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terça-feira, 7 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14845: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IV Parte): Comandos do CTIG

1. Parte IV de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 2 de Julho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - IV

Comandos do CTIG1

As chefias militares da Guiné cedo se aperceberam que havia necessidade de se dispor de uma tropa diferente, uma tropa que fosse capaz de fazer a contraguerrilha, móvel, aligeirada, com pequenos efectivos, autónoma e agressiva. Uma tropa que, aliás, já tinha dado boas indicações em Angola. Em Quibala, no norte de Angola, já tinham sido preparados os primeiros grupos de comandos.

Em Julho de 1963, o Comando-Chefe da Guiné solicitou à Região Militar de Angola que recebesse e formasse um pequeno grupo de militares. Na mesma altura, foi enviada uma circular para todos os batalhões estacionados na Guiné, convidando oficiais e sargentos a oferecerem-se como voluntários para os comandos.

Muita gente se ofereceu. Depois das selecções foram escolhidos o major Correia Dinis, os alferes Maurício Saraiva e Justino Godinho, os sargentos e irmãos, Roseira Dias e os furriéis Vassalo Miranda e o Artur Pires. E ainda, o Adulai Queta Jamanca e o Adulai Jaló, naturais da Guiné.


Fur. Artur Pires, Sold. Adulai Jaló e Alf. Godinho, atrás do Sargento Mário Dias, no aeroporto de Luanda à espera de transporte para o QG. 


© Foto cedida por Vassalo Miranda, ex-Fur. Mil. Gr. Cmds ‘Panteras’.

“A cerimónia de apresentação teve lugar no gabinete do Chefe do Estado-Maior. Fomos recebidos pelo Major chefe da 2.ª Rep, que fez votos para que, da nossa estadia em Angola, tirássemos o máximo proveito. Pôs em evidência os inconvenientes da nossa vinda naquela altura, pois tinha terminado um curso e não se sabia ainda quando teria início o próximo. Deste desencontro de datas, resultariam, naturalmente, limitações à nossa instrução.

Na manhã seguinte foi-nos exposta, com algum pormenor, a situação actual na Região Militar de Angola. Foram-nos indicadas as zonas consideradas activas, semi-activas e as pacificadas.
Cabinda, devido à localização e ao reduzido efectivo das NT e um triângulo com um vértice em Bessa Monteiro e base na região dos Dembos (Nambuangongo, Zala, Beira Baixa, etc.), eram as zonas com maiores preocupações. Considerava esta última mais difícil, porque os grupos IN tinham mais experiência e mostravam-se aguerridos.

As alterações ao programa da nossa visita começaram aqui e mantiveram-se sempre, até ao fim da nossa estadia.

Tivemos uma palestra de um capitão, instrutor dos comandos. Começou por abordar a questão da disciplina. Nada de tolerâncias. Que os comandos falam sempre em sentido. Que o mínimo desleixo, dos superiores ou dos inferiores, não pode passar em claro. Que a mentalização era a menina dos olhos dos cursos de comandos. Um comando luta para matar e não para não morrer. Indicou-nos os processos e as técnicas que utilizam para a mentalização.

Slogans, dísticos humorísticos nas paredes, nos lavabos, em todo o lado, até dentro do pão.
Uma aparelhagem sonora nas casernas e nos quartos de sargentos e oficiais.

Alocuções de mensagens gravadas, para ouvirem sempre que estejam a descansar. Devem ser feitos testes para avaliar o grau de assimilação.

Emulação entre os instruendos, entre as equipas e entre os grupos. Cerimónias com aparato para realçar as qualidades e os méritos dos indivíduos que mais se destaquem.

Abordou o conceito da parelha, da equipa e do grupo. Numa primeira fase, deve dar-se aos instruendos a liberdade para se agregarem como entenderem, depois as relações tendem para alguma estabilidade. Reforçar essas amizades, estimulá-los a comerem na mesma mesa, participarem nos mesmos jogos, fazerem os mesmos serviços.

Falou depois na constituição do grupo:

1. O indivíduo que concorre aos comandos tem que estar situado entre os 20 a 30% melhores do contingente donde é originário.

2. Os comandantes dos grupos e os chefes das equipas devem situar-se entre os 10% melhores do contingente de quadros.

3. A selecção é a operação mais importante na formação dos comandos.

4. A instrução deve assumir um carácter selectivo.

5. Sendo o tiro um aspecto muito sensível, não deve haver restrições nesta instrução.

6. Todos os elementos devem ser especialistas no tiro de precisão e no tiro instintivo e todos devem estar aptos na utilização de lança-rockets.

No dia 26 de Outubro partimos para o quartel de Quibala, onde estivemos 6 dias em contacto com os 3 grupos de comandos recentemente chegados de uma operação. O tenente Abreu Cardoso deu-nos explicações pormenorizadas sobre a mesma.

Regressámos a Luanda e ficámos a aguardar o início da operação que deveria ter lugar nas margens do M’Bridge. Patrulhar as margens do rio entre as picadas de Evange e Quiaia. Uma operação de rotina.

Na 2.ª operação fomos integrados no grupo de comandos do batalhão de artilharia. Montámos a emboscada nas margens do rio Loge. 3 dias.(...)

Se deste estágio na Região Militar de Angola não tirámos o máximo proveito, ele foi, pelo menos, muito útil. Útil porque das lições dos instrutores ficámos com a cabeça mais arrumada, com muitos ensinamentos que nos serão úteis se um dia viermos a ser instrutores de comandos. Útil ainda, porque do contacto que mantivemos com os grupos em operações, adquirimos experiência, vimos como aquela tropa se comporta no mato e as situações que vivemos serão para nós motivos de ensinamento.

Resta acrescentar que os oficiais da R. M. de Angola estiveram sempre ao nosso dispor e se mais não fizeram, foi, de facto, devido à nossa visita ter sido efectuada numa altura pouco conveniente."


Furriel Vassalo Miranda e Alferes Maurício Saraiva em Angola. 

© Foto cedida por Vassalo Miranda.

Considerandos, directivas e orientações. Mais de cinquenta páginas do bloco de apontamentos do estágio na R. M. de Angola do alferes Justino Godinho, um dos voluntários da Guiné.

Depois de regressarem do estágio operacional em Angola, o Comandante-Chefe da Guiné pensou em aproveitar esses militares e integrá-los nas forças que iriam executar a operação "Tridente", marcada para o início do ano de 1964. A ideia, quando foi apresentada pelo Brigadeiro Louro de Sousa, então o Comandante-Chefe do CTIG, pareceu algo controversa, pelo menos no espírito de alguns oficiais do QG.

Não seria um risco desnecessário? Tão pouca gente e todos os quadros, o futuro embrião dos comandos na Guiné? Sem organização própria para os apoiar, não obstante a vontade que manifestavam em integrar os efectivos da operação? Seria mesmo de arriscar? Não seria a morte à nascença do projecto dos Comandos do CTIG?

O Comandante-Chefe decidiu. Vão participar e tratem de organizar o grupo de forma a torná-lo operacional. Aliás, vai ser um bom teste.

Assim foi. Aproveitaram os elementos que, anteriormente, tinham respondido ao apelo de 'voluntários precisam-se para os comandos', a maioria pertencente ao BCav 490, a unidade base que iria executar a operação ao Como, sob o comando do TCor. F. Cavaleiro, comandante do Batalhão.

Havia a necessidade de reforçar os efectivos do GrCmds. Para isso, sob a orientação dos comandos regressados de Angola, os que se ofereceram iniciaram um curto período de instrução operacional com vista à participação na referida operação.

Constituiu-se assim o grupo que interveio na operação “Tridente”, de 14 de Janeiro a 24 de Março, nas ilhas do Como, Caiar e Catunco, integrados nas forças à disposição do Batalhão de Cavalaria 490.

O comando do grupo foi entregue ao alferes Saraiva e, ao alferes Godinho, aos furriéis Mário Dias, Artur e Miranda, a chefia das equipas.

Mário Dias, um dos participantes na operação, esclarece as razões da operação: 

"Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963. As tabancas existentes eram relativamente pequenas e muito dispersas. Possuía numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil. A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou em outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperiosa a recuperação do Como. Foi então planeada pelo Comando-Chefe a Operação ‘Tridente’ na qual foram envolvidos numerosos efectivos, divididos em 4 agrupamentos, num total de cerca de 1200 homens".

No dia 14 de Janeiro de 1964, cerca de 1200 homens repartiram-se pela fragata “Nuno Tristão”, por lanchas de desembarque, vedetas e diversos barcos de apoio.

No dia seguinte, a CCav 488 pôs o pé em Catabão, onde abarracou e o 7.º Destacamento de Fuzileiros e a CCav 487 desembarcaram em Caiar. Estes avançaram em direcção a Catabão, enquanto os “comandos” e um pelotão de caçadores ocuparam Caiar. O 8.º Destacamento de Fuzileiros e a CCav 489 ocuparam Cametonco. Fecharam o cerco e o inimigo não teve outro remédio senão ir para as matas.

Caiar, base logística da op. “Tridente”. 

© Com a devida vénia ao pessoal do BCav 490.

O quartel-general das operações abarracou na praia de Caiar. Daqui, dois canhões 8.8 batiam as zonas inimigas e a Força Aérea, sempre que solicitada, avançava com os F-86 e os T6.

O Furriel Miranda, chefe de uma das equipas do grupo de “comandos”, relata: “Uma secção do 8.º Destacamento2, tinha ficado isolada, já tinham um morto, a situação não estava nada boa. Tiveram que pedir o apoio dos “comandos”.

Em pouco tempo, um furriel nosso correu para o corpo do camarada, caído em cima da MG-423. Quando regressavam à posição anterior com o ferido numa padiola, viram mais um fuzileiro a contorcer-se no chão. Outra vez, um dos nossos correu para o ferido, tal como o primeiro atingido com uma bala na cabeça. Quando regressava, o furriel dos “comandos” sentiu o zunir de uma bala. Espera aí, deve ter dito para ele, tudo balas para a cabeça. Escondido, começou a passar os olhos árvore por árvore até ver de onde vinham os tiros.”

E continua A. Vassalo, autor da BD "Operação Gata Brava":

"7 de Fevereiro na mata do Cachil, junto à tabanca de Cachida. Comandos e páras tinham acabado de ocupar a aldeia quando foram chamados para apoiar o 7.º Destacamento dos Fuzileiros, que se digladiava com o IN, ali perto.

Numa pequena clareira foram atacados violentamente. Os efectivos dos guerrilheiros eram superiores e estavam bem organizados no terreno. Um pára é atingido mortalmente. E logo ali, começou outra guerra, a disputa pelo corpo.

Na clareira, os “comandos” conseguiram escapar sem uma beliscadura e encontraram o 7.º Destacamento exausto pelo longo combate travado antes.

A disputa pelo pára-quedista morto não parava. A luta pelo troféu e a momentânea quebra do poder de fogo das NT acicatava o IN e de que maneira!

E outro pára é atingido com um projéctil que lhe partiu a coluna.

Outra vez os “comandos” ao palco. Correram por ali fora e conseguiram sacar o bravo pára."

***

"Numa daquelas tardes, preparávamo-nos para arrancar. As nossas tropas ainda não tinham conseguido entrar nas defesas do IN, junto a Cauane. A única vez que o tinham tentado fazer, o 8.º Destacamento dos fuzos4 teve 3 mortos.

A passagem do tarrafo, junto à estrada que atravessava a ilha, era uma extensão à volta de 400 metros, cerca de 100 dos quais entrava numa meia-lua de mata, onde o IN estava entrincheirado. A meio do tarrafo havia uma vala de irrigação e o ourique que a atravessava perpendicularmente tinha uma prancha a servir de ponte.

Até àquele sítio o IN deixava, depois não, não havia outro remédio senão voltar para trás. Pela nossa parte, durante cerca de 15 dias, à razão de 2 vezes por dia, tentámos entrar na mata por aquela passagem. Éramos corridos à bala, e a coisa não tinha tido outras consequências porque para além de Deus Nosso Senhor ir também connosco, tomávamos as providências indispensáveis, colados ao chão, bem distanciados uns dos outros. Mas era mesmo um sarilho dos diabos, estávamos sempre a pensar que tantas vezes vamos lá que um dia esta merda acaba para qualquer um, pelo menos.

A primeira equipa a progredir era a minha e naquela tarde tínhamos três T65 a apoiar-nos. Em fila de pirilau6 chegámos à tal prancha. A equipa passou-a sem problemas, e isso deixou-nos um tanto admirados. Mudaram de táctica, os gajos?

Desconfiados com tanta fartura, continuámos a avançar. Ouvia-se o roncar dos T6 e o silêncio da mata. O resto do grupo permaneceu lá atrás, protegidos pelo ourique, a ver como paravam as modas. Senti-me só, confesso. Se rebenta a bernarda em cima de nós cinco, como vai ser? Saímos do ourique e formámos uma linha no tarrafo. Avançámos mais uns metros, até a meia-lua de floresta nos envolver. Pronto, cá estamos, bem dentro do alcance das armas dos gajos, que era o que nós queríamos, ou não?

E, claro, não demorou muito, ficámos em maus lençóis. Batidos de frente e dos dois lados num autêntico tiro ao alvo. O que nos estava a valer é que a pontaria dos gajos estava um pouco levantada, só às vezes, uma ou outra rajada, levantava a terra do ourique.

E, a propósito, os nossos, de que é que estão à espera, que merda? Bem lhes fazia sinais para abrirem outra linha, mas qual quê, nada. Assim, não podíamos continuar ali, estávamos totalmente à mercê e o 5.º elemento estava muito perto da orla da mata. Voltei-me para ele, pá, salta para o outro lado do ourique. Qual salta, qual carapuça, o gajo estava com as calças em baixo, isso mesmo, estava a arriar o calhau.

Coitado, deu-lhe a volta ao intestino, pensei. Insisto com o gajo, ó pá, és parvo ou quê, e não é que vejo na mão do gajo um papel, àquela distância até me parecia um aerograma. Não me digam que aquele sacana está a ler a correspondência. Ó pá, que merda é essa? E o gajo grita-me, no intervalo dos pau pau, se tiver que morrer, meu furriel, quero ir aliviado e com notícias frescas da famelga.
Meu grande filho da mãe, ou puxas as calças para cima, ou sou eu que vou aí puxar-tas, ouviste? Pronto, meu furriel, estou pronto, respondeu-me, momentos depois.

Quando ele e a parelha passaram de cócoras à minha beira, caiu-nos uma descarga de balázios, parecia que tinham posto o dedo em tudo que fosse gatilho. Metidos pelo chão, escondidos atrás de frágeis espaldões, nenhum de nós pensava sequer em levantar a cabeça, quanto mais outra coisa.
Lá atrás o alferes Saraiva chama os T6 para o barulho, e aí vieram os gajos a fazer um chavascal danado, um a fazer fogo de metralhadora, outro a lançar rockets e o terceiro a largar umas bombinhas. Até seguimos a coisa com interesse, os T6 picavam, os gajos calavam-se, os T6 levantavam, fogo outra vez para cima de nós.

Entretanto, os fuzos já vinham a caminho com o objectivo de nos retirarem daquele poço. Outra vez os aviões a picarem e os gajos calados, a última bomba rebentava e lá estavam outra vez os gajos a tentarem acertar-nos.

Um T6 deslocou-se numa linda manobra para a orla da mata e subitamente picou sobre eles, o outro sobre a meia-lua, o terceiro vinha um pouco atrás para varrer a metralha a orla da mata.
Mata calada e é nesta altura que arrancámos com toda a força que tínhamos, comandos ao ataque, um grito que até eles devem ter ouvido!

Electrizados é o termo, o Marcelino, o Godinho, o Joel, o outro das calças e eu, que nem umas balas em direcção à mata, para aí a 70 ou 80 metros. É agora, comandos!

Bombas a rebentarem outra vez, os nossos camuflados enfunados com os sopros dos rebentamentos, os quicos saltaram-nos das cabeças e puseram-se a voar, estávamos tão perto que os T6 tiveram que parar o fogo e ficaram-se por ali em cima durante uns minutos. Mas já estávamos dentro da floresta, em igualdade de circunstâncias. Vimos três gajos a fugirem de uma casa de mato, e parece que não foram muito longe.

Animados tentámos avançar. Qual quê, fogo cerrado em cima de nós, as palmeiras a abanarem, folhas a caírem-nos em cima, bom sinal, os gajos continuam com a pontaria alta. Furriel, estou quase sem munições, eu também e pronto, tínhamos mesmo que ficar por ali.

Esta cena foi filmada pelo Raimundo, o cabo do Destacamento de Foto-cine do QG, que nos estava a acompanhar. Estávamos com poucas munições e encurralados junto à estrada e ainda distantes da bolanha. Como é que vamos sair daqui? Mas quem disse que vamos sair? Os T6 também estavam sem combustível e tiveram que retirar não sem um resolver fazer uma última passagem sobre a posição de uma Degtyarev7 montada numa plataforma.

Como o Furriel Miranda viu lá de baixo as manobras dos T6.
© Desenho de A. Vassalo.

Correu mal o picanço do T6, a Degtyarev ficou com ele na mira, depois foi só carregar no gatilho, e o aviãozinho ficou furado do nariz ao rabo. Quando passou por nós, aí a uns escassos 20 a 30 metros, já ia ferido de morte. Motor lancinante, fumo por todos os lados, voo incerto e em perda, espatifou-se atrás das nossas linhas com um estouro ensurdecedor e uma labareda enorme por ali acima.


De costas, junto à primeira palmeira, quico à legionário na cabeça, o Furriel Miranda contempla os destroços e o cadáver do piloto. 


© In “Operação Gata Brava”, Autor A. Vassalo.

Contentes com o abate, até palmas parece que ouvimos, o IN esqueceu-se de nós, e nós, oportunistas, cavámos dali. Rapidamente vencemos a distância que nos separava do ourique e foi então que eles deram por ela, mas já era tarde demais.

No fim daqueles setenta e tal dias, a resistência abrandou8 e, numa prova de que se podia voltar a andar livremente, o TCoronel Cavaleiro com um pequeno grupo de homens passeou-se pelo interior da ilha. Foi o sinal de que a operação “Tridente” estava no fim.

Deixámos uma guarnição em Cachil pequeno (da CCaç 557), o Batalhão de Cavalaria 490 foi para Farim, os comandos para o interior treinar milícias indígenas e os fuzos e os páras para as suas missões tradicionais.


Furriel Miranda, de lança-rockets e alferes Saraiva de chapéu, o cabo Raimundo do destacamento Foto-Cine com a máquina na mão esquerda, entre outros elementos do grupo de “comandos “da operação no Como. 


© Foto cedida por Vassalo Miranda.

Baixas? 9 mortos e 47 feridos e um avião abatido, do nosso lado. 76 mortos, entre os quais alguns chefes da guerrilha, mais de 100 feridos confirmados e 9 prisioneiros, do lado da guerrilha.
Apesar de todas os problemas por que passámos, foi um prazer e uma honra também, lutar com aqueles Inimigos, que tal como nós estavam a combater por uma causa em que acreditavam.”
A. Vassalo, Autor da BD "Op. Gata Brava".

Publicamente reconhecida a contribuição que deram para o sucesso da operação, os comandos receberam os crachás em cerimónia pública realizada em Bissau em 29 de Abril de 1964.
Em finais de Julho e com a duração de 4 semanas deram início à escola de quadros.

Entre 30 de Setembro e 17 de Novembro de 1964, realizou-se em Brá o 1.º Curso de Comandos da Guiné9. Começaram cerca de 200, terminaram 78. Fantasmas, Panteras e Camaleões foram os nomes que escolheram para os grupos que saíram dessa formação.


"Fantasmas", "Panteras" e "Camaleões", no dia em que receberam os crachás. À frente dos grupos, o então tenente Jaime Cardoso dos Comandos de Angola, director do 1.º curso de Comandos na Guiné. Brá, Novembro de 1964.


© Foto de Mário Dias.


Os grupos em Bissau apresentam-se ao Governador-Geral, Brigadeiro Arnaldo Schulz.

© Foto de Mário Dias.

E em Dezembro de 196410, o Boletim de Informação do Estado Maior do Exército, relatava oficialmente as primeiras acções desses grupos: "A actividade desenvolvida pelos grupos de comandos conduziu a resultados muito remuneradores. Prova-se deste modo a necessidade de se poder dispor de uma tropa com instrução especializada, apta a desempenhar missões que, pelas suas características, estão fora das capacidades das unidades normais.

Um grupo em actuação em Canjambari efectuou uma acção de muito interesse sobre um bando de terroristas instalado a coberto do rio. Apoiados por um pelotão de auto-metralhadoras, os comandos transpuseram o rio e lançaram-se ao assalto do IN, bem instalado no terreno e com bom e numeroso armamento. O IN foi desalojado, tendo deixado várias baixas no local.

Outro grupo efectuou uma emboscada na mesma região causando ao IN 2 mortos e vários feridos, tendo sido capturadas várias espingardas, pistolas-metralhadoras e granadas de mão.
Na zona de Tite, outro grupo realizou um golpe de mão a NE daquela povoação.
Capturadas 8 espingardas, 1 pistola-metralhadora e várias granadas de mão”.

Nesse mês de Dezembro, numa reunião em Brá com os comandantes dos grupos, o Major Correia Dinis preocupado com a aproximação das datas dos fins das comissões dos militares dos comandos, relia-lhes uma nota que endereçara ao Comandante Militar da Guiné:

"Exmo. Senhor,

Por determinação de S. Ex.ª o General Venâncio Deslandes, apresentei-me na véspera do meu embarque de fim de licença na Defesa Nacional a fim de ser ouvido por aquele Exmo. Senhor.
A conversa baseou-se única e exclusivamente na organização de grupos de comandos, seu interesse e modalidades de acção.

Para terminar, Sua Ex.ª o General mostrou-se interessado na organização de mais grupos de comandos no CTIG.

Informei que essa organização dependia não só do Centro Nacional de Instrução de Comandos em Angola, presentemente em organização, como também do necessário pessoal que deveria vir da metrópole para substituição, nos Batalhões, dos voluntários para os comandos.
Quanto a este segundo condicionamento, Sua Ex.ª esclareceu que o CTIG poderia pedir o envio desse pessoal.

No meu entender, a organização de novos grupos de comandos é da maior utilidade, tanto mais que a partir de Abril de 1965 os três grupos existentes começarão a ficar desfalcados com as desmobilizações.

Há que atender porém ao trabalho que o Centro Nacional de Comandos vai produzir na formação de novos grupos.

Estarão esses grupos prontos num futuro próximo e poderá o CTIG aproveitá-los em breve ou a formação desses grupos demorará ainda o bastante, que justifique como emergência, a formação de novos Grupos neste CTIG?

Assim, proponho:

1.º - Que com a necessária urgência se procure obter da Região Militar de Angola as seguintes informações:

a) Qual o número de grupos de comandos que em 1.ª prioridade serão atribuídos ao CTIG? Ainda se mantém a Companhia como foi pedido?
b) Qual a data provável da sua apresentação neste CTIG?

2.º - Em face da resposta obtida poderá então este CTIG pensar na formação ou não de novos grupos.

Em Brá, 26 de Novembro de 1964 

O Comandante do Centro de Comandos, 
Correia Dinis, 
Major."

Qual a resposta? Temos ainda algum tempo à nossa frente. Abril não vem longe, mas mesmo assim, também não é demasiado tarde ainda. Leu-lhes outra, que acabara de receber, a felicitá-los pela forma como elaboraram os programas do curso:

"Comando Territorial Independente da Guiné, Quartel-General, 3ª Repartição, ao Sr. Director do CI de Comandos, Brá.

Encarrega-me Sua Ex.ª o Brigadeiro Comandante Militar de informar V. Ex.ª que aprovou os programas da Instrução de Comandos que acompanharam a nota em referência e manifestar o seu agrado pelo cuidado feito pelo Director de Instrução na elaboração dos respectivos programas.
O Chefe do Estado-Maior, 
sarrabiscos miúdos, o nome de guerra por extenso, 

Tenente-Coronel do CEM".

E uma cópia de uma outra que o Comandante Militar dirigira aos Comandos dos Batalhões:

"Por determinação do Comandante Militar, os comandantes dos batalhões em quadrícula devem não só prestar todo o apoio que lhes for pedido como também, eles próprios, devem proceder à escolha de voluntários, os quais devem dar garantias de permanência na Província pelo menos de 1 ano. Os comandos não fazem qualquer outro serviço, actuam, em regra, durante 3 a 5 dias, e descansam dois ou três.

Trabalham, normalmente, em benefício dos Batalhões mas quando o CTIG o entender podem ser accionados directamente por este. (...) 

sarrabiscos iguais aos anteriores, o mesmo nome por extenso. 
Execute-se."

Entretanto os grupos foram-se mantendo em actividade, infundindo respeito sobretudo ao inimigo, conforme atestam as numerosas citações de que foram alvo, apesar de actuarem com efectivos progressivamente mais reduzidos.

Claro que tiveram os seus fracassos que isto de ir à guerra é já uma coisa muito antiga. Levantaram-se sempre quando foram ao tapete.

Para recordar os 9 camaradas mortos que tiveram numa tarde na zona de Madina do Boé, logo na semana seguinte os 12 comandos sobreviventes foram nomadizar para a zona do Oio.
E terminaram em 6 de Maio de 1965, no sul, em Catunco, no acampamento chefiado pelo Pansau Na Isna, guerrilheiro do PAIGC que se tornou lendário.

Foi um golpe de mão como deve ser, entraram pelas barracas com eles a dormirem e, como era de esperar, acordaram-nos. Retiraram eufóricos, um sucesso para finalizar a guerra. No regresso alguém perguntou quem trazia a metralhadora-pesada do inimigo. Ninguém a trazia, ninguém a vira! Duas equipas, metade do grupo, receberam ordem para a ir buscar. Voltaram para trás, ao acampamento que momentos antes tinham incendiado. Iluminados pelas labaredas, apareceram bem recortados aos olhos de alguns guerrilheiros, refugiados nas proximidades, que não tiveram dificuldade em mandar para o meio deles uma roquetada. Todos atingidos, um morto e nove feridos foi o saldo do regresso ao acampamento. A operação tinha recebido o nome de código “Ciao”.

Em Junho de 1965 começou o 2.º curso de comandos na Guiné.11

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Notas:

1 - Comando Territorial Independente da Guiné
2 - Fuzileiros Navais. Naqueles anos, actuavam quase sempre ao nível de destacamento, uma formidável força armada.
3 - MG 42: Espingarda-metralhadora, de origem alemã usada pelas NT.
4 - Fuzileiros.
5 - Avião bombardeiro, monomotor podendo ser armado com lança-roquetes, metralhadora e bombas.
6 - Coluna por um.
7 - Degtyarev-Shpagim: Metralhadora pesada 12,7 mm, de origem soviética utilizada pelo IN
8 - Teor de mensagem de Nino Vieira para a direcção do PAIGC, em poder de um guerrilheiro capturado: "Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio. As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças (...) camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas (...) do vosso camarada, Marga-Nino."
9 - 23/7/64: início das actividades do Centro de Instrução Comandos em Brá.
03/8/64: início da Escola Preparatória de Quadros.
24/8 a 17/10/64: 1.º Curso de formação dos GrsCmds (Camaleões, Fantasmas e Panteras), com o apoio de instrutores e monitores do CI 25/RMA e do GCmds "Gatos"/BArt 400/R. M. Angola, que sob o comando do alferes Horácio Valente (morto mais tarde em Moçambique) permaneceu na Guiné entre 22 de Setembro e 28 de Dezembro de 1964, participando em três operações no sector do Batalhão de Artilharia 645.
10 - De 20/10/64 a Junho de 1965: actividade operacional dos Grs. Comandos
11 - Em meados de 1965 o Major Correia Diniz terminou a sua comissão tendo sido substituído pelo seu Adjunto, Capitão Varela Rubim. Nesta altura o QG decidiu extinguir o Centro de Instrução de Comandos e criar a Companhia de Comandos do CTIG com data de 1 de Julho.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14827: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (III Parte): Morreu-me um gajo ontem

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14827: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (III Parte): Morreu-me um gajo ontem

1. III Parte de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 27 de Junho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - III

Morreu-me um gajo ontem

Dói-te um dente, aonde, ora deixa ver.
Nada que eu possa fazer aqui, vocês pensam que vêm para aqui tratar os dentes, mal vai a guerra quando já mandam pessoal com defeito, rosnou o doutor. Só em Farim! Quando for dia de dentista, sei lá quando!
Dias depois, sentado debaixo de um enorme poilão1, em Farim, à espera da vez, o cabo enfermeiro percorria a fila dos sofredores, picando este e aquele enquanto o médico dentista, mais atrás, ia arrancando os dentes. Quando chegou a vez dele, o dentista de alicate na mão mandou-o abrir mais a boca. Dói-lhe aqui, é? Grande abcesso! Não posso fazer isto aqui, só em Bissau. E tem que tomar um antibiótico, primeiro.

Em Bissau outra vez, com menos um dente, à porta da 1.ª Rep, no QG, esperava pela guia de marcha de regresso a Farim.
Nisto, vê um jeep estacionar com estardalhaço, pó no ar, dois tipos a saltarem, um alferes e um tenente com um saco de serapilheira na mão, escadas acima. Farda de terylene amarela, lenços no pescoço, “comandos” nos ombros, no jeep também.
Então estes é que são os “comandos”!
Minutos depois vê-os descer, sorridentes.
Eu sou do BCav 490, da CCav 489, apresenta-se. Uma informação. Comandos, que tropa é a vossa, que tipo de trabalho fazem?
O que quer saber, camarada? Pormenores? Quer mesmo saber? Quer subir?
E subiu, para o banco de trás, curvado para a frente, a ouvir as respostas. Golpes de mão, guia, turra de preferência, é só o que precisamos. Operações curtas, surpresa, bater e fugir, castigá-los nas costas, fazer a guerra deles, mas melhor que eles, claro. Regressar a Bissau, dormir, banho, um frango assado no Fonseca, uma gaja boa e um banho a seguir. Que a guerra tem que ser limpa, não é?
Quer concorrer? Convém que se decida depressa, ainda ontem morreu-nos um gajo, o curso começa para o mês que vem, temos 4 vagas para comandantes de grupo e ainda só temos 9 inscritos já aprovados.
Na formação vai sempre alguém abaixo, temos que ter mais pessoal no curso. Decida-se, tem as provas de selecção para fazer, físicas e psíquicas. Psíquicas é conversa com o psiquiatra do Hospital, blá-blá, claro.
Material sempre às costas, mil metros, 20 flexões de braços, 20 suspensões da barra, 100 metros velocidade, abdominais, cangurus, provas de tiro, tudo seguido sem intervalos, que mais pá, coisas assim, vamos a isso?
Vai pensar? Interessa-nos. Porquê? Porque pensa! Pensar é também uma forma de selecção, desde que não pense demais, claro. Encontramo-nos então amanhã em Brá, 9 horas é uma hora boa.

Flexões, abdominais, 100 metros em ziguezague, elevações na barra, 4 metros de corda a pulso, salto a pés juntos em altura e em comprimento, tiro instintivo contra latas e garrafas de cerveja, vazias é claro, está quase tudo, falta pouco.
Uns minutos para respirar, já só faltam os 1000 metros, mais um pequeno esforço, meu alferes, disse o Moita, o furriel instrutor.
Como contamos a distância? Fácil, o meu alferes corre, nós vamos atrás no jeep a dar-lhe gás, quando passar 1 quilómetro no conta-quilómetros, corta a meta. Menos de 4 minutos, ganha uma cerveja, menos de 3 minutos e meio uma grade, menos de 1 minuto a fábrica, que tal? Nos comandos é assim, o Moita e o Miranda, bem dispostos, à gargalhada.
Não, não me recordo, estou aqui desde a abertura do Centro de Instrução, nunca ninguém ganhou a grade, que me lembre, pois não ó Miranda?
Pois então preparem-se. A correr por ali fora, para os lados do aeroporto, a força do calor na estrada, botas a colarem-se ao alcatrão, 1, 2, 3 quilómetros, sabia lá!
Então quantos metros ainda faltam para o quilómetro? Quantos faltam não sei, o conta-quilómetros não funciona!
Sentado na berma da estrada, esforçava-se por manter os pulmões dentro da caixa. Ainda não foi desta vez que alguém conseguiu ganhar a grade.
De regresso a Brá, apresentado ao Major Correia Dinis2, respondeu a algumas perguntas e assinou os papéis que lhe puseram à frente dos olhos. Almoçou lá, passou o resto do dia com eles e à noite, largaram-no na Amura, mais morto que vivo.

Na outra manhã quando tomava o café na messe da Amura, o subalterno de dia da PM sentou-se na mesa dele.
Eh, pá, grande guerreiro, coisa e tal. O alferes já sabia, os tambores tinham sido mais rápidos que ele. Porquê os comandos, o PM curioso. Dentro de 3 ou 4 meses o 490 vem para Bissau, o Cavaleiro vai colocar o pessoal no ar condicionado, a aguardar, tranquilo, os meses que faltam. Porquê os comandos, pá?
Difícil explicar. Nem ele sabia bem porquê. Também não tinha muito tempo para conversas, o jipe para o aeroporto estava à espera.
Ao princípio da tarde estava em Cuntima.

Casa que servia de messe e de bar

Encontraram-se todos na pista e foram até ao bar, para a sombra, beber uma cerveja, gozar a calmaria do resto da tarde. Meia hora depois, talvez, uma explosão forte, para os lados da estrada para Jumbembem, interrompeu as conversas, parou tudo, ficou o silêncio.
Foi para os lados de Jumbembem, não foi?
Um macaco que pisou uma anti-pessoal, se calhar, diz o Didi.
Ou uma mina numa viatura, arrisca outro. É melhor alguém sair e ir ver o que se passou.
Lá estás tu, pá, para quê, a esta hora, não tarda é noite!

De Colina do Norte (Cuntima) a Farim com Jumbembem a meio do percurso

Uma coluna que vinha de Farim, uma mina numa Daimler3 ou numa Fox, aqui perto, na estrada de Jumbembem para aqui, perto da curva da morte, parece que há feridos, o capitão a correr para eles, aos berros, não sei se devemos ir ao encontro, ou se será melhor esperar por mais informações.
Depressa, uma coluna para lá, ao encontro deles, antes que seja noite, meu capitão, um logo.
Melhor esperar, arrancar já, porquê? Sabemos lá o que se está a passar, insiste outro.
É pá, não podemos ficar aqui a ver passar os comboios, o rebentamento foi aqui perto, temos que ir ver o que se passa, prestar auxílio.
Depois de alguma hesitação, o capitão decide-se, arranque com o seu pelotão.
Cuidado, tenha atenção, nada de loucuras por aí fora, sempre a abrir, ouviu?
Pique a estrada. Tome-me conta desta rapaziada, falta-lhes pouco tempo! Conte com uma emboscada no caminho, talvez até uma mina, está a ouvir?
Bem pensado, a mina na auto-metralhadora, a viatura destruída, a maralha embrulhada com os feridos à espera de socorros, estes a irem em socorro, de Cuntima no caso, outra mina à espera destes na picada e uma emboscada, é, se for assim é bem pensado.

Pessoal da CCav 489, apeado na tal curva da picada para Jumbembem

Cuidados redobrados, picadores à frente, todo o pessoal a pé, as viaturas cheias de sacos de areia só com os motoristas, demoraram quase duas horas a encontrarem a coluna. Lixados com tamanho atraso, receberam-nos como se estivessem a vê-los regressar da praia.
Até que enfim, porra! Se não fosse a malta de Jumbembem, os feridos já tinham morrido, que caraças!
Realmente, Jumbembem também estava próximo, mas compreende-se o desespero do comandante da coluna.
Esta estava em marcha para Cuntima, sem conhecimento do comandante da companhia e, veio-se a saber depois, escoltava um grupo de comandos4 chefiado pelo sargento Mário Dias que naquela noite iria executar um golpe de mão a um acampamento da guerrilha na área da companhia lá aquartelada.

O Tenente-Coronel Cavaleiro é que não tinha achado graça nenhuma, mandou um rádio ao capitão, a exigir explicações. A coluna ficara imobilizada, pedira apoio a Cuntima e Jumbembem, porque é que a sua companhia só chegou quase duas horas depois da ocorrência? Explique-se, estou no posto de rádio à espera da sua resposta.
Que fora só o tempo de preparar um pelotão, mais o tempo da deslocação, as precauções que exigira do comandante do pelotão, até nem fora demasiado.
Com o copo a deitar por fora há muito, o Comandante do Batalhão deve ter dito borda fora com o tipo, é agora que o vou mandar pregar para outra freguesia.
Foi o que fez, um auto de averiguações, corpo de delito a seguir, uns dias de prisão. Que tomasse a Dornier para o QG, que este, certamente, lhe arranjaria um destino mais conveniente.
O capitão, desesperado, bem se defendeu por escrito, meteu como testemunha o alferes que foi socorrer a coluna, mas de nada valeu a solidariedade deste.
A demora podia ter sido menor, se pusesse as viaturas a esgalhar. No caso, não deu por qualquer perda de tempo, não se puseram a jogar as cartas, tinham percorrido a estrada com cuidado, mas nada de excessivo.

Na noite da mina, depois do jantar, a saída de mais um alferes foi assunto de conversa. Com uma garrafa de uísque em cima da mesa, cada um falou, do mais novo ao mais antigo. Esta companhia anda com galo até com os alferes, mas anda mesmo! Um ferido com mina, outro evacuado por doença grave, agora este gajo que chegou há meia dúzia de meses está de saída para os comandos!
Desaprovo totalmente, protesto contra esse pessoal! Vi-os no Como, uns tipos horríveis, sem maneiras de lidar com as pessoas, quanto mais com a população! Só querem saber da guerra, como dar tiro no coitado do negrão, mais nada! Vou-me retirar, chau, o Didi.
Até ao nosso regresso a Bissau, despediram-se oficialmente, digamos assim.
O Tenente-Coronel Cavaleiro não gostava, nem dos atrasos dos outros nem dos dele. Na primeira oportunidade, mandou preparar uma coluna e pôs-se à frente, rumo a Cuntima.
Mal viu o alferes por perto chamou-o. O alferes está cá há quanto tempo, pouco, não é? Não teve ainda tempo de reparar que não tinha um comandante, mas apenas um capitão? E assinou por baixo?

Passou uns dias à espera que o Coronel desse o ok à sua saída, o que aconteceu logo após a chegada do novo Comandante da CCav 489, um capitão miliciano, pele muito branca, suor a escorrer cara abaixo. 

Apresentação da CCav 489 ao novo Comandante

No dia seguinte foi a apresentação à companhia que, para o efeito, formou na picada que atravessava a povoação e, dois dias depois, o novo capitão quis tomar contacto com a mata aproveitando a saída de um pelotão em Cuntima num patrulhamento até às inevitáveis Faquinas.

A corta mato, rumo a Faquina Fula e Faquina Mandinga

Foi a primeira saída do capitão e a última do alferes na companhia que, dois dias depois arrancava para Bissau para frequentar o curso de Comandos.
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Notas:
1 - Árvore de grande porte
2 - Comandante do Centro de Instrução de Comandos em Brá, Guiné.
3 - A auto-metralhadora Daimler equipava os pelotões de reconhecimento e frequentemente abriam as colunas. Foram fabricadas no Reino Unido durante a segunda guerra mundial e, tal como as auto-metralhadoras Fox, estavam frequentemente inoperacionais devido a problemas mecânicos. A guarnição era composta por dois homens e estava armada com uma metralhadora ligeira.
4 - Grupo de Comandos “Camaleões”

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Dornier ferido


Campo de aviação de Cuntima. O Do 27 aterrara há pouco mais de meia hora numa nuvem de pó. Negros e brancos, soldados, cabos, furriéis e alferes, num grande alvoroço à volta da avioneta, apalpam-lhe as asas, festas na fuselagem, um tira fotos a um grupo e o homem do bar, o ‘Fininho’ a passar para as mãos do piloto uma cerveja gelada.
Saco do correio, grades de cerveja, caixa de uísque, medicamentos, o que trazia a Dornier, tudo cá para fora.

Minutos depois, abraços e mais abraços, pista desimpedida, motor a trabalhar, portas fechadas. A Dornier a dar a volta devagar para o topo do campo, a roncar com mais força, na cabeça do alferes a imagem, não sabe a que propósito lhe apareceu, do touro a raspar as patas, para os forcados.
De repente aí vai o aviãosinho, a tremer todo, aos saltinhos, a ganhar velocidade, gás no máximo, campo de futebol fora, manobra apertada a evitar as balizas e as árvores.

Adeus Cuntima, até um dia, se calhar

Não ouvira a salva de palmas mas vira da janela, não foi golo mas quase. E, pronto, adeus Cuntima, levo-te no coração, até um dia, quem sabe?

Acabados de pousar em Farim, a mesma cerimónia mas com militares mais graduados. Um alvoroço na pista, o Tenente-Cor. Cavaleiro, o Major Paixão Ribeiro, 2.º comandante, e o estado-maior do Batalhão, a trocarem impressões sobre a guerra em Canjambari5.
Então o alferes já vai para Bissau? Safa-se de boa, a boca do Tenente-Coronel, enquanto falava sobre as contínuas flagelações a que as NT continuavam a sofrer em Canjambari.
A guerrilha, nem à lei da bala, se conformava com a perda daquele santuário.

As NT imobilizadas por emboscada entre Jumbembem e Canjambari. 
Com a devida vénia ao pessoal do BCav 490.

No caminho para o interior do Oio, uma autêntica auto-estrada, para todo o tipo de reabastecimentos da guerrilha. Canjambari Morocunda, um quilómetro ou nem isso para o interior e Canjambari porto, junto ao rio.
As NT foram muito bem até Canjambari Morocunda, para entrarem em Canjambari porto foi o caraças. Levantam a cabeça para lá, lá vem prémio de morteiro. Às 6 da matina, nem precisam de corneteiro, duas morteiradas em cima para lhes abrirem os olhos, ponham-se a pé, tugas preguiçosos. E no final do dia não se esquecem, também mandam tocar a recolher com mais umas morteiradas.
Isto nunca mais chega ao fim. A comissão, que é que havia de ser? Oio, K3, Como, o Como, pá, e agora o Cavaleiro com esta merda de Canjambari, a cinco meses do fim?
Em finais de Março, quando progredíamos para Canjambari, o capitão de uma das Companhias, pela rádio, disse ao Cavaleiro que não conseguia passar a ponte. Não é que no dia logo a seguir pela manhã, o comandante se apresentou em Jumbembem, integrado no Pelotão de auto-metralhadoras do Corte-Real, virou-se para o capitão, vamos ver a ponte.
Claro, na picada de Jumbembem para Canjambari, quando chegaram à ponte, aí vai aço, morteirada para cima da maralha. O pessoal todo deitado, fogachal danado, o capitão agachado também e o Coronel de pé, encostado ao tronco de uma árvore. Capitão, vê de onde vem o fogo dos tipos aí deitado? Estou a falar consigo, ponha-se a pé, está a falar com o seu comandante! Dezanove meses de comissão! Tás a ver, pá, o Mealha todo suado de suor e cerveja.

O avião estava com a carga no limite, o capelão, com um saco de pão fresco em cima das pernas, sentara-se à frente, ao lado do piloto. Atrás, encostado à janela, um cabo enfermeiro segurava um frasco de vidro com um líquido a escorrer às gotas para o braço de um guineense, com uma perna toda entrapada. Do outro lado, o alferes proveniente de Cuntima, com o saco do correio na mão.
Tudo ok, o piloto, tenente Lemos de auscultadores. Que no trajecto para Bissau faria um desvio para a área de Canjambari, a pedido do Coronel Cavaleiro, largar os dois sacos às nossas tropas e que, quando baixasse o polegar, e repetira, só quando voltasse o polegar para baixo, deveriam lançá-los pelas janelas.

Descolagem de Farim

Dornier no ar, fumos aqui e ali a subir das matas, charcos de água a espelharem. O ferido, medo estampado nos olhos muito abertos, a farda nova ainda, verde azeitona, seria do PAIGC? O cabo maqueiro, a fazer ginástica com o frasco e com a cabeça a dizer que sim.
O capelão à frente, suor a escorrer, cara muito branca, mãos amarradas ao saco com o pão quente. Sol ainda alto, o piloto a falar com a base, olho num lado e noutro.

Rio Canjambari

Estavam na zona, em cima de Canjambari, iriam baixar. A planar, quase parado, como um milhafre, a descer lentamente, os olhos deles arregalados para a mata.
Onde é que está a nossa malta? Mais uma volta. Estão ali, debaixo daquela árvore, não? O tenente Lemos não estava certo.
Desceram mais, até alguns metros acima das copas das árvores, são eles, não são? Os outros não responderam, não paravam de olhar. São eles ou não?
Vou dar mais uma volta, força, abrir janelas, mãos nos sacos, como se já não se sentisse uma corrente de ar danada lá dentro. Nova passagem, agora é mesmo, olhem para a minha mão, atenção, polegar para baixo, agora, sacos fora já, o piloto.
O alferes num segundo viu a árvore, viu-os lá em baixo a correr, àquela altura as fardas deles pareceram-lhe iguais à do ferido que ia com eles. Quando o piloto levantou o polegar, hesitou, ficou com o saco do correio na mão.

Mesmo mais tarde, tentando rever a sucessão dos acontecimentos, não era capaz de dizer o que sentiu primeiro. Pareceu-lhe tudo ao mesmo tempo, uma rajada longa, gritos dentro da avioneta, um ciclone lá dentro, um barulho como uma câmara de ar imensa a esvaziar-se, a Dornier a balançar para cima e para baixo, para a esquerda, para a direita.
No voo para Bissau, o guerrilheiro ferido gritou o tempo todo, atingido na mesma perna, mais um tiro, soube-se dias depois, o Dornier dançou sempre, a turbulência aumentou e um cheiro a cocó borrou-os a todos.
Na pista, finalmente, deitado de costas, o alferes viu os buracos das balas que entraram pela barriga da Dornier. Dos de saída não tinha tirado os olhos, a viagem toda.
E reparou também numa grande roda escura nas calças de um dos felizes companheiros e viagem.
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Nota:

5 - A ocupação de Canjambari, operação "Ebro" foi iniciada em 22 de Março de 1965.
“Os relatórios referem terem sido feitas várias acções no itinerário Jumbembem-Canjambari e na própria região de Canjambari. Apesar de levantadas numerosas abatizes, o referido itinerário ainda se encontra com algumas árvores de pequeno porte nas imediações da bolanha que dá acesso ao pontão danificado sobre o rio Tufili (dados obtidos através do reconhecimento aéreo de 17Mar65). Parece, este pontão, de fácil transposição desde que se utilizem pranchas adequadas.
Dos contactos com o IN a reacção deste tem-se limitado a flagelações de longe, não sendo de desprezar a possibilidade de o mesmo dispor, na região, de forças importantes e, eventualmente, colocar minas nos itinerários de acesso.
O objectivo das NT é proceder à ocupação permanente de Canjambari. Elaborado o plano para a acção, foram constituídas as forças executantes, comandadas pelo próprio Cmdt do BCav 490, Ten. Cor. Cavaleiro. Às 03H00 de 22Mar65 iniciou-se o movimento, a partir de Farim. Atingido Jumbembem às 04H20, a força executante prosseguiu, rumo a Canjambari.
À passagem por Sare Tenen, um GrComb da CCav 488 apeou-se, emboscando-se de seguida junto ao caminho que cruza o itinerário. A partir daqui a equipa de sapadores encarregada da detecção de minas passou a picar a estrada nos locais mais suspeitos. Apesar das precauções, às 06H15 e a cerca de 9 kms de Jumbembem, a GMC da frente da coluna calcou um engenho explosivo, ficando a parte posterior da viatura enfiada na cratera aberta pelo engenho. Os dois homens que nela se deslocavam foram projectados, não tendo sofrido ferimentos de maior.
Passados cerca de 500 metros encontrou-se a 1.ª de uma série de cerca de 30 abatizes, algumas de grande porte, que se espalhavam numa extensão de quase 4 kms, até 1km e meio de Canjambari Morocunda, que só foi atingida já passava das 12H00. O esgotante trabalho de levantamento de abatizes durou cerca de 5 horas e meia, sob constantes flagelações do IN, que utilizou metralhadoras pesadas e morteiros. As medidas de segurança adoptadas, apesar da extensão da coluna de 30 viaturas pesadas, revelaram-se eficazes, porquanto o IN nunca conseguiu aproximar-se de modo a causar baixas às NT”. (…). Ultrapassada a zona das abatizes, a coluna prosseguiu deixando um GrCombate emboscado a dois quilómetros do cruzamento de Canjambari Morocunda. Atingiu-se a povoação de Canjambari, com o IN a assinalar a entrada das NT com tiros à distância, disparados da margem sul do rio Canjambari. Tabanca revistada, os indícios apontavam para uma retirada apressada. As casas comerciais deixaram indícios de movimento recente, praticamente até momentos antes da entrada das NT. Pelas 15H00, a coluna regressou ao cruzamento de Canjambari Morocunda. Deu-se então início aos trabalhos de instalação e organização do terreno em volta do edifício do Posto de Socorros aí existente.
Informações posteriores revelaram que o IN tivera conhecimento antecipado da acção e que tivera mesmo tempo para receber reforços de Morés e de Mansodé, que se mantiveram na zona dois dias à espera das NT, regressando mais tarde às suas bases, por coincidência no mesmo dia do início da operação das NT.”

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14817: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIb Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)

terça-feira, 30 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14817: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIb Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)

1. Conclusão da II Parte de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 20 de Junho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - II

Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)

Coluna para Farim

Viaturas prontas, sacos de areia nos lugares da frente para o condutor e acompanhante, se houvesse voluntário. Os militares, oito a dez, mais nativos com paus, sacos aos ombros, galinhas, porcos, bidões vazios, tudo a monte nas caixas das Mercedes e GMCs.
Como é que todo este pessoal teve conhecimento que havia coluna para Farim, se só ontem à noite fora informado pelo comandante da companhia que a preparasse?

À saída de Cuntima, rumo a Farim com paragem em Jumbembem

A coluna tinha-se posto em marcha de Cuntima para Farim, com uma paragem em Jumbembem para os habituais cumprimentos ao pessoal da CCav 488 e ao comandante, um jovem tenente11, chegado também não há muito tempo.

Pessoal de Jumbembem, amigo e simpático

Cerca de trinta e tal quilómetros em pouco mais de três horas, com impedimentos menores. O furriel Covas descrevera-lhe os procedimentos habituais. Largar o pessoal civil à entrada de Farim, atravessar a povoação rumo ao posto de comando do batalhão e depois como manda a cavalaria, dispor as viaturas em linha, militares dentro delas em sentido, bolsos apertados, e o comandante da coluna deveria dirigir-se para o posto de comando e apresentar-se ao Comandante do batalhão, Tenente Coronel F. Cavaleiro.
Dá licença, meu Tenente-Coronel, apresenta-se o comandante da coluna procedente de Cuntima.
Mande seguir aos seus destinos, encarregue o sargento mais antigo, o nosso alferes fica aqui, almoça connosco.
Apresentou-se aos alferes, capitães e ao major Paixão Ribeiro, 2.º comandante, quase todos com trombas de 18 meses de comissão.
Depois, à mesa, perante o silêncio geral, seguiram-se as perguntas do Tenente-Coronel Cavaleiro. E como vão as coisas por Cuntima? Quando foi a última vez que saíram para o mato? Para onde? O que aconteceu? A que horas? Quanto tempo lá estiveram? Quando foi a última vez que o vosso capitão saiu com vocês? Quando? Com quem? Nem dava tempo a engolir o arroz com frango do almoço.

O rio Cacheu na margem do lado de Farim. © Foto do Autor.

Deu as voltas todas durante a tarde, inteirou-se dos carregamentos, teriam que pernoitar em Farim, os combustíveis vindos de Bissau estavam ainda a ser descarregados.
Uma volta pela povoação, pouca coisa para ver, uma lata de anchovas e uma cerveja numa esplanada para entreter.

Homem Grande da tabanca

O rio Cacheu em Farim

Tabanca de Farim. © Foto do autor.

Onde dorme? No quarto do alferes Mealha, lá tem sempre vaga, respondeu-lhe o capitão Arriscado Nunes.
No meio do silêncio que já se sentia àquela hora, um chinfrim enorme, do quarto que lhe indicara o capitão. É ali que vou dormir?

O Mealha? Excesso, em tudo! Intelecto vigoroso, ironia cortante, um autoclismo a falar, muita cerveja, todas as noites até cair para o lado, ele e quem tivesse o azar ou a sorte de estar nas proximidades. E sempre a suar, como se estivesse a sair do chuveiro. Tudo nota vinte, uma força da natureza, concordavam todos os que com ele privavam.
Nascera com sorte, de boas famílias como então se dizia, latifúndio registado no Alentejo, espigara rodeado de mimos, criadas para quase todas as dependências da casa. Mal dera pela passagem pelo liceu, anos e cadeiras a jacto. Registada na caderneta escolar ficou a suspensão decretada pelo reitor, apesar do respeito reverencial pela família, sanção imposta pelo pai que, nessas coisas primava pelo exemplo.
No decorrer de um campeonato que metia fita métrica, a jovem professora de inglês tê-lo-á apanhado a medir o instrumento, numa cadeira lá para trás de uma turma com 31 rapazes. Corada até nos cabelos loiros, contou o Zé Russo, a professora decidira acabar ali a aula e chamar o reitor, uma medida demasiado drástica no entender de quase todos os alunos e de alguns professores.
E a aula de inglês daquele dia acabou mesmo ali. Parece ter sido este o facto mais marcante da passagem, aliás brilhante em termos de aproveitamento escolar, do Mealha pelo liceu.
O pai, advogado, da situação ainda a somar, despachou-o com uma criada, para uma casa que tinham em Lisboa, ali para os lados do Príncipe Real, naqueles anos ainda um sítio muito calmo.
Nas recomendações iniciais que o pai lhe fizera, a importância em assistir às aulas dos mestres dos direitos todos, sem esquecer claro, a brilhante cabeça do Professor Caetano, uma inteligência de agora e do futuro, que ele, Mealha, deveria ter em conta se quisesse encarreirar. As aulas, como era de prever, passaram depressa, mal deu por elas, as necessárias para medir o pulso dos professores, pedidos de esclarecimento contínuos, tudo entendido até à próxima aula, quando calhasse.
Em cinco anos tinha a licenciatura na mão que era o que o pai queria. A tropa, à espreita, mal acabou o curso, vestiu-lhe um fato zuarte, que ele, como outros, nunca vira nem em sonhos e despachou-o para a escola mais perto de casa, no caso a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, onde deu abundantes provas de como montar a sério.

No cais da Rocha Conde de Óbidos estavam todos de escuro, a mãe, as avós, as criadas que couberam nos dois carros, todas com lenços nas mãos, as lágrimas a escorrerem, e o pai claro, comovido, uma oportunidade única na tua vida, a defesa da Pátria, os valores da civilização, foi assim que contou quem assistiu.
Acordou na Guiné sem se lembrar bem de todos os episódios da viagem, salvo uma conversa que fora obrigado a ter no navio, com o Comandante do Batalhão, conversa que não lhe correra lá muito bem. O Tenente-Coronel, militar encarniçado, homem direito e competente, discursara-lhe na cara os valores da Pátria, do Exército, da Cavalaria, até a família nomeara!
Há três dias em Bissau, novo episódio, desta vez com a participação da Polícia Militar. O Tenente-Coronel fartou-se, deve ter concluído que tinha mais que fazer.
E o Mealha continuou o seu percurso, sempre ao lado do batalhão, cervejas até cair para o lado, ele e quem o acompanhava, às vezes com as cadeiras, as mesas, as garrafas vazias, empregados, patrões, polícia militar, o que estivesse na frente. E foi assim que um oportunista, daqueles que aparecem sempre, lhe chamou Medalhas, e logo a seguir, um nome mais abrangente, Medalha com letra grande para abarcar todas.
Os três alferes que partilhavam a enorme sala que lhes servia de quarto estavam a começar mais uma noitada, eram para aí nove da noite, os dois frigoríficos a abarrotarem de líquidos, garrafas já vazias pelo chão, lençóis desalinhados, sumaúma a cair de pára-quedas, camisas desabotoadas até baixo, o Mealha só com umas cuecas, mas até ao joelho.
Cama para mim há?

Mal tinha acabado de adormecer, acordou, a cama molhada, bêbedo de cheiro a cerveja, o Mealha com sabão na cara, ó maçarico dum raio, a coluna está lá fora à tua espera.
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Nota:
11 - Fernandes Thomaz

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Javalis na estrada

A coluna estava diferente, as viaturas atestadas de farinha, vinho do Cartaxo em garrafões, leite condensado e outros líquidos, cunhetes com munições, marmelada em caixotes, latões com chouriço e outros enchidos, outros nativos com outros sacos, outras galinhas, porcos diferentes, uma ninhada acabada de ser parida. Ainda não tinha percebido bem este movimento dos civis, vêm uns para cá, vão outros para lá, mas adiante para o posto de comando, outra vez viaturas em linha, procedimentos idênticos aos da chegada.
Iam a andar bem, mais devagar, claro, até que atingiram a curva da morte, uma história que se contava em todos os lados ter-se-ia passado ali também.


De um momento para o outro sentiu-se empurrado para a berma da picada, uma fuzilaria tão grande que nem nos exercícios da carreira de tiro da Carregueira. Deu por ele deitado, a G-3 em posição, com o dedo no gatilho. Olhou em frente, a bolanha a perder de vista, saltou para o lado errado, claro, foi o que pensou.

Deixa lá ver, deve ser do outro lado, a fuzilaria em bom ritmo, pensou duas vezes, mais uma, aí foi, agachado, quase colado ao chão como lhe ensinaram nas matas de Mafra, ziguezague por entre duas viaturas até à outra margem da estrada, outra vez a G-3 em posição, olhou em frente, tudo capinado, um tronco aqui, outro além, montículos de baga-baga12 ainda pequenos. Então, onde estão os turras? Alguns soldados de pé, gargalhadas nervosas, o Furriel Covas, não é nada, alto ao fogo, não é nada, parem essa merda, porra!
Na caixa da viatura da frente, um soldado da secção do furriel Quadrado atento a todos os movimentos, terá visto uma vara de javalis a atravessar a picada e deve ter-se lembrado da fome que passou no Como.
Que grande reabastecimento, dedo fácil no gatilho, as balas a bater nas rodas das viaturas lá de trás e a resposta concludente, como ainda se ouvia. Quase tudo normalizado, rodas para substituir e um militar não ouvia nem via nada, nem queria, só a G-3, as mãos no carregador encravado, a aflição na cara, não sai, encravou-se!
Quase noite entraram em Cuntima.
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Nota:
12 - Baga-baga é o nome por que são conhecidas na Guiné as formigas térmitas, que constroem ninhos de argila, duros como pedra, com metros de altura.

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Sitató

Um dia destes vou sair com o pelotão, meu capitão, mas a outras horas, se não vir inconveniente, claro. Para onde? Para onde costumamos ir, Faquinas, Sitató, para esses lados!
Tem mas é juízo, pá, o Didi logo. Já tivemos guerra que chegasse, não precisamos de mais sarilhos! Temos tido paz aqui na zona, custou-nos muito ganhá-la. Cuidado, meu capitão!
O pessoal está cá há muitos meses, há muito tempo, já viu e já fez muita guerra. Falta-lhe pouco para regressar à metrópole. Precisa mais de quem o proteja do que gente que o meta ao barulho. Mas Cuntima, meu capitão, isto é um corredor, uma pista desimpedida para a guerrilha, para meterem minas e armas no Oio, vêem-se os trilhos pisados de fresco, passam todos os dias por eles.

A minha ideia, meu capitão? Sair daqui sem espalhafato, a uma hora diferente, permanecer na zona até eles aparecerem. Se vamos sempre para o mesmo sítio montar emboscadas, se nunca os encontramos e se o caminho está sempre pisado de fresco, só não os apanhamos se não quisermos.
Ao princípio de uma tarde daquelas, numa conversa com o Covas, escolheu-se quem deveria sair dali a uma hora. A seguir formou-se o pelotão na presença do capitão, que fez questão de assistir à partida. Vamos dar uma volta por aí, quem quer vir?
Voluntários, só voluntários, atalhou o capitão, e o pelotão todo a dizer, eu vou.
Tu, tem mas é juízo! Mas eu também quero ir, meu capitão, o soldado a insistir!
Dos furriéis só não foi um, que alegou estar um pouco febril e se calhar não tinha muito jeito para voluntário. 22 mais um guia indígena e 5 auxiliares nativos prepararam-se logo de seguida. Saíram da povoação em duas viaturas, em direcção à fronteira, logo ali. Uns minutos depois, apearam-se e internaram-se no mato, por um carreiro que mal se via, de há tanto tempo não passar ali ninguém.

Pelotão a caminho de Sitató, na fronteira com o Senegal. © Foto do autor.

Foram andando com cuidado, devagar, mais separados uns dos outros, sem grandes barulhos. Afinal, o pessoal sabe andar no mato. Avistaram a tabanca de Faquina Mandinga, abandonada há anos. Chegados perto do local onde costumavam emboscar-se, prosseguiram pelas margens do trilho, até à fronteira.
Para os lados de Sitató13, quase em frente a Koldá, no Senegal, da mata avistaram um local descampado e acertaram com um trilho todo marcado com pegadas recentes. Abrigados em arbustos e montes de baga-baga, estabeleceram uma frente em curva de cerca de 100 metros, ao longo do trilho que vinha do Senegal, com a bolanha em frente, um ângulo de visão de mais de 180 graus. Uma volta pelo pessoal para ajustar algumas posições individuais, pareceu estar tudo em ordem.
Todos na expectativa, prontos para o que desse e viesse. E dispostos a esperar, pelo menos até ao meio-dia do dia seguinte. Mas eles devem aparecer antes.
Deitou-se com a G3 ao lado, tirou do casaco a Agfa que recebera de Angra uns dias antes, para o caso de haver motivos.
Eram para aí 17, 17 e 30, quando se ouviu uma voz muito baixa dizer, atenção malta, vêm aí gajos! É agora, o coração a dizer-lhe conta comigo. No meio de um silêncio enorme, ouve-se uma culatra a ser puxada atrás, um barulho que até eles devem ter ouvido. Agora? A que propósito?
Uns tiros, uma rajada, depois uma girândola de rajadas para o descampado em frente, tudo em pouco mais de um minuto. Sacos pelo chão, gritaria, um intruso a mancar com uma bicicleta ao lado, a tentar montar para cima dela, uns tipos caídos a gemer, um nem se mexia, os valentes alentejanos pareciam que estavam a jogar rugby, todos ao monte para cima deles, para aí 5 ou 6, cada um a fugir para seu lado, seus filhos desta e daquela. Sacos, de arroz, sal e cola, duas bicicletas, um caixa com granadas, duas com munições, uma Mauser, portuguesa em tempos, livros de leitura em português e correspondência, no meio de outras tralhas. Uma pequena secção de reabastecimento do PAIGC posta fora de combate em pouco mais de meia hora.
E o trabalhão que foi pegar naqueles alentejanos e pô-los de regresso, com os prisioneiros feridos em padiolas improvisadas? Levou mais tempo a regressarem do que a irem, está bom de ver.
Pelo caminho iam fazendo perguntas aos infelizes que tinham sido apanhados, para onde tanto arroz, para família, e livros, para meninos da família aprender a ler, cola para a família também, e que família é essa? É uma família muito grande, não é?

E quem foi o artolas que puxou a culatra atrás? Quem usa Mauser14 aqui, os milícias, quem havia de ser! Meu alfero, turra vinha lá! Mas porquê, logo quando eles estavam a entrar na zona de morte?
Este sim, foi um baptismo de fogo! Era assim que gostaria que fosse sempre, apanhá-los à sorrelfa, sem darem por ela.
Avistaram Cuntima ao longe, a noite já fechada, os petromaxes acesos, e, junto ao arame farpado, militares e população civil a olharem. O capitão, ao encontro deles, então?
Eu não lhe dizia que era uma questão de horário, meu capitão?
Vamos ver, vamos ver! Vá-me dando pormenores, vamos para o posto de rádio, vá falando15.
Uma desorganização total, meu capitão. Um milícia precipitou tudo, lembrou-se de puxar a culatra da Mauser. E depois, cada um fez o que lhe deu na mona, abriram fogo, a correrem todos a monte, sem segurança nenhuma. Mesmo assim não foi mau, meu capitão.
Espera-lhe pela volta, o Didi a virar costas, quem havia de ser?
Mas a guerra, de facto, tomou conta de Cuntima. Foi como se tivessem mexido num enxame de abelhas. Uma ou duas semanas mais tarde, a outras horas, nova emboscada, e desta vez ninguém puxou a culatra antes. Depois, umas minas, a seguir um ataque a Cuntima. Nunca mais houve paz ali.

A fronteira da Guiné tinha sido riscada num mapa, era mais administrativa que outra coisa, não correspondia a nenhuma divisão real entre as pessoas ou etnias. Familiares viviam de um lado e do outro, às vezes mudavam-se com as famílias todas atrás.
Em Cuntima fazia-se muita psicossocial. O médico, um açoriano da Terceira, era um homem bom, com espírito muito prático, não protestava com as condições precárias. Era preciso, fazia-se. Sempre disposto a dar uma ajuda àquelas populações, eram sempre horas.
Mais que uma vez, o doutor Lourenço tivera que ir ao Senegal ver gente doente. A tropa conduzia-o até à fronteira, depois entregava-o aos guardas senegaleses que o acompanhavam até à tabanca.
No passado, aquela gente nunca tinha tido um apoio tão grande como agora. Ajudavam-se os nativos na construção das casas, providenciavam-se mosquiteiros, faziam-se desinfestações, limpavam-se caminhos, abriam-se outros. Nunca faltavam voluntários para ajudar. Nem precisavam de arregaçar as mangas, andavam sempre quase todos em tronco nu.
De facto, naqueles dois ou três anos, desde que o PAIGC tinha iniciado a guerrilha, estava a fazer-se mais por aquela gente do que nos outros anos todos para trás. Isto, se se levasse em conta o que se via feito até então. Quase nada. A guerra tem destas coisas.
A companhia militar estacionada em Cuntima, Colina do Norte como era agora chamada, tinha um efectivo a rondar os 150 homens, a esmagadora maioria já a meia dúzia de meses de regressar à metrópole.
Alguns, muito poucos, estavam lá em rendição individual, para tapar as falhas que ocorrem sempre. Era o caso do alferes chegado há pouco mais de um mês e de outro chegado dois ou três meses antes.
Os outros alferes, o Didi e o Ferreira tinham partido de Estremoz com o 490.

O Didi tinha o tamanho de um português, um ar de bem-nascido, com o sotaque do Rio, muito pronunciado. Totalmente contra, dava a entender, por vezes, estar tão próximo dos guerrilheiros como das tropas que comandava. Um bom coração para as questões humanitárias, sempre pronto a ajudar, quase sempre de má vontade para tudo o que fosse acção ofensiva contra a guerrilha.
O Ferreira mantinha-se ao largo destas discussões, não se manifestava, por cansaço ou por outro motivo. Falava da namorada e da mãe, com os olhos brilhantes para as fotos ao lado da cama. Tinha ganho no Como a imagem do alferes mais operacional da companhia, os soldados falavam dele com respeito, via-se que tinha ascendente.
Os outros dois alferes da Companhia que com eles tinham partido de Estremoz, já estavam na metrópole, ambos evacuados, o Sequeira por doença incapacitante e o outro, o Monteiro, atingido por estilhaços de um engenho explosivo que obrigaram à evacuação para o Hospital Militar da Estrela.
O alferes que estava a substituir o camarada evacuado para a Estrela, acreditava no Império, em Portugal do Minho a Timor. De mãos dadas com as populações, de arma na mão contra os que se opunham.
Impensável, não via como podiam ter entre eles quem pensasse como o Didi. Tanto choque de pontos de vista em tão pouco tempo, a guerra deixou de ser motivo de conversa, evitavam-na. Limitaram-se a conviver o resto do tempo que permaneceram juntos. Quando, por qualquer motivo, um deles insistia na conversa da guerra, o outro, como se tivessem combinado antes, punha-se a falar do Benfica e do Sporting ou então ia dar uma volta.

O capitão, um pouco sobre o alto, magro, algo distante, olhar desconfiado, deixava as coisas andarem. Via-se nele o desejo de acabar a comissão o mais depressa possível, sem mais chatices, o que não era nada fácil com um Tenente-Coronel daqueles.
O doutor Lourenço falava dos doentes e de Angra, a cidade onde nascera. Agora que tinha ali um recém-chegado da sua terra puxava-lhe pela língua. Conheceste o quê? O Monte Brasil e as Lajes, claro, a Praia da Vitória, a Terra Chã, a Serreta, os Biscoitos, e que mais? Visitaste o Palácio dos Capitães-Generais, o Outeiro da Memória, a Igreja da Misericórdia, os Impérios, o Algar do Carvão? E que gente conheceste? Em que café paravas, ora diz lá! No Internacional do Mário?
Horas de conversa, perguntas atrás de perguntas que lhe serviam para matar saudades da sua ilha. E a namorada terceirense, que tal? Não tens? Então de quem são as cartas que vem de Angra? Como sei? Ora, pelo endereço, calhou ver, só isso, mais nada. Olha, por acaso conheço a família dela, e a ela também, cheguei até a ver-lhe a garganta!
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Notas:
13 - Um dos corredores que a guerrilha utilizava para Canjambari e daí para o Oio
14 - Espingarda de repetição, de origem alemã
15 - Nas regiões fronteiriças, o adversário procura pôr-se a coberto da acção das NT refugiando-se nos territórios vizinhos. Uma emboscada montada nas cercanias de Cuntima, foi bem sucedida e causou dois mortos e vários feridos confirmados. Os bandoleiros fugiram para a República do Senegal, donde flagelaram as NT. Nesta acção foi capturado armamento, munições, material diverso e abastecimentos.’ Do Boletim n.º 6, do E.M.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14814: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIa Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

Guiné 63/74 - P14814: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIa Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

1. Em mensagem do dia 20 de Junho de 2015, o nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67), enviou-nos a continuação do seu trabalho a que deu o título de "Guiné, Ir e Voltar".


GUINÉ, IR E VOLTAR - II

Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

A festa não era para ele, aquela gente toda na pista de aterragem, alguns com máquinas fotográficas, não estavam ali para o fotografar, nem para lhe dar as boas-vindas, festejava era a chegada da avioneta. Não demorou muito tempo a perceber o porquê de toda aquela agitação e da romaria em volta do aparelho. Caixas de uísque e tabaco, grades de cerveja espalhadas pelo chão e todo o pessoal a rodear um saco, o saco do correio. A pressa em abri-los, maços e maços de cartas nas mãos, Carlos Correia, Manuel Revés, ó Tomé, as mãos estendidas, estou aqui, meu furriel!

Em Cuntima, a Dornier acabada de aterrar. © Foto do autor.

É o alferes que vem substituir o Monteiro, não é? Bem-vindo a Cuntima! Um tipo de mão estendida, calções, camisa de caqui e havaianas, capitão Pato Anselmo, comandante da companhia. Estes são os seus camaradas, o alferes Adilson, mais conhecido entre nós por Didi e o alferes Ferreira, aquele ali é o doutor Lourenço, um açoriano da Terceira. Adilson, hoje já tem que fazer, trate de lhe mostrar a cidade, os aposentos do hotel onde vai ficar, a casa de banho, mostre-lhe tudo.

Cuntima com o edifício do posto administrativo à direita. © Foto do autor.

Cuntima era uma rua, casas de um lado e doutro, pintadas com a cor de muitos sóis em cima e casitas de adobe atrás. A rua, uma recta de 200 a 300 metros, era a estrada de terra que ligava a fronteira com o Senegal a Farim, cerca de trinta quilómetros, com passagem por Jumbembem, mais ou menos a meio do trajecto.
No lado nascente, em frente a um antigo celeiro, que agora era a camarata do pelotão do recém-chegado, ficava a casa do comando, com um quarto para o capitão, outro para a estação de rádio e um compartimento que servia de posto de socorros e de capela quando vinha o capelão. Duas casas depois, a messe, em tempos mais calmos, moradia de alguém importante na terra.
Era aqui que se encontravam para as refeições os alferes da companhia, o capitão, o médico e o 1.º sargento Torres, um senhor a rondar os 50 anos que se fazia acompanhar da mulher, a única senhora branca que ali habitava. À entrada, à frente do bar, o Fininho servia cerveja, uísque, leite condensado, água Perrier, por esta ordem conforme a existência, e a seguir, o que havia num frigorífico a petróleo com aspecto de já ter arrefecido o suficiente para a reforma.
No primeiro jantar em Cuntima, ficou logo a conhecer a história deles e do batalhão. Do capitão não, que se retirou cedo.
O Adilson era mais brasileiro que português, criança ainda fora com os pais para o Rio de Janeiro. Questões relacionadas com morte de familiar e heranças forçaram-no a vir a Portugal. Não havia forma de fugir, tinha que ser. E pronto, foi assim, acabou-se-me a Gávea, Copacabana, Ipanema, o Leblon, o Leme.
Didi, estás em Cuntima, uma beleza de terra também, não tem praias, mas tem bolanhas1, palmeiras, bajudas2, calor, que queres mais, o Ferreira, um tipo pequeno, olhos vivos, muito negros, ar de indiano, à gargalhada.
Dali para a frente, as conversas entre eles eram sempre as mesmas, só umas pequenas variações, um acrescento aqui ou ali. Sempre à volta do mesmo, os meses que faltavam para o regresso. Fosse qual fosse o princípio, terminava sempre na Rocha Conde de Óbidos3 e no encontro com a namorada, mulher, filhos, os pais, os amigos, a rua, o café, o quiosque.
Guiné Portuguesa? Que é isso? Nem penses, esta é uma guerra perdida! Não tenhas ilusões, isto não é Portugal, nunca foi, o Didi ansioso por passar a ideia.
Tirando a tropa, vivem em toda a Guiné para aí 50 brancos, no máximo, o resto da população são naturais da Guiné e algumas centenas de emigrantes que fugiram às secas de Cabo Verde! Quando vires a tralha a cair-te em cima, nessa altura sim, vais começar a pensar no buraco em que acabas de entrar. E toma nota, há gajos em Lisboa que engordam com este negócio, a mercadoria somos nós. Daqui a uns tempos falamos, quando estiveres mais habituado a estes calores. A minha posição é esta, muito clara, sou totalmente contra esta guerra, mas cumpro os meus deveres de oficial do Exército Português.
Depois desta introdução o Didi despediu-se e os outros mudaram o disco, começaram a querer saber novidades da metrópole.

O Tenente-Coronel de Farim insistia em ordens de saída para o mato, patrulhamentos, emboscadas, vigilância das picadas, capinagem, o diabo a sete. Saíam, claro que sim, mas via-se-lhes na cara que a vontade não era muita, as pernas, contrariadas, a arrastarem-se, em fila de pirilau4, muito chegados uns aos outros, como se assim ficassem mais protegidos. Os alferes e os furriéis já não tinham ânimo para imporem as regras de segurança. Já tinham passado por muito.
O Como, pá, o Como! Os dois feridos que tivemos mal desembarcámos! E aquela história, lembras-te Ferreira, e mais um episódio a sair aos bochechos.
Ao fim de uns dias, o alferes maçarico5 era um veterano de guerra, esteve no Como6 aqueles dias todos, os turras chateavam-no a toda a hora.
Ao jantar, à luz do petromax7, a presença do capitão baixava o tom das conversas à mesa. Era o único ali que tinha acesso aos relatórios da situação militar em toda a província. Com voz baixa, ar confidencial, punha-os vagamente em dia com o que se passava nos outros pontos da Guiné, Oio, Morés, Tite, Cantanhez, Buba, Guilege, Bedanda, Cacine, Cameconde. Flagelações, emboscadas, ataques, minas, baixas.

Numa daquelas noites, ao levantarem-se da mesa, o capitão deitou-lhe uma mão no braço, venha daí, vamos até ao posto de rádio. Uma noite linda, não? Mágicas, estas noites de África, não?
Porta fechada, viu-o estender um mapa junto à luz do petromax. As referências bem assinaladas com marcadores grossos a tinta vermelha, o dedo a apontar.
A fronteira, Cuntima aqui, Jumbembem, Farim a seguir, aqui em baixo, está a ver? Agora para cima, emboscada aqui, entre Faquina Fula e Faquina Mandinga, o dedo apontado para um ponto do mapa. Esta madrugada, neste trilho tem que lá estar entre as 6 e as 6 e 30. Preste atenção, levante-a ao meio-dia e saia da zona rapidamente. Fale com o Furriel Covas, ele trata da logística. Boa noite.
A caminho do barracão, antigo celeiro, onde pernoitava com o seu pelotão, Faquina Fula e Faquina Mandinga, nomes absurdamente estranhos, misturavam-se na cabeça com os restos da cerveja que ainda trazia de Bissau.
Pôs o Furriel Covas ao corrente da missão, pediu-lhe que fosse ele a comandar.
Era a sua primeira saída para o mato, até aí tinham sido só treinos em Mafra, Carregueira e Santa Margarida e a G3 tinha-a experimentado pela primeira vez ontem, na pista, contra as garrafas vazias de cerveja dependuradas no arame farpado.
Deixe estar, meu alferes, eu trato de tudo, fique descansado.
Na cama, nada de leituras que a lanterna estava sem pilhas. Num rádio, lá para o fundo, Bécaud cantava baixinho "Et maintenant", de outro saía música árabe e ressonava-se por ali fora com força. E Faquina Fula com Faquina Mandinga na cabeça, sempre a rodar, até adormecer.

Quando o Furriel Covas o acordou, mal se pôs a pé a cabeça voltou a rodar, ao ritmo daqueles dias. Na rua, ainda noite, cheirava a café quente, tomava-se o pequeno-almoço, pão fresco com chouriço e marmelada.
Puseram-se a andar, ainda não eram cinco da manhã. Dois guias naturais da zona abriam a coluna do grupo de combate, armas pousadas nos ombros, mãos a segurarem os canos, coronhas para trás, como quem leva um cajado. Parecia uma romaria a S. Bento da Porta Aberta, um restolho enorme, tanto barulho com os pés. Não se pode andar com menos barulho, Furriel Covas, o pessoal não pode levantar os pés em vez de os arrastar? É, poder podem, os olhos pequeninos do furriel para ele.
Tomava pela primeira vez contacto com a mata, as árvores, os ruídos, ansioso por dar atenção a tudo. Espevitou ainda mais com a floresta a acordar. São macacos-cães a ladrar, quando estivermos perto deles deixam de se ouvir. Falta pouco, é para aqueles lados, o trilho é depois daquela bolanha, ali em frente.
Pouco passava das 7 instalaram-se ao longo das margens de um carreiro, uns deitados, outros de joelhos, G3 em posição, escondidos na mata, abrigados em arbustos dispersos pelo capim e ficaram a aguardar que os turras aparecessem.
O tempo a passar, turras nem vê-los, o silêncio cortado de vez em quando por um ou outro ronco de alguém a passar pelas brasas, o sol bem alto a queimar, moscas grandes, peludas, a pousarem neles, e nem se ouviam. O Covas aproximou-se, apontou para o relógio, é quase meio-dia, hora de levantar a emboscada, vamos?
Curvado nas margens do caminho, percorreu-o com os olhos de uma ponta a outra. Viu pegadas e sinais de rodas de bicicleta.
Sim, pessoal passou aqui. Ontem, sim, pode ser, sinal fresco ainda, arriscou-lhe um milícia guineense num português difícil.
Este é um caminho que eles utilizam para introduzirem armas, comida, sei lá que mais, pensou. Só que passam aqui a outras horas, claro. E se continuasse aqui até eles passarem? Agora não, que as ordens são outras.
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Notas:
1 - Terreno alagadiço, próprio para a cultura do arroz
2 - Rapariga, donzela, moça virgem
3 - Cais da Rocha Conde de Óbidos, de onde partiam os navios com tropas para África
4 - Coluna por um
5 - Designação pejorativa que era dada aos acabados de chegar. Com o tempo passaram a chamar-se piriquitos.
6 - Operação ‘Tridente’. No Como gastaram-se 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia, 550 granadas de morteiro, 8900 rações colectivas de combate e 4000 rações individuais, no meio de 15.500 garrafas de cerveja, 22.900 litros de vinho e do fumo de 10.100 maços de tabaco.
7 - Candeeiro a petróleo.

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Os dias em Cuntima

Andamos a enlatados, lulas, sardinhas e atum, há 3 semanas sem reabastecimentos. Não há frescos, acabou a cerveja e o vinho, há batatas e arroz. A proibição é absoluta de insistir com a população para vender galináceos ou cabritos. A situação não é inédita, já ocorreu antes e houve problemas com as queixas da população.
O Didi chegou agora de férias da metrópole.
Então como está Lisboa? O que é que se diz por lá?
O que se diz por lá, pá? O que é que querias que se dissesse? Que se falasse da Guiné e da malta? Guerra é aqui, pá, lá não há guerra! Na metrópole ninguém quer saber da Guiné para nada, querem lá saber da maralha. E em Bissau é a mesma coisa, não há lá guerra nenhuma, há é lá uns gajos empregados no QG que fecham a guerra deles às 5, saltam para a piscina, jantam no Grande Hotel e o resto da noite passam-na a jogar bridge na Associação Comercial.

A CCav 489 formada na estrada que atravessava Cuntima. © Foto do autor.

Estou aqui há pouco mais de dois meses, tiros só ouvi os da minha G3, quando a estive a experimentar contra as latas e garrafas, junto ao arame farpado.
Até agora tenho tido uma vida pacata, sem problemas. A calma é que é excessiva, pesa um bocado. Do posto de radio ouvem-se comunicações de várias unidades próximas relatando a ocorrência de rebentamentos de minas, contactos com a guerrilha, mortos, feridos evacuados.
Isto é mesmo um intervalo na minha vida, passo os dias a olhar para a rua cheia de pó, o nariz cheio de catinga8, o ar abandonado de todos, tudo precário.

Poço de água aberto pela Companhia. © Foto do autor.

Há dias dei por mim a lembrar-me de qualquer coisa que, em tempos, li sobre a entrada do Exército Português na 1ª Grande Guerra. O entusiasmo dos políticos, Portugal não pode ficar de fora, Portugal tem que fazer parte do esforço na guerra contra os boches, não pode deixar de pensar nas colónias, como então chamavam a estas terras. Depois, mal equipadas, mal armadas, desfalcadas de oficiais, as forças portuguesas ainda enfrentaram a falta de rendição das tropas na frente de batalha. De 9 para 10 de Abril, exactamente no dia em que iam ser rendidas, um ataque alemão pôs fora de combate o corpo expedicionário português. O aço alemão vinha de todo o lado às toneladas, as nossas tropas defenderam-se como puderam, mas não conseguiram evitar o desastre de La Lys.
Quem pagou? As tropas, claro. Um massacre9, os gases, as amputações, as vidas desfeitas. Depois despacharam-nos para a terra, umas lápides nas casas de alguns que morreram, nomes em ruas e monumentos a enfeitar praças de cidades, e depois nunca mais quiseram saber deles. Vai acontecer-nos aqui o mesmo? Talvez não, os turras também não são os boches, pelo menos ainda.
Quantos dias faltam para a gente se ver livre desta merda? É o que se ouve a toda a hora, estendidos nas tarimbas, mosquiteiros fechados, uns por cima dos outros, falam alto das amizades, da velha mãe, do pai seco da fome, da jovem mulher a labutar como uma moura, dos filhos que vêem crescer nas fotografias, de tudo o que deixaram no Alentejo10 deles.

Grupo de combate com o antigo celeiro que lhes servia de camarata, atrás. © Foto do autor.

Depois de jantar uma sopa com batatas, arroz e uma rodela de chouriço, papaia e manga, sentamo-nos um pouco nas traseiras da casa que nos serve de messe, a olhar as estrelas. O calor sente-se, a humidade escorre pelo peito, pelas costas, todo o corpo escorre água. É tempo de aguardar que refresque um pouco antes de ir dormir. Ficamos ali, calados, a ouvir os ruídos da mata que nos cerca. Custa-me entrar no celeiro, dou a volta por fora, sento-me nas traseiras, num cadeirão de madeira, com a mata em frente. Olho o céu com tanta luz que nem preciso da lanterna.
Lembro-me da Barca do Lago, do rio Cávado a correr devagar, sem vontade de se perder no mar, dos tempos de ontem, de há 3 meses só, à espera que as conversas dentro do barracão esmoreçam. A sentinela ao meu encontro, olhos na escuridão da mata em frente, a lua africana, um disco de luz a bater-lhe, a recortar-lhe os traços.
A gente, mê alferes, quando chega fica assim, mais saudosa, depois, com o tempo, habitua-se, também não tem outro remédio, não é?
É melhor nem falar, mostrar só um sorriso, tenho medo do que diga, de mim próprio até.
Já nada se ouve, apenas o sono. Acordo dos pensamentos, amanhã não tenho trabalho, é o meu dia de folga. Como se aqui houvesse dias de trabalho e de folga, mas enfim, levantar-me-ei mais tarde, puxarei a corda do regador, a água duma vez por mim abaixo, rexina, água outra vez no regador, corda nele, secar, fresco para o almoço, limpo deste suor pegajoso, disposto a aguentar os queixumes do capitão à mesa.
O senhor é profissional, ofereceu-se voluntário, foi para cavalaria, a especialidade de carros de combate vê-se aí no seu peito. Essas queixas não têm razão de ser na sua boca, apetece-me dizer-lhe. Sei que estou errado, ele é novo como nós, nem trinta tem, também tem direito a dizer mal disto.
Faz-me bem escrever, às vezes não consigo, saem-me palavras sem nexo.
Tenho pensado muito, o ambiente é propício. Espero dias mais claros, menos nevoentos.
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Notas:
8 - Dizia-se do suor característico dos nativos. Estes, por seu lado, diziam que branco cheirava a morto.
9 - Entre mortos, feridos e prisioneiros, o corpo expedicionário português sofreu mais de 7 mil baixas, sem contar com as registadas em África, onde só em Moçambique morreram 4811 militares. Notas recentes indicam que as baixas atingiram cerca de 36% dos mobilizados.
10 - Os soldados e cabos do BCav 490 eram, na sua maioria, originários do Alentejo.

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As noites

Ao fim do dia havia que preparar os petromaxes e acendê-los. Equipas deslocavam-se até ao arame farpado, conferiam as protecções, depois juntavam-se para jantar. No fim ficavam por ali um pouco à conversa até o amanhã de um e depois de outro. As noites entravam rápidas, o silêncio chegava com a noite, entrecortado por uma ou outra fala mais alta que logo esmorecia enquanto, de vez em quando, o vento trazia dos lados da fronteira os tantans de batuques de algures do lado de lá.
Dentro do celeiro, pelo meio dos beliches, orquestra a sono solto, madrugada ainda a meio. Portão entreaberto, o céu a brilhar de pontinhos. Noites como aqui, com tanta luz, parece dia! A casa do capitão em frente, os alfas rómios da casa do rádio a ouvirem-se, aroma a café a vir de lá. Uma novela no quarto de banho do capitão, Capricho ou parecida. Na volta, outra vez o céu, bocados de estrelas a caírem.
As matas, escuras, misteriosas, rodeiam todo o aquartelamento-povoação.
Quando se lembrarão eles de vir até cá? Se soubessem como era fácil, todos a dormir agora, bastava chegarem-se, sorrateiros, escondidos pelo matagal, espiar o movimento das sentinelas, evitar os petromaxes, colados ao chão, devagar a caminho do celeiro, a curta distância, cem metros chegava. Dedos com vontade no gatilho, entrarem, uma chacina nos tugas. Se não tivessem medo também. Algum dia vão perdê-lo.
De novo na cama, a vontade de dormir a ir-se, as recordações a virem. O comboio da linha de Sintra, a chegada à Amadora nas horas de ponta, centenas a saírem, todos com pressa, a desaparecerem nas ruas, depois nas casas, as luzes a acenderem-se, o vento a dar, as praias de Oeiras, Carcavelos, a areia do Guincho pelo ar, e o vento a levar-me por aí acima até ao Porto, à estação de S. Bento, o passeio das Cardosas, a Avenida dos Aliados, os Clérigos, a ver o eléctrico, o 6, a subir para os Leões, o Hospital de S. António, a Aníbal Cunha, a Carvalhosa, o ardina a apregoar olhó Popular Diário, a subida da Oliveira Monteiro até ao Carvalhido, as ruas, os quiosques.
A circunvalação, a via Norte, a recta do Mindelo, Modivas, sempre a subir até Vila do Conde, terra linda, a Póvoa do Varzim, os banhistas com os sacos às costas, toalhas coloridas debaixo dos braços, a estrada para Viana, Aver-o-Mar, o cheiro da casa dos frangos, tão bons não havia, a Apúlia por fim.
E o sossego daqueles fins de tarde do último Setembro na praia dos sargaceiros, as marés cheias por volta das sete, ondas enormes, certinhas como um compasso, os mergulhos com o André, o Eurico, o Beleza. O regresso a casa, bicicleta nos caminhos pelo meio das latadas das uvas americanas, a secar ao vento, a chegada a casa, o Sol a pôr-se, a mãe à espera, a estas horas, só agora?

Aqui não há mar, jornais da metrópole há, de há semanas, rodam entre todos, a Bola, o Eusébio, o Coluna, o José Augusto, o Pedroto, o Virgílio, o Vicente, o irmão do Matateu, o Costa Pereira a defender fora da área de cabeça, em mergulho, no estádio 28 de Maio em Braga, nunca vira uma defesa assim!
E como é que ela vai reagir à carta? Que ideia, pedir-lhe que o considerasse agora mais que um amigo, estivera com ela mais de duas horas da última vez, não lhe dissera nada, nem um sinal lhe dera. Tão longe, tanto tempo à frente, tão nova ainda, tanta vontade de ir aos bailaricos da queima, em casa das amigas, nas festas familiares. Que absurdo! Que ousadia também! O amor a dar-lhe tão súbito, tão fulminante, talvez por estar longe, ou quem sabe, só uma correspondência que sempre lhe daria jeito, uma madrinha de guerra talvez, com notícias diferentes, da metrópole.

Uma rajada comprida vinda de muito longe entrou-lhe pelos ouvidos dentro. Olhos mais que arregalados, o salto de gato da cama.
Queria gritar outra coisa, saiu-lhe pessoal aos seus lugares, lembrou-se logo do cobrador das camionetas do Marinho em Braga, nada que se parecesse com um grito de guerra. Se calhar, por isso ninguém saiu, só ele. Em voo pelo buraco aberto na parede das traseiras, a pancada na cabeça, um estrondo enorme, estrelas a brilhar mais que as do céu. Finalmente cá fora, a mão na cabeça, o sangue a escorrer, pronto, fui atingido, logo à primeira.
Silêncio, ninguém para o socorrer, só a sentinela a chegar-se.
Pareceu-me ver umas luzes suspeitas ali da mata, mandei para lá uma rajada. Alarme falso, afinal deviam ser pirilampos. Temos que estar sempre atentos!
Sangue na cabeça? O meu alferes bateu com a cabeça na parede, ainda não está calhado com o buraco, é o que é.

Posto de Comando e posto médico. Doentes que aguardavam a consulta. © Foto do autor.

Posto médico, manhã cedo, com nativos da tabanca e outros vindos do Senegal em fila para a consulta, o médico a atendê-los, cheio de paciência, para um ora abre a boca, diz aaah, outra vez, aaah, o enfermeiro com a mão num frasco enorme, comprimidos, drageias, cápsulas, todas as cores da paleta, dá-lhe duas dessas, outra dessa cor, amanhã se não estiveres melhor vai ao feiticeiro.
O que estás aqui a fazer? Praxado esta noite, ah?

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 28 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14803: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (I Parte): Introdução, Dedicatória e A Caminho