problema nenhum, estivera fora, andava ocupado, aos fins dos dias não tinha vontade de sair, só isso, mais nada.

Só isso, de certeza? Anda comigo, a Dora a levá-lo para o meio dos dançarinos, mexe o corpo assim, juntinho.

Passa-se alguma coisa contigo, Gil, alguma coisa que eu não saiba? O que é que tu não sabes, Dora? Porque andas tão afastado agora, tão cheio de cerimónias, anda aí qualquer coisa e tu não queres contar. Não sabes do que estou a falar, ora, estás a desconversar, especialidade tua.

Dora, estão a chamar-te, dali, olhos na Teresa, colada ao par.

Despediram-se da Dora, isso agora vai, olhar maroto para as mãos deles. Tinham dançado uma e outra vez até ao fim da noite, quase só os dois no fim, tão colados que os outros até reparavam. Desceram a rua de Santa Luzia, mãos entrelaçadas, a fazerem cócegas um ao outro, a rirem-se por ali abaixo.

À porta dos pais dela, os rebentamentos que ouviam há horas soavam mais fortes. O que será? Jabadadas (2) , menina, chega-te para cá, para onde vais, Teresa? Tenho medo, não posso, encosta-te então, não te sentes mais abrigada assim, mas não é das explosões que tenho medo, então de que é?

Uma mão na perna, a subir, ai, aí não, Gil! Respirações atrapalhadas, afastados, um momento que não acabava, a olharem um para o outro, uma sirene bem perto, a Teresa lançada outra vez, os lábios a rasparem-se, o gosto da boca dela, a mão dele nos seios, aqui não, anda, não podemos ficar aqui, mão amarrada à dele, que malucos, que é que nós estamos a fazer, Gil?

Na espreguiçadeira onde se recostava a ler e a sonhar nas tardes quentes de Bissau, ansiosa, não sabia o que queria, a mão dele fazia-lhe comichão no joelho, ria-se das cócegas e do nervoso. A mão em cima da dele, parecia-lhe que a acalmava. As duas mãos juntas, a subirem por ela acima, não posso, Gil, tem cuidado, miminhos só, não me faças mais nada!

Não ando a fazer nada com ela, não pretendo nada da Teresa, só passar uns momentos entretido! Não sei é se me vou aguentar assim, não sei não! Se calhar é melhor ir procurar a Matilde. E a Clara, onde andará aquele amor? Ah, Clara, Clara!

Esta história com a Teresa pode dar chatices, pode trazer-te problemas! Como vai ser o próximo lance? O 14-04 com o pára-brisas no capô, vento na cara, a falar sozinho, até Brá.


3. QUE TERESA!

Naquele fim de tarde, quando descia a rua devagar em direcção à Sé, viu o pai da Teresa, de calção, a tratar da relva e das flores. Aliás, viram-se um ao outro ao mesmo tempo, que chatice, ele a desviar os olhos para as montras da Ultramarina, o pai mais demorado, endireitou-se, sacho na mão, se calhar é aquele o gajo que anda atrás da Tesa.

Acabada a missa da tarde, Teresa, véu dobrado na mão, braço na mãe, desceu as escadas. Iam começar a subida da rua para casa quando o viu. E agora, que faço?

A mãe conhece-o de vista, já o viu da janela mais que uma vez, está a par, uma tardinha perguntou-lhe até quem era. Sei lá, mãe, um militar qualquer, como hei-de saber, queres que lhe pergunte o nome, porque está a passar na rua? Que atrevida que estás, Tesa, julgas que tenho os olhos fechados? E se nós mudássemos a conversa, mãe?

Uns tempos mais tarde vira a Tesa a falar com aquele moço moreno, alto e magro, de farda amarela clara, junto a um jeep. Quando a viu voltar a correr, com a roupa do ténis, fizera-se desentendida, descera para o jardim, para a beira dela, calada com o livro na mão. Sentira-a ausente naqueles instantes, rodeara-a, falara-lhe da carta da tia de Santo Antão a dizer que vinha passar um mês com eles. A Tesa ausente, desinteressada, ah sim, quando?

Aliás, o Vasco já reparara, a nossa filha está diferente, claro meu amor, já tem 19 anos! Não é disso que eu estou a falar, Benilde, acho-a diferente, o comportamento dela! Porque dizes isso, nunca dei por nada! Vai para o quarto cedo, anda a pé às vezes à noite, já a vi junto à janela da sala mais que uma vez! Ora Vasco, sempre assim foi, são raparigas novas, aconteceu connosco, já não te lembras? Não Benilde, cuidado, a Tesa é muito nova, abre-me esses olhos!

Tesa, e as tuas aulas como vão? Ora mãe, que te deu agora? Tentou evitar até não poder mais, a mãe Benilde a cercá-la, sim conheço-o, tem mal, mãe? Que não, filha, desde que me contes tudo, desde que tenhas cuidado, sabes como são, militares longe das famílias, saudosos das namoradas, estão aqui de passagem, só querem divertir-se, tu sabes bem o que aconteceu à Lurdes com aquele alferes dos comandos também, até a chegaste a avisar, já te esqueceste? Tinha sido assim, a conversa ficara neste ponto, um dia que calhe, eu apresento-to, pronto.

De braço dado com a mãe, mudou de passeio e subiram a rua, a mãe a beliscá-la, a olhar para as montras como quem não quer a coisa, até ficarem frente a frente.
A mãe Benilde, o Gil Duarte, um amigo, as mãos estendidas.

Sentámo-nos no varandim, com sumo de laranja e ananás, feito na ocasião pela Mabilde, a nossa criada de Cabo Verde. Conversávamos e calávamo-nos ao mesmo tempo, até teve graça. Os meus estudos, as disciplinas de Física e Matemática, os meus professores, o ambiente que se vive em Lisboa, as tias, as irmãs do papá, que vivem lá em Benfica.

Foi pouco tempo, para aí 1 hora, a mamã a lamentar, que pena o teu pai não estar aqui para o conhecer, naqueles fins de tarde andava a tratar do jardim, depois ainda ia ao escritório, ficaria para mais tarde, também se estavam a fazer horas, o Gil a dizer que tinha que ir. A minha mãe portou-se impecável, um amor mesmo, desci com ele as escadas, ainda ficámos um pouco na brincadeira, a rirmo-nos. Combinámos encontrarmo-nos lá mais para a noitinha, quando todos estivessem deitados.

A mamã ficou muito bem impressionada contigo, sabes? Gostou de ti, acha-te simpático, é verdade, não te rias, tu simpático, vê lá! Que pareces atinado, muito correcto. Depende dos dias e dos momentos, também acho, agora simpático, como as aparências enganam, se ela te conhecesse melhor!

Gosto de estar contigo, nem sei bem porquê. E no entanto, há tanta coisa entre nós a separar-nos. O quê? Esta guerra, por exemplo!

Nem entendo como te envolveste assim, numa força tão agressiva, porque foste para lá?
Porque é que toda a gente pergunta isso? Sei lá porquê, talvez o fascínio pela guerra, não sei! Soldados com as caras sujas, o sangue nas fardas rasgadas, as imagens da destruição, os heróis lavados com as fardas novas, os emblemas a reluzirem, os tambores a rufarem, o clarim a tocar aos mortos, o frio pela espinha, os jeeps, os camiões, as lagartas dos carros de assalto, o nó que sinto na garganta, não sei, Teresa, sei lá!

E não sentes uma ponta de remorso pelo que andas a fazer, não entendes a luta deste povo? É um assunto de que não queres falar? Nem sequer te interessa? E em ti, tens pensado na guerra em que andas envolvido, de arma na mão? Porque é que não fizeste como tantos outros, levar uma vida mais resguardada, mais sossegada, até no teu interesse? Tens pensado no futuro ou é também um assunto que não te interessa?

Claro que estamos a fazer tropelias, não o devíamos fazer, não é para isso que estamos aqui. Lutamos pelo gosto da luta. Gosto disto, desta adrenalina toda. O único problema é ficarmos mutilados, se morrermos, nem damos por ela. Mas odeio a guerra, esta ou qualquer outra. Aliás, não há dia nenhum que não combata contra a minha própria guerra. E não quero morrer, nem quero que os outros morram. Mas, por mim, não vamos perdê-la. Mas é um assunto pessoal, muito íntimo, Teresa.Para as outras conversas és íntimo comigo, porque é que esta é diferente, tens outras vidas de que não queres falar comigo? Para mim tens? Alguém te obriga a estar aqui comigo ou alguma vez te obriguei?

A consciência pesa-te aí dentro, no teu íntimo, Gil, e por mais que digas que não, estás traumatizado e mais, se pudesses, fugias daqui. As minhas aulas vão andando, obrigada, não desconverses!

Quando vai ser, não sabemos. Já estivemos mais longe. Eu era muito menina, andava para aí no 3º ano, quando tudo começou a sério. Até 63, tirando o caso do Pidjiguiti, ao que ouço dizer, era só conversa. Nem me lembro de alguma vez ter ouvido falar a sério em independência. Independência, só a vossa, com o rei Afonso Henriques, que bateu na mãe dele, aprendeste também? E também em 1640 e tal, outra vez Portugal a dizer aos reis de Espanha que mandassem na terra deles, não foi?
A partir de 1963, a história aqui passou a escrever-se de outra forma. Foi pena, mas para trás, se formos a ver tem sido sempre assim, não se consegue quase nada a bem, é pena, mas é assim.

Não estava era à espera de vir a ter esta conversa contigo hoje. Sempre pensei que um dia viria a falar deste assunto com alguém que estivesse do outro lado, assim, tão frontalmente como estamos a fazer agora, mas nunca me ocorreu que viesse a ser contigo! Mas também é bom que assim seja, temos interesses comuns, interessamo-nos um pelo outro, somos capazes de ter uma conversa destas assim, sem recriminações, sem zangas, não achas? És capaz de me dizer, se estivesses deste lado, o que fazias, alistavas-te no partido?

Olha, Gil, acho que não vai ser já, vai demorar ainda uns anos, mas tenho a certeza que a nossa bandeira vai subir no mastro do palácio, lá em cima na praça, e quem sabe, nós os dois no meio do povo, a vê-la ao vento, diz lá, eras capaz de ir comigo?

O barulho dos ramos das árvores e um mocho ou uma coruja lá para trás, dos lados do cemitério, os dois sentados há que tempos, na espreguiçadeira que mal dava para um.


4. QUE ESTOU AQUI A FAZER?

“Temos que ser nós a pô-los daqui para fora, esta terra é nossa, não nos faltam apoios, é todo o mundo a dar-nos razão! Desde meados deste século, os colonialistas têm sido corridos de todo o lado, ficaram os portugueses e porquê, camaradas? Porque de todos os impérios, o deles é o mais atrasado, não só economicamente como também em termos culturais. Uma taxa de alfabetização baixíssima, um país inculto, atrasado, governado por um grupo de lacaios em nome dos interesses de meia dúzia de famílias. Por isso dizemos e insistimos, somos aliados do povo português na mesma luta contra o colonialismo e contra o fascismo. Mas esta situação, camaradas não duvidem, está a mudar e ainda vai ser no nosso tempo e vamos ser nós que vamos acabar com o colonialismo na nossa terra. Temos amigos em todo o mundo, URSS, Suécia, China, Noruega, Cuba, toda a África, toda a Ásia, todo o mundo, amigos que nos ajudam com armas, comida, medicamentos, técnicos. Mas temos que ser nós, camaradas, nós é que temos que fazer o trabalho aqui na Guiné e em Cabo Verde, pô-los daqui para fora!”
O partido precisa de todos nós, cabo-verdianos e guineenses, não posso deixar de contribuir com a minha parte, Benilde, há muito que conheces o meu modo de pensar, esta terra é pobre mas é nossa.

Não sei não, Vasco. Estamos tão bem agora, a nossa vida não teve um começo fácil, demos uma volta tão grande na nossa vida, abandonámos a nossa terra, os nossos pais, e agora que a Teresa está tão bem nos estudos, todos os anos no quadro de honra, não sei que te diga, Vasco, temos levado uma vida tão sossegada, damo-nos bem com toda a gente, a nossa vida vai mudar tanto. Tenho medo, muito medo, Vasco!

Mas o partido necessita de todos, não viste o Aristides, com uma posição tão boa aqui, também abandonou tudo para ir com os camaradas. E tantos outros. Até agora tenho sido só simpatizante, uma vez ou outra colaboro quando me pedem, mas agora é a minha vez de participar mais activamente, não compreendes, Benilde?

Aqueles tempos calmos, com tempo para tudo, o sossego das tardes de Bissau estavam cada vez mais longe. Depois dos incidentes do Pidjiguiti (3), a vida nunca mais foi a mesma. Pide e mais pide, tropa todos os dias a chegar, incidentes em todo o lado, prisões durante a noite, a vida cada vez mais difícil. Benilde pensava muitas vezes em como era boa a vida na Praia, difícil a subsistência, mas o ambiente era outro, como era bom se o Vasco conseguisse ser colocado em Cabo Verde, na Praia ou no Mindelo. Chegou até a falar-lhe, mas ele não recebeu bem a ideia. Casaste comigo, as nossas vidas estão juntas para o melhor e para o pior.

Não te esqueças da Tesa, Vasco, lembra-te da nossa menina!

Benilde, a menina continua a estudar, se algo correr mal, voltas com ela para a Praia, para junto dos teus pais.

Teresa estava com 19 anos, vivia intensamente com a ansiedade própria da idade o que ouvia contar em casa e entre os amigos, as gloriosas lutas que se travavam nas matas contra a tropa colonialista, as tentativas de alfabetização das populações, nas escolas dispersas pelo mato, os progressos pela emancipação, o caminho irreversível para independência.

O relacionamento dela com aquele militar era motivo de reprovação dos amigos e do próprio pai. Coisas separadas, pai, não têm nada que ver, já não sou menina!

A mãe Benilde contou ao papá da tua visita, sabes? A princípio, ficou muito calado, continuou a comer, mas não ficou de muito boa cara, não. No fim de jantar, então falou, que ainda sou muito nova, que tenho muito tempo à frente. É mesmo a sério, virado para mim, que tudo indica que sim, não é? Quer conhecer-te, falar contigo quando te apetecer, claro, jantarmos todos, quando pode ser? Um dia quando, não pode ser amanhã?

A Teresa a querer saber novidades, a mandar recados pelo Alegre, chegara até a ir a casa do Sany. Paludismo forte, mas só, mais nada. Entrar em Brá não podia, não a deixaram, deixou recado, 2 abacaxis pequenos, um cartão, dois corações, uma seta neles, pingas da cor do sangue de saudades, um beijo imenso, maior que o embrulho, nem parecia dela.

Encontraram-se depois das febres. O jantar fica então para amanhã, 6ª feira, posso dizer à mamã? Mas espera, Teresa, jantar? Então, não ficou combinado, apresentar-te ao meu pai? Apresentar-me ao teu pai? Gil, as febres deitaram-te abaixo, precisas de te alimentar bem, recuperas num rápido! Mas, Teresa, apresentar-me ao teu pai, para quê?

Teresa no varandim, com aqueles olhos. A mãe como se fosse para a festa, música de morna, o salão grande, sente-se Gil, esteja à vontade, a Tesa faz-lhe companhia, vou ver as coisas, dá-lhe um sumo de ananás com pouco gelo, quer?

Sentia-se fraco, não lhe estava a apetecer nada estar ali, era bem melhor não ter vindo. Os dois sentados, ele a passar a vista pelo salão, a mesa ao canto, fotos antigas de outras terras, rostos desconhecidos, pau preto, a cadeira de palhinha, a luz suave filtrada pelos cortinados, o que estou eu aqui a fazer e os pais a entrar.

Ora viva, então, como, ah, senhor Gil, Gil quê, Gil Duarte, muito prazer, então? Sorriso sem palavras, cumprimentos, quer beber alguma coisa fresca, ah já está servido, então? Então nada, desta vez apeteceu-lhe mesmo responder.

Calor, hem, esta humidade não deixa a gente respirar, então? Então, como? Que vocês lá na metrópole tem um clima bem mais ameno, mais temperado, mas muito frio no Inverno. Acho que vocês nunca prepararam as vossas casas para o frio, se calhar porque estão lá só de passagem, não é, no regresso de todos os Brasis por onde andam, só param em Lisboa para descarregar o ouro, a prata, as madeiras, o sisal, café, cacau, tudo às toneladas, não é, gargalhada trocista. Assim! O pai da Teresa além de trabalhar nos escritórios da maior empresa colonialista, era também um humorista!

Talvez, nunca pensei nesse assunto, ainda não tive tempo. Na sua idade também não, pensava noutras coisas, não é, a Mabilde e um ajudante de travessas na mão, cadeiras a afastarem-se, então é melhor sentarmo-nos.

Galinha à cafreal, saladas, fruta por todo o lado, ananás, bananas, e para beber, cerveja, Casal Garcia, tinto do Dão, o que lhe apetece?

Então? De onde é o senhor Gil Duarte, o que faz na vida civil, os seus estudos, como vai a metrópole, o que dizem de lá, como vêem esta guerra, o Salazar está para durar? Não vai durar a vida toda não é, vem outro a seguir, já deve estar escolhido, claro, quem lhe parece que seja?

Que não estava a par, não fazia ideia. Mas esse assunto não é do seu interesse? Quando lá estive no mês passado, a estudantada andava toda alvoroçada, a guarda a cavalo em Coimbra, na rua da Sofia as lojas todas trancadas. Isto está um problema, senhor Duarte, não pode continuar assim, na vossa metrópole e aqui, a tendência é para agravar, a URSS, a China do Mao (4) , a própria América veja lá, a Suécia, a Noruega, o mundo todo, menos a Espanha do Franco, o vosso governo de portas fechadas em quase todos os países, agora até o Brasil, sabia? Servem-se da vossa juventude, quando regressam deixaram o melhor das vossas vidas, muitos deixam bocados deles aqui, outros nem regressam, não é?

O cafreal da galinha não passava, atravessado na garganta, não havia maneira de ir para baixo, sumo na mão, a da Teresa, a acalmá-lo, a brincar-lhe no joelho por baixo da mesa.

Que estava a par da agitação estudantil, que deveriam ter alguns motivos, mais outros da idade, adiante se veria.

E então, senhor Duarte, a Tesa o que é para si? A Tesa é muito boa menina, já reparou? Um bocado senhora do seu nariz, às vezes teimosa demais, muito boa estudante, até agora…

Como é que a conheceu? O senhor gosta mesmo dela?


5. MAIS DO QUE ESTAVA À ESPERA

Um interrogatório, perguntas atrás de perguntas. Depois, ofegante, braços cruzados, calada, a exigir respostas. O que é feito de ti, porque não tens aparecido, estás cansado de mim, já não tenho novidades para ti, vocês são todos iguais, espera, onde vais, toma nota do que te vou dizer, mas porque viras os olhos, já não me queres ver?
Olhos, uns olhos grandes, agora cinzentos de zangada, brilhantes, húmidos, ele quase esquecido de respirar, momentos de silêncio, tréguas.

Arrependimento a seguir. Coisas que mal a gente diz se arrepende logo, sabes bem como sou, tu também és assim, às vezes dizes coisas que não gostarias de dizer, não é? Mas diz-me, o que vês em mim, Gil?

Um feitio complicado numa figura agradável, Teresa. E o que conheces de mim que eu nem imagino? Não é possível continuarmos assim, Teresa, com esses modos não…
A força das mãos nos braços dele, os olhos molhados, a exigir-lhe silêncio agora, não digas nada de que te arrependas a seguir, pára um minuto só, pára! Pessoas a chegarem, a olharem para eles, os dois a olharem para o lado, como se não fosse nada com eles, os dedos dela a tapar-lhe a boca, a situação a alterar-se. Não posso, Teresa, já não tenho mais disposição para estar aqui contigo, boa noite!

Não se conseguia ver livre dela, só se desse escândalo, mãos dela no pescoço dele, não me deixes agora, sou tão tua amiga, deixa-me estar assim, só este bocadinho, as coisas que se dizem nestas alturas.

Como me podes fazer uma coisa destas, Gil, ele vencido, outra vez a história a andar para trás, tudo a correr tão bem para o fim, afinal nem tinha sido ele a desencadear as hostilidades e agora outra vez, tentativas para se descolar com meiguice, pior ainda, ela a arrastá-lo para o jardim, a empurrá-lo para a rede, em cima dele, vencido.

Isto está a ir longe demais, tens que parar já, é tempo para começares a pensar nos passos que vais dar para te saíres bem, magoá-la o menos possível, nada de choros, o que vai ser difícil, falar-lhe com calma, nem pensar em meiguices, alegar outros compromissos, cada um para o seu lado.

Passou pelo Bento, arranjou transporte para Brá, copo de água no bar da messe, desceu para o quarto, um bom banho e meteu-se na cama com os documentos que lhe deram na 2ª repartição.

“Cassaprica é o maior acampamento IN existente na área deste posto administrativo. Há um caminho bastante perigoso, porém muito importante, uma vez iludida a vigilância dos sentinelas, pois corta a retirada do IN para a república da Guiné-Conackry em caso de operação em Camissorã. Ainda o mesmo disse que em Bagadai perto de Cane Faque, estão a construir uma jangada de paus para transportar a Cane Faque e daí para Caule uma arma bastante pesada. Também informou que mais de metade dos elementos da guerrilha passou para Caule onde existe um acampamento e um pequeno estabelecimento. Que no entroncamento da estrada velha de Cacafal com a estrada de Cambeque, do lado esquerdo de quem vai para Cabo Nepo, junto a uma árvore grande, existe um abrigo onde o IN aguarda oportunidade de montar emboscada à tropa”.

Três folhas com os depoimentos de guerrilheiros apanhados. Tinham dito tudo o que sabiam e, nada de admirações, também coisas que só se lembraram quando lhe apertaram as unhas, a polícia dizia e assinava por baixo, localização dos acampamentos, disposição, nº de guerrilheiros em cada, armas, os nomes dos comissários políticos em alguns casos. Dentro de uma pasta, uma etiqueta na capa a classificá-los. Estivera a lê-los, o sono a chegar, enfiara-os na pasta e fechou o mosquiteiro.

No outro dia, no QG, quis dar andamento às informações que lhe tinham fornecido. Os documentos vistos outra vez um por um, notas ao lado, localização de guias, onde falar com eles, transportes, esboçar os planos de operações. Da 3ª rep ficaram de lhe dizer as melhores datas, meios, as horas das marés, as coisas do costume.

No VW preto de aluguer que lhe tinham entregue logo pela manhã em Brá, meteu a pequena pasta dentro do porta-documentos. Começou a descer para Bissau, um fim de tarde agradável, sentia-se bem sem saber porquê, nada que fazer agora, e se passasse pela casa da Teresa, para arrumar o assunto, era capaz de ser boa ideia, não?

A rua sem movimento àquela hora, viram-se logo, ela deitada na espreguiçadeira com os cadernos espalhados pela relva.

Era ele, nem parecia naquele carro, onde o arranjaste, apetece-me sair, levas-me a dar uma volta? É só um instante, arranjo-me depressa, não vou mudar de roupa, só pentear-me, um minuto, ele dentro do carro, à espera.

O pai dela a subir a rua, olhos a cruzarem-se, teve que sair do carro, senhor Duarte, então? Muito trabalho, senhor Vasco? O costume, vocês dão-nos muito que fazer, que bom não é senhor Vasco, é… é… de facto. Então o que diz àquela história da orelha, senhor Duarte? Que orelha? Então, olhos fixos nele, o caso do hotel Portugal! Não sabe? Toda a cidade sabe, um horror!

Um grupo de fuzos (5) ao passar na esplanada do hotel, um deles destacou-se, directo a uma mesa cheia de pessoas de cor, puxou pela orelha de um, facalhão na mão, zás, cortou-a, a correr pela rua abaixo, a rir-se, o ferido cheio de sangue atrás, dá-ma, dá a minha orelha! Não é para rir, senhor Duarte! Um horror! É verdade! Não acredita? Testemunhas é o que não falta!

Não sabias ainda? Sempre metido em Brá, como podes saber, a Teresa parecia que tinha acabado de tomar banho, toda fresca a chegar, a dar um beijo no papá. Isto está cada vez pior, senhor Duarte, cada vez pior! Para onde vão? Tenham cuidado, isto está a ficar de cortar à faca!

Como da primeira vez em que saíram sós, pouco movimento a esta hora, o carro devagar, mal se ouvia o motor, pelas ruas a descer para o porto, o quartel dos fuzileiros, a caminho da Sacor. Encostaram o carro, o Geba orgulhoso lá em baixo, a Teresa a chegar-se, ele a abrir a porta, a pé pela estrada uns metros até lá à frente, a olhar para o rio, deu a volta por dar, olhou para o carro, a Teresa com uns papeis na mão, quê?

Deu-lhes a pressa aos dois, ele a voar sem correr, ela atrapalhada a meter tudo de qualquer maneira no porta-documentos. A cara dela, ah, que cabeça, já me esquecia, tenho uma lembrança para ti, lembra-me depois quando chegarmos a casa, a propósito, quando voltamos a jantar todos juntos? Mal respirava, palavras atrás de palavras.

Mas para onde vamos? Porquê, Gil? Ainda agora chegámos, que pressa é essa, que te deu, não falas? Não estou a perceber nada, Gil, andas tão estranho ultimamente, o que se passa contigo?


6. PONTO FINAL?

Estás mesmo tramado, todo enrodilhado, e agora, como é que te vais livrar deste sarilho? Não tem outro nome, sarilho só, com letras grandes. Se tivesses procedido com ela como tens feito com outros conhecimentos, não estavas agora aqui a matutar, a cabeça ainda por cima a doer-te. Tens pouca corda na mão, é o que é, deste-lhe demais e a ti também. Problema chamado Teresa, não? Como te vais sair dele, quando te resolves?

A Teresa fora um simples conhecimento, no início só para passar o tempo. Engraçou com dela, os olhos primeiro que tudo, atraíram-no, meteram-lhe medo e como os meninos curiosos quis espreitar, ela mostrou-lhe outras coisas que tinha com ela. Uma mulher diferente das que tinha conhecido aqui, estas sim só para passar as mãos pelas redondezas todas e depois parágrafo.

Nem conseguiu viver debaixo do mesmo tecto com a Matilde! Adiantou-lhe um mês de renda para a ter numa casa, equipada com tudo, apenas para os intervalos das guerras, tomar uma chuveirada com ela, levá-la ainda molhada nos braços para o quarto, um banho outra vez, vou dar uma volta, hoje não posso ficar, tardes e noites seguidas, sempre assim.

Nem conseguiu dormir com ela uma noite inteira que fosse, no início ainda disse que tinha compromissos no quartel, um serviço qualquer para fazer, ela a desconfiar que fosse outro motivo, mas não. Estou habituado à minha almofada, trá-la então, à minha cama, trá-la também, traz tudo contigo, mas não me deixes só que não posso. E deixou-a sempre. Teve pena muitas vezes de a deixar, custava-lhe suportar os olhos dela. Chatices que arranjou e arrumou sempre, melhor ou pior. Porquê?

Matilde, é simples, gosto de ti, o teu rosto, o cabelo negro que te fica tão bem assim, o teu peito pequeno e tão bem feito, a tua barriga lisa, as tuas coxas redondas, as pernas como acho que nunca vi. A tua figura toda, mas acho que tu e eu queremos outras coisas que os dois não temos. Só isso, mais nada, Matilde! De modo que é melhor seguirmos cada um o seu destino, amigos para sempre, quando te apetecer outra coisa comigo, se verá, estás de acordo?

Sacana, porquê? Matilde, não posso ficar mais tempo, tenho que me ir embora! Fica aqui um mês de renda para te arranjares.

Não queres, deita-o pela janela fora, faz o que quiseres dele, não me interessa, esse dinheiro é teu, um beijo, Matilde, não dás? Os outros casos foram entretimento para dois, sem dinheiros nem nada!

A Teresa já não é só Teresa como se apresentou da primeira vez, agora tem um nome mais comprido, Teresa Problema, proporções com que nunca sonhaste.

Os olhos, o sorriso, a figura, o andar dela, só isso? Ou terão a ver mais com outras coisas de que não estavas à espera e muito menos aqui? O gosto pela leitura, de assuntos em que nem tu próprio estavas sensibilizado, nem ainda estás, a solidariedade, o interesse pela sociedade guineense. A cultura geral, invulgar para a idade dela.

E a disposição para te afrontar, para lutar contra ti, contigo, puxar por ti, lutar pelos ideais dela, do povo dela! Para te dizer na cara, com aqueles olhos magníficos, aquilo que ela achava no seu direito de dizer. Os teus olhos a fugirem, os ouvidos que não queriam ouvir, tu a disfarçares, com a mão nela, como quem diz, vamos mas é ao que interessa! Um merdas, um Rasas, nem sempre com cheiro a uísque azedo, mas um Rasas na mesma! A aproveitares-te da sensibilidade dela, a fazeres-te caro, de um momento para o outro, a invadi-la com as tuas mãos, ela a acreditar em ti! Miserável, Rasas de merda!

Nem tanto assim! Mas que chatice! O que fizeste com ela este tempo todo, o que fizeram os dois juntos, afinal? Nada do outro mundo, brincadeiras, uma vez ou outra mais ousadas, mas nada mais do que isso, sempre travaste as tuas incursões e as dela também, e bem te custou às vezes, ninguém imagina! De resto, das tuas mãos está inteira, ou quase, não te lembras de lhe deixar marcas irreparáveis, fisicamente falando, claro.

Então porquê esta atrapalhação toda, porque não vais falar com ela, directa nos olhos, assim, Teresa, temos que alterar a relação que temos vindo a manter, não temos razões suficientes para prolongá-la, devemos dar por terminado o nosso conhecimento, não, não te amo nem um pouco, apenas comecei contigo porque te achei graça, tu também, pelos vistos, este tempo passado diz-me que é melhor não continuarmos, e pronto! Já agora, Gil, continua Rasas até ao fim!

Os olhos dela não acreditavam, continuavam insistentes a furá-lo todo, para onde fores vou atrás, senão sei lá o que faço! Inscrevo-me nas forças combatentes do partido, hei-de encontrar-te, nem que seja de arma na mão! Quero ver como te defendes! O que se diz nestas ocasiões, as mãos amarradas aos braços dele, depois largou-os de uma vez, um metro para trás a tomar balanço.

Como quiseres, tu é que sabes, não tenho que me impor a ninguém, não preciso! Tenho amigos, não me vou perder a chorar por aí! Fui ingénua pela primeira vez, vou ser outra e outra vez ingénua, infelizmente para mim.

Enganei-me, pensei que os teus sentimentos eram verdadeiros, que podíamos fazer vida juntos, afinal… mas não tenhas remorsos, a culpa foi também minha. No fundo, pensando bem, é melhor assim.

Já te vais embora? Espera aí, ouve! Há tempos, quando estava a ler um livro, algo me fez pensar em ti, de uma forma diferente do costume. Pensei que fosse impressão minha, mas não, agora já sei porque me lembrei de ti naquele momento.

Afinal, és exactamente o que pareces, dentro de ti não há calor nenhum. Como o gelo, quando se quebra é só água fria por baixo. Só tens água fria por baixo, Gil. Queres ir-te embora, não queres? Vai então, vai!


7. NOTÍCIAS OUTRA VEZ

“Não estranhes esta carta, não te vou pedir nada! Estive a fazer exercícios de Trigonometria até ficar cansada, já estive na cama mas não consegui adormecer.
Há dias que ando a tentar escrever-te, a certa altura paro para reler e rasgo. Tem sido assim, folha atrás de folha, acho-as sem jeito. Nem sei se deveria escrever-te. Estou a fazê-lo para mim, como se estivesse a falar comigo. De resto o que temos para dizer que já não saibamos, não é? E, fico-me a pensar, será também que a gente quer mesmo saber um do outro?

Tenho sabido notícias tuas, de alguém que te vê todos os dias, até já te viu a tomar banho à noite na piscina do QG. Só mesmo tu! Por acaso, falou nos colegas dele e tu és um deles. Como isto é tão pequeno! E uma noite destas quando saía da explicação, quase que me encontravas, mais um minuto e ficávamos frente a frente. Também foi melhor assim, não é? Olha, acho que desta vez vou mesmo conseguir escrever-te. Mas não quero que te sintas obrigado a responder, fá-lo só se tiveres vontade, sem obrigação. Mas quero dizer-te Gil, que gostava muito das nossas conversas, às vezes lembro-me e fico não sei como…

A mamã Benilde está melhor agora, mas o papá acha que é melhor ela ir a Lisboa fazer exames, ela não quer, mas o papá insiste, até já escreveu para as tias em Benfica, elas dizem que tratam de tudo, para a gente ir, a mamã não quer, que não pode deixar a casa, diz que não deve ser nada, a humidade é muita, o tempo também não ajuda, não é? Diz que só vai se eu for com ela, eu só posso nas férias e este ano é muito complicado para mim.

Estou a ter explicações de álgebra e trigonometria, numa sala em frente ao Pintosinho, é uma turma pequena, só raparigas, somos 4. O professor é um militar que chegou, parece que há dois meses, um jovem com muito bom aspecto, muito inteligente, elas andam perdidas por ele, tu nem imaginas, ficam a passear na rua, para trás e para a frente, à espera que ele saia, ele não lhes liga nenhuma, nem as vê, boa noite, até depois de amanhã. Eu por acaso, não simpatizo muito com ele, isto é, acho-o giro, mas ele só fala em senos, co-senos e tangentes, sabes como são os matemáticos, além disso, não te rias, não gosto muito da colónia ou aftershave ou lá o que é que (desculpa isto ir tudo riscado, ia escrever o nome dele mas ele não quer que se saiba) ele usa. É às 2ªs, 4ªs e 6ªs, das 9 às 11 da noite, às vezes um pouco mais tarde, depende. Estou a gostar muito das aulas, acho que ele explica muito bem, tem muita lógica a ensinar, também quem é que vai para Matemática, não é, só quem tem feitio para os números, para a trigonometria, só de ver os exercícios do Palma Fernandes, é de desanimar! Mas estou a gostar muito e acho que vou conseguir fazer a cadeira logo à primeira.

E tu, tens trabalhado muito no bar da cantina? É lá que estás agora, não é? Tem-te corrido bem a vida? Quando vais embora? A semana passada encontrei a Dora na Ultramarina. Disse que deixaste de lá ir, eu também já não vou lá há muito tempo.
E pronto, desta vez foi mesmo a sério, amanhã vou ver se te mando esta carta. É tardíssimo, sabes que horas são, quase duas e não tenho sono nenhum! Um beijo da tua amiga e, podes acreditar, para sempre tua amiga,

Teresa Correia
Rua dos Rouxinóis, Vivenda Correia, nº 14, Bissau.
P.S. Gil, quero pedir-te desculpa da minha reacção, a conversa apanhou-me desprevenida, eu já desconfiava mas mesmo assim não contava que fosses tão bruto, desculpa se magoei a tua cara, mas também me magoaste muito, na cara não, mas cá dentro. Mesmo assim não te sintas obrigado a responder. Escreve-me só se te apetecer.
Bom, agora é mesmo, tchau!”



8. PONTO FINAL

Encontramo-nos então logo à noite, agora temos que ir a um funeral. Quem morreu? Uma aluna do Ramos, morreu de repente, o funeral é agora às 3, o Manaças contrariado. É pá, se não vens depressa já não vale a pena, o Ramos no jeep!

Chegou-se a um grupo, o Daniel no meio a contar a vida no Xitole. E se fosse até à cidade? E foi, por ali abaixo, o calor a apertar àquela hora, sem trânsito nenhum, uma viatura militar ou outra, o rádio a tocar Capri, c’est fini, o chato do locutor não se cansava de interromper.

Deu a volta à praça do Império, meteu-se a descer a avenida, em direcção ao cais, uma mancha de pessoas lá ao fundo, muitos carros, jeeps e outras viaturas militares à frente dele, a afrouxarem junto à Sé, deve ser o tal enterro.

Pessoas a saírem da igreja, muitos jovens, a Teresa também deve ir ali, as roupas dos padres, a carreta a andar com o caixão em cima, quatro pretos de camisa branca e calça preta ao lado, muitas pessoas atrás, senhoras de véu, rostos mais escuros, deve ser o choro, não quero ver mais, que ideia que tive, vir cá abaixo a esta hora! O cortejo a andar, a virar para a esquerda, para a rua da Teresa, em direcção ao cemitério para os lados da Amura. Não quero ver mais nada.

Meningite, um ataque fulminante, pá! Uma miúda de 20 anos, vê lá tu! Ninguém pode estar descansado, porra! Uma chatice, pá, a mãe desmaiou no cemitério, a comunidade cabo-verdiana toda em peso, até pides lá estavam, pessoal dos correios, muita gente mesmo, o pai é muito conhecido…

“Como foi? Só uma dor. Mamã, não sei o que tenho na cabeça, uma dor muito forte, um saridon que a Benilde costuma tomar para as dores dela, não passava, disse que tinha frio, devia ser paludismo, que é que havia de ser, começou a chorar, não aguentava as dores, quando o pai pegou nela ao colo, que não podia com a cabeça, ele mandou logo a Mabilde chamar o doutor que a conhecia desde menina, ele nem demorou muito.
Quando o médico entrou no quarto e a viu, disse que não devia ser paludismo, que o pescoço estava muito rígido, depois olha, quando deram por ela, estava já desmaiada. Ainda foram a correr para o hospital. Foi assim que o pai contou”. A Dora, a Mabilde e a Cesária inconsoláveis.

A missa foi num final de dia. Os pais da Teresa, a Mabilde, muita gente do Liceu, estudantes e professores, a Dora, a Matilde, a Cesária e alguns amigos cabo-verdianos mais chegados. À saída, cumprimentou os pais, a Mabilde, os amigos. Foi a última vez que os viu.

© Virgínio Briote (2006)
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(1) Canção romântica, em voga em 1965/66, de Hervé Villard: "Nous n'irons plus jamais, Où tu m'as dit je t'aime, Nous n'irons plus jamais, Comme les autres années, Nous n'irons plus jamais, Ce soir c'est plus la peine, Nous n'irons plus jamais, Comme les autres années. Capri, c'est fini, Et dire que c'était la ville, De mon premier amour, Capri, c'est fini, Je ne crois pas que j'y retournerai un jour" ...

(2) Rebentamentos das flagelações a Jabadá, aquartelamento das NT frente a Bissau.

(3) Greve dos estivadores no cais do Pidjiguiti, em 3 Agosto de 59, reprimida violentamente pela Polícia.

(4) Mao Tse Tung, na altura Presidente da China

(5) Fuzileiros
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Nota de L.G.

(*) Vd post de 13 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial

" (...) Na esplanada do Bento, a 5ª Rep, como também era conhecida , bebia cerveja com mancarra, num grupo de 5 ou 6 comandos e páras. Um terá dito que naquela noite, na Associação Comercial de Bissau, havia o baile dos finalistas do Liceu. Outro lembrou-se de perguntar se alguém recebera convite. Eu não, tu não, aquele também não…Ninguém se lembrou de nós, como pode ser? Queres ir? (...)"

Vd também post de 13 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXIII: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)

"(...) Na manhã daquele dia para me descontrair tinha ido com alguns camaradas para Quinhamel, uma vez que estava com grandes projectos para aquela noite. Semanas antes tinha conhecido a Helena uma moça cabo-verdeana, que era o que se costuma dizer uma brasa e andava todo entusiasmado" (...).

Guiné 63/74 - P537: A minha estória é tão pequenina (Zé Teixeira)


Guiné > Mampatá > 1968 > "Foto da minha psico com a Awá de Mampatá".
© José Teixeira (2006)

Luís: A paz, a saúde e a felicidade estejam contigo.

"A minha estória é tão pequenina !"... Agora deixaste-me baralhado.

Que é que eu sinto perante as situações que os camaradas viveram ?

Todos nós que passamos pela guerra vivemos momentos muito dificeis, mas uns sofreram mais que outros. Eu, nos seis meses que estive em Mampatá Forea, sofri cinco ataques e só um ou dois com algum perigo, mas sentia que os camaradas que estacionavam em Gandembel, Guiledje, Gadamael, Cacine, Saltinho, Xitole, etc estavam a comer pancada todos os dias e todas as noites.

A minha Companhia fazia as malfadas colunas e via-os passar. As companhias que faziam as grandes operações, sofriam na pele o desgaste fisico emocional e ofereciam a vida. Tantos que lá ficaram ! Isto é, perante esta realidade eu estava a passar umas férias em Mampatá.

Claro que tive outras oportunidades, a de ser eu mesmo, despido da farda da guerra, junto daquela população. Que bom foi para mim !

Quando eu faço aquela afirmação é neste sentido e mais nada. Naturalmente que me sinto pequenino perante as situações que o Zé Neto, o Mário Dias, o Rui Felicio, o Mário Reis e tu mesmo viveram.

Lógico que admiro a forma como estás a gerir o Blogue. Preocupas-te com todos e com tudo o que se passou. É que não se viveram só momentos de guerra, de aflição, dificeis e marcantes pela negativa. Houve muitos momentos que construiram as nossas vidas durante cerca de dois anos.

Momentos felizes, de aventura, de realização pessoal. Ora, é isto que tu tens vindo a
passar.

Em pequenas parcelas, vais construindo um todo colectivo que reflete uma forma de estar. O que é muito mais que uma guerra. São vidas que se cruzaram no tempo e construiram um tempo, o qual vai ficar na história e, é preciso que esta história seja a verdadeira e não a criada pelos poetas, ficcionistas e romancistas e muito menos pelos políticos.

Com a tua iniciativa, a tua doação sem medida, isso pode e deve ser uma realidade.

Espero que entendas o meu estado de espírito. Aceita um abraço emocionado neste preciso momento em que te escrevo. Conheço-te há meia dúzia de dias, mas és um meu irmão de coração.

Zé Teixeira

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P536: Parte punho, bajuda (Sousa de Castro)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1970 > Bajuda balanta lavando-se na fonte (comunitária)... Eros andava no ar e o Luís Moreira, alf mil sapador, da CCS do BART 2917, por acaso estava lá, empunhando a... sua máquina fotográfica. Hoje acusar-nos-iam de nos comportarmos como exército de uma potência colonial ocupante... Uns tempos depois os tipos do PAIGC (quem sabe, por ordem do comissário político, por uma mera questão de ciúmes...) puseram-lhe uma mina antipessoal, à saída da ordenamento de Nhabijões... O destinário, por ironia, era o sapador e fotógrafo indiscreto... (LG)
© Luís Moreira (2005)


Texto do Sousa de Castro:

É, pá, até que enfim!...

Chegamos ao fim de linha. Nós, os soldados, também temos as nossas estórias e que estórias!... Desde o parte punho ao apalpamento dos seios por um peso, sexo, ou uns beijinhos a troco de pão. Algumas já sabiam dizer:
- Eu ser como mulher branca, eu não ter ido ao fanado... - e muitas mais estórias.

Também tínhamos um gajo de Lisboa, 1º cabo escriturário da CART 3493, que achava que eu era muito snobe, o gajo cantava muito bem. Ouvi dizer até que veio mais cedo para casa disfarçado de mulher.

Estão a ver? Mas no que toca a falar de bajudas! Tomara muitas brancas serem como elas... Que pele lisinha!... Revejam algumas fotos já publicadas e digam-me se não falo verdade.

Sousa de Castro

Guiné 63/74 - P535: Fátima, a furtiva gazela de Sare Ganá (Luís Graça)

Excertos do Diário de um tuga. 20 de Agosto de 1969 (1)

Os dias em Sare Ganà [ no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá] ainda vão sendo suportáveis, à aparte o calor, as moscas e o estado de sítio...

As noites, essas, é que são longas e penosas. O que me custa mais é não poder ler. Os meus soldados fulas estão de serviço, reforçando o sistema de autodefesa (2).

Por causa de um possível ataque da guerrilha (3), é proibido fazer lume ou foguear na tabanca. Aqui come-se cedo e deita-se cedo. Ficam os vampiros dos mosquitos. Por sorte, não apreciam lá muito o meu sangue. Deve-lhes saber a uísque.

Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fátima, uma das mulheres do comandante da milícia: logo ao segundo ou terceiro dia, introduziu-se-me, lesta como uma gazela,  na palhota onde durmo, junto ao espaldão do morteiro. Tapou-me a boca com a mão, esboçou um sorriso cúmplice, puxou o pano de chita até à cintura, virou-se delicadamente de costas e ofereceu-me o seu esguio corpo negro, ressumando húmidos odores da floresta!...

De pé, ligeiramente curvada para a frente, enigmática como uma máscara, lasciva como a serpente bíblica, submissa como uma fula!

Não é bonita, o rosto deve-lhe ter sido marcado pela varíola, quando mais nova... Mas é sensual e ainda jovem.

Mulher africana.
Pano tradicional de Cabo Verde.

© Luís Graça (2005)

Tenho dificuldade em perceber a sua atitude e em advinhar-lhe a idade. Terá menos de trinta. Trocámos apenas olhares no primeiro dia, na linguagem mais universal dos seres humanos.... E, tal como tinha chegado, partia depois, furtivamente, pela calada da noite, sem dizer uma única palavra em português ou crioulo: a única, de resto, que até agora lhe ouvi, foi uma estranha corruptela do meu apelido.

O affaire (que palavra tão deslocada aqui no cú do mundo) foi celebrado com uma singela troca de roncos: dei-lhe a minha toalha de banho turca e fiquei-lhe com a sua pulseira de missangas vermelhas e brancas como recordação das estranhas noites de Sare Ganà.

Deveríamos ser, ali, em Sare Ganá, os dois seres mais deslocados e solitários do mundo... Nunca mais a vi, nem cheguei a saber a sua verdadeira estória.

Luís Graça (ex-furriel mil Henriques da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
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(1) Post já aqui reproduzido com outro título: 11 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXVIII: As estranhas noites de Sare Gana

(2) Vd. post o post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu

"(...) 15 de Agosto de 1969:

"1. Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no sub-sector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa. O que não é irónico, porque a população é fula.

"Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio.

"É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, foram no mato (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Gana e a mais duas ou três tabancas (Sare Banda, Sinchã Satu...).

"Quase todos os dias ouvíamos os Fiats bombardearem Sinchã Jobel (...)".

(3) Vd. post de A. Marques Lopes, de 28 de Maio de 1969 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968)

Guiné 63/74 - P534: Um hino ao amor (Leopoldo Amado)

Texto do Leopoldo Amado:

Caro Tunes e restantes amigos da Tertúlia:

Mais uma vez o João Tunes demonstrou a sua brilhante pena, mas mais do que isso, a sua brilhante concepção da vida e do mundo. Para além deste texto se nos apresentar como um hino ao amor, à sexualidade e a guerra, independentemente do lado barricada em que nos situarmos, é também demonstrativo de que não há fatalidades (se assim o podemos chamar), tamanha que seja, perante o qual o Homem (homens e mulheres) não se queda perante as suas fraquezas e virtualidades.

É (e foi) assim nos hiatos que antecedem as crises. É (e foi) assim nas épocas de crise, em todas as crises; foi assim na guerra colonial e/ou guerra de libertação; sê-lo-á certamente num terramoto ou tsuname qualquer, enquanto não chegarem os demorados socorros e enquanto os sobreviventes ainda tiverem animus e libido suficientes para darem vazão à sua qualidade de humanos, com as fraquezas e virtualidades inerentes.

A isto, chame-se-lhe o que se quiser: amor, sexo, colonização sexual, depravação, degenerescência ou cafrealização, contanto que a natureza ontológica dos homens, de todas as cores e latitudes, tal como na realidade da vida, se sobreponha a esses eufemismos demodées que, paradoxalmente, teimam a enfeudar-se a éticas dormentes, a falsos moralismos e hipocrisias encapotadas.

João Tunes está uma vez mais de parabéns, pois disso também se faz a História e a memória colectiva.

Leopoldo Amado

Guiné 63/74 - P533: Ganhámos na tusa pequena, perdemos na tusa maior (João Tunes)


Texto do João Tunes

Caros tertulianos e estimados camaradas,

Concordo. Claro que não deve haver tabus. Isso não, um bom tabu vale menos que um mau cartoon, dizendo assim e a aproveitar a oportunidade em que o Maomé não nos estará a ouvir, entretido que ele deve estar com os preparativos da tomada de posse pelo Hamas do governo da Palestina. E se não deve haver tabus para narrar o nosso erotismo guerreiro, também ele, tabu, não é chamado para quando cada qual deve dar a sua opinião, seja ela igual, diferente ou mais que sim ou que não. E eu uso pouco a abstenção e menos ainda o voto em branco.

Todas as nossas históricas eróticas são giras (o que fodemos, malta!, só se perderam as punhetas com a imaginação a vaguear na metrópole pu nas putas clarinhas de Bissau!) e devem ser contadas. Um gajo, para mais jovem, não fornica com uma G3, menos ainda com uma basuka e nem pensar com um obus 14, pois claro, para mais era proibido enrabar o comandante mesmo que ele merecesse e um gajo quando quente pede coisa quente, não vai enfiar o pirilau num sorvete de baunilha e morango que, para mais, no mato não havia, e chocolate quente, isso era um fartote.

Acho pois muito bem e que se dê o máximo de fogo à peça (*). Mas, se me permitem, tenho para mim que todo o nosso historial folclórico-erótico, se bem deitado cá para fora, devendo-o ser, também demonstra uma coisa - foi mas foi o tanas termos estado lá a defender Portugal do Minho a Timor. A nossa braguilha, ou a memória da nossa braguilha (e da braguilha de cada um, só o próprio e o padre a quem nos confessamos sabem bem), faz esse mito em cacos. Só não fodemos o que não se pôs a jeito. Ou a psico não permitia. E, sejamos francos, fodemos na Guiné como não fodíamos em Lisboa, no Porto, no Minho, em Trás-os-Montes ou no Alentejo. Olhávamos uma bajuda da Guiné com o mesmo sentido de rapina de posse sexual que para a filha da nossa vizinha metropolitana do rés-do-chão ou para a nossa própria namorada? Ora! E até julgo, honra nos seja feita, que fodemos bajudas e ex-bajudas, fodendo bem, mas com mais decência que o limite da indecência que nos era permitida como exército ocupante e ao serviço de um colonialismo serôdio.

É que o Eros não nos deve matar a inteligência a lidar com o Ethos. Acho que devemos isso, pelo menos, para com as actuais bajudas de uma Guiné livre e independente. Para mais, elas, as bajudas, muitas foram as comidas mas, ao cabo e ao resto, lixaram-nos bem, comeram-nos depois por junto em Guileje e no resto, sendo certo que após tantas batalhas ganhas entre as mamas e as pernas delas, mais outras mais com fogacho de metralha, acabámos por perder a guerra (a outra, a maior, a colonial). Ou seja, tanta pila tesa tivemos e não tivemos pilas para os Strellas quando eles começaram a assobiar no céu da Guiné, transformando-o em área libertada.

Resumindo: ganhámos na tusa pequena, perdemos na tusa maior.
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(*) - Em 7 de Abril de 2004, escrevi e publiquei assim (1):

"Voltei a atravessar a parada, agora em sentido contrário e rumo à messe de oficias, para cumprir as ordens superiores. Tinha que jogar king e, a essa hora, o Tenente Coronel já devia estar impaciente pela demora do parceiro à força. Já era noite e as únicas luzes eram os holofotes de vigia e as luzes nas casamatas e nas messes de oficiais e de sargentos."

"No percurso, os pensamentos divagavam algures, misturando Lisboa, a casa, a família, os amigos, a puta da Guiné e o baile perdido. Depois, os pensamentos focalizaram-se nas lindas e personalizadas bajudas manjacas. Paciência, amanhã, é outro dia, disse, cá para mim. Até que, como oficial, não podia abusar e, muito menos, atingir o finalmente. Nem queria, pois tinha vindo para a Guiné casado de fresco. Mas que era muito bom sentir o roçar dos mamilos rijos das bajudas atravessar a camisa e aquecer o peito, calor que depois subia para a cara e descia para a virilha, isso era um facto. Ou uma evidência. Muito melhor que emborcar uma garrafa de uísque ou jogar um king com o cagarolas do Romeira. E quanto não valia, depois do baile, ficar com a memória mais apetecida para enfiar na cama, adormecer e esperar o sonho, o sonho desejado, em que as lembranças eróticas dos mamilos das bajudas cediam espaço à lembrança dos mamilos da mulher. Só isso e não era pouco. Não dava para mais. Mas, não faltava muito para gozar férias de um mês em Lisboa. Porque o descabaçamento das bajudas era obra para furriéis que as recolhiam já maduras dos braços dos oficiais. Depois, as ex-bajudas descabaçadas passavam a mulheres grandes e a ganhar dinheiro na lavagem de roupa para as tropas. E era então, só então, que chegava a hora do festim para cabos e soldados. Percebia-se a cadeia de funções no jogo do sexo porque eram muito raros os furriéis, os cabos e os soldados que tinham dinheiro para passarem férias no continente. E quase todos os oficiais faziam duas vezes férias durante a comissão, porque o podiam fazer e, assim, podiam aliviar atrasos acumulados de relações sexuais junto das mulheres, amigas disponíveis, companheiras de ocasião ou prostitutas brancas. Como em tudo na tropa, também, no tocante a sexo (melhor dizendo, à expressão da supremacia sexual da potência colonial), a cadeia de posse, os ritos hierárquicos e as condições sociais, tinham os seus preceitos e equilíbrios."
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As melhores saudações camaradas de cumprimentos a todos os estimados tertulianos. E não esqueçam de ter um óptimo fim-de-semana.

João Tunes
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Nota de L.G.:

(1) João Tunes > Bota Acima > 7 de Abril de 2004 > Jogo de Cartas > Texto delicioso, de antologia, onde o alferes miliciano de transmisssões Tunes relata ou evoca : (i) as noites, chatas p'ra burro, em que era obrigado a jogar king com o seu comandante, o tenente-coronel Romeira; (ii) as bravatas sexuais dos tugas; e (iii) a porrada que apanhou por recusar bater num cabo de transmissões sob o seu comando, porrada essa que o levou do Pelundo até ao Catió.

Guiné 63/74 - P532: os periquitos e a prostituta de Bolama (Leopoldo Amado)

Guiné > Bolama > 1972 > CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74). Bolama era, em muitos casos, o primeiro poiso dos periquitos. Era aqui que se fazia o treino operacional das companhias, antes de partirem para as zonas quentes. Bolama, tal como Bafatá e Bissau, era uma boa zona para as trabalhadoras do sexo, como diria o nosso Jorge Cabral. Na foto, o Manuel Ferrera, soldado condutor auto da CART 3494, a mesma companhia a que pertenciam os nossos tertulianos António J. Serradas Pereira (Alf mil art), Carvalhido da Ponte (Fur mil enfermeiro) e Sousa de Castro (1º cabo trms) (LG)

© Manuel Ferreira (2005)


Texto de Leopoldo Amado, historiador guineense, doutorando em história contemporânea pela Universidade de Lisboa com uma tese sobre guerra colonial ' versus' guerra de libertação (o caso da Guiné, 1963/74), e membro da nossa tertúlia:

Camaradas e amigos,

É longa já a lista de obras de literatura colonial publicados, assim como estudos que recaíram sobre as mesmas. Esse tipo de literatura que aos poucos está a conquistar o seu espaço em Portugal, está repleta de narrativas que explanam o amor, o sexo, a homossexualidade, o romance, a masturbação, as relações ocasionais ou fortuitas, etc.

É, digamos assim, uma dimensão humana que resultou do natural encontro civilizacional de homens e mulheres de culturas e quadrantes diferentes, é certo, mas que descobriram no relacionamento entre ambos e no amor (ou no sexo) a dimensão universal dessa humanidade que, afinal, constitui o denominador comum entre homens e mulheres de qualquer latitude.

Tive a oportunidade de ler imensas e grandiosas obras de literatura colonial e, no âmbito da minha tese [de doutoramento], dediquei um pequeno mas expressivo capítulo à literatura colonial que directa ou indirectamente se reporta à Guiné. Não vos conto quão lindo foi para mim a constatação de que o amor ou o amor, para (não) falar em sexualidade, figura nessas magistrais obras como o elo vital do próprio ciclo da guerra, aliás, razão pela qual a sua evocação afigura-se-nos, nalguns casos, despida de preconceitos, de falsas honrarias e/ou de pruridos que, amiúde, estas questões suscitam, o que não significa que repudiemos, convenhamo-nos, o direito à privacidade ou ao segredo que assiste individualmente, a cada um, e colectivamente, em caso de necessidade ética por todos tido como essencial.

Estas e outras questões afins, justamente porque apresentam-se-nos como mais uma dimensão da guerra, em nada me escandalizaria se, ao nível da Tertúlia, os visse abordados, literária ou cruamente, com ou sem pseudónimos, conforme a opção por parte daqueles que, por livre iniciativa, resolverem partilhar a sua experiência ou a de outros que, por qualquer via, tiveram conhecimento.

Nesse sentido, escreverei a seu tempo a estória de Carnaval em Grogue, uma prostituta nativa que, em Bolama, improvisava uma cama com papelões que estendia ao chão, colocando do lado oposto dos mesmos os periquitos em fila indiana que, um após outro, pelo menos anulavam distâncias físicas com sonantes gemidos mórbidos, tudo isto na presença dos ainda não aviados, cuja ansiedade,aliás, era todo visível nos olhos esbugalhados que ostententavam.

Contarei ainda – suponho mesmo que em parte já o estou a fazer – de como a brincadeira acabou mal e também a forma como os miúdos de Bolama, ainda catraios, se deleitavam com idas organizadas à piscina municipal, a fim de silenciosamente escolherem o melhor ângulo de visão que lhes permitisse espreitar e assistir da melhor forma ao festim...

Leopoldo Amado

Guiné 63/74 - P531: Nem santos nem pecadores (David Guimarães)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > CART 2716 Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970: "Eu e a Helena" (DG).

O Xitole era, tal como Bambadinca, sede posto administrativo, pertencendo ambos ao concelho de Bafatá (zona leste), segunda cidade da província. A povoação que vivia no Xitole era, no entanto, menos numerosa do que a de Bambadinca, sede do BART 2917 (1970/72). Ir a Bafatá mudar o óleo (expressão castrense para ir às putas...) era um luxo para o pessoal do Xitole e de Mansambo... Tinham que se contentar com as conquistas amorosas locais... (LG)

© David J. Guimarães (2005)


Texto do David Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, Xitole, 1970/1972)

Até que enfim!... Acho que sim - não poderá haver tabus e ainda bem que o Zé Neto, o Zé Teixeira, o Jorge Cabral e o Luís são, afinal, os responsáveis por quebrarem o tabu... Falaram de algo que também é guerra... Foi e marcou a nossa guerra: a lavadeira, o cabaço, etc, etc... Ai, ai, ai, que começo a falar demais, ou talvez não...

Creio que nunca houve grandes abusos nesse sentido, nunca foi preciso apontar a G3 a nenhuma bajuda, já uns pesos, enfim ... Que mal fazia, se era dinheiro de guerra!...

Também é importante todos dizermos que, nesse capítulo, não fomos nem santos nem pecadores. Eramos humanos, soldados que passávamos uma vida metido entre matos, entre perigos e guerras esforçados... E pela noite dentro, a escapadela da ordem, na tabanca. Ai que maravilha!... Foram muitos e belos romances... E aqueles que podiam ir a Bafatá, eram uns sortudos... Eu só no fim da comissão é que soube o que era Bafatá!...

Lembro-me de um romance de um camarada que comprou a liberdade de uma mulher. Os nativos pensaram que ele se tinha casado com ela... Bem, porreiro para ele! Não é segredo, foi verdade, e a testemunha foi o chefe de posto, isso mesmo, aquele que a mulher - linda ali, no Xitole!!! - morria de amores por um camarada nosso, já falecido...

E não vamos contar a do tenente que, às 4 horas da manhã, estava sentado no colo de um soldado.... Tudo boquiaberto? Aconteceu no Saltinho, sim ... Fora aquele camarada - ai Senhor do Céu ! - que um dia, estava eu a dormir no palácio das confusões, e ele por cima de mim:
- Guimarães! - dizia o B..., camarada do Xime - porra, estás bem?
- Deixem-me dormir! - pedia eu... Porra...
- Pois é, estás porreiro!!! Pois é e pois é... E eu dormi mesmo....

De manhã fui perguntar se estava tudo com os copos durante a noite, que nem me deixavam dormir... Então disseram-me:
- Ó seu c...., então não sabes que o fulano tem uma amante que é um cabo !?
Respondi eu:
- F...-se, que perigo em que eu estava... Porra!!! Já viram a mina mesmo ali, mesmo por cima de mim!... - Estavamos num beliche... Quem me perguntar, prometo que não digo o nome do camarada furriel - nem me lembro do nome... Sei apenas que foi meu carmarada de recruta nas Caldas da Rainha... Um dia a CCAÇ 12 acompanhou uma coluna ao Saltinho... Houve no caminho um acidente onde morreu um soldado africano, condutor, e um furriel ficou ferido... Bem lá ficou o camarada em convalescença no Xitole:
- Ai que vocês são tão simpáticos....
- Bem, bem...

E o Cardoso (outro furriel que estava lá desde 1966) ... Esse pedia-me para eu fazer guarda mais pela noite... Vinha-me acordar, para eu seguir para a tabanca: vinha sempre de casa da Mariana, com as calças na mão, descomposto... E ria, ria... Lá ia eu, sempre furioso:
- Seu porco! - e ia ter com a Mariana e ela, coitada, queixava-se:
- Guimarás (pronúncia dela), Cardoso manga de tolo, mas Mariana gostar dele....

Isto também era guerra - ou, se quiserem, os intervalos de guerra, que eram poucos... O suficiente, afinal, para se apanhar uma borracheira ou ir, com lindos penteados, passear à tabanda, para bajuda ver ou para quem aparecesse, pelos vistos....

Um abraço,
David

Guiné 63/74 - P530: Frutos Proibidos (Zé Teixeira)

Guiné-Bissau > Saltinho > A sobrinha do Mudé Embaló (1)
© José Teixeira (2005)

Com a minha preocupação em rever a Binta da Chamarra, gerei algum movimento nas mulheres de Sinchã Sambel. Ninguém me soube dizer o que era feita dela, mas apareceu o filha da outra a bater-se ao lugar, na ambição de vir a conhecer o pai e sacar algum.

No dia em que deixei o Saltinho, sei que a Awá de Mampatá, irmã da outra, a Binta Bobo, ia lá visitar-me. Só que eu saí de madrugada, mas fiquei com pena. Do pouco que conversei com a Dadá, mulher do Régulo, os filhos de brancos foram bem aceites e estão integrados nas comunidades locais.

Eu conheci mal a história da Binta da Chamarra. Quando fui colocado lá, já ela tinha engravidado e ido para Quebo. O Catarino (enfermeiro que esteve lá antes de mim) é que sabe bem da sua história e foi a pedido dele que a tentei reencontrar.

Em Empada havia uma mulher da raça papel que tinha um filho de branco e estava perfeitamente integrada na sua comunidade.

Em 1975, já em Bissau, o guinéu que nos tratou do embarque, era filho de branco e mostrou muito interesse em localizar o pai que, segundo ele, devia morar aqui em Leça do Balio. Parece que chegou a corresponder-se com uma irmã do pai, mas perdeu a ligação. Este jovem tinha um bom emprego e apenas gostava de conhecer o pai. Ainda tentei localizar o rastro, mas nos registos desta terra não existia ninguém com o nome que ele me deu.

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > O Zé Teixeira com um antigo milícia e a sua filha.
© José Teixeira (2005)

Creio que este também é um tema com muito interesse para o Blogue. Recordo apenas o que aconteceu em Mampatá. O Alferes, comandante do Destacamento, logo no primeiro dia que lá estacionamos, reuniu o pelotão e teve uma conversinha:
- Amigos, todos somos homens e aqui há muitas mulheres. Estamos aqui para voltarmos para a Metrópole e só o conseguiremos se não arranjarmos sarilhos... Eu não quero sarilhos de saias. Cada um que se desenrrasque como puder e souber. Porém se houver algum problema, eu serei duro, porque não aceito que um de nós possa pôr a vida de todos em perigo, por atitudes menos sensatas.

Foi mais ou menos isto o que o Alferes Costa Belo disse à sua gente. A relação durante seis meses foi excelente e, como já passou no blogue, eu até tive um milícia que me ofereceu a mulher para me pagar, pelo facto de ter enviado o pai para Bissau e assim lhe ter dado mais uns anos de vida.

Houve situações difíceis de ultrapassar. É que o raio das bajudas eram lindas como o sol, com um corpinho! Ai . . . está-me a crescer água na boca.

Um abraço
Zé Teixeira
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXIII: Estórias do Zé Teixeira (1): Dôtor, Bô ka lembra di mim ?

"Passados largos anos, após o regresso da guerra, recebi um telefonema do Dr. Azevedo Franco, meu querido amigo, médico, que fez grande parte da sua comissão em Buba. Tinha-lhe aparecido no Hospital o Mudé Embaló e não tinha soluções de futuro para o puto.

"O Mudé tinha-se iniciado, como ajudante de fermero, com onze/doze anos, na Chamarra, com o meu colega de Companhia, Jorge Catarino que lá se encontrava integrado no seu pelotão (...)".

Guiné 63/74 - P529: Estórias cabralianas (5): o Amoroso Bando das Quatro em Missirá

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Reguladodo Cuor > Missirá > 1969 > Aqui esteve destacado, com o seu Pel Caç Nat 63, o Alf Mil Art Cabral, em 1970/71 /(1)
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)


O Amoroso Bando das Quatro (2)

Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; hoje, advogado e professor universitário):

Nos Destacamentos em que vivi, todos eram bem recebidos, à boa maneira da gente da Guiné, cuja cativante hospitalidade foi muitas vezes confundida com subserviência ou portuguesismo.

Djilas, batoteiros profissionais, artesãos, doentes, feiticeiros, alcoviteiros, parentes dos soldados, visitavam o aquartelamento e às vezes ali permaneciam, fazendo negócios, combinando casamentos, tratando-se ou tratando, ou simplesmente descansando. Desconfio mesmo que alguns guerrilheiros terão passado férias em Missirá…

Uma regra porém, tinham todos de cumprir à chegada. Deviam apresentar-se ao Comandante, dizer quem eram e o motivo da visita. Claro que muitos mentiam, o que era irrelevante, pois o que interessava era o significado simbólico da apresentação, como expliquei muitas vezes aos que não concordavam com esta política de porta aberta.

Estávamos pois, habituados às mais estranhas personagens, mas ficámos agradavelmente surpreendidos, quando num dia de Dezembro, ao pôr-do-sol, entraram no quartel quatro trabalhadoras sexuais. Eram jeitosas fulas do Gabu que, respeitadoras da hierarquia, comigo combinaram os preços e as condições dos serviços, encarregando-me da cobrança.

Encontrando-se o Furriel Branquinho com paludismo e o Cabo Morais com dor de dentes, restavam apenas sete brancos, capazes de usufruir de tão inesperada benesse. Efectuados os pagamentos, começou a actividade, que eu previa satisfatória, mas que a curto prazo foi interrompida por alta gritaria.

Primeiro, irrompeu uma, dizendo ter sido enganada, pois cabo e furriel a queriam usar, com um só pagamento. Acontecera que o cabo substituíra o furriel na função, pensando que a mulher não repararia, esquecendo-se que o Furriel tinha um braço engessado, pormenor que logo a alertou. Furiosa, acolheu-se na minha cama, juntando-se à que lá se encontrava.

Ainda nem um quarto de hora passara, logo à porta do abrigo aparece outra, queixando-se do Cabo Rocha. Dizia ela que não era como as raparigas de Lisboa, que até no sovaco… Também esta se meteu na minha cama.

De seguida, surgiu a terceira afiançando que o Básico-Cozinheiro era suma bajuda, pois sangrava, sangrava. Claro, mais uma na minha cama.

Eis-me assim feito sultão, aconchegado entre as quatro, tranquilo e em Paz. Rei e súbdito, protector e protegido, entre seios e ventres, negros e suaves, nunca dormi tão bem.
De manhã partiram.

Quem as teria mandado, passou a perguntar todos os dias o Básico-Cozinheiro, sarado já o freio e louco de desejo.

Garanti-lhe ter sido uma oferta do Movimento Nacional Feminino. Convencido, sei que lhes escreveu, implorando uma repetição. Nunca lhe responderam. E o certo é que elas não voltaram…

© Jorge Cabral (2006)
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(1) Amigos e camaradas: Deixem-me hoje ser tendencioso: Quero confessar aqui, em público, que sou fã das estórias cabralianas, o que não significa menor apreço pela produção literária dos demais tertulianos... L.G.

Jorge: Da tua janela vê-se outra Guiné, outra guerra, outro mundo, os homens e as mulheres em carne e osso… O teu sentido de humor é único… Sou fã das tuas short stories… Cuida-me bem dessa mina literária… Eu sei que é uma técnica difícil… Quanto à tua carta (que eu pressupus aberta…), ela merece o meu aplauso e a minha total concordância (3)… Amigalhão, um abraço. Luís Graça

Sobre a pessoa do Jorge Cabral, vd. post de 17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXII: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Fá, 1969/71)

(2) Vd. posts anteriores:

21 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCIII: Bendito Cabral, entre as mandingas de Fá e as balantas de Bissaque

5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...

"A mulher do Major e o castigo do Cabral

"Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso (...)

Guiné 63/74 - CDXXII: Estórias cabralianas (2): rally turra ?

"Numa tarde de tédio convenci o motorista da viatura existente em Missirá, um humilde Unimog, a dar um passeio. Pretendia visitar o Enxalé, seguindo pela estrada de Mato Cão, pela qual não passava qualquer veículo há muito tempo.

"Progredimos alguns quilómetros, e perto de S. Belchior, ouvimos tiros, pelo que retrocedemos, perdendo no regresso um jericã (...)"

6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: Estórias cabralinas (3): o básico apaixonado

"O Pel Caç Nat 63 esteve quase sempre em Destacamentos. Comigo em Fá e Missirá. Antes no Saltinho, e depois no Mato Cão.

"Para os Destacamentos eram mandados os "especialistas" que a CCS [do Batalhão sediado em Bambadinca] não queria. Assim, tive maqueiros que não podiam ver sangue, motoristas epilépticos e até um apontador de morteiros cego de um olho. Tudo boa rapaziada, aliás! (...)"

18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVIII: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos

"Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética (...)".

(3) Vd post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

"O Jorge era, para mim, o mais paisano dos militares que eu conheci na Guiné: alferes miliciano, foi o comandante do Pel Caç Nat 63 (...).

"Em Fá [e depois em Missirá] não se limitava a ser um heterodoxo representante do exército colonial, actor e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais. Um verdadeiro Lawrence da Guiné. Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente cafrealizado!" (...)