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domingo, 28 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14803: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (I Parte): Introdução, Dedicatória e A Caminho

1. Em mensagem do dia 16 de Junho de 2015, o nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67), enviou-nos a primeira parte de um trabalho a que deu o título de "Guiné, Ir e Voltar".


‘Só existe uma coisa mais terrível do que uma guerra, fazer de conta que ela nunca aconteceu’

A guerra é igual para todos os que nela participaram. Alguns não a puderam contar e muitos outros, embora ainda vivos, querem permanecer mortos para as memórias desses tempos.

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A escrita desta história

Esta memória foi escrita com recurso a curtos diários, a relatórios de operações1 feitas pelo grupo e a documentos escritos, depoimentos e diários de camaradas de outros grupos.
Foi esboçada ainda em 1967, dois meses depois de ter regressado a casa, sem qualquer intenção de voltar a pensar no assunto.
Tentei respeitar o espírito que na época vigorava entre nós, em Brá. Apesar de, a certa altura, ter a ideia de que a guerra na Guiné dificilmente seria resolvida pela via militar, no nosso próprio interesse era importante fazê-la com eficácia, fugindo à balbúrdia, do “todos ao monte” e fé em Deus, tão frequentemente vista em unidades espalhadas pelo território e que muitas vezes tão maus resultados acarretava.
Os Comandos formados no CTIG, entre 1964 e 1966, eram realmente diferentes. Tinham um dístico grande à entrada das camaratas: “Os Comandos não são melhores nem piores, são diferentes”.
Operavam em grupos de 20 a 30 homens, diariamente treinados, com boa capacidade física, muito móveis e serviam-se de armamento ligeiro. Tanto saltavam de viaturas em andamento internando-se rapidamente no mato como eram largados de helis mesmo em cima de acampamentos Inimigos. Apesar de utilizarem a surpresa como arma principal de ataque, rodeando-se de cuidados extremos na progressão para o objectivo, nem sempre tiveram sucesso, tiveram os seus desaires. Cerca de 6% dos seus efectivos morreram em combate e 10% foram feridos com mais ou menos gravidade. Deram tudo o que puderam, sem pedirem nada em troca, até a farda amarela que usavam foi paga do seu bolso e o crachá que traziam no peito tiveram que o ganhar com muito treino e em operações reais. Com as acções que desencadearam, aliviaram muitas vezes a pressão a que o pessoal em quadrícula estava sujeito.
E mostrámos que também era possível desinquietar o IN nos seus santuários.
As outras histórias que entram nesta escrita fazem parte do ambiente que se vivia na altura e ajudam a compreender melhor a guerra traiçoeira, sem tréguas, movida por uma guerrilha que se encontrava no seu meio, especialista, na altura, no bate e foge e em semear minas, contra um exército de jovens de vinte e poucos anos, na sua maioria, com preparação militar muito deficiente e que mesmo assim resistiu denodadamente.
As chamadas tropas regulares, dispersas em quadrícula, viveram a parte mais dura. Com armamento inferior, especialmente a partir de finais dos anos 60 e a viverem em condições precárias, em locais de difícil acesso, sujeitas a ataques diários, com as evacuações condicionadas ao horário solar, num ambiente hostil e com o moral a ser fustigado a toda a hora pela propaganda do PAIGC, tudo tiveram contra elas, inclusive militares das nossas próprias tropas que passavam informações para o Inimigo.
Mesmo assim, fizemos, nós todos, o que nos competia: a vida negra à guerrilha. A vida dos combatentes do PAIGC nunca foi fácil, nem nos santuários de que se afirmavam donos e senhores podiam dormir descansados.
Soldados e cabos, furriéis e alferes, milicianos na esmagadora maioria, sem esquecer os valorosos profissionais que os enquadraram, honraram as páginas mais brilhantes, que tanto gostara de ler, na escola primária, no livro da História de Portugal.
Nas outras páginas, o mesmo Portugal que lhes pediu os melhores anos da vida, bocados deles e a própria vida de muitos deles, findas as hostilidades, tudo fez para que se envergonhassem da guerra em que estiveram envolvidos.
Na história recente rapidamente o País esqueceu os que se bateram na 1.ª Grande Guerra na Flandres e aos que se bateram em África permitiu que lhes colassem etiquetas de selváticos colonialistas. Aos bravos naturais da Guiné que, por um motivo ou outro, optaram por se juntarem às tropas nacionais, a esses, os governantes da altura abandonaram-nos à própria sorte. O PAIGC de então não lhes perdoou, apelidava-os de cães raivosos e abateu-os como tal.
É a história, é certo. Mas é também uma parte dessas páginas que ainda não está suficientemente esclarecida.
Não se pretende aqui fazer história, trata-se apenas de deixar o testemunho do que viveu e viu, um dos participantes na guerra na Guiné.

Lisboa, Janeiro de 2015.
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Nota:
1 - Filmes da guerra da Guiné são raros. No QG, em Bissau, havia um departamento de fotografia e cinema com operadores. Pois em centenas de quilómetros percorridos, a pé ou em viaturas, nunca os vi. As escassas imagens filmadas em combate são, na quase totalidade, as que foram obtidas por jornalistas estrangeiros que acompanharam a guerrilha. E nos que nos acompanharam o destaque vai para o filme de uma emboscada que nos custou mortos e feridos (realização da ORTF, hoje alojado no I.N.A.), ocasionalmente filmado numa operação de propaganda à política da Guiné Melhor durante a governação do então Brigadeiro Spínola. Ficam os depoimentos dos que ainda estão vivos.

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À minha Mulher, às nossas Mulheres

As nossas Mulheres. As que nos acompanharam desde os bancos das escolas. Que viveram, com a Cruz na parede das salas, com o olhar severo e crítico dos Pais, sempre presentes ao jantar, e o olhar benevolente e compreensivo das Mães, presentes o dia todo.
As nossas Mulheres. Amantes, de beijos roubados às portas das casas, de um sôfrego respiro de ânsias e desejos difíceis de esconder.
As nossas Mulheres. Que nos acompanharam com linhas escritas com lágrimas, em aerogramas de saudade e esperança numa vida que diziam estar, mesmo aqui, ao lado da esquina, amanhã, o mais tardar. De tão jovens, algumas não aguentaram tanta separação. Quem lhes leva a mal, que a vida é curta e a Guiné estava tão longe.
As nossas Mulheres. Que nos recolheram, exaustos de uma vida tão mal vivida, e nos ensinaram de novo a vivê-la.
As nossas Mulheres. Que foram dando à luz e criando, quantas vezes sós, os filhos de uma geração desperdiçada, tantas vezes com os companheiros ausentes e desinteressados.
Às nossas Mulheres, às que estiveram no Terreiro do Paço a receberem medalhas e a todas as Mulheres da nossa geração, que de uma ou outra forma, compartilharam a nossa vida.


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Mas então como é a guerra lá?
A guerra lá… não tem muito que contar. É a gente ir numa coluna a pé ou em viaturas e de repente rompe um fogachal do caralho, com os gajos a abrir fogo sobre a malta e depois nós respondemos.

De uma conversa à mesa, ao jantar, entre o pai da noiva e o futuro genro, recém-chegado da Guiné, quando este lhe foi comunicar que queria casar com a filha.

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Em dois anos muito do que aconteceu

A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para a contar

Gabriel Garcia Marques em "Viver para contá-la"

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A minha Guerra

Este é o sítio para falar comigo.
Parece despropositado levantar a questão da minha Guerra, aqui, num local tão público. Qual Guerra? A nossa, a minha, a que vivi nos naqueles anos, de 65 e 66, ainda de barba mal crescida. Uma Guerra ainda imberbe, dirão alguns. Imberbe ou não, foi matando um aqui, outro ali, outro aqui outra vez e outro ali de novo. Para os que morreram foi definitiva. E esfacelando um em Binta, outro em Cufar, um em Guidaje, um outro em Cuntima, outro ainda acolá. Não interessa agora falar em locais, naqueles anos o pessoal do Hospital, todos os dias tinha trabalho novo.

Este é o sítio para eu falar da Guerra dos Combatentes, da que se travou em lalas, bolanhas, picadas e matas. Da que se tratou a tiro, à morteirada, com foguetes e rockets a abrir capim e carne, do silvo das saídas do morteiro e do estrondo, muito longe, muitas outras não tão longe assim. Dos ataques e flagelações a bases da guerrilha e a aquartelamentos das NT. Dos ataques às barracas do PAIGC, a maioria nas madrugadas, que as NT tanto pareciam gostar. Foram instruídas para isso, em Mafra, Tavira, Caldas. Abrir fogo logo ao nascer do sol, que havia ainda muito para fazer e andar. E ao aproximar das noites, como parece ter sido também o gosto da guerrilha, os flagelamentos aos aquartelamentos das NT. Evitavam encontrar-se à mesma hora nos mesmos locais, assim parecia.

É dessa Guerra, talvez a menos importante, que estou a falar. A outra, a que se travava nos ares condicionados de Bissau e de Conacry, essa não merece grande realce nesta escrita, embora pessoalmente nos meus últimos três meses a tenha visto de longe, tão longe que quase nem me dizia respeito. E digo quase, porque no Bento encontrava camaradas vindos, de Catió, de Cutia, de Guileje, de Madina do Boé, de todo o lado. Gente com quem andara não há muitos dias, que fazia parte de mim, que eram da minha família, portanto.
Mas a minha guerra era já outra. Continuava a pôr-me a pé às horas do regimento e largava a papelada também à hora regimental. Banho, música no quarto, as horas do jantar na messe de Santa Luzia a aproximarem-se, e ala que se faz tarde, Bissau à frente, cinema, cerveja, uísque até se fazerem horas para chonar, que no dia seguinte lá me esperavam os movimentos de entradas e saídas de géneros, pagamentos aos pequenos fornecedores, aos fornecedores de alferes, que os maiores eram da responsabilidade de outras graduações, felizmente para mim, que, naquele tempo, talvez devido à demasiada juventude, não era grande apreciador de papel e também de certos envelopes.

Colonialismo e imperialismo eram palavras que nos soavam nos primeiros anos da década de 60. Para a grande maioria dos militares portugueses, palavras que não diziam muito. Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé, Cabo Verde, Timor e Macau eram Portugal. Foi com essas palavras que cresci e com elas me fui fazendo homem.
De um momento para o outro, muita coisa começou a acontecer. Vimos e ouvimos na TV o Artur Agostinho, o Henrique Mendes e as vozes de outros que a minha memória já não retém, o Pandita Nheru a entrar em Goa, as hordas da UPA a assassinarem quem se mexia no norte de Angola e na Guiné umas abatizes e um ou outro assassinato de gente local. Simples casos que as forças policiais não deixariam de resolver imediatamente. Não chegaram estas medidas, viu-se logo, e rapidamente houve que ir para Angola em força e já.
Um incêndio que, soprado por ventos bem fortes rapidamente se alastrou à Guiné e poucos meses depois a Moçambique. Foi o princípio do fim da vida de muitos e até 1974, calcula-se em cerca de oitocentos mil o número de jovens que interromperam as suas vidas para fazerem uma guerra, afinal, inútil.

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Eram barcos e barcos que largavam
Fez-se dessa matéria a nossa vida
Marujos e soldados que embarcavam
E gente que chorava à despedida

Letra do Fado Vulgar de Vasco Graça Moura

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GUINÉ, IR E VOLTAR - I

A caminho

O capitão, comandante da Polícia do Funchal até há um ano atrás, foi dos primeiros a descer as escadas, morto por pôr o pé naquela terra que tão bem conhecia. Queria aproveitar para rever a cidade, dar umas voltas, encontrar amigos. E nem precisou de andar muito. Logo houve quem o convidasse para o almoço no dia seguinte. Só se fosse muito cedo, para o meio-dia, no máximo, que o navio partia às duas da tarde. Arranja-se para o meio-dia então, capitão Marques! Pode trazer quem quiser, um convidado seu é nosso também.
Alferes, para amanhã temos peixe-espada ao almoço, quer vir?

Porto do Funchal em Janeiro de 1965. © Foto do autor.

Nem meio-dia era, lá estavam no 1.º andar de um restaurante com boas vistas, até o cais se podia ver, e com algum esforço até o navio se via, treze a uma mesa com as travessas em cima, o convívio a aquecer, e sem darem por ela o tempo a passar-se. Uma sirene de um navio ouviu-se. Não é o nosso Alfredo da Silva2 , pois não? Ai não, não é! Mas a partida não estava marcada para as duas? Ainda falta quase uma hora!

Pois era mesmo o navio deles nas manobras de desatracagem. Ora esta, pode lá ser? Um carro depressa! E o peixe-espada, com tão bom ar, em cima das mesas, a olhar para eles. Olhem, fica para vocês, que vos saiba bem.
A descerem por aquelas ruas abaixo, a caminho do porto, uma carrinha da polícia a abrir, quando lá chegaram, já o navio estava ao largo. Uma lancha depressa, arranja-se já! Sinais e mensagens de rádio, do porto para o navio, o aviso para pararem. Qual quê, não podemos, abrandamos só, que se cheguem. Com a lancha encostada, lançaram-lhes uma escada de cordas.
O capitão à frente, que era mais graduado, o alferes atrás uns bons degraus. Uma dificuldade por ali acima, o capitão Marques a protestar, que maçada, já não tenho idade para desportos destes, que porra! Dentro do navio finalmente, então a partida não estava marcada para as duas? Tivemos que antecipar uma hora e avisámos, se calhar os senhores não dormiram a bordo.
O capitão Marques, do caga-e-tosse3 ou lateiro , como então se dizia, senhor de pouco mais de cinquenta anos, e o alferes miliciano repartiam o camarote. Poucas pessoas para tanta carga. Farinha, medicamentos, açúcar, peças de fardamento, arroz, pneus, motores, batata, latas de óleo, frescos, combustíveis. E armas, munições, explosivos e outro material de guerra arrumado em dezenas de caixotes, em compartimentos à parte.
O mar calmo fez-lhes sempre companhia naqueles três dias de navegação até S. Vicente. Preguiçavam nas amuradas, jogavam a sueca e o king no salão, ouviam música de dança, o costume num navio daqueles anos.
O Mindelo em frente trouxe-lhes os cheiros de África. E também coisas que alguns deles viam pela primeira vez. Engraxadores, miúdos às dezenas com pequenas caixas de madeira debaixo do braço, duas latas de pomada, um pano e uma escova, a atirarem-se aos passageiros, quase todos militares, desembarcados momentos antes, ainda a equilibrarem-se em terra firme. Limpa sapato, alferes? E menina nua a dançar, quer ver? Cabras, com os ossos à mostra, a morderem o pó, papel amarelecido de jornal ao vento, pessoas devagar nas ruas, abrigadas do sol. Graxa, nosso alferes?
O alferes saiu com o Black, um antigo colega de liceu, a curiosidade a levá-los por aquelas ruas de pedra escura. O mar sempre ao lado, o café deslavado bebido na esplanada, os sapatos a brilharem e os miúdos com as caixas de graxa atrás, que o pó era muito. Tempo morno, pessoas devagar nas ruas, a pararem a qualquer pretexto.
Deve ser bem agradável viver uns tempos aqui, Black. Onde se pode almoçar, menina? Ali? O que se come lá?
Sentados numa varanda, o mar em frente, então o que se arranja? Lagosta grelhada e batata frita? Enquanto esperavam, um olho descansava no azul das águas em frente, o outro não largava o navio à esquerda. Duas moças, vestidos leves nas pernas morenas, para um lado e para outro. Só comem isto? Não querem mais, mesmo? Então, não estava bom?
Quando saíram dali levavam atrás o cortejo dos miúdos e as caixas da graxa, sempre a insistirem, e menina nua a dançar, querem ver agora?
No navio frente ao cais, o capitão Marques encontrou-os debruçados na amurada, a olharem para a cidade. O que levo daqui, meu capitão? As morenas, o andar delas, a maneira como falam, o cantar doce, os gestos calmos de quem tem tão pouco que fazer e tanto tempo à frente, o quilo da lagosta a 90 escudos, a terra amarelada, pó e mais pó, e muitos, muitos miúdos com caixas de graxa. Bissau, se for assim não é nada mau! Nem penses, pior, muito pior, arriscava outro alferes, o Leite, sorriso na cara.

Há dias que uns cheiros diferentes andavam no ar. Era África a entrar-lhes pelo nariz. No convés do “Alfredo da Silva”, já mais composto com alguns passageiros embarcados na Praia, o alferes passava as tardes sentado a dormitar e a ler um livro do Moravia, “La Ciocciara”.
E, numa manhã cedo, o navio lançou o ferro frente a Bissau. Duas horas ao largo, parados, a aguardar as lanchas de transbordo, de olhos arregalados a verem o trabalho da estiva, num linguarejar que não conseguia entender.

Bissau à nossa frente. © Imagem no blogue de Luís Graça e Camaradas da Guiné

E depois, os passageiros começaram a sair, com vagar, a pressa de pisar aquela terra não parecia ser muita, pelos vistos. Pés no chão, a olhar para as palmeiras, o alferes aproveitou a boleia num jeep, que os aguardava, rumo ao QG4.
Avenida acima, pareceu-lhe enorme, a esplanada do Bento5 , longe de pensar que, mais tarde, viria a ser assíduo frequentador, a Sé, os Correios, casas com ar colonial à esquerda e à direita, o BNU, o cinema.

Avenida da Praça do Império até ao cais. © Foto do autor.

Aqui é a Praça do Império, o Palácio do Governador, Brigadeiro Arnaldo Schulz, já ouviram falar? Este edifício novo todo envidraçado é a Associação Comercial e Industrial de Bissau, um capitão, cicerone esforçado e competente, a virar à direita, agora esta avenida a subir leva-nos a Santa Luzia, ao QG, lá em cima, estão a ver?
E pronto, camaradas, agora dirigem-se ali, àquela porta em frente, apresentam-se na repartição de pessoal que indicará os vossos destinos. Boa sorte, ah!

Palácio do Governo, Praça do Império, Bissau. © Foto do autor.

Na 1.ª Rep.6 passaram-lhe para as mãos um papel, a guia de marcha, e um jipe deixou-o na Amura7, onde havia uma dependência do Batalhão de Cavalaria 4908, a que passara a pertencer, por rendição individual, e que já levava 17 ou 18 meses de comissão.
O 490 tinha estado no Sul, na operação Tridente, o primeiro grande movimento militar na África Portuguesa, 71 ou 72 dias seguidos, abarracados no arquipélago do Como, a comer enlatados. Regressara arrasado, cheio de carraças, hepatites e outras enfermidades, com os pelotões reduzidos a metade, e, segundo as más-línguas de alguns frequentadores do Bento, deixara lá o dobro dos guerrilheiros.
Depois, o tenente-coronel levara o Batalhão para o Norte onde, exaustos, escorriam os meses que faltavam para dizer adeus à guerra. Centrado em Farim, dispusera-se em quadrícula com uma companhia em Cuntima, na fronteira com o Senegal, outra em Jumbembem, a meio caminho entre Cuntima e Farim enquanto a companhia de comando e serviços e a outra operacional ficaram sediadas em Farim. 
Disseram-lhes, ao alferes e ao capitão Marques, que aguardassem na Amura, uns dias, não sabiam quantos, até que houvesse transporte aéreo para Farim.

Fortaleza de Amura, Bissau. © Imagem em Luís Graça e Camaradas da Guiné.

Toda uma pequena vivenda térrea por conta dele, mala pousada a um canto. Dois quartos, um quarto de banho e uma cozinha com frigorífico. O calor invadia tudo, um calor diferente, com cheiro, húmido, a colar a roupa ao corpo. A água do banho, estranha, quente, com cor, a espuma agarrava-se à pele, não queria sair nem por nada.
Depois foi ver a Amura por dentro. Uma fortaleza antiga, numa pequena elevação, com uma praça ampla de casas térreas, pequenas, iguais umas às outras e árvores à volta, a fazerem sombra.
Combinara encontrar-se com os companheiros da viagem, o alferes Leite e o capitão Marques, numa esplanada de um café chamado Bento. Depois de percorrerem as ruas da baixa de Bissau, a marginal e pouco mais, acabaram o dia no Fonseca9 a ostras e cerveja. Nesse dia, o alferes bebera mais cerveja do que em toda a sua vida, no início até estranhara beber tanta, contou até dez garrafas das grandes, que era o tamanho padrão, depois habituou-se, no 2.º dia já não contou. E os primeiros dias foram passados assim, esplanada do Bento, almoço na Amura, sesta com a ventoinha no tecto a andar à roda que o calor era muito, passeio à tarde, ostras e cerveja, jantar outra vez na Amura, e depois na cama, a cabeça a acompanhar a ventoinha, a andar à roda. Amanhã às nove, aqui na Amura, um jeep leva-o ao aeroporto.
Mal dormiu, às 8 estava pronto, pequeno-almoço tomado, mala e saco na mão.

Outra vez para a Praça do Império, pelos vistos passava tudo por ali, depois o jeep guinou para a estrada do aeroporto.
De quem é aquela estátua, ali à esquerda? Honório Barreto? Quem foi? Também não sabe? Uma grande recta, casas indígenas de um lado e doutro, à esquerda a seguir a uma curva o Hospital Militar, o Batalhão de Engenharia, o quartel de Brá umas centenas de metros adiante, charcos de água e palmeiras por todo o lado e o aeroporto à vista. Boa sorte, meu alferes, despediu-se assim o cabo condutor. Um Dornier 2710 da Força Aérea aguardava na pista. Era uma pequena avioneta de um motor, os bancos da frente para o piloto e acompanhante, a traseira reservada a correio, malas, pequenos volumes, o que calhasse e coubesse.
Ao rumarem para norte, viu Bissau a ficar mais distante.

Zona de Farim. © Foto de Carlos Silva.

Seguiu o voo, as manobras do piloto, as primeiras fotografias do ar, as matas lá em baixo, misteriosas, pouco amigáveis.
Aterraram, pouco mais de meia hora depois, num campo em Farim. Uma pequena povoação junto a um rio11, casas de adobe rodeando outras, maiores, de aspecto colonial, e nuvens de pó de viaturas com militares a rodarem para as margens da pista.

Aproximação à pista de Farim. © Foto de Carlos Silva.

É o alferes que vem substituir o Monteiro, para Cuntima, não é? Estava a ver que nunca mais chegava, o Tenente-Coronel de cavalaria, de mão estendida, ar duro.
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Notas:
2 - Navio misto da Sociedade Geral
3 - Serviço Geral do Exército. Faziam a carreira a partir de praças. Imprescindíveis para o bom funcionamento do Exército.
4 - Quartel-General.
5 - Café-cervejaria, ponto de encontro dos militares aquartelados em Bissau ou dos que se encontravam em trânsito. Ficou também conhecida por 5ª Rep. por naquelas mesas se falar de tudo.
6 - Repartição do QG (Serviços de Pessoal).
7 - A Fortaleza foi fundada em 1696 pelo capitão-mor José Pinheiro. A reconstrução iniciou-se em 1753, sob o traço de Frei Manuel de Vinhais Sarmento, e teve continuação 13 anos mais tarde, sob a direcção do coronel Manuel Germano da Mata. Devido à pedra empregue na construção da fortaleza ser de origem ferruginosa, desgastando-se rapidamente com o tempo, a muralha teve que ser reconstruída novamente em 1946, era então governador o Almirante Sarmento Rodrigues. A fortaleza tinha, no seu interior, um terreiro quadrado com 150 metros sombreado por mangueiras, cujo fruto é muito saboroso.
8 - Sob o comando do Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, o Batalhão integrava a CCS e as C.ªs de Cav 487, 488 e 489. Arrancou de Estremoz, do RC 3, com a divisa "Sempre em Frente". A estadia na Guiné iniciou-se em Julho de 1963 e a comissão foi dada como finda em Agosto de 1965. Da actividade operacional, destaca-se a participação na operação "Tridente", na Ilha do Como, uma das operações militares de maior envergadura efectuadas pelas tropas portuguesas em todos os anos que durou a Guerra de África. Mas a acção do Batalhão não se resumiu a essa operação. Após o desembarque, com base em Bissau, desenvolveu várias acções na zona do Oio. Partiu para as Ilhas do Como, Caiar e Catunco em 14 de Janeiro de 1964 e só de lá saiu quando a acção foi dada por terminada, em 24 de Março de 1964. Passou então à quadrícula, assumindo, em 31 de Maio do mesmo ano, a responsabilidade do sector de Farim, que compreendia os subsectores de Cuntima, Jumbembem, Bigene e Farim e, a partir de 29 de Junho, o de Binta. Em 25 de Março de 1965 preparou-se para ocupar Canjambari (que estava dentro do sector à sua responsabilidade e que na altura estava nas mãos da guerrilha). Não foi uma acção fácil. Com a picada que ligava Jumbembem a Canjambari obstruída por enormes abatizes, emboscados e flagelados constantemente, apesar da vasta experiência das tropas, a ocupação só se deu por concluída em 31 de Maio de 1965. Em 15 de Junho o BCav 490 foi substituído no sector pelo Bat. Art. 733, tendo recolhido a Brá, onde ficou alojado até à data de regresso a Lisboa.
9 - Também conhecido pelo Solar dos 10.
10 - Servia para tudo, transporte de pessoal, correio, pequenas cargas, evacuações, reconhecimentos aéreos, posto de comando aéreo.
11 - Cacheu

(Continua)
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quarta-feira, 13 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14608: Blogues da nossa blogosfera (69): "De volta ao sul da Guiné", um artigo sobre Gadamael 1973, da autoria do Coronel Ref Manuel Ferreira da Silva, publicado na Revista "Mama Sume" da Associação de Comandos, reproduzido no Blogue da Tabanca do Centro

1. Com a devida vénia ao Coronel Ref Manuel Ferreira da Silva, autor do artigo; à Revista "Mama Sume" da Associação de Comandos, onde o artigo foi publicado e ao nosso camarada Miguel Pessoa, reproduzimos um Poste do passado dia 8 de Maio da Tabanca do Centro.


DE VOLTA AO SUL DA GUINÉ

No decorrer do nosso último convívio, no passado dia 27 de Março, tivemos o prazer de confraternizar com um novo camarigo, recém-chegado aos nossos encontros. Trata-se do Manuel Ferreira da Silva, Coronel Reformado.
Este camarada é um oficial de carreira vindo das escolas da Academia Militar, onde entrou em 1961. Como combatente comandou a 14.ª Companhia de Comandos em Angola e esteve na Guiné de Dezembro de 1971 a Novembro de 1973, nos Comandos Africanos em Bolama e em Gadamael.
Vem agora disponibilizar-nos o texto que se segue, artigo esse que foi publicado na revista da Associação de Comandos, "Mama Sume". Aqui divulgamos o referido texto, com a devida vénia ao autor e à revista da associação de Comandos, "Mama Sume", onde ele foi publicado.
A Tabanca do Centro







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Nota do editor

Último poste da série de 13 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13730: Blogues da nossa blogosfera (68): Quando dois desconhecidos se apaixonam (1): Início - Blogue Molianos, viajando no tempo (António Eduardo Ferreira)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14003: Agenda cultural (656): Lançamento, em Espinho, no próximo domingo, dia 14, do livro "As Memórias de um Comando", do nosso camarada José Carlos Teixeira. Editora: Ediserv, Porto



Convite que nos foi endereaçdo pelo autor, com pedido de publicação. O livro é editado pela Ediserv Editora, do Porto. 2014, 154 pp. Preço de capa: 15€.



Sinopse

Esta não é uma história de encantar... Mas é uma história real, uma história que fez parte da história de muitos portugueses, uma história que faz parte de todos nós.

As Memórias de Um Comando é um emocionante livro que nos embrenha na consciência e na alma de um jovem que abdicou da sua juventude para lutar por um país, voluntariando-se para ser Comando. Neste livro, o autor mais do que partilhar uma vivência na Guerra do Ultramar, partilha uma evolução de pensamento, um despertar de consciência, um abalar de ideais.

Um acto de coragem e de patriotismo que entra em metamorfose, à medida que se vai questionando, refletindo e transformando em cada cenário de guerra. (Fonte: Ediserv Editora)

Um excerto da obra podia ser lido aqui.


José Carlos Teixeira

Carlos Teixeira (ou Zé Carlos como é conhecido) nasceu em 1948, em Vouzela. Reside em Espinho há 64 anos, considera-se um filho da terra.

Voluntariou-se para os Comandos em 1969 e participou activamente na Guerra do Ultramar, em Angola.

Exerceu funções de relojoeiro e em 1974 começou a trabalhar no Casino Solverde, em Espinho, até aos dias de hoje. Atualmente é também Presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Salas de Jogos [STSJ], cargo que exerce com paixão e mestria desde 2009.

Aos 64 anos, completou o 12º ano pelo RVCC[, sistema nacional de  Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências,] e foi durante este processo de aprendizagem que escreveu As Memórias de um Comando, o seu primeiro livro. (Fonte: Edita-me).

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Nota do editor:

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13227: Camaradas da diáspora (9): Júlo Abreu, dos comandos do CTIG (Brá, 1964/66) à KLM, na Holanda, onde trabalhou 38 anos... Vem ao nosso IX Encontro Nacional, em Monte Real, dia 14

1. Júlio [Costa] Abreu, ex-1º cabo radiomontador do BCAÇ 506 (Bafatá) e ex-1º cabo comando, chefe da 2.ª equipa do grupo de comandos "Centuriões" (Brá, 1964/66) [, foto à direita, no seu quarto, em Brá]

Reformado da KML, vive na Holanda. Vai estar connosco no nosso convívio anual em Monte Real, dia 14 do corrente

Eis alguns dados do seu currículo:

(i) Data de nascimento: 30 julho 1942;

(ii) Signo: Leão:

(iii) Em maio de 1963 foi colocado na Escola Militar de Electromecânica para tirar o curso de Radiomontador;

(iv) Depois do curso, foi colocado no RI 2, em Abrantes, tendo sido mobilizado em rendição individual para o BCAÇ 506, estacionado em Bafatá;

(v) Chegou à Guiné em 17/1/1964, tendo sido pouco tempo depois transferido para as Oficinas Gerais do Batalhão de Transmissões no Quartel General em Bissau;

(vi) Devido ao seu espirito de aventura, resolve oferecer-se para os primeiros grupos de Comandos que se iriam formar na Guiné;

(vii) Frequentou o Curso de Comandos, tendo sido destinado ao Grupo Centuriões do Alf mil cmd Luís Rainha;

Júlio da Costa Abreu
(viii) Foi nomeado chefe da 2ª Equipa deste Grupo de Comandos;

(ix) Quando terminou a comissão de serviço, resolve ficar na Guiné, como técnico de rádio;

(x) Prestou assistência nos CTT às comunicações UHF para os telefones no interior da Guiné, tendo-me deslocado com frequência a Mansoa, Bafatá, Bambadinca e Bijagós;

(xi) Ao fim de uns anos resolve voltar a Portugal Continental, tendo trabalhado para o representante da J.V.C. e Ferguson;

(xii) No entanto como depois do à-vontade da vida livre da Guiné, não se sentia bem em Portugal e resolve emigrar para a Holanda aonde ainda hoje se encontra;

(xiii) Trabalhou como Técnico de Electrónica durante 38 anos na Companhia de Aviação Holandesa KLM da qual está presentemente reformado:

(xiv) Com o Luís Rainha e o João Parreira, fundou, em 27 de abril de 2010, o blogue Comandos da Guiné 1964-1966, de que é também coeditor;

(xv) Faz parte Tabanca Grande desde 23 de maio de 2008.  


Guiné > Bissau > Finais de 1965 > Numa esplanada da capital (Hotel Portugal?), da esquerda para a direita, Júlio Abreu (1º cabo), Virgínio Briote (alf mil) e Toni Ramalho (alf mil, mais tarde médico no Porto).

Fotos (e legendas):  © Júio Abreu (2008). Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13194: Tantas vidas (Gil da Silva Duarte / Virgínio Briote) (1): Tantos anos depois... Recordar, porquê ?




Oeiras, Amadora > Academia Militar > Aquartelamento da Amadora > 1963 [Recorde-se que a Academia Militar toma esta designação em 1959, e tem o seu antecedente histórico na Escola do Exército, fundada em 12 de Janeiro de 1837 pelo Marquês de Sá da Bandeira. A sua sede é no Paço da Raínha ou Palácio da Bemposta, na Rua Gomes Freire, em Lisboa,. com um polo nma Amadora, desde 1959

O município da Amadora foi cirado em 11 de setembro de 1977, por secessão das freguesias da Amadora e da Venteira, do nordeste do concelho de Oeiras. Entre os seus símbolos, contam-se o Aqueduto das Águas Livres, bem como os campos de aviação que tiveram tanta importância na emergência da aviação em Portugal, sendo que ainda hoje o Estado-Maior da Força Aérea Portuguesa se situa no concelho, na freguesia de Alfragide. Na foto acima, veem-se os primeiros prédios da Reboleira, mais tarde freguesia, hoje extinta com a divisão municipal de 2013].

Foto: © Virgínio Briote (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]


1 Mais um texto do Virgínio Briote, seguramente rapado do fundo do seu "baú"... Foi-nos enviado em 21 do corrente. Vai  por certo merecer a atenção e o interesse daqueles que, como eu, reconhecem nele uma sensibilidade especial para recordar o passado, tentando em vão esquecê-lo.

Lembre-se que o Virgínio Briote, nosso coeditor (,jubilado por razões de saúde, ) nasceu em Cascais, foi alf mil em Cuntima, CCAV 489 / BCAV 490 (jan/mai 1965); fez o 2º curso de Comandos do CTIG; comandou o Grupo Diabólicos (Set 1965 / set 1966); regressou a casa em janeiro de 1967; trabalhou numa multinacional da indústria farmacêutica; é casado com a Maria Irene, ptofessora do ensino secundário reformada; e vão estar, o casal, em Monte Real, connosco, no IX Encontro Nacional da Tabanca Grande.

Durante os primeiros anos do nosso blogue, o Virgínio Briote foi um membro da nossa Tabanca Grande (ou tertúlia, como então lhe chamávamos), fidelíssimo, dedicado, empenhado, ativo, produtivo, ao mesmo tempo que ia produzindo e publicando textos, pessoalíssimos, belíssimos, no seu blogue Tantas Vidas: as dele, as do Gil Duarte, as da Teresa, sempre a Teresa, as do Capitão Valentim, as do Capitão Leão, as de uma geração inteira, de homens e mulheres, que amaram e desamaram, viveram e morreram, lutaram e perderam, a Dora, a Clara, a Matilde, o Leonel, o Manaças, o Marcolino da Mata e tantos outros, figuras de carne e osso que povoaram Brá, Bissau, Mansoa, o norte, o sul, o leste, as bolanhas, as picadas, as matas da Guiné... Foi o retrato de uma geração que ele construiu , como um puzzle, a partir da sua experiência, como comando e como homem, no TO da Guiné, nos anos de 1965/67...

Temos pena que, mais recentemente, ele tenha decidido desativar o seu blogue, Tantas Vidas (*). Matei por isso saudades, ao ler, de um só fôlego, o notável texto que se a seguir se reprodu, e que julgo ser inédito..

Ainda não perdi, totalmente, a esperança de um dia ainda conseguir publicar uma antologia dos seus textos.
Mas será que ele vai aceitar o meu desafio (que é sobretudo um pedido, de um leitor, amigo e camarada que o admira) para ele ir alimentando, discreta e pausadamente, esta série Tantas Vidas ?... Não combinei nada com ele nem posso assegurar a continuidade da série...

Não se trata de ressuscitar o seu blogue mas de dar a conhecer, a uma público, mais vasto, o dos seus camaradas e amigos da Guiné, sobretudo os que chegaram mais tarde à Tabanca Grande alguns dos melhores textos que ele na altura produziu (Hoje o blogue tem 6 vezes mais membros registados do que em 2006).

Se publicarmos pelo menos 6 postes está justificada a razão de ser da sére,,, E o Virgínio Briote, ou melhor, o seu heterónimo (Gil Duarte ou Gil da Silva Duarte) ainda tem muita cousa guardada no "baú"... (LG)


2. Tantas vidas (Gil da Silva Duarte / Virgínio Briote) (1) > Tantos anos depois. Recordar, porquê?

por Gil da Silva Duarte 

[pseudónimo literário de Virgínio Briote, aqui na 5ª Rep, Café Bento, Bissau, maio de 1965 ]  


Sou o sargento-mor R. F. do Arquivo Histórico-Militar, estou encarregado de fazer a história dos Comandos. O seu nome tem-me aparecido aqui em relatórios de operações e numa série de documentos. Tenho contactado com várias pessoas que fizeram a guerra da Guiné consigo, o sargento Mário Dias, o furriel João Parreira, o Marcelino da Mata e outros.

A razão do meu telefonema é saber se dispõe de documentação desse tempo e que me possa ajudar a reconstituir a história. Dos anos mais recentes tenho tudo, agora dos primeiros anos da formação dos comandos falta-me informação documentada. Que já tinham passado muitos anos, quase quarenta, que arrumara tudo em casa do pai, na aldeia de Fonte Seca, lá para o norte. Que, quando lá fosse, procuraria o material que tinha trazido e se o encontrasse, teria muito gosto em o entregar ao Arquivo.

Quando se voltou a sentar em frente ao computador, os olhos saltaram pela janela para o movimento da avenida. Por uns momentos, muita coisa começou a andar para trás.

As guerras são muito monótonas, não há variedade, sempre a mesma história, tiros, granadas, feridos, mortos. Está tudo contado há muito tempo. Porquê recordar?

Os factos das guerras têm pouco interesse, parece-me, são sempre iguais, vulgares. Afinal, uma batalha é o resultado de um trabalho de alguns dias, o planeamento. Depois é o estardalhaço de meia dúzia de minutos, estrondos, rebentamentos, gritos de ataque e de dor. Só isto.

Outra história é o que as guerras fizeram das pessoas, as que intervieram e as outras.

Fornadas de jovens, arrancados ao trabalho e ao estudo, espalhados pelas Mafras e Taviras do País, encaixotados nos comboios, nas camaratas, nos camarotes ou nos porões sujos e escuros dos Uíges, de G3 na mão pelas matas, savanas, tarrrafos e bolanhas, corações aos saltos, T6 e Fiats G-91 no ar, helis à procura de locais para pousarem, macas com feridos e mortos, os regressos aos abarracamentos, partir para outra, sempre assim, até ao fim dos dois anos. As guerras são todas assim, Comos, Madinas, Guidages, Guilejes, Gadamaeis foi tudo igual, já está tudo contado.

O que está pouco contado é o que se passou a seguir. O regresso, o esquecimento, o deles não, que bem queriam mas não conseguiam. O sentimento de culpa por não terem desertado passou a viver em muitos deles. E, valha a verdade, tudo foi feito para que vivessem assim, esquecidos. Para que aqueles jovens que deram tudo o que tinham, se envergonhassem de terem defendido um governo colonialista. Foi o que Portugal lhes deu, interrompeu-lhes as vidas, ainda no começo, depois despacharam-nos com uma guia de marcha para as famílias, que tomassem conta deles.

Tempos depois, entrou no escritório que o pai tinha na casa de Fonte Seca. Olhou para a papelada acumulada, mais de quarenta anos de pó, do pai e dele. Gavetas para fora, virou-as ao contrário. Papéis amarelecidos, fotos daquele preto e branco com muitos anos.

Tudo fora da ordem, coisas misturadas, um papel com uns apontamentos à mão, numa letra de alguém que devia estar com uma pressa danada, uma data de Janeiro de 65, uma foto logo a seguir com quatro camaradas sorridentes, empoleirados numa barcaça do navio, as fardas novinhas, ainda com os vincos a notarem-se nos calções, as pernas e os braços muito brancos, o sol a dar-lhes com um mar calmo à volta.

E logo a seguir outra foto, com um deles a escorrer sangue que foi com certeza vermelho por uma daquelas pernas abaixo, 12 de Setembro de 65, granada, só isso nas traseiras da foto.

Há pretas bonitas aí onde estás? Dizem aqui que elas andam nas ruas sem soutien, já viste alguma, uma madrinha de guerra curiosa. Uma boina que já foi preta, um emblema de plástico, uma Playboy com a Marilyn na capa, as folhas da revista com sinais de muito uso, muitas mãos passaram por ali, pelo menos um pelotão inteiro, corneteiros e tudo.

Um papel azul de 35 linhas, oficial, do Exército Português, DESPACHO, o título a meio, meia dúzia de linhas muito bem arrumadas, que é para aprenderes a respeitar a ordem pública. Mais uma foto, uma balanta, sorridente, uma cabaça com água na cabeça, as mãos a segurá-la, a água, sorridente também, a escorrer-lhe pelas mamas empinadas, mais apetitosas ainda.

Uma clareira, o sol a inundar a imagem, um pelotão em fila de pirilau, uns a olhar para o chão, outros para muito longe dali. Um relatório de operações, um ataque fulminante das NT desbaratou totalmente as forças IN que os emboscaram. Perseguidos pelo pelotão do alferes T., foram deixando para trás o material que abaixo se indica. E indicava-se. Uma granada de mão ofensiva, um porta-cartucheiras, cerca de 100 munições de vários calibres e mais material não especificado.

Uma carta de Bissau, uma foto com uma dedicatória, para nos momentos de solidão te lembrares de mim. E outra foto, uma mesa cheia de garrafas de cerveja, e um gajo com cara de sono, olhar morto, apalermado para a câmara.

E mais papéis. Outro documento do Exército, tão oficial como o outro, com o título a meio, PUNIÇÃO e mais uma série de linhas muito bem organizadas, letras a baterem certinhas, como se tivesse sido um designer a arrumá-las. Meu querido filho, nesta altura que te escrevo já deves estar a fazer as malas para te vires embora. Embora ainda não, mãe, há ainda muita tralha para pôr na ordem.

Outro documento do Exército, letras muito bem organizadas, o s também, sempre a insistir em querer ficar um pouco acima das outras, mas o título sempre a meio, LOUVOR, estás a ver como estás a aprender a respeitar a ordem estabelecida? Não tarda e estás feito um cidadão como deve ser, cumprir primeiro, cumprir segundo, cumprir terceiro e por aí fora.

Talvez depois tenhas um prémio, quem sabe?

Escrevo-lhe esta para lhe dar conhecimento que o meu marido, chamado Roberto, soldado do seu grupo, já não me escreve vai para dois meses e meio. Eu sei que não lhe aconteceu mal nenhum porque as más notícias correm muito depressa, não é? Peça por tudo ao meu marido que me escreva, por amor de quem lá tem, senhor alferes, que eu sei que é um homem direito.

Sabes onde te estou a escrever? Na cama, com a tv em frente, a ver o diário da volta, os ciclistas, serra da Estrela acima, com um calor que não imaginas. Fui sair depois do jantar, apanhar um pouco de fresco até à baía, encontrei o idiota do P., não me larga nem por nada, vim logo a correr para casa. O calor, aqui dentro de casa, pega-se. À falta de um balde de gelo onde eu coubesse, meti-me no chuveiro, e deixei-me estar com a água a correr até a mãe bater à porta. Nem roupa nem nada, estou assim, com o livro em cima dos joelhos, a servir de secretária. Ainda te lembras do pôr-do-sol no Monte Brasil? E daquelas tardes loucas nos Biscoitos, os dois sós, sem roupa?

Ordem de serviço, abates à carga, transferências, punições, louvores, comissões dadas por finda, prorrogações de comissão por mais um ano. Mais e mais fotos, uma cópia da operação Vamp, setas a vermelho e verde no croqui a papel vegetal. Que é que interessa agora se este croquis mente, se a entrada para o acampamento não foi por aí, mas sim pelo trilho que vem do Senegal?

Star 6.35, modelo CU. Cortesis de Star-Firearms
Estojo, que é isto? A Star do pai, uma 6,35. Pegou nela, as seis balas no carregador, a cor dos cartuchos, os projécteis prateados, como se tivessem saído ontem da fábrica! Veio-lhe à memória a jura que fizera a ele próprio, ainda na Guiné, de nunca mais voltar a pegar numa arma.

Uma data de horas a separar a papelada, cartas, fotografias, tanto tempo passado e parecia-lhe ter sido ontem. Vieram as recordações, uma, depois outra, uma catadupa a seguir e a Guiné a voltar à tona do charco.

No dia seguinte, num princípio de uma tarde de Janeiro, com a Star do pai no bolso do blusão, montou na bicicleta e foi pelo caminho fora, a caminho da Barca do Lago.

O areal imenso de há quarenta anos estava muito mais pequeno. Seria assim ou os olhos já não eram os mesmos? Bicicleta encostada a um eucalipto, meteu-se pela areia fora, sentou-se em frente à casa dos Reids. Uma história infeliz nos meados dos anos 50 veio-lhe à lembrança. O dono daquela casa magnífica, nunca se soube porquê, metera uma bala na boca.

Pegou na Star, esteve uns momentos a mirá-la, depois lançou-a, bem para o meio das águas. Sentado, uma tarde num instante, reviu a vida toda para trás, os Rasas todos que conhecera, ele próprio. O Cávado, em frente, cheio de preguiça, sem vontade de se perder no mar.

Gil da Silva Duarte.

Às 5 horas de uma tarde cheia de sol, em Janeiro de 2005

_____________

Nota do editor:

(*) Vd, I Série > Poste de 10 de fevereiro de 2006 >  Guiné 63/74 - DXIX: Tantas Vidas, o blogue do nosso camarada Virgínio Briote

(..)  Temos mais um camarada nosso que se tornou bloguista: o Virgínio Briote (ex-alferes miliciano comando, Brá, 1965/67). É com muita satisfação ( ) que vejo o nosso VB a dar os primeiros passos na pilotagem do seu próprio blogue... A gente já sabia que ele tinha o bichinho da escrita. A blogosfera é um outro passo a seguir, lógico e natural... Sentimo-nos honrados por ele ter andado também connosco, nestes últimos meses...O VB (...) comunicou-me que o blogue foi uma surpresa e uma prenda dos filhos: que ternura!... O blogue chama-se Tantas Vidas.

"Estou a aproveitar o espaço para treinar, relato pequenas histórias do dia a dia e vou publicar algumas partes dos meus dias na Guiné". Desde 6 de Fevereiro de 2006, o italiano (sic) já lá pôs uma meia dúzia de boas estórias na categoria Guiné.

Tem outra secção (ou categoria) chamada Contos Curtos, altamente promissora (Que estória, de primeira água, a do Inácio, militante delicado!)...

O nosso VB, um andarilho do mundo, promete: talento, sensibilidade, fino trato, sentido de humor, capacidade de efabulação, matéria-prima, mundo percorrido, vidas vividas... nada lhe falta. Tivemos aqui o privilégio de publicar algumas peças dele, que são de antologia...

Espero que ele continue a aparecer por aqui, quanto mais não seja em patrulha... de nomadização. Boa saúde, boa navegação, camarada! E que o teu belo exemplo contagie outros amigos e camaradas. Por que viver e escrever... é preciso!

PS - Adorei o poste 1. O Caminho para lá: deliciosa descrição da viagem até Guiné, no Alfredo da Silva, com as peripécias do Capitão Matos e do Alferes Gil no Funchal, no Mindelo, em Bissau... Cinco estrelas, VB!

[Estes links foram descontinuados, com a desativação do blogue Tantas Vidas] [LG]

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13177: Efemérides (157): Como é que a revista Plateia e o seu correspondente local, João Benamor, 1º sargento e cartunista, "viram" o baile dos finalistas da Escola Técnica de Bissau em 5/6/1965... e as perturbações da "ordem pública", provocadas por uma "bando de energúmenos", possivelmente influenciados pelos relatos das tropelias dos "teddy boys" de Liverpool... (Virgnio Briote)







Recorte(s) da página da revista "Plateia", numa das suas edições semanais (c. julho de 1965), onde na crónica de João Benamor, 1º sargento do exército, e conhecido cartunista, se dá um inusitado destaque ao "baile dos finalistas", na Associação Comercial  (*)... Os desacatos que ocorreram são vistos como um "caso de polícia". Não há nenhuma referência a "militares", muito menos a "tropas de elite"... Mas, lembra o cronista, os desacatos continuaram na via pública e, o que era mais grave, "a uma dezena sde metros da entrada principal do palácio do governador provincial", gen Arnaldo  Schulz (1910-1983), o primeiro a acumular os cargos de governador e comandante chefe (1964-1968)...

Presumimos que não tenha havido qualquer intervenção da censura, já que a revista "Plateia" deveria ser considerada "inócua"... Era, todavia, uma das revistas da metrópole mais lidas pelos nossos militares no Ultramar.


Imagem digitalizada e gentilmente disponibilizada pelo Virgínio Briote, um histórico do  nosso blogue (um dos primeiros comandos do CTIG, Brá, 1965/66), nosso editor jubilado, e que participou nestes acontecimentos... Titulo da responsabilidade do editor. Edição de L.G.

[Foto à esquerda: fur mil  João Parreira, cap milç  Maurício Saraiva, alf mil Virgínio Briote e fur mil Fernando Marques de Matos... Em BRá, setembro de 1965...Foto de V.B. O Matos, comandante de secção do Gr Cmds Diabólicos é, nem mais nem menos, um conterrâneo meu, lourinhanense, grande amigo do meu pai e meu amigo recente, que me fala sempre com grande apreço e admiração do nosso VB, seu antigo comandante].


PS - A referência do correspondente da "Plateia", em Bissau,  aos "teddies", "teddy-boys", britânicos, não deixa de ser hilariante!... Sobre a Plateia, "revista semanal de espectáculos" ver aqui:  publicou-se desde 1951 até 1986:

(...) Revista semanal (no início com periodicidade quinzenal), com um formato generoso, com muitas fotografias, a preto-branco, e diversos artigos relacionados com o mundo do espectáculo nacional e estangeiro. Na sua fase inicial tinha normalmente 32 páginas e mais tarde passou para as 70. Na época e durante muito tempo, era uma das janelas onde era permitido contemplar, subtraídas das suas roupinhas exteriores, as mais belas mulheres do mundo do entretenimento, da música, cinema e televisão. Eram frequentes as capas ou posters centrais (separatas) com estrelas de Hollywood.

A “Plateia” teve um percurso de grande sucesso, sobretudo nas primeiras duas décadas da sua publicação, mas terminou oficialmente em 1986, já com mais de um milhar de edições, certamente pelos problemas decorrentes das grandes alterações do mercado editorial do género. (...)

Embora semelhante em muitos aspectos na matriz editorial, a “Plateia”, mais elitista, até porque mais cara, fez um percurso de sucesso lado a lado com outra estrela da companhia, a revista “Crónica Feminina”, lançada uns anitos mais tarde (1956). Todavia, também esta acabou por morrer pelos anos 80. (...)


___________________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de maio de 2014  > Guiné 63/74 - P13176: Efemérides (153): Ainda a propósito do baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau na Associação Comercial, Industrial e Agrícola, em 5 de junho de 1965: Apanhei 3 dias de prisão simples, dados pelo comandante militar, brig Gaspar de Sá Carneiro (Virgínio Briote, ex-alf mil cav, cmd, cmdt Gr Cmds "Os Diabólicos", CCmds / CTIG, Brá, 1965/66)

Guiné 63/74 - P13176: Efemérides (156): Ainda a propósito do baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau na Associação Comercial, Industrial e Agrícola, em 5 de junho de 1965: Apanhei 3 dias de prisão simples, dados pelo comandante militar, brig Gaspar de Sá Carneiro (Virgínio Briote, ex-alf mil cav, cmd, cmdt Gr Cmds "Diabólicos", CCmds / CTIG, Brá, 1965/66)


Guiné > Bissau > Quartel General > 24 de agosto de 1965 > Despacho, em papel azul,  do brigadeiro Gaspar de Sá Carneiro,  comandante  militar, punindo com 3 dias de prisão simples o alf mil inf Virgínio Briote, da CCAV 489 [, e na altura, comandente do Gr Cmds "Os Diabólicos", pela sua participação nos incidentes ocorridos na Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau, por ocasião do baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau, em 5 de junho de 1965. Ao alto, no lado esquerdo, o comandante da CCmds / CTIG, sediafa em Brá, o cap art Nuno Rubim, dá conhecimentoao interessado, em 2/9/1965,  do despacho do Comandante Militar.Em baixo, o Virgínio Briote, no mesmo dia, decalara que "tomou conhecimento"...


Fonte: Imagem digitalizada e disponibilizada pelo Virgínio Briote (2014). [Edição e legenda: LG]

1.Troca de emails, com data de ontem, entre o Virgínio Briote 
e o editor L.G.:

(i) 1º mail do Virgínio Briote [, foto à direita, Brá, set 1965]:

Caros Camaradas,

Fiquei muito surpreendido quando hoje ao abrir o blogue deparei com a história passada em Junho de 1965 no baile dos finalistas da Escola Técnica de Bissau. (*)

Passadas estas décadas tenho a dizer que não me sinto nada confortável por ter interrompido a festa dos finalistas. E para completar o assunto envio-vos o despacho do Brigadeiro Sá Carneiro e uma imagem da Plateia daqueles anos, em que o correspondente em Bissau, um 1º Sargento, relata os acontecimentos, documentos que encontrei ainda há poucos meses.

Um abraço a todos do


vb

(ii) Resposta do editor L.G.:

Meu caro Virgínio:

Há coisas nas nossas vidas passadas de que hoje nos arrependemos. Mas eu procuro recusar essa perspetiva. Arrepender ? Não faz sentido... Com 50 anos de diferença, não temos nem podemos ter a mesma leitura dos factos... Felizmente, não houve vitímas mortais (como acontecerá, dois anos depois, entre camaradas páras e fuzos!...) nem, espero bem, reações de stress póstraumático (RSPS)...

Caro amigo e camarada, são os nossos "pecadilhos" de juventude... Quem não os teve, é porque não viu nem viveu...

Os documentos que me mandaste e que eu vou apreciar, posso publicá-los em teu nome ?

Outra coisa: vejo que a saúde está melhor e que vamos ter o privilégio da vossa presença, tua e da Irene, em Monte Real, no dia 14 de junho... Eu cá "andando e recuperando" da minha artroplastia total da anca da perna direita...

Um xicoração. Luis

(iii) 2º mail do Virgínio Briote:

Viva Luís,

Podes publicar, claro. Quando há um ano vendemos a casa que era dos meus pais, perto de Apúlia, tive que arrumar e dar destino à tralha toda que lá havia. E numa mala grande encontrei mais alguma papelada da Guiné. Nem sei como lá foram parar esses papeis. Julgo que a última vez que os vi foi em Bissau...

Vamos gostar de vos ver em Monte Real. Que te adaptes bem às novas suspensões.

Um abraço

vb

PS - Também tenho a ideia que o director da Escola Técnica de Bissau era o Dr. Amaro Pereira (o António Estácio deve tê-lo conhecido bem). Foi este senhor que pôs água na fervura, minutos depois da nossa entrada, e num gesto de grande generosidade aceitou a nossa presença nos trajes em que nos encontrávamos. E eu em conversa com o Godinho lá o convenci a ficarmos para uma dança, agradecer e sair. E não me lembro de ter visto ou ouvido alguém do nosso grupo a discordar. O problema foi depois, fomos ultrapassados pelos acontecimentos e a situação ficou incontrolável.



Guiné > Bissau > Associação Comercial, Industrial e Agrícola > 5 de junho de 1965 >O baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau. Imagem da revista Plateia, de julho de 1965, digitalizada e gentilmente cedida pelo Virgínio Briote.

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Nota do editor:

Vd. poste anterior da série > 21 de maio de 2014 >  Guiné 63/74 - P13171: Efemérides (152): O baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau na Associação Comercial, Industrial e Agrícola, em 5 de junho de 1965: "Alto lá e pára o baile!" (depoimentos de Virgínio Briote, João Parreira e Luís Rainha)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13171: Efemérides (155): O baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau na Associação Comercial, Industrial e Agrícola, em 5 de junho de 1965: "Alto lá e pára o baile!" (depoimentos de Virgínio Briote, João Parreira e Luís Rainha)



Guiné > Bissalanca > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole.


Marcelino da Matam, então 1º cabo,  é o primeiro da esquerda, na segunda fila, de pe.  O alf mil Briote é o segundo, a contar da esquerda, da primeira fila. O Capitão Rubim (hoje cor art na reserva) é o 6º da primeira fila, também a contar da esquerda.

Guiné > Bissalanca > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole. São essencialmente elementos do Gr Cmds Diabólicos, de que era comandante o nosso querido amigo, camarada, grã-tabanqueiro e editor (jubilado) Virgínio Briote, para quem mandamos um xicoração fraterno e que esperemos reencontrar em Monte Real, no dia 14 de junho próximo.


Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitios reservados [Edução: LG]


1. Vai fazer 50 anos, para o ano, o célebre baile dos finalista da Escola Técnica de Bissau (e não propriamente do Liceu  Honório Barreto), que ficou bem gravado na memória de alguns dos camaradas que pertenceram aos comandos do CTIG (Brá, 1965/66) como foi o caso dos nosso grã-tabanqueiros Virgínio Briote (, um histórico do nosso blogue, como autor e coeditor), João Parreira e Luís Raínha...

O Virgínio e o João já publicarm, na I Série, em 2005, a sua versão dos acontecimentos dessa noite, em que um grupo de militares, comandos e outros, forçaram a entrada no baile, por vol,ta das 2 h da manhã, e travaram-se de razões com os organizadores.  Os desacatos que se seguiram obrigaram à intervenção da Polícia Militar e da PSP. No final, acabou tudo à boa maneira portugesa, com umas porradas para uns bodes expiatórios e pedidos de desculpa do governador Schulz à Associação.

Não nos compete julgar o comportamento de nenhuma camarada nosso, de acordo com o espírito e a letra das nossas  normas editoriais.  Cenas destas passaram-se na metrópole, envolvendo civis e militares. Mas. neste caso, estamos num território em guerra, e numa cidade, Bissau, ainda em pleno desenvolvimento, mas com sinais de crispação entre os militares, metropolitanos, e a elite crioula...

Juntamos aqui 3 depoimentos, de camaradas nossos que estavam lá nessa noite: além do Virgínio e do João, o Luís Rainha (que é também o fundador., administrador e editor principal do blogue Comandos da Guiné- 1964 a 1966, co-editores: Júlio Abreu e João Parreira, os três também membros da nossa Tabanca Grande).

Os acontecimentos tiveram lugar na Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau, mesmo nas barbas do Governador Arnaldo Schulz.

Não encontrámos até à data nenhuma versão da parte dos civis,  organizadores do baile ou da direção da associação, muito menos do PAIGC (que ocupa hoje este edifício, de resto o melhor edifício da Bissau colonial, segundo a conceituada especialista em arquitetura colonial  estadonovista, a Ana Vaz Milheiro, já aqui vátias vezes falada).

Não sabemos de eventuais ligações, nesta época, ao PAIGC; por parte da direção ou de alguns membros dos corpos sociais da Associação Comercial e Industrial de Bissau, como parece insinuar o Luís Rainha no seu depoimento. O EliséeTurpin foi secretário-geral desta  Associação, de 1973 a 1976,  e não em 1965 (como já escreveu algures o Virgínio Briote), O que é mais espantoso é como é que o homem conseguiu escapar às malhas da PIDE/DGS, vivendo à luz do dia em Bissau... Nunca foi preso... Afinal tratava-se, nada mais nada menos, de um dos fundadores do PAIGC, em 1956!... Só há uma explicação, quanto a mim: a escola de resistência do PCP-Partido Comunista Português, de que o Elisée Turpin também era (ou tinha sido) militante...

Esta junção dos três textos, para além de uma homenagem aos seus autores (e muito em particular ao nosso editor jubilado Virgínio Briote que superou um grave 'roblema de saúde, do foro oftalmológico, ainda não há muito tempo) , é também uma forma de dar a conhecer melhor, aos nossos leitores mais recentes (ou "piras"),  o ambiente que se vivia em Bissau, em meados de 1965,  no tempo do Arnaldo Schulz, o general que antecedeu o António Spínola.



Guiné > Bissau > s/d > Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 144". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal). O melhor edifício da cidade, segundo Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura colonial estadonovista. É hoje sede... do PAIGC!

Foto: © Agostinho Gaspar / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine   (20q0). Todos os direitios reservados [Edução: LG]



Guiné > Brá (?) > Setembro de 1965 >  Virgínio Briote, ao centro, tendo à sua esquerda o Marcelino da Mata e o Azecedo e *a sua direita o Black e o Valente

Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitios reservados [Edução: LG]


(i) A versão (ligeiramente ficcionada) do Virgínio Briote
ex-alf mil, comando, cmdt do Gr Cmds
Diabólicos (CTIG, Brá, 1965/66)

[Os parênteses retos, em itálico,  são da responsabilidade do editor,  LG]

Morreu um tipo de um país qualquer, o Salazar decretou 3 dias de luto e lá estamos nós a ouvir música de mortos com a nossa bandeira a meia haste. Custa-me engolir estas histórias quando os nossos mortos estão a ser ignorados.

Fala-se no próximo baile de finalistas, que vai ser uma festa de arromba! Alguns dos nossos vão roncar com as namoradas ou com os arranjinhos. O Uva   [, João Parreira,] anda todo satisfeito, até o Quintanilha, aquele alferes dos páras, mandou vir da metrópole um fato de cerimónia.

Quando estive de férias na metrópole logo a seguir à formação dos grupos, os Fantasmas accionaram uma mina e foi o que se sabe, 9 dos nossos já lá estão. Entre eles,  o meu grande amigo Artur. Morrem-nos 9 homens e a Emissora Nacional continua a twist e ié-ié. É isto que me custa engolir, estão a ouvir? E ainda por cima, cabo-verdianos e alguns sectores guineenses não vêem com bons olhos a nossa presença nas festas deles!

Mas que raio estava aqui a fazer? A Guiné não lhe estava a dizer nada, não a sentia como sua, até se sentia um intruso. Até com os civis brancos, poucos, duas dúzias se tanto, sentia-se sem convite.

Na esplanada do Bento, a 5ª Rep, como também era conhecida , bebia cerveja com mancarra, num grupo de 5 ou 6 comandos e páras. Um terá dito que naquela noite, na Associação Comercial de Bissau, havia o baile dos finalistas do Liceu [,  ou melhor, Escola Técnica de Bissau]. Outro lembrou-se de perguntar se alguém recebera convite. Eu não, tu não, aquele também não…Ninguém se lembrou de nós, como pode ser? Queres ir?

Dentro da Associação, no enorme salão de baile, finalistas e familiares todos animados a dançarem, com o Toni ao piano. Quando os viram entrar em fila, alto lá e pára o baile!... Depois, ninguém soube bem como tudo começou…

A princípio, as frentes pareciam bem delimitadas, os participantes em festa de um lado e a meia dúzia de intrusos do outro. Com o decorrer das hostilidades, as duas partes em confronto clarificaram-se ainda mais. Entre vivas ao camarada Presidente Amílcar, um pelotão da PM  entrou por ali dentro, despachou tudo o que lhe apareceu pela frente, trinta e tal tipos com escoriações para o hospital, a polícia civil e a pide também metidas. Vidros e loiças em cacos, cadeiras e mesas partidas, uma noite que nunca mais acabava.

Mesmo em frente ao Palácio do Governo, onde, soube-se depois, da janela, o Governador [, gen Arnaldo Schulz,] via aqueles gajos darem-lhe cabo da psico. Uma vergonha!

Os acontecimentos na Associação Comercial alteraram o ambiente na cidade. A desconfiança entre a população negra, cabo-verdiana e a tropa, os nervos crispados, a porcaria mais ou menos submersa, subiu tudo. Tentava-se levar a vida normal, mas via-se pouca gente nas ruas, sobretudo à noite. A PM aumentara os patrulhamentos. O PAIGC, como lhe competia, aproveitava e tirava dividendos.

Nos dias a seguir ao sucedido choveram exposições no Palácio, sete, dissera todo cheio de importância o ajudante de campo do Governador. O General Shulz recebera numerosas individualidades civis, apresentara desculpas formais à Associação Comercial e aos finalistas, prometera pagar os prejuízos, tomar providências enérgicas, o habitual nestes casos.

Em Brá, o capitão [, da CCmds / CTIG, Nuno Rubim,]  interrompeu os desenhos que estava a fazer quando o viu entrar. Começou por lhe dizer que as saídas para a cidade estavam proibidas. Depois, pediu-lhe explicações. Que se tudo tinha acontecido como se contava, que não tivesse dúvidas que haveria consequências. O Governo da Província estava a ver o programa de pacificação a andar para trás, que aguardasse o auto de averiguações, que era tudo, chutara o capitão, cada vez mais longe dele e dos outros. Logo a seguir deu-lhe ordem para ir para o Xitole, o grupo deveria manter-se lá até nova ordem, sem mais detalhes. Bater a zona, procurar o IN, dar-lhe caça, para que é que havia de ser?

Embarcaram num Dakota até Bafatá, depois apanharam boleia numa coluna auto que os levou para Fá, rumo ao Xitole, numa coluna a abarrotar de abastecimentos.

Até Fá Mandinga o percurso foi-se fazendo. Depois, até ao Xitole, foram sempre debaixo de chuva, os quilóemtros nunca mais acabavam, as viaturas civis que aproveitaram a boleia não estavam preparadas, metiam-se na lama até à carroçaria. O Corubal parecia o Atlântico quando o atravessaram. Chegaram no outro dia à noite, com os reabastecimentos reduzidos a metade, alguns destruídos pelas águas, outros desapareceram, ninguém soube dizer como.

Mantiveram-se lá quase 3 semanas, contactaram com o IN nas proximidades do Galo Corubal, em Satecuta [, subsetor do Xitole, na maregm direita do Rio Corubal]  , sem consequências para além de trocas de tiros à distância.

Da estadia no Xitole o que os marcou mais foi a chuva. E o toque a silêncio, tocado à noite por um profissional da corneta. Um solo de requinta, de arrepiar!

Percurso inverso, quase a mesma história, com a diferença de ter sido feito a pé até Bambadinca.

Dias depois em Brá, um capitão procurou-o, queria ouvi-lo para o tal processo que estava a decorrer, já tinha ouvido os outros, só faltava ele. O que tinha acontecido, como, quando, porque é que, quem fora o cabecilha, leia, assine aí em baixo, alferes Gil Duarte [, alter ego do autor.,]se estiver de acordo.

À noite fora até Bissau, encontrar-se com os companheiros do costume. Passaram-lhe para as mãos a Plateia, uma revista de cinema que saía em Lisboa. Folheou-a, os olhos na Brigitte Bardot a fazer festas no focinho de um burro, um pé da Sofia Loren num banco a tirar a meia preta com um tipo qualquer deitado numa cama, à espera. Parou numa página. Crónica da Guiné na Plateia, ora deixa ver! Uns arruaceiros tinham invadido as instalações da Associação, interromperam a festa dos finalistas e partiram tudo, à boa maneira dos teddy-boys de Liverpool e Manchester, escrevia escandalizado o correspondente [, que assinava Joaão Benamor]. Olharam uns para os outros, calados.

Fica assim, perguntou alguém? Que não, que era melhor falar com o correspondente, esclarecê-lo, tirar-lhe as dúvidas. Bissau era pequeno, foram até à esplanada do [Café] Bento [, a 5ª Rep], disseram que ele devia estar lá para cima, no café Império.

Encontraram-no, estiveram com ele, explicaram-se uns aos outros. Não foi logo na Plateia seguinte, mas a rectificação leram-na dois meses mais tarde, acompanhada de um cartão com os melhores cumprimentos.

Entraram no gabinete, fizeram-lhe a continência e puseram-se os 5 em linha, aprumados [, 2 alferes e 3 furrieis, todos dos Cmds / CTIG]. O Brigadeiro Sá Carneiro, Comandante Militar, mexia nuns papéis em cima da secretária, não encontrava, abriu gavetas, ah, estão aqui, satisfeito. Quando levantou os olhos para eles, mudou de cara.

Ora bem, meus senhores, antes de mais, devo manifestar-lhes a pena que tenho de os ter aqui nestas circunstâncias. Já tive convosco manifestações de apreço, quando o mereceram, o que não é o caso desta vez, infelizmente. Relatar aquilo que ficou apurado, é desnecessário…

Puno o alferes comando…., olhava primeiro para o citado, escrevia depois, três, cinco dias de prisão simples, o critério nunca se soube, porque no dia tal, às tantas horas,…grave prejuízo para a tranquilidade e bem-estar públicos…contrariando os esforços que o governo da Província…a lenga-lenga igual para todos.

Não sabia porquê, tinha apanhado três dias de prisão, a pena mínima, sabia lá, cara fechada para o Justo [1º cabo, guineense, do Gr Cmds Diabólicos, mais tarde, oficial graduado da 1º CCmds Africanos] que lhe perguntava porquê uma pena tão reduzida.

Desciam a escadaria quando o ouviu chamar outra vez, ó Gil, então, quando vais de férias?


(ii)   Depoimento do João Parreira  (ex-fur mil comando, Gr Cmds Fantasmas, CTIG, Brá, 1965/66)


[Foto à esquerda: O Joâo Parreira e o Vassalo Miranda, Bél+e, mo dia 10 de junho de 2010. Fotp de L,.G..]

[Os parênteses retos, em itálico,  são da responsabilidade do editor,  LG]



Conforme o prometido, passo a descrever a minha participação e os acontecimentos que deram origem à narração do V. Briote em 13/11/05 (*) sobre o baile dos Finalistas da Escola Secundária [, Escola Técnica, e não Lice«u],  realizado em Bissau, no Sábado, em 5 de Junho de 1965.

Na manhã daquele dia para me descontrair tinha ido com alguns camaradas para Quinhamel, uma vez que estava com grandes projectos para aquela noite. Semanas antes tinha conhecido a Helena,  uma moça cabo-verdeana, que era o que se costuma dizer uma “brasa” e andava todo entusiasmado.

Na véspera do baile, a Helena que era finalista, disse-me que me ia arranjar um convite para assim poder ir com ela . No próprio dia encontrei-me com ela da parte da tarde e ela disse-me que não tinha conseguido obter um convite, mas que me tinha comprado um bilhete. Assim dei-lhe os 100 pesos correspondentes ao preço do bilhete.

Estava a dançar com ela, já devia ser madrugada quando ouvi um grande borburinho, virei-me e reparei que o motivo era a entrada sem bilhete de vários militares desconhecidos e logo a seguir uma cara conhecida.

A música não parava de tocar e os pares continuavam a dançar. Várias finalistas e familiares encontravam-se sentadas em cadeiras que tinham sido colocadas junto às paredes. Alguns dos recém-chegados dirigiram-se de imediato a estas finalistas a pedir para dançar, mas não tiveram sorte.

No salão enorme, junto a uma das janelas encontrava-se uma mesa rectangular bastante comprida que dominava todo o salão e que estava totalmente ocupada com africanos e cabo-verdeanos que presumi serem os professores e o Principal [ , diretor] da Escola [Técnica].

Guiné > Bissau > Fevereiro de 1965 > O Furriel Miliciano Comando João Parreira, já depois de ter saído da CART 730... "Esta foto foi tirada numa esplanada em frente ao Hotel Portugal, creio que se chamava Café Universal".

Foto: © João Parreira (2005).Todos os direitos reservados


Notava-se que os ocupantes desta mesa ficaram furibundos com a intrusão. O alf Godinho, um dos “velhinhos”, foi um dos últimos a entrar, pelo que dirigiu-se logo para essa mesa e foi falar calmamente com um dos que se encontravam sentados no centro da mesa.

Desconheço o teor da conversa, mas o certo, pois eu estava a dançar perto, é que um deles lhe atirou com uma garrafa à cabeça. De imediato,  vindo da mesma mesa,  ouviu-se um deles gritar e logo a seguir outros a fazerem coro: "Se o nosso chefe estivesse aqui, e não em Conacri, nada disto acontecia”.

Com esta agressão e com as palavras insultuosas o ambiente ficou desde logo muito tenso.

Com todo este reboliço entraram de rompante 2 ou 3 camaradas que tinham ficado à porta do edifício, já que o porteiro não os tinha deixado entrar.

O Furriel V[assalo] Miranda alheio à situação e que na altura andava a passear o seu inseparável whisky, deixou-o ficar no hall de entrada à guarda de um porteiro, e também entrou.

O contacto físico em vários pontos do salão, não muito distante da pista de dança, começou já passava das 03h00 e prolongou-se por bastante tempo.

Apesar do que se estava a passar, a música não parava de tocar e parecia que todos os pares queriam estar alheios à situação. Como não podia deixar de ser, parei de dançar e pedi à Helena para não sair da pista pois ia ajudar os meus camaradas, e depois voltava.

Ela, que foi fantástica, disse-me para não ir pois podia ficar magoado, mas eu tranquilizei-a dizendo-lhe que em Lisboa tinha praticado boxe em clubes e tinha entrado em vários combates públicos.

Assim , por 3 ou 4 vezes, dava um pezinho de dança, atravessava a pista por entre os pares, ia a uma das zonas da pancadaria, envolvia-me como podia no meio de um dos grupos em contenda dava uns bons pares de murros e, quando me sentia satisfeito lá voltava novamente para junto da moça para continuar a dançar.

Dado o reboliço que se gerou também entraram no salão vários paraquedistas para darem uma ajuda aos que se encontravam em minoria. Entretanto alguém deve ter chamado a PM que entrou mais tarde e começou logo a tirar os nomes à rapaziada.

Tive mais sorte que o VB [, Virgínio Briote,]
e os outros camaradas pois logo que vi a PM entrar na nossa direcção apressei-me, sorrateiramente, a atravessar o salão pelo meio dos pares, a fim de ir ter com a Helena (a minha tábua de salvação) que estava a dançar sòzinha e agarrei-me logo a ela, pelo que a PM não deve ter percebido que eu também tinha andado no barulho.

Acabado o baile fui levar a Helena a casa, mas depois destes acontecimentos o ambiente não era propício pelo que vi gorados os projectos que tinha idealizado em Quinhamel.

Ao fim e ao cabo, feitas as contas tive sorte a dobrar pois livrei-me de ser punido e como tal de ter que ir passar uns tempos ao mato.

Domingo, 6 de Junho de 1965, às 19h00 dirigi-me com o V [assalo] Miranda e alguns fuzileiros para a Praça do Império onde se encontravam vários grupos de africanos em atitudes provocadoras e hostis, para tentarem tirar, talvez, ainda mais dividendos dos acontecimentos daquela madrugada.

Não sei bem como tudo começou, mas um deles apanhou o Miranda distraído e aplicou-lhe um tremendo murro que fez com que ele vacilasse, e depois fugiu. Corremos atrás dele mas não o apanhámos na rua pois foi refugiar-se no cinema UDIB. O porteiro, cabo-verdeano, que estava já a correr a porta de lagartas para o proteger não o conseguiu fazer, já que, com a ajuda do meu cinturão foi persuadido a não a fechar, e assim o Miranda entrou e ficou a sós com o seu agressor.

Voltámos para a Praça do Império onde o número de africanos tinha aumentado de uma forma incrível e notavam-se as mesmas atitudes agressivas. Como estávamos, mais uma vez, em grande desvantagem numérica, e com o intuito de os intimidar e evitar o confronto, mandei pedir a Brá para quem nessa altura estivesse disponível viesse ao nosso encontro.

Passada meia-hora chegou um jeep com o condutor e um Alferes (o único que vinha armado para o que desse e viesse) e logo atrás uma Mercedes com mais pessoal.

Infelizmente a intenção não deu resultado pois, ao aperceberem-se da chegada,  os africanos atiraram-se a nós à tareia usando os punhos e os pés.

Assim cada um de nós estava a ser agredido por 3 ou 4 pelo que, para evitar o pior, decidimos resolver o assunto com a máxima rapidez, e para esse fim usámos os nossos cinturões a torto e a direito, o que teve o condão de os obrigar a fugir. 

Com a Praça vazia usámos os mesmos veículos e regressámos a Brá.


(iii) Depoimento do Luís Raínha, ex-alf mil, comando, 
cmdt do  Gr Comandos Centuriões, CTIG,
Brá, 1965/66  (***)

A minha narrativa vai ser um pouco diferente, pois, eu fui ao baile convidado por uma Família de um dos finalistas, ou seja, todo o mundo sabia, sabe e sempre soube que eu tive uma grande paixão e amor por uma moça da família Barbosa. Uma das famílias mais importantes da Guinè, a Lu, como carinhosamente a tratava e ainda hoje a lembro com saudade.

Muitas coisas se fizeram contra este amor, a tudo ele foi resistindo, mas houve uma altura que caíu.
Bem, vamos ao que interessa, que é o Baile de Finalisatas do Liceu Honório Barreto de Bissau. Já lá vão cerca de quarenta e cinco anos e ainda me parece que foi ontem.

Pelas 19H00 do dia 05Jun65, o condutor do meu Grupo foi-me levar a Bissau e perguntou-me se era necessário ir-me buscar. Respondi que não, pois eu me arranjaria. Deixou-me junto à porta de casa de minha namorada e foi-se embora, dizendo um breve , até amanhã.

Fui buscar a Lu e fomos jantar ao Grande Hotel e de lá fomos para o baile. Não há que  contar novamente tudo, pois os meus camaradas já o fizeram e como tal interessa só o que se passou connosco, o que vi e ouvi. 

Já durante a jantar fui ouvindo que se estava preparar algo contra os brancos, informo que a minha Companheira era morena - muito bonita, pois não os iam deixar entrar no referido baile, como mais tarde aconteceu.

Depois do jantar, como era cedo ainda passámos por casa e os rumores continuavam; chegando ao ponto da própria me alertar de que podia ir descansado pois estava convidado. Chegados ao baile fomos à mesa que nos estava reservada e a seguir fomos dançar, mas o ambiente era tenso e ainda nem sequer se via nada de anormal. Cerca das duas horas da manhã é que as coisas começaram a azedar com a entrada em cena da tropa branca, que logo foi rodeada pelos cabo-verdianos aos gritos e insultos.

Estava declarada a guerra há tanto tempo esperada pelos cabo-verdianos. O pior de tudo é que os nossos Chefes não viram ou não quiseram ver as coisas como elas eram e estavam a acontecer. Enviaram as PM e a Policia civil para dar em tudo que fosse branco.

Eu, a única coisa que fiz foi proteger a senhora que estava comigo, por consequência à minha guarda. Colocando um dos meus braços por cima dos seus ombros e com o cartão de oficial do exército lá fui abrindo caminho pelo meio da multidão e dos Policias, estes distribuindo cacetada por tudo quanto era sítio, não poupando ninguém, tentavam aclamar os ânimos.

Quando íamos a caminho de casa vimos o General Shulz à varanda em pijama a ver o espectáculo.
Claro, que quando os cabo-verdianos quiseram a coisa acabou.

De tudo isto, podem-se tirar várias conclusões, mas duas  há que saltam logo aos olhos de qualquer pessoa medianamente inteligente. Toda a barraca foi muito bem preparada pelo PAIGC e os nossos Chefes da altura caíram que nem uns patinhos. E porquê? Por causa da ''psico-social', uma palermice em que os nossos governantes acreditavam ou queriam acreditar.

[Luis Rainha, foto atual à esquerda] 

Assim, acabou um episódio (****)que podia ter facturado para o nosso lado, mas pela incompreensão dos Chefes Militares foi o adversários que ficou com os louros.

Mas, sempre foi assim, nós havemos de ser os eternos coitadinhos.

(iv) Punições a que  foram sujeitos 4 dos 5 comandos alegadamente envolvidos nos incidentes do "baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau" (*****)  

(Felizmente,  estes incidentes entre nuilitares e civis não pocdem ser comparados com os que tiveram lugar, em Bissau, precisamente dois anos depois, envolvendo paraquedistas e fuzileiros, e de que resultaram 2 mortos) (******).





Cópias da Ordem de Serviço nº 70, de 27 de agosto de 1965, do CTIG em que são punidos com prisão disciplinar 3 furrieis milicianos e um alferes miliciano da CCmds / CTIG, Brá, 1965/66. Rasurados os seus nomes. (Cortesia do blogue Comandos da Guiné- 1964 a 1966).

________________

Notas do editor:

(*) Vd. I Série  do nosso blogue > 13 de novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial [Virgínio Briote]

(**) Vd. I Série do nosso blogue > 13 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXIII: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)

(***) Vd. blogue Comandos Guiné - 1964 a 1966 > 24 de abril de 2010 >  G.C.G. - A0032: Uma histórica verídca de vez em quando- 2ª Parte > O Celebérrimo "Baile na Associação Comercail de Bissau"

(****) Último poste da série > 4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P12094: Efemérides (151): Dia da Mãe... Para celebrar, hoje como ontem, com poesia (Joaquim Luís Fernandes)

(*****) Recorde.se aqui a criação e a extinção da CCmds / CTIG, Brá, 1965/66

 Para dar continuidade à formação de Grupos de Comandos é criada a Companhia de Comandos do CTIG (CCmds / CTIG) sendo nomeado seu comandante o Cap Art "Cmd"  Nuno Varela Rubim. Em 20 de Fevereiro de 1966 é nomeado comandante da CCmds / CTIG o Cap Art.«Cmd» José Eduardo Garcia Leandro.

O 2º.Curso de Comandos tem início em 7 de Julho de 1965, terminando em 4 de Setembro do mesmo ano, com a formação de 4 Grupos de Comandos designados por:

«Diabólicos» Alf. Mil. «Cmd» Virgínio Silva Briote
«Centuriões» Alf. Mil. «Cmd» Luís Almeida Rainha
«Apaches» Alf. Mil. «Cmd»  Neves da Silva
«Vampiros» Alf. Mil. «Cmd» Pereira Vilaça

O 3º. Curso de Comandos, realizado pela CCmds / CTIG aquartela da em Brá, tem início em 9 de Março de 1966 terminando a 28 de Abril de 1966, constituído por militares voluntários pertencentes a Unidades sediadas na Guiné e que se destinavam a recompletamento de Grupos de Comandos.

(...) Com a chegada a Bissau da 3ª.Companhia de Comandos, vindos do CIOE - Lamego, é extinta em 30 de Junho de 1966, a CCmds / CTIG, ficando, somente em actividade, até finais de Setembro de 1966 o Grupo de Comandos «Diabólicos»,  data em que a maioria dos militares que o integravam terminava a sua comissão de serviço.

Fonte:  Regimento de Comandos > História dos Comandos > CCmds / CTIG,  Brá, Guiné

(******) Vd. poste de 2 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5580: FAP (44): A verdade sobre os incidentes, em Bissau, em 3 de Junho de 1967, entre páras e fuzos... (Nuno Vaz Mira, BCP 12)

(...) Na noite de 3 de Junho de 1967, no final dum jogo que parecia ter decorrido de forma idêntica a tantos outros, entre o ASA – acrónimo de Atlético Sport Aviação, o clube dos militares da Força Aérea – e a equipa onde alinhavam os marinheiros, sucedeu o inesperado: estes, depois de trocarem insultos e provocações com os pára-quedistas, como era hábito, abandonaram o recinto desportivo, numa atitude pouco consentânea com os seus comportamentos recentes.

Os páras correram atrás deles pelas ruas da cidade, não imaginando que, algumas centenas de metros à frente, emboscado num prédio em construção, um grupo de fuzileiros armados com G-3 se preparava para os atacar a tiro. Custa a entender onde aqueles homens foram buscar ânimo para levar a cabo semelhante acto, mas a verdade é que foram capazes de abrir fogo à queima-roupa sobre camaradas de armas desarmados, matando de imediato o 1.º cabo Ismael Santos e o sold. Fernando Marques, para além de terem provocado ferimentos noutros soldados. (...)