terça-feira, 23 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7322: A minha CCAÇ 12 (8): O armamento do PAIGC no meu sector L1 (Bambadinca, 1969/71)





Um curioso manuscrito de Amílcar Cabral, com o croquis da Frente Leste, Sector 2, Área de Xime.  S/d. Arquivo Amílcar Cabral. Fundação Mário Soares... Clicar aqui para aceder à explicar deste documento.

Imagem digitalizada e reproduzida com a devida vénia...

Fonte: Fundação Mário Soares: Arquivo Amílcar Cabral. Bissau, Cidade da Praia, Lisboa. Lisboa: Fundação Mário Soares. 2005. p. 13.







Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) >  Cambança de uma bolanha, na região do Xime... Foto possivelmente tirada ainda em 1969, no final da época das chuva, que foi também de intensa actividade operacional... Infelizmente não tenho as legendas das magníficas imagens (originalmente diapositivos convertidos para formato digital) que o Arlindo Roda teve a gentileza de me mandar, através do Benjamim Durães (CCS / BART 2917, 1970/72). Em primeiro plano, o Fur Mil At Inf Roda, o Alf Mil Op Esp Francisco Moreia (comandante do 1º Gr Comb) e, senão me engano, o Sold nº 82105369 Mamadu Silá, Ap LGFog 3.7, que pertencia à 2ª secção do 1º Gr Comb, comandada pelo Fur Mil At Inf, Joaquim João dos Santos Pina, ilusionista, acordeonista, algarvio de Silves (mais tarde, dois ou três depois, ferido em combate).


Foto: © Arlindo T. Roda  (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados




1. No Sector L1, na Zona Leste da Guiné, ao tempo da 1ª comissão da CCAÇ 12 (Maio de 1969/Março de 1971) (*), o armamento utilizado pela guerrilha do PAIGC (o IN, para abreviar e em linguagem dos nossos relatóriso) era equivalente (ou até ligeiramente superior) ao nosso.


Esse armamento era praticamente todo de origem soviética, produzido na ex-URSS ou noutros países do então bloco soviético. Mas também de origem chinesa. De facto, recordo-me de termos também apreendido material de fabrico chinês (por exemplo, granadas de RPG).


Na época, e pelo menos na Zona Leste, o IN não dispunha, naturalmente, de meios aéreos ou navais (para além de botes de borracha, no Rio Corubal) nem de artilharia pesada. Não me consta, por exemplo, que tivesse antiaéreas, apenas referenciadas no meu tempo nas zonas fronteiriças, no norte e no sul (Parece que a metralhadora mais usada pelo PAIGC era a ZPU-4, uma arma de quatro canos, de calibre 14.5, de fabrico soviético, instalada em reboque).


De uma maneira geral, um bigrupo (40 a 50 guerrilheiros) estava equipado com o seguinte armamento ligeiro:


(i) pistolas-metralhadoras PPSH, de calibre 7.62, de origem russa (as famosas e enervantes costureirinhas): não tinha equivalente nas NT, já que no mato não usávamos a pistola-metralhadora fabricada na FBP; a PPSH (ou Shpagin) tinha uma cadência de tiro 700/900 por minuto, e usava dois tipos de carregadores: um circular (tambor) e outro curvo [, imagem à esquerda, crédito fotográfico: Nordik Institute of Africa, Suécia];


(ii) espingardas automáticas Kalashnikov , dotadas de carregadores curvos de 30 munições de 7.62 (com uma cadência de tiro, portanto, superior à nossa G-3, que dispunha de carregadores de 20 munições, de 7.62); era considerada uma arma de elite, pelo que nem todos os combatentes do PAIG a podiam usar;


(iii) espingarda semiautomática Simonov, também de origem russa e do mesmo calibre, dotada de uma baioneta extensível (era vulgar encontrar-se nos acampamentos do IN, sendo mais utilizada por elementos da população em autodefesa, nas áeras controladas pela guerrilha);


(iv) metralhadoras ligeiras Degtyarev, também de calibre 7.62, com tambor (não sei se eram melhores ou piores que a nossa HK-21, de fita, que encravava com alguma facilidade, nas difíceis condições do mato, debaixo de fogo, com o calor, com a chuva, com o pó...);


(v) 2 morteiros 60;


(v) vários RPG-2 ou RPG-7 (O RPG é um lança-granadas-foguete equivalente à bazuca, mas mais flexível e mais leve).






A Kalash, a famosa AK-47, desenhada pelo russo Mikhail Timofeevich Kalashnikov (nascido em 1919) equipava na altura todos os exércitos de guerrilha do mundo, além dos exércitos do Pacto de Varsóvia. Até meados dos anos 90 calcula-se que se tenham fabricado mais de 70 milhões de AK-47, de acordo com o modelo oficial ou em versões pirateadas.


Esta arma, a AK-47,  continua no imaginário de todos os ex-combatentes da Guiné. Recordo-me de em Bambadinca, no regresso da operação de invasão a Conakry (Op Mar Verde, 22 de Novembro de 1970), alguns graduados da 1ª Companhia de Comandos Africanos, sediada em Fá Mandinga (de que era régulo o tuga Jorge Cabral, entretanto já en Missirá, se não me engano) andarem a oferecer-nos kalash, que faziam parte parte dos seus roncos, pelo preço de três ou quatro garrafas de uísque velho ou dez de uísque novo (500 pesos). No entanto, no confronto com a kalash, um experimentado combatente, comando, como o nosso camarada Mário Dias não tinha dúvidas em escolher a nossa G-3 [, imagem acima].




2. Segundo informações de um prisioneiro feito pelas NT, na região do Xime, já aqui referido várias vezes, de seu nome Malan Mané,  em Julho de 1969 o grupo especial de roqueteiros da zona do Poidon que se deslocavam todas as manhãs para Ponta Varela a fim de atacar as embarcações em circulação no Rio Geba e/ou defender a entrada do Rio Corubal, dispunham de seis lança-granadas RPG-2 (, o que quer dizer que o RGP-7 ainda não tinha chegado à Frente Leste, ou pelo menos ao chamado sector 2).


O RPG (em inglês, rocket-propelled grenade launcher), e sobretudo o RPG-7, era a arma mais temida pelos nossos soldados não só nas emboscadas, nas estradas e picadas, como sobretudo no mato, nas emboscadas em L.


O RPG-2 (, imagem à direita,] era uma arma anticarro, de fabrico soviético. O carregamento da granada, de formato cónico, era feito pela boca. O calibre do tubo, era de 40 mm. E o da granada, 82 mm. O seu alcance, contra pessoal, não ia além dos 150 metros. O RPG-7 era já mais sofisticado do ponto de vista tecnológico: o seu sistema de autodestruição da granada permitia que fosse disparada para o ar, tal como o nosso dilagrama, provocando uma chuva de terríveis estilhaços.


As mortíferas lâminas de aço dos rockets foram responsáveis pela maior parte das 15 baixas (6 mortos e 9 nove feridos) sofridas pelas NT no decurso da Operação Abencerragem Candente, que sofremos a caminho da Ponta do Inglês, em 26 de Novembro de 1970, vai agora fazer 40 anos (!),


Tanto o RPG-2 como o RPG-7 também eram muito eficazes contra as nossas viaturas, embora  não tivessemos viaturas blindas de jeito (No Sector L1, havia apenas um Pel Rec Daimler, praticamente inoperacional: desculpa, Jaime Machado, desculpa, Zé Luís Vacas de Carvalho, vocês fizeram das tripas da coração ...). 


Contra alvos fixos o RPG era eficaz até 50/100 metros (O RPG-7 tinha mais alcance: 500 metros). Muito certeiro e de fácil manejo, o RPG era muito mais adequado àquele tipo de terreno (floresta tropical e savana arbustiva, de capim alto e denso) e de guerra (de guerrilha) do que o nosso lança-granadas, a pesada bazuca americana de 8.9, uma clássica arma anti-tanque... O mais caricato é que as NT só dispunham de munições anti-carro (!). Devido ao seu peso, o transporte das granadas de bazuca, sobretudo em operações no mato, eram um problema, pelo que era frequente recorrer-se a carregadores nativos. A CCAÇ 12, logo em 1969 (no 2º semestre), passou a usar o lança-granadas dos pára-quedistas, de calibre 3.7, conforme documenta a imagem, do Arlindo Tê Roda.


Em cada um dos grupos de combate da CCAÇ 12 havia pelo menos um ou dois apontadores de dilagrama (dispositivo de lançamento de granadas de mão). Mas esta arma não gozava das nossas simpatias, por ser perigosa e embora muito eficaz: a primeira morte a que assisti, a meu lado, a do Ieró Jaló, do 1º Grupo de Combate foi causada por um dilagrama (Região do Xime, Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969, como já aqui descrevi). [Imagem à esquerda, o nosso querido amigo e camarada Torcato Mendonça, em Mansambo, 1968, com a G3 pronta a disparar um dilagrama, e à cintura, com uma granada de mão defensiva].


A granada do dilagrama era uma granada de mão defensiva, m/963, sendo montada em suporte com um encaixe oco que se adaptava no cano da espingarda automática G-3. No seu lançamento usava-se um cartucho de salva (sem bala). Para o disparo tirava-se o carregador e introduzia-se manualmente o cartucho de salva. Este compasso de espera, aliado à impossibilidade temporária do uso da G-3 e ao risco do seu manuseamento, tornaram o dilagrama uma arma muito impopular entre as NT.


Nos ataques e flagelações às nossas posições fixas (aquartelamentos do exército, destacamentos de milícia, tabancas em autodefesa), os guerrilheiros utilizavam frequentemente o não menos temível canhão sem recuo (75, de origem chinesa, e 82, de origem soviética). Por razões logísticas e de transporte, era armas sobretudo utilizadas em ataques planeados (por exemplo, contra Bambadinca, em 28 de Maio de 1969). Tal como o morteiro 82, com um alcance de 3 km. Estas armas pesadas equipavam os grupos de artilharia, referenciados em Mangai, junto ao Rio Corubal, e Madina/Belel, no regulado do Cuor, a norte do Geba. (Vd. mapa do Sector L1, Bambadinca).


Os grupos especiais do IN, quer de artilharia (canhão sem recuo e morteiro 82) quer de RPG, eram extremamente móveis. Em contrapartida, as NT praticamente não usavam (ou usavam pouco) o canhão sem recuo (pelo menos no meu sector: havia um referenciado no Saltinho, que causaria a morte do Sargento Parente).


Por vezes o IN utilizava também a metralhadora pesada Goryunov, de calibre 7.62, que também podia ser usada como antiaérea. E sobretudo a Degtyarev, de origem russa, mas de calibre 12.7, equivalente à nossa Breda ou à nossa Browning (que estava instalada nalguns aquartelamentos: em Bambadinca, por exemplo, varria a pista de aviação). Pelo menos num dos ataques uma tabanca em autodefesa,  em Candamã, em 30 de Julho de 1969,  foram encontrados invólucros de 12.7 (portanto, da Degtyarev).


Ainda no nosso tempo apareceram, na Guiné, os primeiros foguetões Katiusha, de 122 mm, inicialmente pouco certeiros, é certo, mas com grande poder de destruição e não menos impacto psicológico junto das NT e populações. De fácil manejo e de relativamente fácil transporte (às costas, no interior do território), seriam utilizados preferencialmente contra os grandes alvos militares (aeroporto de Bissalanca…) e concentrações urbanas (Bolama, Bissau...). As granadas, com um peso de 18 kg. (dos quais 6.5 de explosivo), tinha um raio de morte de 160 m2, e ao explodir produzir cerca de 15 mil estilhaços.


Segundo informação recolhida pelo meu querido camarada, amigo e co-editor Virgínio Briote, a antiga URSS foi o primeiro país a utilizar os lançadores múltiplos de foguetes durante a Segunda Guerra Mundial. Foram utilizados pela primeira vez em Smolensk, em 1941, durante a invasão alemã. A este sistema foi dado o nome de Katiusha. Os soldados soviéticos chamavam-lhe os "órgãos de Estaline". O Paulo Santiago terá dos primeiros a vê-los nos céus da Guiné, na segunda-feira de Carnaval de 1971, lá para os lados do Saltinho. Eu confesso que os nunca vi (nem senti) lá para os meus lados (nessa altura ainda estava em Bambadinca, Sector L1)...


Só mais tarde, já em Março de 1973, apareceriam os mísseis terra-ar que os egípcios também utilizaram contra os tanques israelitas na guerra do Kippour.  Recorde-se que a utilização dos mísseis terra-ar Strela (SA-7 Grail-Strela) pelo IN, pela primeira vez em 25 de Março de 1973, sob os céus de Guileje, foi responsável pela queda de um Fiat G-91 (pilotado pelo tenente pilav Miguel Pessoa que, felizmente, está vivo da costa e faz parte orgulhosamente da nossa Tabanca Grande: foto à esquerda, em Bissalanca, em 1974, de novo no activo, depois de alguns meses no "estaleiro", em Lisboa).


Não se pode-se dizer que esta arma antiaérea fosse terrivelmente  eficaz contra as nossas aeronaves (helicópteros, avionetas, bombadeiros T-6, caças Fiat G-91, estes últimos aviões a jacto subsónicos): em 60 lançamentos (estimativa) o Strela derrubou 5 aeronaves (taxa de eficácia de 8,3%). Possivelmente foi mais psicológico o seu efeito, ao aumentar o moral da guerrilha e deixar as NT inicialmente confusas e até em estado choque com a morte de vários pilotos, incluindo


Este míssil era dotado de uma cabeça com detector de infravermelhos, sendo por isso atraído pela fonte de calor emitida pelos motores das aerobnaves. A sua velocidade era impressionante (mach 1,5 ou 1600 km/hora). O seu alcance era contudo muito limitado: pouco mais de 3 km. Os nossos helicópteros e restantes aeronaves, para não serem atingidos, tinham que passar a rasar a copa das árvores ou voar acima dos 1500 metros de altitude.


O Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra, tem uma boa página em que se compara os armamentos das duas partes em conflito. Sobre a artilharia onde, aparentemente, as NT levavam vantagem, o documento diz que "na Guiné, a situação em 1966 era a utilização dos obuses 8,8 cm por pequenas unidades (nove pelotões a duas bocas de fogo cada), mas a partir de 1968 passaram a existir meios mais modernos e mais potentes", a saber: (i) 19 obuses de 10.5 cm, correspondendo a três baterias; (ii) seis obuses de 14 cm, correspondendo a uma bateria; (iii) seis peças de 11.4 cm, correspondendo a uma bateria. "Estes últimos materiais, dado o seu alcance, já permitiam o apoio a vários aquartelamentos a partir de uma posição central, mas a falta de meios de aquisição de objectivos impedia uma contrabateria eficaz. As dificuldades apontadas para os morteiros eram semelhantes às da artilharia, se bem que na Guiné, dada a sua menor extensão e a quadrícula mais apertada das unidades, os problemas fossem menores", pode-se ler-se ainda no documento em referência.


Convém não esquecer as minas, as terríveis minas A/P e A/C... Há camaradas que sabem disto a potes, já que têm/tinham a especialidade de minas e armadilhas, a começar pelo meu querido co-editor, Carlos Vinhal [, aqui na foto, à esquerda].


Sobre este tópico pode ler-se na página Centro de Documentação, acimna citado: (...) "As MINAS foram as mais temidas de todas as armas que os nossos militares enfrentaram nos três teatros de operações. Utilizadas de forma isolada, ou conjugadas com emboscadas, limitaram fortemente a mobilidade das forças portuguesas em acções tácticas e logísticas, apeadas ou em viatura, sendo também responsáveis por atrasos nos reabastecimentos, por destruições em veículos e, acima de tudo, por elevada percentagem de baixas. 


"Embora a estatística não esteja feita, amostragens dos três teatros de operações permitem considerar que, no mínimo, 50 por cento das baixas portuguesas (mortos e feridos) foram provocadas por engenhos explosivos. Um tipo de guerra altamente compensador para os movimentos de libertação, cujos objectivos eram apresentados do seguinte modo, nos apontamentos de um curso frequentado na Argélia por quadros do PAIGC: 'Realiza-se a guerra de destruição e de minas para fazer obstáculo atrás dos inimigos, para aniquilar as suas armas modernas, ameaçá-los e paralisá-los'. (...)


" Na Guiné, a primeira mina referenciada era anticarro, colocada na estrada Fulacunda-São João, em Julho de 1963, tendo sido aqui também utilizadas minas aquáticas nos rios, que chegaram a inutilizar lanchas". (...)


O nosso camarada Luís Dias, ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74, tem igualmente uma série de postes sobre armamento jutilizado no TO da Guiné quer pelo PAIGC quer pelas NT. Refira-se, a título de mera curiosidade, que o seu poste P5690 [:Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras] é o mais visto de  todos os postes do nosso blogue, com mais de 600 visualizações, no período que vai de Julho de 2010 até hoje (só temos estatísticas desde então).


De qualquer modo, da comparação do IN e das NT, poder-se-ia tirar a conclusão da "equivalência" do armamento entre as partes em conflito: "se exceptuarmos a artilharia (com as limitações já apontadas) e as viaturas blindadas (de emprego também limitado), pode dizer-se que o combate terrestre se travou, salvaguardando os efectivos, entre iguais " (Centro de Documentação 25 de Abril). 


Ainda sobre as limitações do nosso armamento, vd o portal Guerra Colonial, da A25A.


Não se pode, todavia, menosprezar o potencial de fogo de uma unidade de intervenção como a CCAÇ 12, cuja orgânica (e armamento) já aqui foi apresentada (vd. poste P6647)(*):  


(i) 4 Grupos de Combate, cada um com 28 homens, 3 secções; 
(ii) em cada Gr Comb, havia 3 ou 4   apontadores de dilagrama; 
(iii) mais 2 apontadores de LGFog 8,9 ou 3,7; 
(iv) mais 1 apontador de Met Lig HK 21; 
(v) e mais 1 apontador de Morteiro 60 (mais os respectivos municiadores)... 


No total cerca de 90 espingardas automáticas G3, cada uma com 5 a 6 carregadores (100/120 munições)... e muitas granadas defensivas.
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Nota de L.G.:


Último poste desta série > 

28 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7048: A minha CCAÇ 12 (7): Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969: golpe de mão a um acampamento IN, perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, morte do Sold Iero Jaló, e ferimentos graves no prisioneiro-guia Malan Mané e no 1º Cabo António Braga Rodrigues Mateus (Luís Graça)

(*) Vd. poste > 21 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6447: A minha CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971) (1): Composição orgânica (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P7321: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (10): As desilusões históricas ou Portugal não é para levar a sério?

1. Texto do nosso camarada António Rosinha enviado em mensagem do dia 19 de Novembro de 2010:


Caderno de notas de um Mais Velho (10)

As desilusões históricas ou Portugal não é para levar a sério?

Quando um país tem uma luta diplomática e militar para formar a união do maior território geográfico jamais imaginado que é o Brasil, esse mesmo país perdia pelas armas e pela diplomacia aquele apêndice alentejano que é Olivença.

Contraste que parece uma anedota.

Mais tarde arrancámos cabelos, fizemos um hino nacional, e matámos o rei eterno com 800 anos de idade por causa da subtração aos nossos territórios africanos do tal mapa cor-de-rosa. Se por Olivença não acabámos com o Rei, porque o havíamos de fazer por causa de um território que só conhecíamos no papel?

Mais tarde o país zangou-se com o homem que nos pôs em guerra para lutar por uma ideia lusíada imperial. E, apesar de zangado, só depôs Salazar, o tal homem, 6 anos depois de ele cair da cadeira e este ficar arrumado, porque? Demorámos 6 anos porque os capitães ainda eram apenas alferes? E tinha que ser a revolta dos Capitães de Abril de 1974?

Esta análise também não é para levar a sério, porque se fosse já historiadores tinham analisado. Mas, pelos vistos, deixamos para amanhã o que podemos fazer hoje, quando talvez fosse melhor de outra maneira.

Mas se o segredo para sobrevivermos é andar contra a lógica, que muitas vezes é andar "contra os ventos da história", não vamos desvendar o segredo a ninguém, porque já consta que há por aí uns bascos que vêm cá para aprender como é. Mas o segredo vai morrer connosco.

É o meu ponto de vista. Só e apenas meu, porque não seríamos nós, se cada português não tiver o seu próprio ponto de vista.

E quando se fala de guerras perdidas ou ganhas, connosco pode ser o contrário. Porque nestas coisas, a nossa lógica não é igual à de outros povos.

Os políticos em Portugal ainda hoje discutem se havíamos de entrar na I Grande Guerra ou não.

Um abraço,
Antº Rosinha.

P.S. - Não sei se é possível adaptar para o blogue por causa dos mapas, pode ser complicado.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7271: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (8): A Suíça de África, o narcotráfico, a justiça e a falta que faz o Luís Cabral

Guiné 63/74 – P7320: Controvérsias (111): Copá: Quero aqui repor a verdade dos factos! (António Rodrigues, ex-Soldado Condutor Auto do BCAV 8323)


1. O nosso Camarada António Rodrigues, membro da nossa Tabanca Grande, ex-Soldado Condutor Auto do BCAV 8323,
Copá, 1973/74, autor do manuscrito “Memórias de um Soldado", enviou-nos a seguinte mensagem (que nos chegou através da sua filha, Sandra Rodrigues, e do António Graça de Abreu):

Quero aqui repor a verdade dos factos!
Estimados Amigos e Camaradas da Guiné,

Fazendo jus à palavra de ordem do Blogue (Não deixes que sejam os outros a contar a tua História por ti!) depois de ter lido os livros "No Ocaso da Guerra do Ultramar", de Fernando de Sousa Henriques, e "Guineense Comando Português", de Amadu Bailo Djaló, fiquei deveras estupefacto e com uma espécie de murro no estômago, com as mentiras e enormidades que lamentavelmente o autor do 1º. e o editor do 2º. livros escrevem sobre Copá, deturpando a verdade da História e de alguns factos aí ocorridos.

Ora, eu como protagonista, que junto, com os meus camaradas, vivemos e presenciámos esses mesmos factos, não posso nunca, enquanto viver, permitir que quem quer que seja, escreva mentiras tão torpes, induzindo em erro todos os seus leitores, e por isso quero aqui repor a verdade dos factos, até porque eu e os meus camaradas da altura nos sentimos bastante ofendidos com o que nesses dois livros está escrito sobre o mesmo assunto.

Relativamente ao primeiro caso, no capítulo "Os Derradeiros Dias do Destacamento de Copá" (página 329), o autor escreveu que este destacamento era comandado por um furriel, e termina o capítulo (ao qual dedica cinco páginas) exarando um voto de louvor a esse furriel e aos seus dois ou três acompanhantes que junto dele sempre se mantiveram. [Sobre este livro, vd. também poste do nosso camarada Hélder de Sousa, de 10 de Novembro de 2008].

Diz também que, aí pela segunda quinzena de Fevereiro [de 1974], depois de uns três dias seguidos de assédio forte a Copá e aí a meio de uma tarde que nunca esqueceremos, foram aparecendo aos poucos e em pequenos grupos, ou isoladamente os elementos provindos daquele destacamento. Sem o saberem deixaram para trás o furriel, o fulano das transmissões e não sei se mais alguém.

Nada mais falso do que isto. Senão vejamos:
(i) Na segunda quinzena de Fevereiro de 1974, já não havia um único soldado em Copá, fomos evacuados no dia 12;
(ii) A partir do dia 13 de Janeiro desse ano, a guarnição de Copá ficou constituída por 40 militares todos brancos, pertencentes à 1ª. Companhia do BCav 8323, aquartelada em Bajocunda (o comando do batalhão estava em Pirada), vinte e sete homens do 4º. Pelotão que já lá se encontravam desde 18 de Novembro de 1973 comigo incluído, comandado por um alferes, dois furriéis, quatro primeiros-cabos e vinte soldados;
(iii) A 13 de Janeiro de 74 fomos reforçados com mais 13 homens do 1º. Pelotão da mesma companhia, dois furriéis e onze soldados.

Ora qualquer leitor que desconheça a verdade, ao ler o referido capítulo do livro, fica com a ideia que a quase totalidade destes militares fugiu ou desertou (miseráveis desertores,  como escreve o autor).

A verdade dos factos por mim testemunhada é a seguinte.
- Como atrás referi, o comando do destacamento de Copá sempre pertenceu ao alferes comandante do 4º. Pelotão que lá se encontrava e nunca a um furriel: 1ª. mentira.

- Depois de vários dias seguidos de forte assédio de bombardeamentos a Copá, (estávamos a ser bombardeados todos os dias desde o dia 31 de Janeiro,  dia em que foi abatido um FIAT G91) ficamos com o aquartelamento destruído e com a moral em derrocada,  como escreve o autor (e é verdade) e no dia 9 de Fevereiro, durante mais um bombardeamento, a meio da tarde, 5 camaradas nossos fugiram para Canquelifá,  a cerca de 12 kms de Copá, 4 dos quais regressaram ao amanhecer do dia seguinte (o 5º. recusou-se a regressar e foi sobe prisão para Nova Lamego, donde regressou mais tarde à companhia já em Bajocunda).

Donde se conclui que não houve nenhum furriel que ficasse sozinho em Copá,  acompanhado de 3 homens, porque 35 de nós mantivemo-nos firmes em Copá até ao fim, junto do nosso alferes que de facto nos comandava.
Quando li o livro fiquei bastante irritado, ao sentir que também eu era considerado mais um miserável desertor, o que como se vê pelo exposto não é verdade.

A prová-lo, segue junto uma cópia da ordem de serviço nº. 9 de 12 de Abril 74 da 1ª. CCav / BCav 8323,com um louvor aos 35 que nunca fugiram de Copá.
Ora que eu saiba, quem é desertor não recebe louvores.

Curiosamente, ainda no capítulo do livro referente a Copá, o autor escreve o seguinte (página 332):

Normalmente durante a noite, ouvíamos o roncar de viaturas que deviam proceder ao reabastecimento das diferentes posições no terreno ou, então, à mudança das mesmas com transportes de pessoas, armas e munições.

Esta situação trazia-me preocupado, pois se viessem ao assalto ao nosso aquartelamento a nossa oposição seria difícil, no caso de utilizarem viaturas blindadas, de que já se ouvia falar, uma vez que só dispunha-mos de umas três ou quatro bazucas, usadas nos patrulhamentos e sem nenhum pessoal treinado para a luta anti-carro. Os RPG-2 e RPG-7, usados pelo IN, revelavam-se de manejo mais fácil e eficaz.

Também em Copá se ouvia de vez em quando o roncar dessas viaturas durante a noite.

Ora nós em Copá, no dia 7 para 8 de Janeiro de 74, enfrentámos o assalto do PAIGC ao nosso aquartelamento, precisamente com dois blindados, um dos quais chegou a entrar dentro do aquartelamento e nós na altura,  só com 27 homens (bazucas uma) e muita sorte, lá os conseguimos repelir.
Conclusão: acho que o autor deveria ter pesquisado mais qualquer coisa para escrever a verdade, ainda por cima tendo estado no aquartelamento que estava mais perto de nós e na mesma altura. Quanto ao resto do livro, estou de acordo com o que está escrito em geral.

Lamentavelmente, o editor do livro "Guineense Comando Português" também escreve na página nº. 262 - em nota do editor nº. 291 -, o seguinte:

O destacamento de Copá (da Companhia de Pirada BCav 8323), depois de três dias de intensas flagelações, foi temporariamente abandonado durante a tarde de 13Fev74 pela maioria dos militares da guarnição, que, em fuga se dirigiram para Canquelifá deixando no aquartelamento um furriel e dois ou três camaradas. Na manhã de 14Fev74, os militares foragidos regressaram ao seu destacamento que, depois de armadilhado e minado, foi oficialmente extinto em 05Abr74.

Isto parece-me uma cópia tirada a papel químico do livro "No Ocaso da Guerra do Ultramar". Ora pelo acima exposto mais uma vez isto não corresponde à verdade e tenho pena que isto não venha a ser corrigido quer num quer no outro livro. Comentários para quê: é uma pobreza Franciscana.

Nota final: Soube recentemente, através de uma pessoa que se deslocou à Guiné e a Copá e falou com os guerrilheiros da altura, que lhe disseram que, durante os combates na noite de 7 para 8 de Janeiro de 74, com carros de combate do PAIGC, lhes matamos o comandante que os comandava nessa noite. E a minha conclusão é que esta foi mais uma razão para eles retirarem ao fim de 01,10 horas e assim termos escapado a uma quase eminente captura.

Conclusão, faço votos para que quem escreve sobre estas coisas procure ser bastante mais rigoroso.

Transcrição da ordem de serviço Nº 09 de 12 de Abril de 1974 da 1ª C.CAVª./B. CAVª. 8323.RESERVADO Pág. Nº 74

Continuação da ordem de serviço Nº09 de 12 ABR 74 da 1ª. C.CAVª./B.CAVª. 8323

3º. Louvo os Militares abaixo designados porque:
Tendo feito parte do Destacamento de Copá, sobre o qual o IN desencadeou fortíssimas e a partir de 31 Janeiro, ininterruptas flagelações da maior violência e duração, evidenciando notável serenidade, coragem, capacidade de sofrimento e elevado espírito de missão, constituíram-se como verdadeiros exemplos de virtudes Militares, tendo com a sua atitude, merecido o respeito, consideração e apreço de todos os seus camaradas e superiores, sendo inclusivamente citados pela sua conduta em mensagens expressas por S EXA CMDT CHEFE, escrevendo já uma página para os Factos e Feitos do BCav 8323,que se orgulha de os ter nas suas forças.
Por tais actos, justo se torna que publicamente se dê testemunho do conceito em que a sua conduta é tida, o que faço através do presente louvor.
Às praças são concedidos 10 (dez) dias de licença nos termos do Artº. 107º. do R.D.M.
(O.S. Nº. 55 DO B. CAVª. 8323)

1ª. CCV./ B. CAV. 8323 – 1º. PELOTÃO

- Fur. Milº. Nº. 16891072 – CARLOS EUGÉNIO A. P. SILVA
- ..“..... “..... Nº. 18533372 – JOSÉ CARLOS PEIXOTO MOTRENA
- SOLDADO Nº. 00605573 – CARLOS AMÍLCAR DA C. BARATA
- .......“........ Nº. 01372673 – JOÃO MANUEL DA SILVA FRANCISCO
- .......“........ Nº. 01620173 – MANUEL GERALDES ALEXANDRE
- .......“........ Nº. 02703373 – ANTÓNIO MANUEL PIRES
- .......“........ Nº. 02915273 – MANUEL CARVALHO
- .......“........ Nº. 02965173 – ANTÓNIO JOSÉ CARDOSO GASPAR

1ª. C.CAV/B.CAV 8323 – 4º. PELOTÃO

- ALF. MILº. Nº. 04718772 – MANUEL JOAQUIM BRÁS
- FUR. MILº. Nº. 12876872 – GUILHERME MANUEL ROSAS DA SILVA
- ... “..... “...... Nº. 15767472 – JOSÉ LUÍS FILIPE
- 1º. CABO Nº. 02510373 – FRANCISCO RODRIGUES FERREIRA
- “...... “.... Nº. 02963673 – JAIME DE JESUS TIAGO
- “......“..... Nº. 03151673 – JOÃO GONÇALVES RIBEIRO
- “...... “.... Nº. 17515373 – FERNANDO DE SOUSA DAS NEVES
- SOLDADO Nº. 00235371 – JOSÉ MARIA DA SILVA C. MAIA
- .......“........ Nº. 01004773 – ALFREDO MANUEL DA SILVA TOMÁZ
- .......“........ Nº. 01217273 – JOSÉ BORGES VICTOR
- .......“........ Nº. 01375373 – JOSÉ DO ROSÁRIO FERNANDES
- .......“........ Nº. 01385673 – DOMINGOS DE ALMEIDA
- .......“........ Nº.01591473 – ANTÓNIO CARLOS DE JESUS
- .......“........ Nº. 01703075 – JOÃO REIS SILVA
- .......“........ Nº. 01960473 – CASSIANO PEREIRA DE SOUSA
- .......“........ Nº. 02612773 – MANUEL PIRES ESTÊVÃO
- .......“........ Nº. 02860473 – MANUEL JOSÉ MIRANDA DA SILVA
- .......“........ Nº. 02897673 – ARLINDO MARQUES TEIXEIRA
- .......“........ Nº. 03086073 – ANTÓNIO DE OLIVEIRA LEAL
- .......“........ Nº. 03179673 – GABRIEL VIEIRA DIAS LOBO
- .......“........ Nº. 03203073 – JOÃO FERNANDES PIRES
- .......“........ Nº. 03425073 – JOÃO MANUEL DA SILVA CUSTÓDIO
- .......“........ Nº. 08984273 – FRANCISCO VAZ GONÇALVES
- .......“........ Nº. 17232372 – MANUEL VICENTE ANTUNES
- .......“........ Nº. 17365472 – JOAQUIM MANUEL DOS SANTOS
- .......“........ Nº. 03566873 – FRANCISCO ANTÓNIO DE BRITO
- .......“........ Nº. 01852273 – ANTÓNIO RODRIGUES

4º. Louvo o 1º. Cabo Enfermeiro Nº. 15226573 – José Manuel Magalhães Teixeira porque, fazendo parte da força que, em 07JAN74 foi fortemente emboscada na picada para Copá e apesar de ferido, encontrou força e ânimo para mesmo nessa situação continuar a tratar dos vários feridos e relegando-se a si próprio para último lugar, quando já exausto, terminara praticamente a sua Missão.
Evidenciou assim o 1º. Cabo Teixeira, notável estoicismo e abnegação que importa realçar, o que faço através do presente louvor, que ao abrigo do Artº. 107º. do R.D.M., é acompanhado de 10 (dez) dias de licença. (O. S. Nº. 72 DO B. CAVª. 8323)

RESERVADO

Forte abraço para todos os Ex-Combatentes.
António Rodrigues
Sold Cond Auto do BCAV 8323
__________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

13 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 – P7277: Controvérsias (110): O que era ser ranger entre 1960 e 1974? (3) (Pedro Neves, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 4745)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7319: (Ex)citações (112): O Simples e o Erudito (na Tabanca Grande) (José Brás)

1. Mensagem de José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 21 de Novembro de 2010:

Carlos
Com um abraço


O Simples e o Erudito
(na Tabanca Grande)

É lá!
O que é que este gajo quer com um título destes?
Contar a história de carochinha?
Armar em teórico de qualquer coisa, inventando no Monfurado¹ um bacoco pensamento e voltando ao sapateiro do rabecão?

Bem!
Isto é o que algum dos meus eus estão a pôr de caras aos outros, retirando já a terra aos pés dos que, lendo, o diriam eles próprios só na sombra do título disto.
É uma técnica quase perfeita, esta de reduzir-se a si próprio, antes que outros o façam, somando ainda a mais que duvidosa virtude da humildade, duvidosa mas que pega quase sempre na ingenuidade de muitos.

No entanto, confesso que, esperando o mais que certo franzir das vossas testas, ainda assim não troco o título por um outro qualquer que anuncie modéstia ou caldos de galinha.

Se pego nisto por aqui, eu próprio confesso sem medos que não passa de bengala. Bengala dessas que tantas vezes dão jeito a quem tem de começar.
Como se diz que "comer e coçar (não sei o quê), o mal é começar, começando, lá vou eu directo ao assunto.

Frequentemente se lê no blogue o lamento de camaradas que se queixam de limitações na arte de escrever, temendo, provavelmente, que essa sua alegada deficiência, lhes apouque o esforço à palavra e prejudique o que querem dizer.

Muitas vezes, lê-se, lê-se e pasma-se do medo prévio do escrevente, já que o que quis dizer está ali todo, claro e transparente como dizem (talvez erradamente) que é sempre a verdade.
E algumas vezes está lá, mesmo o que, quem escreveu, não quis dizer, ou não pensou dizer, coisas mais intimas do seu foro moral e psicológico, das suas crenças, das suas dores e alegrias, escancarando a alma mais do que era seu desejo e acanhamento.

E se lá está tudo, porque tudo é tudo, o que é que pode estar mais que não esteja?
A forma? O estilo? O embrulho da encomenda?

Pois!
É verdade que muitas vezes a forma é, já em si, parte do próprio conteúdo, frequente e lamentavelmente, aliás, o único conteúdo da coisa.
Mas acredito que nenhum dos amigos que se lamenta de carências semânticas, quisesse trocar o que diz pelo que... não dizem tais prosadores empoleirados.

Não quero nomear, não direi nomes mas garanto que de alguns que já me renderam homenagens pelo que escrevo, tenho é inveja.
Inveja da boa, diga-se, da sua capacidade de descrever, de mostrar, de criar as imagens adequadas ao que dizem, de guardar a castidade da palavra, justa, curta, esgalhada e simples como deve ser toda a comunicação.

Ponhamos os olhos (os ouvidos) nas grandes sinfonias e tentemos lembrar partituras e passagens, quase sempre o centro da construção da musical do mestre, a rotunda de onde partem e aonde chegam sempre os caminhos que a justificam. São ou não são peças simples, sons que não parecem mais do que canções genuinamente populares, cujo contorno não perdemos?

Ou nesses sons fantásticos do jazz, trabalhados por grandes músicos nos salões do mundo, mas chegando dos instrumentos populares dos campos de algodão americanos e, ainda antes, dos pastores do Mali e de outros países oriundos da escravatura.
Dizem e acredito piamente que o mais difícil nesta vida é...ser simples.

É verdade que algumas vezes, fazendo o contrário, de coisas simples construímos coisas meias parvas, apenas. Ou, também, que metendo por matérias para as quais não temos preparação específica, académica ou outra, acabamos tristes e de má figura.

Noam Chomsky, em "O Poder Americano", abordando em algumas passagens a questão do Vietnam, diz que cabe aos intelectuais, porque a sociedade lhes deu meios de analisar e de entender a realidade que a gente comum não tem, a obrigação de explicar e de denunciar medidas, abusos e manipulações do poder.

Muitas vezes, contudo, gente como eu e outros ainda piores, que de intelectuais têm apenas as fumaças, assumem tal obrigação, afinal e ao contrário do propósito alegado, para mal do mundo.

Espero, pois, que com esta prosa também ela algo emproada, possa ajudar ao ânimo dos que, erradamente, se acham demasiado simples incentivando-as a soltar a língua aqui, para nosso consolo e glória da Tabanca Grande e do seu régulo.

José Brás
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7307: (Ex)citações (110): Se não discutir com os meus amigos que são diferentes, mas meus amigos, discutirei com quem? (José Brás)

Vd. último poste da série de 22 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7317: (Ex)citações (111): Mensagens de saudade… em tempo de Guerra! (José Marcelino Martins)

Guiné 63/74 - P7318: In Memoriam (61): Fanta Baldé, de Farim (Manuel Marinho)

1. Mensagem de Manuel Marinho* (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), com data de 20 de Novembro de 2010:


Caro Carlos Vinhal:
Envio este texto como comentário ao P1475 (**) que pretende realçar o talento deste camarada que neste texto fala de uma grande mulher africana que eu conheci, de seu nome: Fanta Baldé.


Um grande abraço
Manuel Marinho





A bela homenagem à mulher africana


Caro Vítor Junqueira (, foto à esquerda, Pombal, 2007):


Ainda não tive o privilégio de conhecer (a não ser virtualmente) alguns camaradas que escreveram para o blogue e que o deixaram de fazer, deixando belos textos sobre a nossa passagem pela Guiné. Este é para mim um deles.


Por aludir a uma mulher que conheci, e por achar que este texto elogia todas as mulheres africanas que durante a nossa guerra nos aturaram, sem queixumes ou lamentos a propósito da nossa presença em guerra não desejada.


Vem isto a propósito do P1475** que descobri nas buscas que volta e meia faço para descobrir textos não lidos, e alguns deles ficam impressos para trabalho futuro. E não é que descubro um belo texto que se refere à Fanta de Farim?


Imediatamente leio, releio e fico pensativo a recordar essa mulher e o seu filho Mário.


Invejo-te por seres capaz de escrever um texto, que eu gostaria de ter escrito. Aceita os meus sinceros parabéns pelo excelente e brilhante texto sobre a Fanta, a tua puta de estimação, como carinhosamente a tratas, porque é de carinho que falas quando te referes à Fanta.


É um relato que eu guardo religiosamente como tributo à memória dessa mulher que tu de forma genial lhe prestas, não há melhor homenagem, ela ficaria muito feliz.


A minha 1.ª/ Bcaç 4512 chegou a Farim no dia 13 de Janeiro de 1973 onde 2 GComb ficaram em Nema e o restante da Ccaç foi para Binta. Só lá ficamos até 10/Junho/73, donde seguimos para Binta ficando sob o comando do COP-3 por causa de Guidaje.


Um “velhinho” da Cart 3359, que fomos render, era um camarada da minha cidade natal, que fez de cicerone para eu conhecer Farim e os seus recantos, levou-me a conhecer a Fanta que me foi devidamente apresentada, com todas as credenciais e os elogios ao seu trabalho.


Dizia ele que quando estivesse aflito com dores de amor fosse ter com a Fanta. Talvez por a tratar de forma decente e lhe mostrar afeição, não descurando a vontade que sentia dela, ela gostava de conversar comigo no pouco tempo que eu lhe podia dar atenção.


Mulher de boa conversação e de contagiosa alegria, não falava muito do pai do seu filho Mário, às perguntas que lhe faziam sobre ele, mas gostava de saber tudo o que acontecia por cá, e sabia de muitos lugares descritos fruto da sua vivência com os nossos militares.


Lembro-a sempre com ternura, pela sua permanente boa disposição, e por me tentar sempre que podia, no sentido de me desenfiar do aquartelamento de Nema para ficar em sua companhia.


Perguntava sempre por mim aos meus camaradas quando não me via, e uns mais sacanas lá diziam:
- O teu azeiteiro não está, mas descansa que ele vem.


Não que eu o não quisesse mas a actividade operacional intensa não permitia que eu ficasse fora, sob pena de levar uma porrada. E as regras eram muito claras no meu Gr Comb, ninguém podia ficar fora do aquartelamento.


Conheci muito bem o seu filho Mário,  miúdo reguila,  a quem quase toda a tropa dispensava especial carinho fruto da sua ligação a um camarada que por lá passou, e que só agora sabemos,  graças a ti, o desfecho e o destino.




Dia 13 Abril 73


Esse foi um dos dias em que vim até Farim com camaradas beber umas cervejas e visitar as tabancas, no regresso a pé para o quartel, passo pela Fanta sentada junto a sua morança e ficamos a conversar eu e mais um camarada, os outros foram seguindo para o quartel.


O tempo foi passando, e a certa altura a Fanta diz-me para ficar com ela naquela noite. Não podia ser porque tinha de ir para o mato muito cedo, fica adiado disse-lhe, e ao olhar em redor ia pensando se não era perigoso ficar ali desprotegido e sem conhecer ainda bem aquela zona (apenas dois meses de Farim).


Chegados perto do quartel demos um berro para a porta de armas a identificar-nos, já passava das 23,00 horas, embora o camarada que estava à porta de armas tivesse sido alertado para o facto de ainda haver dois que estavam fora.


Fui tomar duche com a água barrenta de Nema, e só houve tempo de molhar o corpo porque logo a seguir ouve-se a saída característica de morteiro ou foguetão, toalha à cintura e corrida para a vala, ainda a avisar aos berros os camaradas que estavam já a dormir que havia ataque.


Na corrida para a vala fui projectado contra o arame farpado raspando o meu braço no mesmo, depois de alguns minutos de ataque (eram foguetões), já estávamos a receber ordens de preparar a saída para o mato para as primeiras horas da madrugada, só depois vi que tinha sangue no braço, tinha uns arranhões.


Logo aí pensei, o que seria se tivesse ficado com a Fanta? Disse-lho mais tarde e ela deu uma risada dizendo-me que nada me aconteceria enquanto estivesse ao seu lado.


Depois da nossa ida para Binta quando nos tocava ir a Farim (era raro porque a nossa sina era para Guidaje) escoltar colunas para reabastecimento a Binta, mal se passava junto da morança da Fanta ela já lá estava a saudar-nos.


Fiquei triste ao saber que morreu.


Aceita,  caro Victor,  que este modesto e pequeno texto se associe ao teu para também eu lhe prestar a minha homenagem à tua (nossa) Fanta de Farim.


Um grande abraço
Manuel Marinho
__________


Notas de CV:


(*) Vd. poste de 24 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7171: (Ex)citações (102): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (Manuel Marinho / José Belo)


(**) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação


[...]
Não voltei a encontrar a Fanta. Confesso que durante muito tempo, após a passagem à disponibilidade, continuava a lembrar-me dela, com saudade. Tive vontade de regressar à Guiné para a visitar, saber se precisava de alguma coisa. Encontrei sempre desculpas para não o fazer.
Aproveito agora para comunicar a quem possa interessar que a Fanta Baldé faleceu em Julho de 2005 no Bairro Militar, em Bissau.

Como diz o povo na sua bondade: Paz à sua alma e que a terra lhe seja leve. 
[...]


Vd. poste posterior de 18 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4975: (Ex)citações (46): Se eu fosse mulher sentir-me-ia duplamente envergonhada... (Vitor Junqueira)


Vd. último poste da série de 9 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7249: In Memoriam (60): Morreu Fatemá, Mulher Grande de Sinchã Sambel (ex-Contabane), mãe do Régulo Suleimane Baldé (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P7317: (Ex)citações (111): Mensagens de saudade… em tempo de Guerra! (José Marcelino Martins)


O nosso Camarada José Marcelino Martins, (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos mais uma interessante mensagem, em 20 de Novembro de 2010:

Camaradas,

Junto um texto sobre um documento escrito em árabe, Não esquecer que para este texto contribuíram o nosso camarada Pacifico dos Reis e o nosso amigo Cherno, aliás sem a colaboração dele, este não existiria.

Envio, também, o relatório da operação que poderão publicar, caso o entendam.
Mensagens de saudade… em Tempo de Guerra!
Na vária/muita correspondência trocada entre mim e o nosso camarada e tertuliano Pacifico dos Reis, chegou-me a cópia de um texto em árabe que, como é natural, me prendeu a atenção.
O mesmo foi capturado, juntamente com outro material, abandonado no terreno, durante a OPERAÇÃO “LAMAÇAL”, realizada em 26 de Janeiro de 1969, executada por quatro grupos de combate, dois da Companhia de Caçadores nº 5 e dois da Companhia de Artilharia nº 2338, estacionadas em Canjadude, e destinada a retirar todo o material que não fosse necessário no destacamento do Cheche. A retirada de Madina do Boé e do Cheche, já “estava a mexer”.
De acordo com o relatório da operação, sem que a coluna parasse, foram ficando emboscados dois dos grupos de combate, exactamente os que seguiam na cauda da coluna, sendo a guarda de flanco “alargada2 para dar a impressão que tudo se mantinha inalterável.
Foi por volta das 10H45 que se registou um contacto com as forças IN, que pretendiam colocar minas no local onde, necessariamente as viaturas viriam a passar, no regresso. As baixas prováveis, segundo o relatório, foram um morto e cinco feridos.
Que tipo de documento seria/será? · Informação para uma força IN, algures na zona?
· “Ordem de batalha” para as forças instaladas no Boé?
· Instruções para algum elemento “infiltrado na tabanca?
· ???
· ??????

A melhor resposta só podia chegar através de algum que fosse capaz de traduzir o texto ou, pelos seus conhecimentos, pudesse fazê-lo chegar à pessoa certa.

Reprodução fotográfica (parcial) do documento.
© José Martins

Aos primeiros minutos do dia 15 de Novembro de 2010, pelas 00:40 horas, remetemos a seguinte mensagem ao Cherno Balde, nosso amigo guineense:

“Meu caro amigo Cherno.

Saúde e felicidade para ti e família.
Pela primeira vez te escrevo, porque ler já me é habitual e gratificante.

Chegou-me às mãos um papel que foi escrito há mais de 40 anos, que, como é natural, não consiga ler.

Assim peço-te o favor de, caso te seja possível e não ponha em causa ninguém, e especialmente o povo dessa nossa maravilhosa Guiné, o traduzas para depois o partilhar com os membros da nossa tabanca.

Em ti abraço todos os guineenses, desejando-lhes as maiores venturasUm fraterno abraço para ti.

José Marcelino Martins”

Poucas horas depois, pelas 14:16:30 o Cherno dava a resposta:

“Boa tarde amigo José Martins,

Se bem me recordo foi a partir do seu trabalho sobre as companhias metropolitanas de Fajonquito que consegui estabelecer ligação com o LG e por seu meio o Blogue da TG que tanto prezamos. No seu mais actual trabalho sobre a mesma matéria verifiquei que nós em Fajonquito estávamos enganados quanto a 2ª Companhia daquela quadrícula que indevidamente conotamos com Gadamael. Há uma pergunta minha sobre este aspecto nos comentários, que não obteve a resposta esperada. Se não se tratar do mesmo José Martins dos Gatos Pretos de Canjadude, então por favor queira identificar-se melhor para saber o que fazer em relação ao seu pedido.

Em princípio, deve tratar-se de um simples manuscrito em árabe arcaico que as pessoas que sabem ler alcorão facilmente poderão decifrar.

Um abraço amigo,

Cherno A. Balde”

Como não estou ligado em permanência à net, assim que li a mensagem, no dia 15 de Novembro de 2010 19:11, <josesmmartins@sapo.pt> escreveu:

“Sim meu querido amigo Cherno.

Sou o Gato Preto de Canjadude, José Martins, Furriel de Transmissões.

Também assino as minhas intervenções como José Marcelino Martins, quando apareceu um Capitão Miliciano, que se assinava por José Martins, e, para não haver confusões...

Um grande abraço
José Martins”

A 19 de Novembro de 2010 pelas 10:07:37 ao abrir a correio electrónico, tinha a resposta à pergunta que havia colocado ao nosso Cherno Baldé, na nossa altura um menino e, hoje, alem de Homem Grande é um GRANDE HOMEM. Apressei-me a agradecer-lhe e voltar a questiona-lo se via algum inconveniente na sua publicação.

Caríssimo Cherno

Estou muito grato pela tua colaboração na «descodificação» deste documento.

Haverá algum problema de divulga-lo no blogue, fazendo um post?

Recebe um abraço de grande amizade para ti e família
José Martins

Às 13:31:52 o Cherno respondia ao meu mail, dando “luz verde” á divulgação do texto em apreço, mas colocando, também, as suas perguntas que, tentamos responder com o presente texto.

Caro amigo José Martins,

O documento é teu, faz parte do teu/vosso espólio de guerra, suponho, e como tal não vejo qualquer inconveniente em que o tornes público, não se esquecendo que o tradutor limitou-se simplesmente a descodificar o conteúdo sem que fosse devidamente informado das circunstâncias concretas em que foi encontrado nem a finalidade que se pretende atingir com a sua publicação. De resto, também nós estamos curiosos e gostaríamos de conhecer a estória que está por detrás desta carta guardada cuidadosamente durante mais de 40 anos.

Um grande abraço,
Cherno AB.

Reprodução fotográfica do documento.
© José Martins

“Caro amigo José Martins

Na impossibilidade de o fazer pessoalmente, fui pedir ajuda a uns familiares formados na escola corânica que, sem qualquer problema, leram a carta, pois trata-se de uma epistola à maneira antiga, escrita por um Sr. cujo nome é Braima Sané que, naquele tempo se encontrava numa aldeia com o nome de Djaecunda, Djalicunda ou Djaucunda algures na região do Casamança (supõe-se) e dirigiu, provavelmente, a mesma para um familiar de nome Alfusseny Sané (Al-Hussein Sané) radicado em Canjadude, com mais ou menos o seguinte teor:

"Em nome de Allah, o Compassivo, o Misericordioso, o Senhor dos universos, que a paz e bênçãos de Allah estejam com o Profeta Muhammad S.A.W. (Sallal-láhu-alaihiwa sallam=Que Deus derrame a paz e a bênção sobre ele (o Profeta Muhammad).

De Braima Sané, na tabanca de Djaucunda para Alfusseny Sané na tabanca de Canjadude. Cumprimentos de paz para si e para toda a família. Eu Braima Sané, depois de algum tempo passado aqui (tabanca de Djaucunda), sinto uma grande vontade de regressar (para Canjadude), mas não tenho maneira/coragem de enfrentar o caminho sozinho. Estou com medo, muito medo de voltar sozinho. Por isso, peço-lhe que me envie uma pessoa de confiança para com ele fazer o percurso de regresso. O enviado deverá vir pelo caminho que passa pela localidade de Duridjal para chegar a Djaucunda. Os meus sentidos/espírito já não estão aqui e noite e dia estarei a espera da chegada do teu enviado, se possível que seja antes da festa do Idul-al-fitre (Ramadão). Tenha o cuidado de fazer tudo no maior segredo, longe das orelhas/ouvidos dos outros.

Wassalam (que a paz esteja contigo/connosco)."

Aceite um grande abraço,
Cherno Abdulai Baldé,

De Bissau, Republica da Guiné-Bissau.”

“A carta não chegou a Garcia”, quer dizer, não chegou ao destinatário, nem foi enviada ao escalão superior, nesta caso o Comando do Batalhão de Nova Lamego, na medida em que consultado um dos militares da companhia, de religião muçulmana, foi da opinião de que se tratava de “uma mezinha”, isto é, algo que permitiria ao detentor da mesma, a protecção contra o mal.

Não havia, portanto, razão para que a mesma fosse objecto de análise mais cuidada e, assim, ficou fazendo parte do espólio pessoal do comandante.

Este foi mais um “efeito colateral” da guerra que travamos. Não sabemos se Braima Sané, provavelmente um ancião, chegou a regressar a Canjadude, mas sabemos, pela leitura da carta, que sabia os riscos que essa deslocação envolvia.

Quase 42 anos depois deste episódio e 37 anos depois de terminada a nossa intervenção naquele território, resta-nos dizer, se é correcta a sua aplicação nestes termos, da última palavra do texto analizado:

Wassalam
(que a paz esteja contigo/connosco)

Pacifico dos Reis / Cherno Baldé / José Marcelino Martins
20 de Novembro de 2010


2. RELATÓRIO DA OPERAÇÃO “LAMAÇAL” (Coluna Canjadude – Cheche) em 26JAN69 – JP 6

01. Situação Particular (a mesma que em PR 2)

A Unidade encontra-se destacada em Canjadude com 02 Grupos de Combate, conjuntamente com a CART 2338, com um efectivo de 03 Grupos de Combate. Tem esta Unidade um destacamento em Cabuca com 1 Grupo de Combate e em Nova Lamego 1 Grupo de Combate.

02. Missão da Unidade

Escoltar uma coluna para trazer do Che-che todo o material e pessoal não necessário à defesa deste.

03. Força Executante

a) Capitão de Cavalaria Pacífico dos Reis
b) 1º Grupo de Combate da CART 2338 – Alferes Diniz
4º Grupo de Combate da CART 2339 – Furriel Martins
1º Grupo de Combate da CCAÇ 5 – Furriel Cardoso
3º Grupo de Combate da CCAÇ 5 – Alferes A. Sousa

Secção Comando Dragão

2 Guarnições do Pelotão de Reconhecimento Daimler 1258
c) 4 Grupos de Combate
d) 1 GMC (Sapadores + Secção de Comando Dragão + Comandante) – 1 Daimler - 1 GMC (1 Grupo de Combate da CCAÇ 5) – 1 GMC (Posto Rádio) - 2 Unimogs (1 Grupo de Combate da CCAÇ 5) - 1 Daimler – 2 Unimogs – 1 GMC (1 Grupo de Combate da CART 2338)

e) 1) ---------------

2) 2 Granadas de mão defensivas e 1 granada de mão ofensiva por homem; 2 elementos com dilagrama por grupo de combate.
3) -----------------
4) 5 Cunhetes 7,62 mm distribuídos pelas viaturas.
5) -------------------
6) Material de Transmissões: 5 National
2 Sharp
5 Onkyos
1 PRC-10
1 AN/GRC 9

04. Planos Estabelecidos

Seguir pela estrada Canjadude – Che-che, picando a estrada, com guardas de flanco esquerdo a cargo dos Grupos de Combate da CCAÇ 5 e guardas de flanco direito a cargo dos grupos de combate da CART 2338. Deixar em andamento os dois grupos de combate da retaguarda, emboscando em Sare Andebe e a 1 quilómetro do Che-che, que se retirariam para o Che-che caso a coluna não passasse por eles até às 15H00. Não havendo possibilidade de carregar tudo até às 14H00, a coluna aguardaria o dia seguinte para seguir para Canjadude.

05. Desenrolar da Acção

Partida de Canjadude em 260630JAN69. A seguir à bolanha a Sul de Canjadude começou a picagem e foram montadas guardas de flanco. Foram montadas duas emboscadas e imediatamente se alargaram os flancos para não dar a entender ao IN que tinha ficado pessoal para trás. Cerca das 10H45 ouviram-se rebentamentos seguido de forte tiroteio na região onde estava montada a emboscada a cerca de 1 Km do Che-che.

Saí imediatamente com dois grupos de combate para Oeste do Che-che de forma a cortar a retirada ao IN, pois os rebentamentos ouviam-se para esse lado. Apercebi-me, posteriormente, serem rebentamentos das granadas dos lança rocketes que passavam por cima das arvores e que o IN estava a Este.

Fomos dar com um vigia IN que se encontrava a cerca de 500 metros do Che-che a vigiar a nossa saída e que tinha feito algumas rajadas de PPSH quando da saída dos grupos de combate de socorro. Foi perseguido pela mata mas conseguiu fugir.

O pessoal de socorro recolheu ao Che-che e como se encontravam as viaturas carregadas e os T 6 só viriam as 15H00, mandei fazer fogo de morteiro 81 para os lados do Rio Campossabane, e mandei seguir a coluna para o local da emboscada para ser feita a batida da zona.

Foi feita uma batida com dois grupos de combate até ao Rio Campossabane, tendo sido encontrados diversos trilhos IN e algum sangue e diverso material.

Foi quando o comandante do pelotão emboscado relatou o seguinte: que se emboscara há cerca de meia hora quando foi informado que um grupo IN, de cerca de 40 elementos comandados por um branco, se dirigia para a clareira.

Foi ver e, realmente viu, o grupo IN dando mostras que estavam a escolher um local para montar minas a cerca de 200 metros. Alertou o pessoal e mandou iniciar fogo de Lança Granadas Foguete e Morteiro 60 cm e, quando o grupo se encontrava todo reunido uma granada caiu no meio do grupo.

Imediatamente de desencadeou a emboscada, tendo o IN fugido em todas as direcções. Da mata ripostaram com metralhadora pesada, lança rockets, PPSH e espingardas automáticas, devendo ser o grupo que se encontrava a montar a emboscada, enquanto o pessoal montava as minas.

O IN reagiu durante 10 minutos, seguindo-se a fuga. Em seguida à batida, a coluna seguiu para o local onde estava emboscado o outro grupo de combate, que se recolheu, seguindo a força montada, protegida pelos T 6, chegando a Canjadude em 261630JAN69.

06. Resultados Obtidos

Baixas possíveis:
1 Morto
5 Feridos

Material capturado:
3 Granadas lança rockets,
1 Carga de lança rocket,
4 Granadas de mão defensiva de origem checa ou chinesa,
1 Carregador da arma PPSH,
1 Carteira com diversos documentos de em nome de José Correia,
1 Estatuto da Caixa Nacional dos Trabalhadores da Guiné.

07. Serviços

2 Dias a ração de combate,
Água do Rio Corubal,
1 Sargento Enfermeiro e 2 Enfermeiros,

Munições consumidas:

Da CART 2338:
Munições 7,62 mm – G 3 1200
Granadas de mão ofensivas 2
Granadas de mão defensivas 25
Dilagramas 12
Granadas LGF explosivas 8
Granadas LGF fumos 4
Granadas morteiro 60 15

Da CCCAÇ 5::
Munições 7,62 mm – G 3 600
Granadas de mão ofensivas 8
Granadas de mão defensivas 12
Dilagramas 6
Granadas LGF explosivas 6
Granadas LGF fumos 3
Granadas morteiro 60 18
Granadas morteiro 81 8

08. Apoio Aéreo

Não houve apoio aéreo, nem T6 nem PVC, no deslocamento de Canjadude – Che-che.

Chegou às 2615300JAN69 acompanhando a coluna desde Sare Andebe até próximo de Canjadude

09. Ensinamentos Colhidos

- Não havendo contacto com a força emboscada por levar só um PRC-10, a força de socorro seguiu para o lado contrário, quando se fosse para a direita podia cortar a retirada ao IN:

- Um dispositivo que facilitou o sucesso foi os grupos de combate que emboscaram, terem-no feito em andamento, continuando sempre a coluna, o que permitiu que o IN não visse o pessoal a emboscar;

- O dispositivo era montar minas na clareira, montar emboscada na mata, enquanto um vigia avisava a nossa saída do Che-che. Emboscada igual feita a uma coluna em Maio de 1968.

10. Diversos

Munições:

Não saíram do tubo três granadas do LGF.
Transmissões:

Os E/R GRC-9, PRC-10, Onkyos e Sharp, funcionaram sempre em boas condições mantendo contacto durante todo o percurso.

Pessoal:

- Furriel Miliciano de Artilharia nº mecanográfico 04888665 António Lourenço da Costa Martins, da CART 2338, comandando um Grupo de Combate com um efectivo de 18 homens manteve a calma e a serenidade necessária para desencadear a emboscada no melhor momento com todas as armas do Grupo de Combate, sobre um grupo IN muito superior em número.

Com o seu avontade, energia e sangue frio, incitando os seus homens que aguentaram o fogo IN, superior em armamento, até à chegada da força de reforço. È de salientar por este comando a maneira disciplinadora e o trabalho operacional do Furriel Martins como comandante do 4º Grupo de Combate.

–1º Cabo nº mecanográfico 02496167, Mário Soares Moreira, Apontador de L.G.F., fez fogo de pontaria com o LGF para o meio do grupo IN, acertando no meio deste e continuando a fazer fogo de pé e seguido de forma a bater toda a zona onde se encontrava o IN. A sua calma, serenidade e avontade, foi salutar exemplo para todos os homens do seu pelotão.

- Soldado nº mecanográfico 04283266, António da Silva Loura Dias, da CART 2338, sendo apontador de morteiro 60 e tendo gasto todas as munições que estavam junto dele, correu por todos os elementos do grupo de combate, debaixo de fogo, para se renunciar levando-as para junto dele, continuou calmamente a fazer fogo sobre o IN, tendo batido toda a zona onde estes se encontravam.

- Soldado nº mecanográfico 82024168, Tungue Fute, avançou para um morro de mata cerrada onde se tinha detectado fogo IN de PPSH, em pé a peito descoberto a fazer lançamento de dilagramas.

Documentos Anexos

Material danificado e extraviado

01 – Causas que motivaram a danificação e extravio:

Passagem das guardas de flanco por mata cerrada. Contacto com o IN durante cerca de 20 minutos.

02 – Da CCAÇ 5
E/R Sharp 60736653 e 60736635, antenas partidas

Da CART 2338
E/R Sarp 60736122 e 60736143, antenas partidas
E/R Onkyo, antena extraviada.


José Marcelino Martins

Fur Mil Trms da CCAÇ 50

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

19 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7307: (Ex)citações (110): Se não discutir com os meus amigos que são diferentes, mas meus amigos, discutirei com quem? (José Brás)

Guiné 63/74 - P7316: Notas de leitura (175): África Dentro, de Maria João Avillez (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
Preciso que alguém mais venha comigo, amanhã à noite, tenho carga a mais, ou deito fora as camisas e não levo artigos de higiene, ou é incomportável a caterva de livros, roupa e outras solicitações.
Se tudo correr bem, até vai ser comovente.
Tenho as fotografias das lavadeiras do Jaime Machado, vou visitar os Soncó em Bissau, ponto alto será a entrega ao director do INEP das cartas geográficas da Guiné, uma terna lembrança do Humberto Reis. E por aí fora. Aliás, devia ser o Humberto a vir comigo, tenho a certeza que vou borrar a escrita quando começar a tirar fotografias. Haja saúde, o que não tenho em talento é suprido pela profunda estima.
A aventura está prestes a começar.

Um abraço do
Mário


A Fundação Gulbenkian e a Guiné-Bissau

Beja Santos

Data dos anos 60 a intervenção da Fundação Gulbenkian num conjunto impressionante de projectos envolvendo as antigas colónias portuguesas, hoje os PALOP. A Gulbenkian dotara-se do Serviço do Ultramar, actual Programa Gulbenkian de Ajuda ao Desenvolvimento. As fundações, tal como os institutos ligados à cooperação e desenvolvimento da responsabilidade de alguns Estados desenvolvidos, tiveram a preocupação, durante os anos 70, de promover programas de combate à pobreza e à satisfação das necessidades básicas das populações. Esta e outras abordagens redundaram em fracassos, havendo hoje novas concepções que passam pela intervenção de forma conjugada de governos, organizações internacionais e grupos verdadeiramente representativos da sociedade civil, no pleno respeito pela cultura dos povos destinatários da ajuda. É esta a estratégia actual da Fundação Gulbenkian e em jeito de balanço desta nova lógica de trabalho, a Gulbenkian convidou a jornalista Maria João Avillez a visitar e a comentar a evolução dos projectos em marcha. Nasceu assim o livro “África Dentro”, por Maria João Avillez (Texto Editores, 2010).

Sumariamente, trata-se de uma reportagem que retrata o caminho percorrido pela Gulbenkian nas áreas da Saúde e da Educação em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e S. Tomé e Príncipe. É um impressivo depósito de informação que abrange a construção de hospitais e centros de saúde, o investimento em saúde materno-infantil e na investigação de doenças infecciosas, programas de formação e valorização de recursos humanos, apetrechamento de bibliotecas, modernização do sistema educativo, são algumas das dimensões da intervenção da Gulbenkian nestes cinco países africanos, testemunhados pela jornalista neste livro.

Vamos falar da Guiné-Bissau. Maria João Avillez traça os principais aspectos da vida económica e social do país e refere os índices sombrios que abrangem os rendimentos, a esperança de vida, a mortalidade infantil e o analfabetismo, para destacar como a Guiné-Bissau se encontra destruturada, as instituições fragilizadas, com caos administrativo e índices elevadíssimos de corrupção. A visita começa pelo INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, é aqui que se coordenam todas as actividades de investigação científica da Guiné-Bissau. O INEP opera num sistema de parcerias de cooperação com universidades e instituições portuguesas mas também com as de outros países como Brasil, Alemanha, Suíça e EUA.

Em conversa com o seu director, o antropólogo Mamadou Jo, são passados em revista os problemas e as actividades da instituição. O INEP foi altamente vandalizado durante a luta militar em 1998-1999, desapareceu uma parte fundamental do seu espólio. A Gulbenkian tem contribuído para a recuperação quer dos equipamentos quer do acervo documental. O INEP está orientado para três vectores da investigação: história e antropologia; área socioeconómica; e estudos ambientais, novas tecnologias e informática. O projecto da Faculdade de Direito de Bissau remonta ao final dos anos 80, baseia-se num protocolo de cooperação entre Portugal e a Guiné-Bissau no seu acordo de cooperação jurídica. Depois de muitas vicissitudes e interrupções nas suas actividades, fizeram-se provas de admissão dos novos alunos para o ano de 2001-2001. Este projecto é encarado como uma das pedras de toque para a consolidação do Estado Direito na Guiné-Bissau. Maria João Avillez viu aulas repletas de alunos, uma biblioteca frequentada, um rol de iniciativas em marcha. No ano de 2008 o número de alunos era de 390 e o total de licenciados, desde que a faculdade iniciou a sua actividade é de 2008. O Doutor Fernando Loureiro Bastos é o assessor científico da casa e relatou à jornalista não só as actividades docentes como a escolha dos bolseiros que permitirá que a Guiné-Bissau, a prazo, se dote de uma classe científica.

Um ponto alto da reportagem passa pela descrição da Fundação Evangelização e Culturas, criada pela Conferência Episcopal Portuguesa. Esta Fundação dá suporte a projectos do ensino básico e tem como grupo alvo professores, directores de escolas, formadores, bibliotecários e comunidades em geral. É uma reportagem esplêndida de vida e confiança no futuro, assenta num profundo estímulo à dignidade do ensino. A jornalista, aliás, visitou em Bissau um projecto de eleição que é a Escola António José de Sousa.

Passando para a área da saúde, a jornalista acompanha o trabalho da organização não-governamental de desenvolvimento comunitário VIDA, as suas unidades de saúde com destaque para o projecto Jirijipe que tem os seguintes objectivos: melhoria de acesso a cuidados de saúde materno-infantil; desenvolvimento de intervenções que possam envolver imunização, malária, infecções sexualmente transmissíveis; desenvolvimento do sistema comunitário de saúde. Também a Missão Católica Franciscana de Cumura tem sido apoiada pela Gulbenkian. Para além de um serviço de saúde pública de referência, dá-se assistência aos leprosos e aos doentes infectados com SIDA. A jornalista entrevista responsáveis da área da saúde e recolhe as expectativas desses dirigentes que confiam nas instituições de cooperação não só na luta contra as doenças como nos programas básicos de educação para a saúde. Recorde-se que a Gulbenkian está a apoiar a edificação dos três centros de saúde de Bissau. Não se escondem as tremendas dificuldades e carências com que vive todo o sistema de saúde, muitas vezes inoperante e quase sempre deficitário.

Esta “África Dentro” permite-nos uma informação básica sobre a cooperação da Gulbenkian nos projectos da educação e da saúde.

A seu tempo, deveremos constituir no blogue o menu de todas as instituições que actuam, com ou sem parcerias, na cooperação e no desenvolvimento na Guiné-Bissau.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7310: Notas de leitura (174): Fuzileiros – Factos e Feitos na Guerra de África, Crónica dos Feitos da Guiné, de Luís Sanches de Baêna (3) (Mário Beja Santos)

domingo, 21 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7315: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (8): Canquelifá e o desporto - Provas de Periquitos

1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 19 de Novembro de 2010:

Caro Vinhal
Ai vai mais uma das "Memórias boas da minha guerra".

Um grande abraço do Silva


Memórias boas da minha guerra (8)

PROVAS DE PERIQUITOS

Viviam-se dias calmos naquela “estância termal” de Canquelifá, no nordeste da Guiné, no final da comissão. O trabalho limitava-se a serviços de manutenção e a alguns pequenos patrulhamentos, a nível de Pelotão.

A população nativa cuidava pacatamente do seu gado, enquanto alguns deles vigiavam o “inimigo”, em cima de palanques feitos de troncos de árvores, colocados no meio do mancarral. De lá gritavam impropérios em idiomas locais, afugentando o “inimigo” – bandos de periquitos – ao mesmo tempo que lhes atiravam pedras, evitando que comessem os amendoins.

O Silva e a sua periquita

Dado o interesse da tropa por esses pássaros encantadores, para os apanharem e, por vezes, para os venderem, colocavam cola na rama da mancarra (amendoim), que os prendia pelas asas.
Ora, o pessoal da Cart 1689 andava entretido com um novo desporto: competições com periquitos e com um novo divertimento de domesticar periquitos.

As cenas abaixo descritas decorrem na parada, local espaçoso e apropriado para a actividade desportiva, aqui levada ao mais alto nível. A assistência era considerável.

Faziam-se apostas e ouviam-se os mais variados comentários.

- Força Spartacus! Anda, que vamos ganhar! – gritava o Mafamude.

- Força Ben Hur! Ataca, que até os comemos! - gritava o Matosinhos.

Um e outro em tronco nu e a transpirar ao sol, procuravam, através da imagem verbal, aproximar o seu desempenho ao dos respectivos ídolos bíblicos, promovidos pelo cinema, mas o físico de 1,50 e picos não estava compatível com tais ideias.
A inspiração nas quadrigas romanas, encontrou eco nas latas de conserva, que reluziam mais que os ditos carros das quadrigas, seguramente devido à limpeza prévia das formigas.

Tanto um como outro, os periquitos em competição (quais “aprendizes de equídeo”), de voos cortados e presos ao atrelado, lutavam entre si para alcançarem em primeiro lugar o ramo de mancarra colocado na meta traçada no chão, uns metros à frente.
Nesta final ganhou o periquito do Matosinhos porque, de repente, lhe mostrou uns amendoins já descascados. O Mafamude gritava pelo árbitro Nogueira (futuro árbitro da elite do nosso futebol) para reclamar:

- Não vale, não vale, este gajo fez trafulhice!

Ali mesmo, a cerca de 20 metros, decorria, em simultâneo, outra final de competição:

- Corre Djando, corre e come-lhe a mancarra – gritava o Sousa.

- Sprinta Jaburu, não sejas morcon - repetia o Tripeiro.

A mancarra era colocada no centro da meta e os periquitos, soltos em simultâneo, corriam para lá.
Ganhou claramente o Jaburu que atravessou a meta em primeiro lugar, seguindo em direcção ao Tripeiro que, mesmo em frente, lhe acenava com um porta-chaves brilhante, com o emblema do FCP.

Nova reclamação, junto do Nogueira, que foi “injustamente” aceite. O reclamante alegou “que o periquito fora escravizado para seguir cegamente esse emblema e não ligou nada à competição ”.

Ainda na mesma zona, já perto da messe, podia assistir-se aos mais variados treinos, tendo também em vista a superação do esforço e a optimização da técnica, aliás bem patente mais na vontade dos treinadores do que na dos competidores - periquitos. Numa primeira fase, o treino consistia em mandar o periquito saltar de um dedo indicador para o outro.

- Salta periquito! Salta!

O treinador Bazaruco aposta tudo no:

- Salta, filho da puta! Salta, se não dou-te cabo do canastro!

Mas o Varzim, tinha outros modos. Acariciava o seu pupilo e dizia-lhe baixinho:

- Salta Tarzan, que eu arranjo-te uma Jane! Salta!

O Dias, açoriano, também andava entusiasmado com essas sessões de treino matinal. Curiosamente, tal como o Fiscal, não tinha sorte com os seus amestrados, possivelmente devido ao hálito repelente que exalavam. O Fiscal, que ressacava continuamente nas manhãs do dia seguinte, nunca estava em forma e não conseguia os seus intentos. Mas isso era, também, porque quase todos os dias mudava de instruendo. Já tinha os dedos cheios de adesivos, devido às trincadelas que lhe davam. Normalmente, vingava-se de forma cruel. Por sua vez, o Dias, além da habitual ressaca, exibia um sorriso tenebroso, devido às deficiências dentárias, capazes de repelir qualquer periquito…

Ali próximo, estirado na rede à sombra das mangueiras, com as mãos atrás da nuca, o Alferes, que acabara de mastigar algum mata-bicho, ia soltando gargalhadas. E eu, noutra rede, não ria tanto como ele, apesar de estar a ler uma das obras proibidas do José Vilhena.

De repente, o Dias dá um grito enorme:

- Ah seu grande filho da puta! – ao mesmo tempo que sacudiu fortemente a mão direita com o periquito ainda mordendo tenazmente o dedo indicador. Quando o periquito se desprendeu, bateu no chão com tal força que, depois de um palrar meio cacarejado, ficou morto no chão.

O Dias seguiu, uma vez mais, para a Enfermaria e o Alferes levantou-se, agarrou no desgraçado por uma pata e chamou em voz alta na direcção da cozinha:

- Ó Faxina, Faxina! Prepara mais este!

Silva da Cart 1689

"O sorriso do Dias" (ao fundo, vę-se o Condesso compenetrado a escrever, alheio aos festejos apalhaçados dos gajos da 1689 - festejava-se mais um mês de degredo)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 22 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7159: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (5): Até beber urina

Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6951: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (7): O Miranda e a sua adoração pelo Fê Quê Pê