sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23538: Tabanca da Diáspora Lusófona (20): Um saudoso e apertado abraço para a Alice, que fez ontem anos... E lá vamos, hoje, a caminho de Toronto, Canadá: oxalá possamos encontrar antigos camaradas da Guiné (João Crisóstomo, Nova Iorque)




Vilma Kracun e João Crisóstomo, ela, eslovena, enfermeira, reformada, ele nosso camarada da diáspora, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), luso-americano, mordomo reformado, ativista de causas sociais e humanitárias. Casaram em segundas núpcias em 2013: amigos já do tempo de  Londres, reencontraram.se ao fim de 40 anos... Uma linda história de amor.

O casal vive em Queens, Nova Iorque. O João nasceu em 22 de junho de 1944, em Paradas, Torres Vedras. Depois da Guiné, emigrou para o Brasil e, em 1975, para os EUA. Tem um curso superior em gestão hoteleira, Em Nova Iorque fez parte da a elite portuguesa dos mordomos que serviam a elite nova-iorquina. Principais causas humanitárias e sociais pelas quais ele se tem batido: defesa das gravuras de Foz Côa, autodeterminação de Timor Leste, e reabilitação da memória de Aristides Sousa Mendes... O casal vem com frequência a Portugal e, desde 2013, também à Eslovénia.

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem de quinta feira, 18/08/2022, 22:42

Caríssimos Alice e Luís Graça. Não sei (talvez seja de propósito ) ambos os vossos telefones vão imediatamente para a "answering machine”… Imagino que hoje teve de ser assim mesmo.

Não esquecemos que hoje foi/é um dia muito especial…e nós ( um pouco tarde, que o dia passou quase sem darmos por isso) queremos ainda ser parte dele.

Se de outra maneira não podemos estar festejando com o Luís Graça e demais queridos da nossa querida Alice, aqui vai pelo menos com um saudoso e apertado abraço!

Vamos amanhã até Toronto, como há tempos disse ser intenção de fazer. Vamos de carro, com paragens em Morgentown (Virgínia) para ver uns amigos e Cleveland (Ohio) onde existe a maior comunidade eslovena nos USA. Não preciso de dar mais explicações, certo?

Na volta vamos parar em Ithaca, "home” da Cornell University onde fui em 1975, pois tirar aí um curso de hotelaria foi a razão que me trouxe aos USA. Não pôde ser, mas ficou-me a vontade de aí voltar pois toda aquela zona (Finger Lakes) é um sonho.

Era nossa intenção parar também em Strathroy onde mora o nosso camarada Picanço para um abraço; mas terá de ser noutra ocasião. Aliás, duma tarde de telefonemas para camaradas da diáspora, tentando encontrar alguém para cavaquear um pouco, foi este o único camarada com quem consegui falar. E foi nos Açores que o encontrei…

A continuação de um dia muito feliz para todos especialmente para a nossa (de todos!) muito querida Alice.

Com saudades,

João e Vilma

2. Comentário do editor LG:

João e Vilma: obrigado pela vossa solicitude, carinho e amizade. Agradeço os votos de paarbéns em nome da Alice, que ontem, como devem imaginar, não teve um minuto de sossego. E depois à noite fomos jantar todos, com os filhos e a neta, num sítio que recomenda a Tasca da Memória, Calçada do Galvão, 8, Ajuda, Lisboa (está na moda, é obrigatório reservar mesa). Ainda vimos o vosso telefonema e tentámos marcar, de regresso a casa, no carro. De qualquer modo, foi um dia feliz, estivemos todos juntos, a família mais próxima, que é o mais importante.

João, em relação à viagem a Toronto, de que já me tinhas falado, entendo a tua frustração por não poder encontrar mais amigos e camaradas da Guiné.  Mas fica aqui, mais uma vez, o apelo para que a malta dê a cara e apareça.   Como sabes, é uma geração que lida ainda muito mal com a Internet, pelo que muitos (com destaque para açorianos e madeirenses) só descobrem o nosso blogue através de filhos e netos.

Espero que tu e a Vilma se divirtam e façam boa viagem. E, à volta, manda-nos a tua reportagem, pelo menos algumas fotos (com boa resolução... e legendas). Se eu puder e for a tempo, ainda vejo quem, do blogue, vive por aí... Temos um ou outro camarada.  Pelo menos temos 30 referências com  o descritor Canadá

Um chicoração do Luís (e Alice)

PS - Alguns membros da Tabanca Grande, que vivem em Toronto (ou no Canadá, como é o caso do José Manuel Espínola Piçanço, de que já tens os contactos)  

O mais recente é o Manuel Antunes, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 2484/BCAV 2867 (Jabadá, 1969/70); membro da Tabanca Grande nº 859: é mirandês, natural de Duas Igrejas, Miranda do Douro;

Mas temos outros (vivos e falecidos)... Vou procurar com tempo. Alguns visitam-nos mas não chegam a integrar a Tabanca Grande, perdendo-se o contacto. Casos, por exemplo, do:

  •  José (ou Joe) Ribeiro, que é de Leiria, ex- Sold Inf , 4º Gr Comb, CCAÇ 3307/BCAÇ 3833 (Pelundo, Jolmete, Ilha de Jete, 1970/72): vive em Toroto há de 45 anos);
  •  Luciano Vital, natural de Valpaços, Trás-os-Montes, ex-fur mil, de rendição individual, que andou pelas CCAV 3463 (Mareué), CCAÇ 3460 (Cacheu) e Adidos (Bissau), 1973/74

 Outros estão por cá e lá...É o caso do José Marcelino Gonçalves (ex-Al Mil Op Esp da CCAÇ 4152/73, que vive actualmente no Canadá; já foi aos nossos encomntros nacionais,em Monte Real).

Mas há mais... O  problema é que a América do Norte é um mundo, as distâncias são enormes... Em Toronto tenho gente conhecida, da nossa região Oeste. 

Guiné 61/74 - P23537: Parabéns a você (2092): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23534: Parabéns a você (2091): Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira (Lisboa e Lourinhã), esposa do nosso Editor Luís Graça

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23536: In Memoriam (448): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (1): Um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de hoje, 18 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
Confesso que não foi uma notícia totalmente inesperada, a partida do António Estácio. Há poucos anos, terá sofrido um AVC que o deixou bastante diminuído, nas nossas conversas espúrias num cantinho da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, queixava-se da perda de memória e do cansaço que sentia quando se embrenhava em novas leituras, retia cada vez menos. Depois desapareceu do convívio da biblioteca, ao telefone a filha explicou-me que o seu pensamento era cada vez mais volátil, que não contasse com o seu regresso aos papéis da biblioteca. O blogue perde alguém que amou profundamente a Guiné, a ela dedicou estudos, uns inovadores, outros de homenagens a figuras de mulheres empreendedoras, entusiasmou-se pelo estudo que fez de Bolama, sonhava em escrever as suas memórias do tempo guineense. Aqui me curvo respeitosamente em sua memória, recordando pedaços do seu legado.

Um abraço do
Mário


António Estácio, um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal


Gratas recordações do confrade António Estácio

Mário Beja Santos

Consternou-me muito a partida deste dedicadíssimo amigo da sua terra-berço. A nossa convivência era digna da vida de um clube, não fossem os nossos encontros realizados no ambiente em que ambos trabalhávamos, a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Se havia outra gente às mesas de trabalho, refugiávamo-nos num cantinho, debaixo do quadro a óleo de Gago Coutinho e ali permutávamos informações sobre o que andávamos a fazer, ele era um leitor crónico do Boletim Oficial da Guiné, vasculhava tudo sobre Bolama e Bissau, não só do tempo em que lá andou, na juventude, mas com o firme propósito de estudar Bolama, dali saiu livro pertinente e útil, a que juntou outros estudos como as Nharas, a Carlota e a Bijagó, figuras que sempre o entusiasmaram. Tive a oportunidade de ler o seu artigo, bem original, sobre os chineses em Catió, chegados na alvorada do século XX, e depois o importante trabalho que fez com o Philip Harvik, publicado na revista Africana Studia, N.º 17, 2011. Permitam-me que volte a repertoriar a matéria deste trabalho, aqui o deixo com abraço saudoso deste homem bom. Os autores recordam a utilização de degredados para os trabalhos públicos e administrativos em territórios coloniais. No caso da Guiné, a maioria dos condenados vinha de Cabo Verde, mas a introdução de mão de obra, vinda de outras colónias, também se insere nas mudanças operadas no decurso do século XIX, e que aparecem associadas ao fim do tráfico de escravos e no início da plantação de culturas de renda (caso do algodão, o cacau, o café e o amendoim). Indo diretamente à Guiné, o sinal da transformação deu-se com a introdução do amendoim e a colheita de amêndoas de palmeira. Em simultâneo, a cultura do arroz sofreu alterações profundas através da comercialização na região da África Ocidental de variedades originárias da Ásia, novidade introduzida por comerciantes da Gâmbia inglesa.

Em suma, a criação de explorações agrícolas e comerciais, as chamadas pontas da Guiné, irão ser uma realidade a partir da terceira década do século XIX. A monocultura do amendoim fez com que a Guiné ficasse muito exposta à volatilidade dos mercados, pelo que se explica que a descida das cotações se saldo no fim das pontas, nos anos 1980 do século XIX. Passemos agora para os chineses.

O envio dos primeiros chineses insere-se numa tentativa de se trazer à força novos braços. Eles vieram provavelmente da zona de Cantão do estuário do Rio das Pérolas. Os primeiros cantonenses chegaram à Guiné em 1902, é uma presença diretamente associada à expansão de orizicultura no sul da Guiné a partir das primeiras décadas do século XX. Traziam conhecimentos do cultivo do arroz, estes chineses criaram as condições para um processo de migração em massa de comunidades africanas do interior para terras ainda não aproveitadas. Inevitavelmente, deu-se a mestiçagem, é bem provável que longe dos olhares metropolitanos e até da governação. Os autores recordam que após 1891 se intensificaram as campanhas militares, os Bijagós mostravam-se indomáveis, pouco ou nada recetivos a tratados de paz. Os Nalus afastaram-se das investidas dos Biafadas e dos Fulas, migraram para o Baixo Cacine, Cantanhez e para os Rivières du Sud (rios Componi e Nuno) na Guiné francesa. A presença destes chineses é marcante no Tombali, região onde havia um posto militar português e algumas feitorias. Os autores referem o estabelecimento de pontas, com a anuência dos chefes Nalus e recordam que o rio Tombali se tornou uma área de fixação de ponteiros de origem cabo-verdiana. Não sendo abundante a documentação sobre a presença chinesa, há indícios nos arquivos de pelo menos dois chineses que se diziam oriundos de Macau e eram à época residentes em Bolama, tinham feito um pedido de repatriação em 1909.

Os autores mostram fotografias de descendentes chineses em Catió, estes chineses abriram caminho para o desenvolvimento da orizicultura, ela será potenciada pelos Balantas, que fizeram um povoamento que correu de forma pacífica. Lembram igualmente os autores que aí pelos anos 1930, a Guiné era uma colónia em regime anárquico de concessão de terras. Em jeito de conclusão, dizem os autores que estes chineses se integraram na sociedade guineense, mas não pode ser escamoteado que tinham o estigma de degredados, e por isso eles apresentavam-se como refugiados. Quando chegou a hora da luta pela independência, estes descendentes de chineses dividiram-se entre o apoio ao PAIGC, trabalhar na administração colonial ou vieram para Portugal. E concluem enfatizando a necessidade de continuar os estudos sobre a presença das comunidades chinesas das antigas colónias portuguesas. Não quero terminar aqui a minha homenagem ao António Estácio, permitam-me oportunamente referenciar outros títulos que ele dedicou à sua tão extremosa Guiné.

Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné Colonial. Africana Studia. N.º 17 (2011) Publicado em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/AfricanaStudia/article/view/7379/6763

Publicado em: Guiné 63/74 – P14926: Notas de leitura (740): “Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné colonial”, artigo assinado por Philip J. Harvik e António Estácio (Mário Beja Santos).


Revista Africana Studia, 2.º semestre, 2011
Uma imagem de Catió na atualidade
© Reuters - Com a devida vénia
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Nota do editor

Vd. poste de 9 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23510: In Memoriam (445): António Júlio Emerenciano Estácio (Bissau, 1947 - Algueirão, Sintra, 2022): foi alf mil, RM de Angola (1970/72), viveu e trabalhou em Macau (1972/98) e era um apaixonado pela sua terra e as suas gentes

Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23523: In Memoriam (447): Gen João Almeida Bruno (1935-2022): cerimónias fúnebres na Academia Militar, capela do Palácio da Bemposta... E recordando também a sua memória da Op Ametista Real (Senegal, 1973), de que ele foi o comandante

Guiné 61/74 - P23535: (Ex)citações (413): o mito da invencibilidade do Batalhão de Comandos da Guiné, quebrado em Cumbamori, segundo a versão do meu irmão mais velho, o sold 'comando' Cissé Candé, da 3ª CCmds Africanos (Cherno Baldé, Bissau)

Guião do Batalhão de Comandos da Guiné (1972/74)


Ficha de unidade: Batalhão de Comandos da Guiné
Identificação: BCmds
Crndt: Maj Cav Cmd João de Almeida Bruno | Maj Inf Cmd Raul Miguel Socorro Folgues | Maj Inf Cmd Florindo Eugénio Batista Morais
2º Crndt: Cap Inf Cmd Raul Miguel Socorro Folques | Cap Inf Cmd João Batista Serra | Cap Cav Cmd Carlos Manuel Serpa de Matos Gomes | Cap Art Cmd José Castelo Glória Alves
Início: 2nov72 | Extinção: 7set74

Síntese da Actividade Operacional 

A unidade foi criada, a título provisório, em 2nov72, a fim de integrar as subunidades de Comandos da Metrópole em actuação na Guiné e também as CCmds Africanas, passando a superintender no seu emprego operacional e no seu apoio administrativo e logístico.

Em 1abr73, o BCmds foi criado a título definitivo, tendo a sua organização sido aprovada por despacho de 21fev73 do ministro do Exército.

Desenvolveu intensa actividade operacional, efectuando diversas operações independentes em áreas de intervenção do Comando-Chefe ou em coordenação com os batalhões dos diferentes sectores onde as suas forças foram utilizadas, nomeadamente nas regiões de:

  • Cantanhez (operação "Falcão Dourado", de 15 a 19jan73, e operação "Kangurú Indisposto", de 21 a 23 mar73); 
  • Morés (operação "Topázio Cantante", de 25 a 27jan73); 
  • Changalana-Sara (operação "Esmeralda Negra", de 13 a 16fev73); 
  • Morés e Cubonge (operação "Empresa Titânica'', de 27fev73 a 1mar73); 
  • Samoge-Guidage (operação "Ametista Real", em 20 e 21mai73); 
  • Caboiana (operação "Malaquite Utópica", de 21 a 22jul73 e operação "Gema Opalina", de 24 a 27set73); 
  • Choquernone (operação "Milho Verde/2", de 14 a 17fev74); 
  • Biambifoi (operação "Seara Encantada", de 22 a 26fev74):
  • Canquelifá (operação "Neve Gelada", de 21 a 23mar74), entre outras. 

As suas subunidades, em especial as metropolitanas, foram ainda atribuídas em reforço de outros batalhões, por períodos variáveis, para intervenção em operações específicas ou reforço continuado do  

Das operações efectuadas, refere-se especialmente a operação "Ametista Real", efectuada de 17 a 20mai73, em que, tendo sofrido 14 mortos e 25 feridos graves, provocou ao inimigo 67 mortos e muitos feridos, destruindo ainda:

  •  2 metralhadoras antiaéreas;
  • 22 depósitos de armamento e munições com:
  • 300 espingardas, 
  • 112 pistolas-metralhadoras, 
  • 100 metralhadores ligeiras, 
  • 11 morteiros,
  • 14 canhões sem recuo, 
  • 588 lança-granadas foguete, 
  • 21 rampas de foguetão 122, 
  • 1785 munições de armas pesadas, 
  • 53 foguetões de 122,
  • 905 minas 
  • e 50.000 munições de armas ligeiras.

Destacou-se também, pela oportunidade da intervenção e captura de 3 morteiros 120, 367 granadas de morteiro, 1 lança granadas foguete e 2 espingardas e 26 mortos causados ao inimigo, a acção sobre a base de fogos que atacava Canquelifá, em 21mar74.

Em 20ago74, as três subunidades de pessoal africano (1ª, 2ª e 3ª CCmds Africanos)  foram desarmadas, tendo passado os seus efectivos à disponibilidade. Em 7set74, o batalhão foi desactivado e exinto.

Observações - Não tem História da Unidade.

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: fichas das unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp.646/647.


1. Comentário de  Cherno Baldé (nosso colaborador permanente, assessor para as questões etno-linguísticas, economista, Bissau) ao poste P23523 (*)

Caros amigos,

A batalha de Cumbamori (OP Ametista Real, Samoge-Guidage,20-21 mar 1973) mudou a  a minha/nossa percepção sobre a guerra da Guiné e, sobre os Comandos (Africanos) em particular, pois de regresso à nossa aldeia, depois de participar nesse ataque, o soldado comando Cissé Candé (3ª CCmds Africanos), na qualidade de irmão mais velho, disse-nos que, definitivamente, para se ser um bom Comando, também, devia-se saber correr e bem. 

Segundo Cissé, em Cumbamori os Comandos atacaram com a máxima força e coragem, mas receberam uma resposta ainda mais violenta da parte dos guerrilheiros, surpreendidos em sua prória casa, onde até as árvores disparavam contra os invasores. 

No fim, sem munições de reserva, tiveram que fugir, sim isso mesmo, fugir, perseguidos pelos donos da casa, incluindo carros blindados do exército senegalês chamados em apoio da guerrilha. 

Esta foi a versão que ouvimos na altura.  com  estas palavras do Cissé,  nessa noite nos perturbou o sono e mudou  a nossa forma de ver e sentir a guerra à nossa volta e de olhar para os Comandos Africanos da Guiné que afinal também eram mortais como todos os outros soldados.

Até aquele dia, estavamos inocente e firmemente convictos de que um Comando era um militar invencivel em quaisquer circunstâncias e que nunca virava a cara à luta fosse ela qual fosse, tal era a nossa crença na força e coragem dos mesmos, independentemente da propaganda de um e doutro lado.

No regulado de Sancorla (minha terra), quando uma criança (de sexo masculino) chorava no colo da mãe, esta consolava-a com a promessa de que a entregaria para fazer parte dos bravos Comandos quando crescesse e fosse homem, a fim de combater pela defesa da sua terra.


"Comando quer Comida ? NÃO !"

"Comando quer Bajuda ? NÃO !"

"Comando quer Bianda ? NÃo !"

"Comando quer Guerra ? SIM !"

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé (**)

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Guiné 61/74 - P23534: Parabéns a você (2091): Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira (Lisboa e Lourinhã), esposa do nosso Editor Luís Graça

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23530: Parabéns a você (2090): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Buba, 1968/70)

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23533: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
É mais a riqueza do olhar, a sinceridade do proselitismo que nos atrai na prosa do Padre António Joaquim Dias que labutou na Guiné cerca de oito anos e meio e regressou a Portugal em 1942 publicando as suas impressões e a história do regresso dos Franciscanos à Guiné no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira. Recordo que estes apontamentos seguramente foram tidos em conta pelo Padre Henrique Pinto Rema responsável por aquele que é seguramente o mais completo estudo sobre a história das missões católicas da Guiné, infelizmente esgotado. A vivacíssima descrição do Padre Dias permite-nos igualmente tomar nota do estado de desenvolvimento da Guiné, a importância que se atribuía à navegação marítima na ausência de infraestruturas rodoviárias e também se pode verificar pela leitura que ele faz do mosaico étnico, o que então era tido como conhecimento etnográfico, etnológico e antropológico.

Um abraço do
Mário



Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (2)

Mário Beja Santos

Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O padre António Joaquim Dias escreve como se estivesse a conversar com o leitor e agora prepara-se para viajar, falando-nos do território, cita um relatório datado de 1928 intitulado “Missão Botânica e de Reconhecimento Agrícola. Relatório sobre a flora da Guiné Portuguesa”, é seu autor o engenheiro agrónomo António de Figueiredo Gomes e Sousa: “O solo da parte plana é formado exclusivamente de aluviões argilosas, misturadas até certo ponto de sedimentos arenáceos, as quais derivam, ao que parece, de fortes arrastamentos das terras altas do Futa-Djalon, sob a ação de grandes cursos de água, hoje extintos, que tiveram no território um largo delta, como se depreende da existência dos longos estuários dos rios Cacheu, Geba, Grande de Buba e Cacine, e da constituição e localização das ilhas dos Bijagós”.

E o mesmo autor faz referências à geologia, distinguindo as terras altas e rochosas do Boé, bastante arenosas, de vegetação pobre e de pouca fauna, e em que predominam as laterites férricas e as terras baixas com os seus pântanos e os leitos dos rios, e depois dissera sobre bolanhas e lalas, que se acham desprovidas de sedimentos arenáceos, e tece o seguinte comentário: “Argila e húmus, roubados às terras pelas chuvas torrenciais, são carreados em quantidade para os rios e para o mar, pelas inundações e pelas marés ao retirarem”. E assim se compreende estes rios, canais e braços de mar que recortam o território em quase todas as direções. E pretende explicar ao leitor algo que lhe possa passar despercebido: “Os rios tomam os nomes das povoações indígenas principais que banham ou ainda os das regiões que servem. O mesmo rio recebe, às vezes, nomes diferentes, segundo a altura do seu percurso. Isto explica-se pelo isolamento em que viveram as tribos até aos nossos dias. Compreende-se como o rio Cacheu teve, pelo menos, os nomes de Cacheu, São Domingos e Farim; e o Corubal mantém ainda os de Cocoli, Gabú, etc.”.

E faz uma pequena descrição dos diferentes rios, só como curiosidade vejamos o que ele escreve sobre o Rio Grande de Bolola ou Buba:
“Teve importância, nos séculos passados, quando o negócio se movimentava nas povoações das suas margens: Biguba ou Buba, Guinala ou Quínara, Bisségue ou Cubisseque e Balola ou Bulola. Hoje serve a minúscula povoação de Buba, onde se bifurca para terminar quase logo, e ainda as propriedades agrícolas ou pontas, poucas e decadentes. Este esteiro de água salgada, cheio de braços enganosos para todos os lados, vai roendo a região de Quínara, da qual já desanexou as ilhas de Bolama e das Cobras, como também ajudara o Tombali a desanexar da zona do Cubisseque a Ilha dos Escravos. Como seus parceiros, o Cumbidjã, ajudado por braços de mar a quem chamaram rios, apressa-se a esfacelar o chão dos Nalus; mas Tombali, Cumbijã e Cacine, especialmente os dois primeiros, constituem estradas magníficas para a saída do não menos belo arroz daquela zona, de que é centro e metrópole comercial a povoação de Catió, recentemente elevada a sede de Administração Civil”.

E dá-nos seguidamente uma descrição da organização administrativa da Guiné, recorda o leitor que temos por vezes noticiário a que o estudioso não pode ficar indiferente, será o caso da descrição da missão dos Felupes em que se vê uma imagem da casa em construção que serve de igreja, escola e residência missionária, apraz registar um comentário sobre esta etnia: “Bastam-se a si mesmos. No seu chão encontram tudo o que lhes é indispensável para a vida. A palmeira dá-lhes o coconote, o azeite e o vinho, e o solo arroz em abundância. E não têm outras necessidades. Pelo que a vida lhes corre mansamente. Os portugueses cedo tentaram infiltrar-se entre eles, mas encontraram uma oposição pertinaz. Os mesmos cabo-verdianos que tão habilmente penetraram nas terras de outras tribos da Guiné, quando se aventuravam ao país dos Felupes levavam uma vida de receios”.

Encontrei igualmente neste fecundo Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira outros textos intercalados com as memórias do Padre António Joaquim Dias que darão leitura estimulante a quem investiga as coisas da Guiné. Logo um primeiro texto sobre o primeiro decénio da missão franciscana da Guiné, haverá um comentário da redação a dizer que saiu do punho do mesmo Padre António Joaquim Dias. Não nos esqueçamos que estamos nos primeiros anos da década de 1940, foi mais precisamente em 1942 que o Padre Dias voltou da Guiné e já tinha preparado um texto para publicação. Lembra-nos que cerca de vinte anos atrás o Governo Português, logo na pessoa do comandante João Belo, empenhara-se no ressurgimento missionário das colónias como complemento indispensável a “nossa colonização integral e classicamente portuguesa”.

O prelado diocesano não dispunha de clero para esta ressurreição na Guiné e no final do ano de 1929 foi tomada a decisão pela Direção das Missões de Cabo Verde em organizar o serviço missionário na Guiné, contava com o apoio da legislação promulgada pelo governador Leite de Magalhães. Foram os Franciscanos que aqui retornaram, foi nomeado Vigário-Geral o Cónego António Miranda de Magalhães que desconhecia a Guiné, elaborou um plano organizativo que o Padre Dias considerou enfermar de vários defeitos essenciais. Foi em 1932 que se constituiu a primeira Missão Franciscana da Guiné que aqui chegou em fevereiro desse ano, de Bolama foram a Bissau e depois a Cacheu. Não havia onde albergar os missionários em Cacheu, lá se arranjou um velho casarão, os autóctones cederam algum mobiliário e o Padre Dias comenta que era uma instalação verdadeiramente franciscana. Os recém-chegados dirigiram-se ao Vigário-Geral propondo uma missão católica central onde coubesse a formação de escolas para o ensino profissional e agrícola, propunha-se Bula para sede desta missão, para aproveitar os edifícios do Estado, o Vigário-Geral aceitou a transferência de Cacheu para Bula, vários missionários foram colocados em Cacheu e Farim.

O Padre Dias descreve os edifícios de Bula e o entusiasmo manifestado por muitos autóctones, as crianças iam à escola primária e tece o seguinte comentário:
“Os Manjacos do Churo tinham oferecido resistência tenaz ao pacificador da Guiné, Teixeira Pinto, mas acolheram bem a escola missionária, como ser um meio ainda absolutamente indígena e gentio. Foi situada a poucos metros da residência do régulo, foi feita de pau a pique, coberta a palha. Aberta por um professor indígena contratado, passou, depois, aos cuidados do auxiliar secular europeu António José de Sousa, que para ali fora de bom grado. Dormia, coitado, a um canto da escola, incomodamente, e cozinhava para si mesmo, ao fim da aula”.

No ano de 1933, aumentou o pessoal missionário com quatro Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas para educação de raparigas indígenas num internato de Bula. O Governo da Colónia concedeu verba para a criação de uma escola em Bula, em regime de internato, para professores e indígenas de ambos os sexos. Alargou-se o sistema educativo ao regulado de Có, construiu-se ali escola missionária. As irmãs tratavam dos doentes, ele fala no tratamento de úlceras por vezes horripilantes. Em 1934 chegou o novo Vigário-Geral, veio acompanhado de mais dois missionários. Um comerciante de Farim, Mário Lima Wahnon, cedera às missões gratuitamente 2000 metros quadrados de terreno para construção de uma igreja, só que faltou verba para as obras, os ofícios religiosos eram celebrados num edifício dispensado por uma casa comercial francesa. Entrou em funcionamento o internato masculino de Bula e a respetiva escola, só que este missionário adoeceu gravemente, foi uma operação delicada manter aberta a escola de Có.
Veremos seguidamente a evolução missionária entre 1935 e 1937 e vamos sentir o olhar perscrutante do Padre Dias a falar das diferentes etnias.

(continua)

Frei Henrique Pinto Rema, Palácio de Belém, 9 de outubro de 2018, condecorado com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23513: Historiografia da presença portuguesa em África (329): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23532: A galeria dos meus heróis (47): O tio Ortiz (1906-1944) (Luís Graça)


Luís Graça, ilustração gráfica, Entropias (1999)


Outubro de 1941 > Execução, pelo exército alemão, de prisioneiros civis sérvios... Na sequência da morte de 22 soldados alemães, atribuída à resistência sérvia, foram executados, em represália, 2100 (!) sérvios (na maior parte, judeus, comunistas e ciganos)...


1945 > Campo de concentração de Bergen-Belsen > 19 de abril de 1945 > Guardas femininas das SS, feitas prisioneiras pelo exército britânico... Três delas serão depois condenadas à morte e executadas.

Berlim > 21 de março de 2015 > Centro de Documentação "Topografia do Terror". Localização: Niederkirchnerstraße 8 10963 Berlin, metro: Potsdamer Platz ou Kochstraße. 

Fotos: Luís Graça (2015)


A galeria dos meus heróis > 

O tio Ortiz (1906-1944)

por Luís Graça (*)


1. Partimos de Lisboa para Berlim no mesmo avião. Eu e a Manuela. E, com a boa vontade de um passageiro (que aceitou trocar comigo  de lugar, um lugar à janela sempre é mais apetecível do que o do meio), conseguimos fazer a viagem juntos, pondo a conversa em dia.

Já não nos víamos há muito tempo. E íamos estar juntos em Berlim numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho. A Manuela, por sua vez, viera do Porto, tinha lá estado uns dias na festa dos 100 anos do seu pai e aproveitara para rever o mano mais novo (que dirigia a empresa da família) e demais parentes e amigos.

Inevitavelmente a história da família veio à baila. Tinha uma vaga ideia que a Manuela já me falara em tempos da sua “costela francesa e basca”. E na época, a ETA, a Euskadi Ta Askatasuna (em português, “Pátria Basca e Liberdade”) ainda estava ativa, sendo notícia, de quando em vez, em títulos de caixa alta, nos jornais, na sequência dos seus atentados ou da prisão de alguns dos seus operacionais e/ou dirigentes.

Em 1981 eu tinha andado no  coração do país basco, do lado cá  dos Pirinéus. Fui  de férias, tendo feito campismo  e passado por sítios icónicos mas ainda “sitiados”, e de algum modo "desaconselhados" pelas polícias e agências de turismo, na transição do franquismo para a democracia espanhola. Alguns desses sítios “tocaram-me” muito, de forma ambivalente, por uma razão ou outra, como foi o caso de  Guernica e Amorebieta-Echano. As placas toponímicas  estavam todas grafitadas, com os nomes das localidades, então ainda  em castelhano, a serem  sobrepostos pelos nomes em basco: Gernika, Amorebieta-Etxano...

Era uma época em que ainda poucos turistas, espanhóis, franceses ou portuguesas, se atreviam a andar de carro, por aquelas bandas. Os de Madrid eram tratados por "perros", os "perros castellanos".  Os franceses também eram hostilizados, a menos que fossem bascos do outro lado dos Pirinéus. Os portugueses, apesar de tudo, eram melhor acolhidos. O meu amigo V... (que infelizmente já morreu) andava de boina basca e ainda tinha uma visão romântica sobre os "etarras" e todos os antifranquistas radicais...

Parece que é preciso a gente ir  lá fora, ou lá para fora, para o "estrangeiro", para ganhar a suficiente distância e sentir a tal "saudade" e perder-se no  "labirinto" de que fala o Eduardo Lourenço... Como eu e o V..., mais as nossas caras-metade, que uma noite de verão e de tempestade, já em finais de agosto ou talvez princípios de setembro, chegámos a um parque de campismo perto de Guernica / Gernika, e quando estávamos a montar a tenda, começámos a ouvir, no altifalante, a voz da Amália em a "Estranha Forma de Vida"... E, depois a seguir, o "Grândola, vila morena"... Hà emoções sentidas fora da nossa terra, que são indescritíveis e que nos marcam para sempre... Eu, pessoalmente,  que gostava da Amália q.b., passei a ouvi-la com emoção, desde que ela morreu...  Para o V..., a Amália era uma "reaça". E o fado uma "desgraça"...

− Morreu na Flandres, na I Grande Guerra.

− Quem,  o seu avô ?!

− Sim, o meu avô materno. Na Flandres. Teria 33 anos, a idade de Jesus Cristo quando foi crucificado.

− Ah!, a Flandres, o grande matadouro da Europa.

− O meu avô Ortiz… Sou de origem basca e francesa, pelo lado da minha mãe.

− Daí o apelido Ortiz, não ?!…E quando é que vocês vieram para Portugal ?

− A minha mãe e os irmãos vieram como refugiados de guerra… Fugidos da guerra civil espanhola.

− Em 1936 ?!...

− Não, já em meados de 1937, depois do bombardeamento de Gernika (com K).

E esclareceu a minha interlocutora:

− Claro, eu ainda não era nascida, nem os meus irmãos. A minha mãe teria então 24 anos…

− Pelo que vejo, Manuela, é uma história comprida, a da vossa família. Comprida e dramáticamente cumprida.

− E trágica, pode acrescentar. Pelo caminho ficaram alguns dos meus familiares, do lado materno, os Ortiz. Todos vítimas da guerra.

E depois de um curto silêncio, enquanto bebia o seu sumo, a Manuel repetiu enfaticamente:

− Vítimas da guerra, da violência, da intolerância, da estupidez humana…

− Sei do que fala, também eu fui obrigado a vestir uma farda, a pegar numa arma e a fazer uma guerra, a guerra colonial, na Guiné. Contra a minha consciência, contra os meus valores...

− Uma tia, a mana mais velha da minha mãe, morreu no antigo Congo Belga, por altura da independência, em 1960 ou 1961, já não posso precisar . Barbaramente assassinada, à catanada. (Catanada, é assim que se diz ?)... Era enfermeira numa missão católica.

Adiantou depois, a Manuela, que conhecera a tia quando ela veio de férias a Portugal. Teria então  os seus cinquenta anos, creio que nascera em 1908. Lembrava-se do ano, 1958, porque fora na altura da “campanha do Humberto Delgado para a presidência da República”. Mas a tragédia da família , que começara na Flandres, em 1918, não acabava aqui.

− O meu tio Ortiz, o único rapaz,  filho do meu avô,  já antes, em 1944, tinha sido morto num campo de concentração nazi. Aos 38 anos anos. Era o mais velho.

E depois confidenciou-me:

− Vou conhecer Berlim, é a minha primeira vez, acho que vou tirar uns dias de licença para poder viajar até à fronteira da Alemanha com a Polónia. Pode ser que eu descubra o sítio onde o meu tio Ortiz foi assassinado. Pelo menos quero conhecer Auschwitz. Vou ver se arranjo coragem para ir, pelo menos, até Auschwitz.

Uma colega alemã, de origem polaca, já tinha dado à Manuela umas dicas sobre a região e a localização de alguns dos antigos campos de concentração nazis, na Alemanha e na Polónia.

− O alemão não é o meu forte. Só sei uns rudimentos. Formei-me em línguas românicas. E, na realidade, nem  sei para onde foi enviado o meu tio. Como vocês dizem em Lisboa, não fiz o meu TPC, não tive tempo com a ida ao Porto.

2. A Manuela Ortiz Fernandes era, pois, neta do “soldado desconhecido”. Uma barragem de artilharia alemã – é fácil de imaginar − tê-lo-á apanhado a conduzir a sua ambulância quando evacuava feridos graves, perto da  linha da frente.

− A família nunca soube pormenores. Difícil de imaginar é o horror desta cena da morte do avô. Os seus restos mortais  nunca foram encontrados, o que de alguma modo adensa o mistério das circunstâncias da sua morte.

− Não repousam por isso – esclareci eu – em nenhum dos cemitérios militares da Flandres, com direito a lápide de pedra, placa com identificação (nome, posto e data da morte)… Nem à cruz dos cristãos.

O avô da Manuela, infelizmente, teria  ficado numa pilha de restos humanos, numa vala comum, no próprio campo de batalha… Pulverizado. Mas, a pior de todas ainda era a vala comum do esquecimento,  como é costume dizer-se a propósito dos  milhões de combatentes de todas as guerras da História. 

A Manuela pegou nesta minha observação, trivial, para ir buscar um exemplo ao seu passado em Portugal:

− Ah!, sim, infelizmente, no colégio de freiras, no Porto, onde eu andei, só se falava dos heróis, dos reis e dos generais, sobretudo como vencedores das nossas guerras. Fazia-me sempre confusão. Muito menos se falava da guerra do ultramar. Eu tinha 15 anos, ia fazer 16, quando rebentou a guerra de Angola. Ainda andava no 5º ano, e ainda estávamos chocados, lá em casa, com a morte da tia no Congo.

Em boa verdade, não se falava das guerras, não fossem as pobres criancinhas, suscetíveis, indefesas, ficaram para sempre traumatizadas… Os rapazes, esses, teriam a oportunidade, única, de conheceram uma guerra a cores e ao vivo, dentro de alguns anos, pensei eu... Em Angola, Guiné ou Moçambique...

− Não se esqueça – recordou-me ela – que eu ainda apanhei a “escolinha” do Estado Novo.

− Também eu, Manuela… E em boa verdade, ainda tenho saudades do bibe e do pião... Mas diga-me uma coisa: há fotos, ao menos, desse seu avô?

− Vi,  uma vez, uma foto dele, no dia em que terá sido promovido a sargento, presumo eu. Era um garboso militar do serviço de saúde. Bonitão, de bigode farfalhudo, como se usava na época. Era basco, do sul de França. Depois da tropa seguira a carreira militar.

E acrescentou:

− Havia uma outra foto, com os filhos e a mulher. A minha mãe, que devia ter dois anos, estava sentada ao seu colo. Ao lado, dos pais, cada um dos outros filhos, a irmã e o irmão da minha mãe, que eram mais velhos.  Deve ter sido tirada em 1913 ou 1914, pouco antes do início daquela maldita guerra.

− Esses filhos, a sua mãe e os seus irmãos, os seus tios,  o que lhes terá acontecido depois?

Tentando delicadamente, mas algo a  contragosto,  satisfazer a minha curiosidade intrusiva,  a Manuela disse-me que  só sabia, por alto, o que se tinha passado, no pós-guerra. Aos três irmãos, tendo ficado órfãos, e sendo menores, foi-lhes atribuído uma pensão de sangue do Ministério da Guerra.  Pôs-se, ao que  parece, a hipótese de serem “institucionalizados”: como filhos de militar falecido (ou desaparecido)  em combate, poderiam ser internados num orfanato. O mais velho teria 12 ou 13 anos. A mãe, essa, já estava internada num hospício. Mas em vez de irem parar a um orfanato, foram acolhidos por uma outra família basca, do outro lado da fronteira, que tinha sido poupada aos horrores da guerra.

− Como vim, mais tarde, a descobrir, as duas famílias ainda eram aparentadas, com um trisavô comum. Daí nos tratarmos por primos… 

E aproveitou para me dizer que dava muita importância aos “laços de sangue” e que esse seria um traço forte da cultura basca… O que não me convenceu, mesmo sabendo pouco ou nada da cultura basca:

− Mais do que aos laços de sangue, eu dou importância à língua, à partilha de afetos, às memórias, às vivências comuns… A sua mãe falava basco?

− Infelizmente, não. A minha mãe e os seus irmãos só falavam o francês e o espanhol. A minha avó materna não era basca, são as mães, no país basco (e em toda a parte, julgo eu) que transmitem a língua (materna) aos filhos.

− E depois o português, claro?!

− Ah!, sim, mas só mais tarde. Todos aprenderam o português, exceto o meu tio Ortiz que, esse, havia regressado a França, em 1936,  já homem feito, na altura do “Front Populaire”.  Em Bilbau, já era  um bom cozinheiro. Tirou depois um curso de “chef de cuisine”.

Sobrevoávamos já a França, quando ela me começou a falar, surpreendentemente com grande ternura, desse tio que ela nunca conhecera, a não ser de fotografia e das conversas, esparsas, com a mãe. 

Cozinheiro de profissão, militante comunista, membro da Resistência Francesa, o tio Ortiz teria sido preso,  em 1941,   logo a seguir ao armistício, numa cidade da Côte Azur pela milícia do Governo de Vichy, e mais tarde “miseravelmente” entregue à Gestapo. 

Terá passado primeiro pelo campo de Gurs, nos Pirinéus Atlânticos, originalmente criado pelos franceses para acolher os refugiados republicanos, espanhóis e internacionalistas, fugidos do terror franquista, e que, depois, com o governo de Vichy, fora transformado em campo de detenção para os membros da resistência francesa, judeus e outros… 

Uns meses a seguir, o tio Ortiz terá sido transferido, com outros detidos considerados perigosos (com destaque para os comunistas) para o campo de Royallieu, na comuna de Compiègne, a nordeste de Paris. E aqui perdeu-se o seu rastro. Sabe-se que mais de cinquenta mil presos  deste campo (incluindo judeus) foram depois deportados para campos de concentração e de extermínio fora da França: Auschwitz, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, Sachsenhausen, Mauthausen, Neuengamme… Qual deles terá sido a  "última morada" do tio Ortiz ?

− A Manuela, então, não sabe em qual deles morreu o tio…

− Infelizmente, não sei, ou ainda não sei. Quando quis voltar a falar com a minha mãe sobre o passado da família e o destino trágico dos seus dois irmãos, já ela estava mal, com idas frequentes ao IPO, no Porto. E em 1975, também não tínhamos cabeça para nada, muito menos  para recordar o passado. Eu ia fazer 30 anos, já estava a dar aulas como professora de  francês, e o verão quente de 75 também mexeu muito comigo. Houve saneamentos de pessoas, a política estava ao rubro, havia conflitualidade por todo o lado, nos quartéis, nas ruas, nas empresas, nos campos, nas escolas... 

− Foi um ano difícil para todos.

− A minha mãe, ainda lúcida, foi assaltada pelos fantasmas da guerra civil espanhol. Mas procurámos poupá-la, ocultando-lhe a situação social, politica e militar que se estava a viver, incluindo os problemas da empresa do pai… Morreu em paz, na véspera de Natal. E ficou sepultada na terra onde fora muito feliz.

− Se é que se pode morrer em paz – comentário meu, desastrado.

Procurei emendar, desviando o rumo da conversa e perguntando-lhe pela avó materna. Resposta algo evasiva e sobretudo seca e ríspida:

− Não sei nada dela. Pouco ou nada me contaram  sobre ela em criança. Era um assunto tabu na família.

A Manuela viria, mais tarde, a descobrir, pelo álbum da família e da pouca correspondência que se salvara, das andanças de terra em terra, que a avó francesa (ela disse-me o nome, que não fixei) enlouquecera na sequência do trágico desaparecimento do marido. Vestira-se de luto, como as mulheres dos pescadores da nossa costa, mas não acreditava  na sua morte. Tinha a secreta esperança que ele tivesse sido feito prisioneiro pelos alemães.  

– Morreria cedo, a avó, num manicómio. Mas, como disse,  não era de origem basca.

− Uma família destroçada – comentei eu.

− A minha mãe também morreria cedo, como já lhe contei. Em 1975, aos 63 anos, no Porto. De cancro da mama, doença que na altura era quase incurável. O meu pai ainda a quis mandar para Londres, mas os médicos desencorajaram-no. E ele, já com 78 anos,  também estava com pouca força anímica.

− A Manuela fala basco?

− Nunca falei. Nem a minha mãe. Como já expliquei, só o meu avô materno é que era basco,   Em Bilbau, comecei agora a aprender, já sou capaz de ler e compreender alguma coisa. Mas é uma língua tramada para os nossos ouvidos, indo-europeus. E, depois, verdadeiramente não me sinto basca. Sou muito mais portuguesa, e tripeira, se quiser... embora também goste de Lisboa, onde fiz o meu curso. A minha mãe, essa, sim, tinha as melhores recordações do país basco, da sua adolescência e juventude passadas na província de Biscaia, perto de Bilbau… O basco falava-se sobretudo nas zonas rurais e havia (e ainda há) vários dialectos.

– Mas tem material genético basco no seu ADN...

– Apenas uma pequena parte, nem sequer metade... E mesmo que fosse metade basca e metade portuguesa, o que é que isso queria significar?

– Nada!... Mas há a lotaria genética... Qual a metade boa, qual a metade má?

– Só me preocupo com os "defeitos de fabrico"... Olhe, por exemplo, o cancro da mama... Quanto ao resto, é puro racismo... Será que os bascos são mais "violentos" ou "truculentos" que os portugueses?

– Oh!, Manuela, não quis dizer isso nem sequer insinuar...

– A ETA não é um  fenómeno exclusivamente basco, nem eu me identifico com a violência revolucionária seja da ETA ou de qualquer outra organização nacionalista radical...

– Outros dirão terrorismo...

– Não entro por essas diferenças semânticas e conceptuais. Poupem-me! Violência é violência. Mas quem quis destruir a identidade, a cultura, a língua bascas ? Mais recentemente o Franco... que proibiu os bascos de falarem a sua língua e transmiti-la aos seus filhos... Mas no passado, os bascos também  foram discriminados, tal como outras minorias...

– Desculpe, Manuela, se  involuntariamente  a ofendi ou melindrei. Também temos. na nossa história comum, como portugueses, períodos de grande violência, físicq e simbólica.

– Pelo que sei de História (e sei pouco, confesso), Portugal está longe de ser o tal país de brandos costumes que a propaganda de Salazar contrapunha ao resto da Europa do seu tempo...  Embora a minha mãezinha estivesse grata ao Portugal de Salazar, diga-se de passagem...

A família que acolhera (e depois adotara, legalmente) a mãe da Manuela e os seus irmãos, no início dos anos 20,  teve meios de se refugiar em Portugal. Eram nacionalistas e republicanos, mas católicos, como muitos bascos. Beneficiaram das boas relações comerciais e até de  amizade que mantinham no Porto. Era gente com tradição no negócio do vinho, com filial no Porto. Gente de “classe média alta”, segundo a Manuela.

− Foram os nossos “avós”. Infelizmente já morreram. Regressaram, no final dos anos 50,  aos arredores de  Bilbau onde sempre tiveram a casa e a quinta, a “baserri”, que entretanto fora transmitida ao filho varão, o mais velho, o equivalente à figura do nosso morgado.  E que cuidou do património. Nunca saíra de Bilbau, apesar das grandes dificuldades do pós-guerra. Também nunca mais o vi, a esse meu primo, que fomos visitar uma vez, teria eu os meus 10 anos.

− Portugal  tornou-se assim  a terceira pátria da vossa família.

−Sim, a minha mãe conheceu aqui o meu pai, também ele negociante de vinhos, amigo dos meus avós adotivos… Na Praia da Granja, no início dos anos 40… Era quinze anos mais velho que a minha mãe. E daí a razão de eu ter nascido, em 1945, no Porto, já depois do fim da guerra. Sou filha do pós-guerra, faço sempre questão de o dizer. Mas, em contrapartida, o meu nascimento foi saudado com a bomba atómica de  Hiroshima e Nagasaqui, nasci  poucos dias depois, em agosto de 45.

O senhor Fernandes era um conceituado comerciante de vinhos e espirituosas, grossista, importador e exportador, da praça do Porto, com armazéns em Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do rio Douro.

Sabia-se (alguns amigos mais íntimos e a família) que tinha uma ascendência cristã-nova, com raízes provavelmente na medieva comunidade judaica sefardita da cidade do Porto. A família deve ter tido, em finais do séc. XVII, problemas com a Inquisição,  razão por que se mudou, na totalidade ou em parte, para o Brasil onde prosperou. Alguns terão regressado com a corte de Dom João VI, em 1821.

O patriarca da família não tinha pretensões a títulos nobiliárquicos como o futuro apoiante da causa de D. Pedro IV e da sua filha Dona Maria II, o José Ferreira, que num dia será sido feito cavaleiro, no outro barão, e depois visconde, e por fim, conde... O conde Ferreira, o grande benemérito do nosso liberalismo.

Apesar de ter conhecido e até convivido, ao que parece,  com o capitão Barros Basto, o senhor Fernandes nunca se aproximou da comunidade israelita do Porto. Punha os seus negócios acima de outros interesses. Mas sempre foi um homem do seu tempo, “laico, republicano, liberal… e tolerante”.  Foi o retrato que me fez a sua filha, já depois de chegarmos a Berlim.

3. Mas quem era afinal a Manuela Ortiz Fernandes? 

Eu já conhecida de Lisboa, das “lides profissionais”. Se não erro, desde o ano da adesão de Portugal e da Espanha à CEE, a Comunidade Económica Europeia. Ainda não havia a União Europeia nem o euro. Estamos a falar de 1986.

O meio profissional ligado à saúde e segurança no trabalho (ainda se dizia por cá “higiene e segurança no trabalho”, por um lado, e “medicina do trabalho”, por outro…) era então pequeno e toda a gente se conhecia, daqui ou de acolá (ministério do trabalho, que tutelava a área, empresas, médicos do trabalho, técnicos de higiene e segurança, Escola Nacional de Saúde Pública, etc.).

Devo ter conhecido a Manuela nalgum encontro ou fórum internacional. Sei que ela na altura trabalhava em Barcelona, e estava cá com uma representação catalã. E ficámos em contacto. Reencontrávamo-nos agora, no aeroporto a caminho de Berlim, uns anos depois da queda do muro e da reunificação da Alemanha. Continuávamos a tratarmo-nos por você. Sentia que ela gostava de guardar alguma distância e, como toda a gente, tinha as suas defesas. Mas era uma pessoa agradável, uma boa companhia sobretudo quando se está no estrangeiro, por uns dias, em trabalho.

Estávamos os dois a participar numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho (“health and safety at work”). Eu, como académico, ela como tradutora-intérprete da Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, com sede em Bilbao, criada em 1994, responsável pelo evento em parceria com a autoridade alemã para as condições de trabalho, se bem recordo.

Por sorte, estávamos alojados no mesmo hotel, de três estrelas, confortável, barato, e com bons acessos, perto da estação de metro que nos levava ao centro de conferências onde se realizava o nosso encontro.

O edifício, embora totalmente remodelado, ainda tinha traços da arquitetura “estalinista” do pós-guerra. A zona oriental de Berlim ainda era um mundo à parte, embora já sem o muro (ou com apenas alguns restos dele, todos grafitados). Era muito procurada pelos turistas, até porque os preços da hotelaria e restauração eram mais baixos do que do “outro lado”, ocidental… E depois ainda era um “museu vivo” da antiga RDA – República Democrática Alemã…

Para a Manuela e para mim,  era uma sensação estranha: o muro estivera de pé entre 1961 e 1989, dividindo não só os berlinenses e os alemães, como os próprios europeus. Era o “muro da vergonha” de todos nós, europeus, e não só dos alemães...

Se é verdade que a reunificação da Alemanha, há sete anos atrás, em 1990, marcara o fim da chamada guerra fria (opondo a União Soviética aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial), demo-nos conta, já em 1997, que infelizmente outros muros, invisíveis (ou menos visíveis a olho nu), se estavam a erguer na nossa velha e adorada Europa de então. E que a Rússia afinal era um urso ferido e humilhado, o que não era bom para ninguém, a começar pelos europeus, tanto do leste como do oeste.

A decadência urbanística ainda era evidente. Mas Berlim já era então um estaleiro de obras públicas, estava em marcha a segunda reconstrução da cidade, depois da terrível destruição da II Guerra Mundial. (Quem não se lembra do filme "Alemanha, Ano Zero", de Roberto Rosselinni, de 1948?)

Ainda era verão, mas as noites de Berlim não convidavam a grandes passeatas à noite. Depois do jantar, ficávamos à conversa sempre que não havia “programa social”, e tínhamos o tempo por nossa conta. Já tínhamos feito um “city tour” pela Berlim leste, e "canibalizado" um bocadinho do muro como "recuerdo", como toda a gente fazia.

Havia mais três ou quatro portugueses, participantes no encontro, representando a administração do trabalho e os parceiros sociais, mais um ou outro médico do trabalho. Mas estavam alojados noutro hotel, dos selecionados pela organização, e que ficava no mesmo quarteirão, não longe do nosso.

Na época a Manuela ainda fumava muito, e queixava-se que o tabaco prejudicava o seu desempenho profissional: às vezes ficava rouca, ou com tosse, e até sem voz.

− Queria muito poder deixar de fumar – confidenciou-me ela, a mim, ex-fumador, mas tolerante.

Na época havia uma “cruzada fundamentalista” contra o tabaco e os tabagistas. A Manuela ficava “piursa” (sic) quando tinha que ouvir o discurso dos nórdicos (a que os latinos ainda faziam orelhas moucas)… O "fascismo sanitário", dizia ela, começara nos EUA e nos países nórdicos...

Mas foi a propósito da história da família que retomámos a nossa já longa conversa sobre o tio Ortiz, inacabada, quando o avião aterrara.

Ela própria reconhecia que era “muito conversadeira”, saindo nisso à mãe. Por outro lado, aos seus olhos, eu teria a qualidade de ser uma boa companhia, senão mesmo um discreto confidente. Além disso, “sabia ouvir”, sem estar sempre a interromper, com perguntas ou apartes. Muito menos fazia críticas ou juízos de valor. E sobretudo inspirava-lhe confiança. E nada como o “hall” de um hotel estrangeiro, convidativo ao “dolce far niente”, à conversa mole e também à má língua… sobre colegas, organizações e países.

−Auschwitz?... Poucos alemães lá devem ter ido. Havia o muro da vergonha, mas também antes os campos da vergonha – atalhei eu.

− É como o Vale de los Caídos, em Espanha, onde tiveram a lata de sepultar o Franco. Recuso-me terminantemente a lá ir.

−Manuela,eu também não... Mas como vamos explicar aos nossos filhos e netos toda esta barbárie do nosso século?

Da sua vida privada, nunca me falou ou só muito por alto. Tinha mais dois irmãos, sendo ela a mais velha. Do do meio, disse-me que não lhe apetecia sequer falar. Saíra do país antes de fazer os 18 anos, para escapar à tropa. Radicara-se em Andorra onde tinha um “hotel de charme”. Empresário, diretor turístico, pouco ou nada queria saber da família e de Portugal. Antes do 25 de Abril não podia sequer lá pôr os pés, sendo considerado faltoso ou refractário. O mais novo, esse, ficara à frente dos negócios do clã, para descanso e tranquilidade do velho pai que não queria ver morrer a empresa da família.

Ela, por sua vez, saíra de Portugal em 1976, no final do ano lectivo.

− Não gostei do rumo político que tomou a revolução dos cravos… Também achei que fora um sonho lindo que acabara como todas as utopias… E cada um queria ver realizada a sua!... E muito menos gostei da minha curta e frustrante experiência de professora de francês. Na minha escola havia quase tantos grupúsculos políticos quantos os professores...

Foi para Barcelona onde fez um curso de pós-gradução de tradutora-intérprete. E arranjou a seguir trabalho como tradutora. Poliglota, falava fluentemente ou lia quase todas as principais línguas latinas ou românicas (o castelhano, o catalão, o francês, o português, exceto o romeno). Não desgostava do que fazia, embora não morresse de amores pela área da saúde e segurança no trabalho. E viajava, que era uma coisa que lhe agradava. E sobretudo não ganhava mal (“ganhava muito mais do que em Portugal”). Nunca soube se tinha filhos, relacionamentos, etc. Nem ela alguma vez me perguntou pela minha família. Era uma mulher atraente-

4. Só uns dois ou três anos mais tarde, no virar do século, é que a Manuela me contou o desfecho da história (trágica) do tio Ortiz. Desta vez, fora em Bilbau, quando nos voltámos a encontrar. Já existia o Museu Guggenheim e a cidade já nada tinha a ver com a decadência urbana e industrial  que eu conhecera em 1981, quando a visitara pela primeira vez.

− Ah!,  sim, Berlim, 1997 ! − recordou ela.

E eu comecei por ficar feliz ao ver que ela tinha deixado de fumar... 

Afinal não fora na Polónia  nem na fronteira da Alemanha com a Polónia, como ela imaginara:

− O meu tio Ortiz morreu em Dachau.

− Em Dachau?!

− Sim, em Dachau, na Baviera, no sul da Alemanha, a escassos quilómetros de Munique...

Acabou por saber, mais tarde, de fonte francesa, que o tio Ortiz fora levado de Royallieu para Dachau. Por incrível que possa parecer, os SS (Schutzstaffel) que administravam o campo, c0nstruído pelos nazis para internar presos políticos e inaugurado pelo próprio Heinrich Himmler, em 1933, aproveitaram as competências profissionais do tio Ortiz. Por sorte ou por azar dele, puseram-no a cozinhar para os carrascos. Por sorte, porque foi poupado aos duros e infames trabalhos que eram reservados aos prisioneiros; por azar, porque não podia cometer erros. Nunca lhe poderia, por exemplo, passar pela cabeça envenenar a comida: ele era o primeiro a ter que a provar...

Ganhara as boas graças dos carrascos, que até o tratavam, à francesa, por "chef", em tom de chalaça, com um toque do humor, alarve, bávaro.

− No inferno, a cozinha é inglesa, a gestão italiana e o humor alemão... Nunca ouviu dizer? − perguntei eu à Manuela. − É uma variante da anedota  que os idiotas dos europeus contam uns sobre os outros...

Havia várias células, clandestinas, da resistência francesa em Dachau.  O tio Ortiz fazia parte  de uma. E, depois de ganha a confiança dos SS, começou a guardar as sobras das refeições  e reparti-las pelos seus camaradas que por sua vez também as faziam chegar aos mais fracos e doentes.

− A imaginação, a capacidade de resistência e  abnegação do ser humano, mesmo em situações-limite como a guerra, a prisão, o campo de concentração, o terminal da morte, levam-me a pensar que às vezes nós, homens, que nunca seremos seremos deuses, também somos capazes de nos transcender e atingir, mesmo que por breves instantes, o estatuto do herói grego...

E conclui o meu pensamento:

−  O seu tio Ortiz foi um herói.

O esquema funcionou até meados de 1944. Quando foi descoberto (ou denunciado?), o tio Ortiz foi sentenciada com a pena capital, sem apelo nem agravo, pelo comandante do campo. Foi executado no dia seguinte para exemplo dos outros presos. Deram-lhe apenas a escolher (!)... entre a forca e o fuzilamento.

− Resistiu até ao fim, no limite das suas forças, da sua inteligência, da sua coragem. E, apesar da tortura, não terá denunciado ninguém... Morreu com grande dignidade, como poucos, gritando perante o pelotão de fuzilamento: Vive la liberté, l'égalité et la fraternité!... Vive la... France! [Viva a liberdade, a igualdade e a fraternidade!... Viva a... França!]

E, emocionada, a Manuela concluiu:

− Tenho orgulho no meu tio Ortiz!

[Por razões óbvias, o nome da minha interlocutora, que ainda está viva,  é fictício. LG]

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P23531: O nosso querido mês de agosto, pós-pandémico: o que é ser português, hoje? (5): Acordei com alguma inveja de ver os meus netos, neerlandeses, partir de regresso das férias em Portugal... (Valdemar Queiroz)


Valdemar Queiroz, minhoto por criação, lisboeta por eleição, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; aqui, na foto, em Contuboel, 1969. 


1. Trancado em casa, em pleno agosto (aquele que deveria ser "o nosso queridp mês de agosto"), por causa da sua DPOC de estimação, desolado por ver partir os seus netos, filho e nora de volta para os Países Baixos (depois de umas sempre curtas férias em Portugal), o nosso querido amigo e camarada Valdemar Queiroz não desiste de enriquecer (ou complexificar)  as respostas à pergunta (tramada, para os portugueses) que é a de saber o que quer dizer "ser português", aqui e agora, "hic et nunc"... Aqui ficam cinco dos seus comentários de antologia:


(i) 11 de agosto de 2022 às 16:03 (*)

O que é ser português ?

Mas, depois de três dias de viagem a atravessar a França e, por não aguentar mais tempo, uma directa de San Sebastian pra chegar a Bragança. Ufff!, chegar a Portugal, e começar logo a sentir a diferença do calor, do cheiro, ver o céu azul, tudo diferente mas nunca esquecido, e ouvir 'bócê nem sabe o calor pro aqui'.

Depois, é só passar por Valverde, Vale do Porco, Vilar de Rei e chegar a Mogadouro, estacionar a autocaravana no Parque de Campismo e descansar para viajar em Portugal.

Parece que estes emigrantes dos anos 2000 já não se sentem emigrantes, antes vão trabalhar para outras paragens...mas a razão é sempre a mesma: um país com mais conventos que palácios e fábricas ter mar à porta de casa.

Assim cá chegaram os meus netos, filho e nora para passar férias vindos dos Países Baixos. (...)


(ii) 13 de agosto de 2022 às 02:13 (**)

Sempre me fez muita confusão ver os neerlandeses ir à casa de banho e não lavar as mãos. Nunca me deram uma explicação, talvez seja por causa do tempo frio.

Depois, lembrei-me de ter lido uma crónica de um estrangeiro em Lisboa no séc. XVIII,  que dizia que os portugueses parecem estar a cometer pecados a qualquer hora, estão sempre a lavar as mãos. Dizem que nos ficou do tempo dos árabes, tal como o "Se Deus quiser" (Insha' Allah") por tudo e por nada.

(iii) 13 de agosto de 2022 às 18:28  (***)

E sobre moinhos também há para escrever.

Do latin molinu apareceu o português 'moinho', que perdeu o l intervocálico e o galego 'muiño' também. Não é muito diferente do latim o espanhol 'molino', o catalão 'moli' e o francês 'molin'. Em alemão 'müle' e em neerlandês 'molen'.

Com 'moleiro', do latim molinariu, foi um pouco diferente, por em galego ser 'muiñeiro', em espanhol 'moinero', em catalão 'moliner' e em francês 'meunier'. Os alemães dizem 'müller' e os neerlandeses 'molenaar'.

Agora, o querer ir ao Restaurante "De Hoop" num moinho em Bavel (NL) e perguntar por molen, môlen, mólen, e uuuu? molin, molino, e uuuu? ah! móla,  respondeu-me a senhora indicando o caminho. 

Os vizinhos flamengos que povoaram os Açores,  também levaram para as ilhas os seus conhecimentos na construção de moinhos que ainda por lá se encontram.

Os neerlandeses, não digo os holandeses por haver moinhos sem ser nas províncias da Holanda do norte e do sul, aproveitando as suas "estradas" de água construíram moinhos de vento junto dos muitos canais que utilizam para tudo e mais alguma coisa. São uma força motriz para as mais diversas actividades.

E temos o célebre "Molin Rouge" em que as velas ao vento são as pernas em movimento das bailarinas de can-can.

PS -  Sem pretender ser um letrudo e escrever como que velas ao vento, desculpem a confusão da explicação, que não será nenhuma novidade para a rapaziada da nossa idade.


Meu caro Fernando Ribeiro:

... "Ser português ... é dar porrada na mãe" ... e o resto que eu transcrevi, são palavras de parte de um interessante texto humorístico, de Guilherme Duarte, com o título genérico "O Fado de ser Português".

O estigma dar "porrada" na mãe ficou-nos por causa do D. Afonso Henriques ter batido a mãe na batalha de S. Mamede. É o que dizem e sempre se prestou para textos de humor.

O texto completo do "O Fado de ser Português" tem frases com piada e com alguma verdade.

Abraço e saúde da boa.

Hoje acordei com alguma inveja de ver os meus netos partir de regresso das férias em Portugal. Inveja de outros os poderem ver todos os dias.

O Camões chamava invejosos aos portugueses? Só poderia ser por nos aventurarmos à procura de novas rotas das especiarias com inveja dos muçulmanos, venezianos e genoveses o fizessem no Mediterrâneo. 
Ou antes a inveja era dos outros por não serem como o D. Sebastião e o Vasco da Gama?

Ou por sermos invejáveis? Ou até, dividindo bem as orações, a INVEJA final pode estar relacionado com outro canto. não sei por nunca ter sido bom a português.

Ah, também tenho inveja não poder respirar como deve ser....talvez por ter inveja de ver os outros fumar quando tinha 15 anos !!

Inveja em neerlandês é jaloezie (lê-se: iáluzi) que quer dizer ciúmes, e invejar é benijden (lê-se: beneida).

Saúde da boa (sem invejas)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23512: Notas de leitura (1473): Eduardo Lourenço (1923-2020): afinal, quem são os portugueses, e o que significa ser português? (José Belo, Suécia)

Guiné 61/74 - P23530: Parabéns a você (2090): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Buba, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23511: Parabéns a você (2089): Alberto Nascimento, ex-Soldado CAR da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63)

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23529: (In)citações (215): Reflexão entre dois copos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


REFLEXÃO ENTRE DOIS COPOS

Todos aqueles que me conhecem e já me leram sabem que eu considero o vinho como a melhor droga estimuladora da criatividade, moderado, claro está. Meio copinho de tintol ou mesmo de branco fresco nestes dias de verão, é uma bênção do céu.

Gostaria que nesta extemporânea reflexão coubesse tudo o que há de bom no mundo, mas infelizmente há muito mais de mau do que de bom, o suficiente para gerar a extinção do ser humano, a espécie que, apesar de tão infinitesimal no Universo, mais tem envergonhado a natureza e mais tem dado cabo de tudo o que, naturalmente, poderia criar o equilíbrio e a harmonia.

O vinho, como disse, é uma espécie de fio-de-prumo que calibra o nosso pensamento. O pensamento é o resultado de triliões de neuro-transmissões, e não é grosseira metáfora dizer que o vinho é uma espécie de óleo que ajuda um poucochinho a lubrificar as nossas sinapses neuronais. Quem quiser acreditar que acredite, quem não quiser que beba água. Sem pretender colidir com a ética e a estética da existência, o vinho permite chegar mais depressa à interface que eu considero como fronteira entre a condição antropológica e a condição universal do ser humano. Só aí, calmamente sentados em qualquer tosca pedra que tenha sobrevivido à mão humana, poderemos ver ao longe o infinito e poderemos sentir-nos capazes de reconhecer o grão de areia que somos.

O ser humano é a sua mente, uma complexíssima estrutura de sentimentos e pouco mais. Tudo o resto é um aglomerado de acessórios. O sentimento é a única expressão de vida, dentro da cadeia neurobiológica. São muitos os sentimentos que conhecemos, mas estamos muito longe de conhecer a sua infinidade. Cada segundo da nossa vida é um pedacinho de um qualquer sentimento de que não nos damos conta. Penso que o sentimento é um fenómeno indispensável ao mais pequeno gesto vital. Tenho, como toda a gente, muita dificuldade em analisar os sentimentos, isto é, em definir as suas incomensuráveis formas e manifestações. Os sentimentos constituem um mundo tão vasto de diferenças que me parece estultícia pretendermos dissecá-los e dimensioná-los fora das tentativas do campo neurocientífico. E muito menos separá-los dentro do cesto da mente, como se de fruta se tratasse.

Vem isto a propósito de uma conversa acompanhada de um branco fresco, versando aquilo para que se sente atraído quem não fala de futebol e já está enjoado de política. A Arte e a Poesia. Sentimentos nobilíssimos, todavia muito mal tratados, muito mal sentidos, tentando expressar-se, tantas vezes, através de palavras e gestos de pretensiosa alma seca, talvez sem o humilde, filantrópico e filosófico calor de um copo de vinho. Eu diria que a Arte e a Poesia, que eu considero os mais nobres sentimentos a seguir ao sentimento da Solidariedade, existem em todos nós. Contudo, muitos dos que os vivem ou aparentam vivê-los são, por vezes, os seus próprios predadores, aqueles que lhes destroem a alma, ou seja, a música e a harmonia, ignorando que as palavras e os gestos são parte integrante das cintilações do infinito.

À nossa saúde!
adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23519: (In)citações (214): Reflexão escrita “à moderna”, a fim de que todos entendam - Vinte e cinco por cento de ilusão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)