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Queridos amigos,
Não se trata de um testemunho qualquer, o seu autor é um conceituado escritor camaronês que nasceu e viveu a sua infância e juventude numa colónia. Regressa décadas depois e dá de caras com uma independência fictícia, uma ditadura que os sucessivos governos franceses deram cobertura.
Os Camarões não andam muito longe do que se passa hoje no Ocidente: os ricos estão cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres. Há momentos em que parece que estamos em viagem no inferno, partilhamos a mágoa do escritor. E, incidentalmente, confrontamos os arremedo de regime democrático que irromperam nesta região africana depois da queda do muro de Berlim, e pensamos na Guiné-Bissau.
Garanto-vos que as analogias são fortes.
Um abraço do
Mário
Há alguma analogia possível entre os Camarões e a Guiné-Bissau? (1)
Beja Santos
O escritor camaronês Mongo Beti (falecido em 2001), é reconhecidamente uma das figuras de topo da intelectualidade do seu país, deixou-nos obras emblemáticas da moderna literatura africana. Atraiu-me o seu livro “A França contra África”, Editorial Caminho, 2000, ao folhear o livro apercebi-me do vigor da escrita, da dor contida a descrever um país em descalabro, trouxe o livro para casa e devorei-o como um depoimento incomparável de um cidadão bem documentado e muito torturado pelas infelicidades que reinam na sua pátria.
Mongo Beti concluiu o liceu e foi estudar para França em 1951, aqui se diplomou e foi professor. No início da década de 1990 voltou ao país e o resultado é este documento pungente, rigoroso e que me obrigou a refletir quanto à superficialidade das mudanças operadas depois da queda do muro de Berlim, no continente africano. E sem esforço fui resvalando para um conjunto de analogias entre países da África Ocidental que têm tido percursos transviados.
O país que aqui Mongo Beti descreve na sua escrita lancinante, mas muito bela, remete-nos para o fracasso da visão ocidental sobre a sua conceção das democracias africanas, a cooperação, a ajuda humanitária e o formato padronizado pelos valores culturais aqui existentes. As antigas potências coloniais deixaram vingar falsos modelos de desenvolvimento que acabaram na criação de grandes cidades, hoje incontroláveis (como é o caso de Lagos) e na delapidação de recursos e a formação de castas económicas e financeiras na órbita do poder ditatorial.
Mongo Beti mostra-se embevecido com a vida aldeã da sua terra-natal e a sua disposição espacial, reconhece que este modelo da organização do espaço denota uma vincada cultura, possui este habitat um equilíbrio extremamente delicado e miraculosamente preservado:
“A antropologia Ocidental, tão loquaz sobre estas civilizações, não se apercebeu deste facto. Sob a sua influência, nem uma administração colonial nem os governos africanos que lhe sucederam pensaram em pôr de alguma maneira tais predicados ao serviço do desenvolvimento”.
O autor identifica uma paz social que não tem equivalente no Ocidente, visto dispor cada indivíduo de terrenos para cultivar, num contexto de igualitarismo. Não se trata de uma observação idílica, não se ilude a miséria a que este povo está subjugado, fala-se da mulher como pilar da sociedade, dos dramas do êxodo rural, dos tremendos desequilíbrios demográficos, das cidades sem emprego.
Destaca-se a ausência de líderes e o vazio hierárquico, a ditadura gerou uma sociedade totalmente invertebrada. O autor encara a aldeia como o único elemento credível de dinamismo e de iniciativa e acusa a ditadura: “Tudo a extorquir a aldeia, sem nada lhe dar em contrapartida, tais parecem ser a divisa e a fatalidade do Estado”.
Os Camarões e a Guiné-Bissau são países distintos. O país francófono viveu sob a monocultura do cacau, tem uma grande superfície, mas há paralelismos que nos fazem pensar. Ele estudou uma pequena cidade chamada Mbalmayo, a uns 50 quilómetros a Sul de Yaoundé, a capital e fala-nos na decrepitude da cidade, nas ruas esburacadas onde os automóveis não podem andar a mais de 5 km/h, obrigados a desviar-se dos buracos que os espreitam. Por toda a parte montes de lixo, não há bombeiros, não há polícia, o viajante tem uma sensação persistente de anarquia: peões e viaturas disputam os raros espaços. O comércio atrofiou-se, não há investimentos. E sentimos o mesmo amargor quando nos descreve Yaoundé:
“Aqui encontram-se todos os vícios da demência da África francófona. Os edifícios que abrigam os ministérios são edificados num estilo desconhecido, uma espécie de barroco mourisco que roça o puro delírio surrealista. Um arranha-céus nunca acabado por falta de dinheiro ergue o seu gigantesco coto para as nuvens. Bairros de aspeto muito urbano estão afogados no meio de aldeias africanas, bairros de lata em que as ruas são de terra batida e que a cada passagem de um automóvel são assoladas por um turbilhão de pó vermelho que sufoca os peões e se agarra ao vestuário (…)
Cidade de políticos corrompidos, demasiado depressa enriquecidos em detrimento do Estado, de funcionários conformistas, muitas vezes desonestos, e de empregados de escritório indolentes, Yaoundé não tem indústrias. Os desempregados, diplomados disfarçados de vendedores ilegais, pululam, assim como as prostitutas, disfarçadas de costureiras ou cabeleireiras, os muitos jovens vagabundos vivendo de pilhagens, os desocupados cínicos, toda uma arraia-miúda quase sempre numa situação desesperada de tal modo precária é a sua situação”.
E disserta sobre as grandes metrópoles africanas:
“As megalópoles africanas estão condenadas a tornarem-se oceanos de bairros-de-lata votados à anarquia, à miséria, ao crime. Como, por exemplo, integrar as hordas de jovens que submergem estas metrópoles, quando os Estados não têm absolutamente nada para lhes oferecer no domínio da educação e muito menos ainda na do emprego?”.
Estas são as cogitações que nos deixa sobre a vida de aldeia e da cidade. A seguir fala da vida quotidiana, de um sistema universitário paralisado, de uma liberdade de expressão fictícia, o partido único recorre a todos os expedientes para sufocar a crítica, as comunicações são dispendiosas e morosas, o sistema sanitário, as deslocações, a segurança afundam-se. E temos o sistema policial completamente arruinado, aquele país africano é o inferno das barreiras policiais:
“Se algumas barreiras são fixas, outras nascem e desaparecem ao sabor das circunstâncias. As barreiras fixas estão equipadas com um dispositivo, em que aquilo em que se repara sobretudo é uma comprida vara de madeira que se ergue ou se baixa de acordo com a vontade dos polícias. Mas as barreiras ligeiras, que são assinaladas por dois bidões vazios colocados de qualquer maneira na estrada, e ladeados por uns trangalhadanças de uniforme, são as mais numerosas”.
Polícias que vivem de extorsão, explorando os pequenos transportadores, é uma tremenda vigarice, um círculo vicioso em que o Estado é o único a não ganhar nada. E conclui:
“Os polícias, mal pagos, são tentados a transformarem-se em bandidos, muitos não resistindo à tentação de um atividade simultaneamente lucrativa e mito pouco arriscada”.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de Setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17786: Notas de leitura (997): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (1) (Mário Beja Santos)