segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7427: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (34): A fama que vamos tendo por aí (César Dias)

1. Mensagem de César Dias* (ex-Fur Mil Sapador da CCS/BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71), com data de 11 de Dezembro de 2010:

Carlos,
Envio-te este e-mail que recebi só para veres a fama que vamos tendo por aí, este foi um camarada da recruta que seguiu depois para Angola, mas ficou doido com a dimensão do nosso blogue, disse-me que por ali podem fazer a história da guerra da Guiné.

Um abraço Carlos
César Dias


2. Olá César
Aqui vai o teu mail que enviei para os meus amigos.
Esta foi a minha prosa.

Abraço
Hipolito

3. Assunto: Maior Blog-Guerra Colonial-Guiné

Meus Amigos
Um ex-camarada da Recruta enviou-me um mail com este Blog que acho fantástico.
Nele está uma foto em que este vosso amigo se encontra. Foi no Juramento de Bandeira.

Na foto do dia 24 de Novembro, estou ao lado do camarada com a elipse a azul.
Situações do acaso. Este meu ex-camarada soube de mim através de algo que enviei para a revista do Combatente. Viu o meu nome (pouco comum) e o meu mail. Contactou-me e agora temos posto a nossa vida em dia.

Abraço
Hipolito



Recapitulando. Na foto: A encarnado Tony Levezinho, a azul César Dias e a amarelo Hipólito http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search?q=%22P7325%22


4. Comentário de CV:

Que se pode acrescentar?
Contra ventos e marés somos aquilo que somos e não aquilo de que nos querem apelidar.
Este comentário tem destinatário, pelo que a tertúlia deve ignorá-lo.

O camarada Hipólito fica no nosso Blog, nesta foto, assinalado a amarelo, ao lado do nosso camarada César Dias, por sua vez assinalado a azul.

Pela minha parte, pelo que fizeste do teu (nosso) blogue, obrigado Luís Graça.
CV
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7279: Parabéns a você (172): César Vieira Dias, ex-Fur Mil Sapador da CCS/BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71 (Editores/Tertúlia)

Vd. último poste da série de 11 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7420: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (33): Tradutora pede ajuda ao nosso blogue para as expressões zone-call e clock-code, usadas em especial pela artilharia (José Martins)

Guiné 63/74 - P7426: As nossas mulheres (11): Mulher é ...mulher (José Brás)

1. Andam os editores a tratar de um assunto delicado, um texto enviado por um camarada que nos suscita algumas dúvidas quanto à forma e ao conteúdo.
Pedimos opiniões a alguns camaradas, entre os quais incluímos o nosso tertuliano José Brás.

Depois de alguns considerandos, explanando a sua opinião, brindou-nos com este texto, para cuja publicação pedi a devida autorização.

Eis o exemplo de palavras, que ordenadas, nos transmitem uma sensação de melodia, harmonia e beleza.




2. Mulher é ...mulher!

No meu fraco modo de ver, acho que a mulher é a mais acabada síntese da beleza que só o universo encerra.

Mulher/mãe, mulher/irmã, mulher/amante, mulher companheira desta coisa complicada e lindíssima que é o viver, não merece peças daquelas e infelizmente é o que tem tido mais em vastos lugares do mundo, por vezes ao lado da nossa porta.

Séculos correram na crença do tal sexo fraco, da ideia de uma cópia mal feita de homem, incapaz de se encarregar de muitas e, sobretudo, de grandes tarefas.

Orgulhoso de seu erecto falo, o homem levou séculos para perceber a superioridade sexual da mulher, face à fal(ácia) da sua tão precária potência.

Encurralado pelo preconceito de macho, o homem nem percebeu que estava a deitar fora o melhor da festa, na recusa do que havia trazido da barriga da mãe mas que achava mais próprio de fêmea, a ternura, a sensibilidade, a vontade de partilhar, com isso, encurtando o acto meio comprado e consumido à pressa.

Podem bater-me, se assim o entenderem, porque não me coíbo de dizer que em minha opinião, a mulher é um ser mais perfeito e mais capaz do que o homem.

Não o digo apenas porque na minha longa experiência de piloto e de instrutor de voo, as mulheres foram os melhores alunos que tive. Entendendo mais rapidamente a matéria teórica, mais corajosas na aventura do voo, com maior sensibilidade para entender ao espaço, o movimento no espaço e os gestos necessários para manobrar.

Digo-o também por ter ouvido a Sobrinho Simões quando fala disso.

Digo-o também por ter ouvido a José Júlio, um dos maiores espadas da "toureria" portuguesa, de grande nome nas praças espanholas, anos a fio no topo do "escalafon" em duelo com os grandes nomes do seu tempo, hoje dirigindo uma escola de toureio em Vila Franca . Diz ele que a mulher tem maior noção do tempo e do espaço da lide, maior plasticidade nos passes e coragem que nunca é inferior à dos homens, sendo pena que os namorados lhe acabem por impor fim a uma carreira,

Poderia dar muitos outros exemplos mas não o farei porque me parecem suficientes estes que aqui trago.

Mulher, branca, negra, amarela... é ser para partilhar vida em igualdade de direitos e deveres de cidadania, de companheirismo e de amor.
E isso nada tem a ver com falsos conceitos de recusa da "mais velha profissão do mundo".

A mulher vende o corpo por muitos e secretos motivos individuais e também por consequências sociais que a empurram para tal prática.

No fundo, porque hoje me está a apetecer gramar com muitas críticas de milhentos camarigos que não me acompanham neste pensar, eu adianto ainda que é o corpo que qualquer operário vende quando, pelo trabalho e pelo salário, cria riqueza tangível ou intangível.

E digo mais ainda. É muito mais que o corpo que o poeta vende, quando coloca no mercado o produto das suas ânsias individuais, a sua alma e a sua subjectiva interpretação da vida e do mundo.

E nunca ouvi que lhe chamassem prostituta!
E a fechar...


3. Queria

Queria falar-te amor
deste veludo interior
que me afaga
nos sentidos
destes dedos/raizes
escalavrados aéreos/elos
do corpo fugitivos
na ânsia que sentem
pelo abismo
queria falar-te eu
mas no tom
de quem espalha a confiança
como um deus antigo
ou então
com a voz rouca
de incerteza
o gesto demorado
do pudor
os olhos vadiando-te
o corpo/mar
a ti mulher
depósito grandioso
e secreto
da ternura
queria eu falar
do meu amor
mas como
se nos separa já
a distância
à estrela da manhã?


José Brás
Toronto, 1987


4. José, permite-me que transcreva no teu poste uns versos que guardei há muitos anos, de José Gomes Ferreira**

CABARET
(À infalível prostituta, a um canto)

Se eu quisesse, tornava-te humana
Fazia-te chorar
as lágrimas que trago em mim
E beijava-te na boca
a menina que ainda existe
no fundo dos teus olhos
Mas não quero
Prefiro ver no teu corpo
o desenho da minha indiferença.
E sentir-te na pele
tudo o que há de vil na minh'alma
...e já não cabe em mim

__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7396: (Ex)citações (117): Transição da Soberania da Guiné, Idiotas e Ressabiados (José Brás)

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6667: As nossas mulheres (17): Um pouco de mim (Ana Duarte)

(**) Em tempo: Informação prestada pelo nosso camarada Alberto Branquinho, porque eu desconhecia o autor dos versos que guardei durante dezenas de anos.

- Imagem retirada da Internete. As devidas vénias ao seu autor

domingo, 12 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7425: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (3): Dia 21 de Novembro de 2010

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Dezembro de 2010:

Malta,
Acabou-se a vagabundagem, Fodé Dahaba é o condutor dos eventos. Comecei o dia em apresentações, consegui uns minutos para ir até à Missão do Sono, depois a ponte do rio de Udunduma, Amedalai, Taliurá, Ponta Coli, Xime e Ponta Varela. Nos intervalos, bebi água, comi bolacha Maria, banana-maçã e goiaba.
Enquanto comprava fruta fui abordado por Demba Embaló, que me disse ser guarda-costas do Jorge Cabral e obrigou-me a escrever: 19662, espero que não seja nenhum código secreto, talvez um número mecanográfico.
Outro Demba, Demba Djau, anunciou-se: “Pertenci ao 1.º Pelotão da CCaç 12, peço a todos que me escrevam”.
E agora Lorde Torcato de Mansambo que se acautele: um tal Mamadu Baldé, que se apresentou como pertencente ao pelotão de milícias de Candamã, perguntou por ele. Amanhã, em Samba Juli, começarei as inquirições de que ele me incumbiu.
A minha vida mudou: jantar cedo, deitar cedo, levantar cedo. À cautela, tirei uma fotografia do pôr-do-sol, no Bairro Joli, sobre as bolanhas de Finete e Chicri. Deixara, em definitivo, o chão multiétnico de Bissau, pé entre pé estava a mergulhar no meu mundo.
Amanhã de manhã, vou atravessar Bambadinca sempre com os olhos rasos de lágrimas.

Um abraço do
Mário


OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (3)

DIA 21 DE NOVEMBRO DE 2010

Este edifício era a Missão do Sono, sediada no Bambadincazinho. Depois do ataque de 28 de Maio de 1969, o Bambadincazinho, tal como a ponte do rio Udunduma, passou a fazer parte do plano defensivo, todas as noites um pelotão ficava aqui acantonado, na presunção de dissuadir qualquer ataque do PAIGC a partir do flanco do Xitole. À frente do edifício da missão, havia um gigantesco U com bidões cheios de terra e cobertura de cimento, seria a estrutura defensiva contra o ataque do IN. Aqui vieram “acampar” vários Pel Caç Nat, todos os pelotões da CCaç 12, isto entre 1969 e 1970. Ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970, o Bambadincazinho e a Missão do Sono ficaram a fazer parte dos eventos funestos do Tangomau. Passava das 5 e meia da manhã quando chegou o Xabregas (Mário Dias Perdigão) vinha buscar o contingente de duas secções do Pel Caç Nat 52. Sentei-me ao lado do Xabregas, Uam Sambu sentou-se ao meu lado e estendeu a mão a Quebá Sissé para o ajudar a subir. A fatalidade veio imediatamente. No momento em que o Unimog arranca sucedem-se vários tiros e Uam Sambu caiu-me no colo a esvair-se em sangue: “Ai, me alfero, mim muri…”. E morreu mesmo, para desgosto de nós todos e para a penitência de Quebá Sissé, que metera inadvertidamente a patilha na posição de fogo e, ao dar balanço ao corpo, meteu o dedo no gatilho.

Foi neste sombreado que se deu a tragédia ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970. O Unimog partiu à desfilada, como numa grotesca Pietá, eu levava Uam Sambu em agonia, o nosso médico, Joaquim Vidal Saraiva, tudo tentou, mas hemorragias provinham de órgãos vitais. Rapidamente evacuado, Uam Sambu terá já chegado morto ao HM 241. O Tangomau procurou falar com a sua viúva e lavadeira, Binta Sambu, vive para os lados de Gabu, foi o que lhe disseram. Deixou-lhe saudades e até um grande abraço do Cherno, pura mentira, pareciam o cão e o gato, ela partia todos os botões, ele protestava pois tinha que comprar material substituto e cozê-los. Estamos a menos de 50 metros da casa de Fodé Dahaba, na actualidade.

Quando cheguei às 8:30 do dia 21 a casa do Fodé, tinha um comité de recepção à minha espera. O “homem grande” é Alai Fuma, paizinho de Fodé. Combateu ao lado dos portugueses em Canhabaque, nos Bijagós, em 1936. Está rodeado de vários familiares e dois deficientes das Forças Armadas. Houve abraços e a sessão de cumprimentos terminou proverbialmente com uma oração dirigido a um Deus todo misericordioso que na sua bondade alegra o coração dos homens, reencontrando-os imprevistamente.

A segunda sessão de boas vindas juntou sobretudo mulheres e crianças das famílias Dahaba e Fati, a viverem na órbita do organizador do evento. O Tangomau pede desculpa pela pouca visibilidade da imagem, havia já uma luz tão crua que ele procurou pôr este comité de recepção no recato de uma boa sombra… e excedeu-se.

Findas as duas cerimónias de recepção, Fodé Dahaba deu largas à sua hospitalidade, começavam a chegar os milícias de Finete da sua secção. Aí o meu coração começou a tremer quando apareceu Samba Gêbo ou Samba Baldé, sempre pressuroso e afável, eternamente gaiato. O Tangomau escreveu no seu caderno: “Abracei-o a chorar, era o encontro da minha juventude, o Samba pedia-me livros, era um leitor infatigável. Não me admirei quando me perguntou: “Trouxeste livros para mim?”. Em voz alta, Fodé começou a dar ordens, anunciou que iriam a Amedalai continuar a ver a família. Seguiram todos num carro de combate disfarçado de viatura civil. Enquanto se conversa e naturalmente o Tangomau é questionado quanto ao número de mulheres e filhos (quantos machos, quantas fêmeas?), passam baratas e formigas que dão ferroadas. Na comitiva seguirão três filhos da terceira mulher de Fodé: Calilo, Iaguba e Braima.

Quando o Tangomau procurou a área correspondente ao antigo destacamento da ponta do rio de Udunduma encontrou a nova tabanca, com o mesmo nome. As mulheres dançavam, tanto quanto lhe foi dado perceber celebrava-se um corte de cabelo feminino, todas as mulheres posaram para a fotografia. Até se pode imaginar que nunca houve aqui um destacamento, é ainda por cima odiado por todos que aqui tinham que prestar serviço.

Samba Gêbo em pose sobre a velha ponte do rio de Udunduma. Era aqui que se situava um dos buracos mais infectos que dava por nome de destacamento. O Luís Graça e a CCaç 12 sabem do que falam. Talvez até o Jorge Cabral, não sei. Na retirada da flagelação de 28 de Maio de 1969, as forças do PAIGC tentaram destruir a ponte que cedeu ligeiramente na outra margem. À cautela, todas as noites um pelotão pernoitava perto da ponte em condições inenarráveis: camas a boiar em poças de água, abrigos com seteiras impróprias para responder ao fogo do inimigo, um arremedo de refeitório onde o corpo ficava ainda mais picado à hora do almoço e do jantar. Com a nova estrada Xime-Bambadinca, este caminho e esta ponte só servem a tabanca de Udunduma, que o Tangomau foi visitar, antes de chegar a Amedalai.

Uma perspectiva da nova ponte sobre o rio Udunduma a partir da velha estrada Xime-Bambadinca.

Era obrigatório, chegados a Amedalai, que o Tangomau perguntasse por um dos seus mais dilectos amigos, Mamadu Djau, o 126, bazuqueiro de elite, aquele que na noite de 16 de Outubro de 1969 dera a sua palavra de honra (e cumprira) que defenderia até à morte a coluna de sinistrados que o Tangomau lhe deixara à porta. Djau partira na antevéspera para um choro em Bissau e anunciara à família que tinha de voltar rapidamente para receber nosso alfero. Quando se chegara a Amedala, o Tangomau fora interpelado pelo homem que está sentado no centro, primeiro cabo José Carlos Suleimane Baldé, da CCaç 12. E dera a seguinte ordem: “Mostre-lhes a minha fotografia, quero que saibam que ainda existo, que penso em todos eles e que lhes mando um abraço”. Por detrás, temos a morança de Mamadu Djau e a sua família.

Quando perguntei pelo Mamadu Djau e alguém me disse que ele não estava, apresentou-se um jovem que disse ser “o macho mais velho”. O Tangomau disse-lhe que devia ter muito orgulho no seu pai, tanto pela sua bravura como pelas suas qualidades de carácter. Ele tudo ouviu sem fazer um comentário mas no final disse-lhe: “Tira fotografia, eu e os meus irmãos não temos uma fotografia juntos, é para lembrar a viagem do branco de quem o nosso pai está sempre a falar”. Embargado pelo pedido, o Tangomau não se fez rogado, aqui estão os Djaus, machos e fêmeas.

É o que resta da estrada do Xime, junto ao porto, reduzido a meia dúzia de estacas. O Tangomau pretende mostrar homenagem a quem alcatroou esta estrada que está adubada em sangue. São incontáveis os feridos nas emboscadas e minas. Este porto e esta estrada transformaram-se num ponto vital para o abastecimento do Leste, em finais de 1969. Por ironia, Mato de Cão perde a sua importância, os barcos de maior calado aportavam ao Xime, a partir de 1970 só atracam em Bambadinca as pequenas embarcações civis. A comitiva viera de Amedalai até ao Xime, na povoação o Tangomau foi novamente apresentado à família Fati, conheceu a viúva de Mankaman Biai, um guia muito competente que ele fez louvar quando foi responsável pela operação “Rinoceronte Temível”, que ocorreu em 8 e 9 de Março de 1969. E daqui partiu-se para Ponta Varela. Nas suas notas, o Tangomau escreveu, a este propósito: “Como é bom voltar a esta estrada que se viu crescer e que se protegeu ininterruptamente durante semanas, em Junho e Julho de 1970. Gostei muito de ver as novas tabancas dos manjacos em Taliurá e Ponta Coli”.

O Tangomau fora três vezes a Ponta Varela. Naqueles tempos de guerra, saia-se do Xime, ia-se por um caminho perto do rio Geba, flanqueava-se a bolanha através do interior de um palmar e depois subia-se pela velha tabanca. A partir daí, e sempre a corta-mato (o PAIGC tinha vários caminhos minados) seguia-se ou para o Poindom e depois Ponta do Inglês, ou atravessava-se a estrada Xime-Ponta do Inglês em direcção seja a Madina Colhido, Gundaguê Beafada ou mesmo Baio ou Buruntoni. Eram recordações tão impressivas, havias tantas e tais lembranças dos ataques às embarcações em Ponta Varela que o Tangomau fez questão de ir exactamente ao local do crime. Acontece que o local do crime está a sensivelmente a três quilómetros da actual tabanca de Ponta Varela. Foi uma viagem inesquecível, os raios solares, cor de ouro, infiltravam-se pelos cajueiros, atravessaram-se hortas, avistaram-se mangais, palmares, até que se chegou ao tarrafo do Geba. O Tangomau veio acolitado por um jovem de nome Mussá e Calilo Dahaba andou sempre na minha sombra, o pai não queria que me acontecesse qualquer desgraça… para que fique gravado para todo o sempre, os ataques às embarcações ocorriam neste ponto onde está um pilar em cimento que permitia a leitura das marés, é um pilar semelhante ao que está em Mato de Cão. Havia igualmente pilastras em cimento que suportavam uma escada em madeira: as pilastras estão lá, a madeira foi devorada pelos furores do tempo. Trata-se de uma obra dos anos 50, decorrente das actividades da segunda missão geo-hidrográfica da Guiné, coordenada por Manuel Pereira Crespo, que chegou a ministro da Marinha.

O leitor que se prepare, vai ver variações deste pôr-do-sol, tendo como fundo Finete e Chicri. Foi um dia de emoções, o Tangomau levantou-se cedo, tomou um banho de caneco, bebeu chá de erva cidreira, comeu doce de papaia, eram 8 horas quando chegou Fodé, Calilo, Iabuba e Braima. Os eventos sociais de Bambadinca deixaram marcas. A recepção dos Fati em Amedalai foi demorada, pela primeira vez na sua vida o Tangomau explicou o modo como Fodé Dahaba se sinistrara perto de Madina, no amanhecer de 22 de Fevereiro de 1969. A grande surpresa foi a viagem entre a tabanca de Ponta Varela e o local do Geba onde as forças do PAIGC atacavam as embarcações. Vezes sem conta, em Mato de Cão, o Tangomau ouvira o foguetório e algumas vezes recolheu vítimas que chegaram ao Cuor. Há mais duas variações desta fotografia, ficarão à disposição de quem as solicitar.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de Guiné 63/74 - P7417: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (4): 20 de Novembro, de Bambadinca para o Bairro Joli

Vd. último poste da série de 9 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7410: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (2): Dia 20 de Novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7424: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (25): Segunda parte do filme do meu tempo de tropa (Alcides Silva)

1. Mensagem de Alcides Silva (ex-1.º Cabo Estofador, CCS/BART 1913, Catió, 1967/69), com data de 13 de Novembro de 2010:

Caro Carlos,
Aguardava qualquer informação sobre o caso da minha pequena brincadeira referente ao tempo de tropa*.
A 2.ª parte vai no LINK que se segue.

Para aceder à segunda parte do filme do nosso camarada Alcides, clicar aqui
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7416: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (24): Primeira parte do filme do meu tempo de tropa (Alcides Silva)

Guiné 63/74 - P7423: Agenda Cultural (94): A exposição A Marinha na República, Museu da Marinha, em Lisboa, Belém, até ao dia 5 de Janeiro de 2011 (Luís Graça)


Exposição A Marinha na República... Museu da Marinha, Lisboa, de 1 de Outubro de 2010 até 5 de Janeiro de 2011, das 10:00 às 17:00 horas.
 

A exposição, organizada no âmbito das Comemorações do 1.º Centenário da Implantação da República, está dividida em dois núcleos: (i)  o papel dos Marinheiros e Navios no desenrolar dos acontecimentos do 5 de Outubro de 1910; (ii) o papel da Marinha na Implantação da República e das unidades navais na primeira década do século XX.


Num primeiro núcleo evoca-se a participação dos Marinheiros, abordada de forma sequencial, desde os dias que precederam o Cinco de Outubro, sendo localizado no Arsenal da Marinha, que confinava com a Praça do Município, o Terreiro do Paço e o rio Tejo. O segundo núcleo  respeita aos Navios que a Marinha possuía em 1910 e em especial aos que estavam ancorados no estuário do Tejo na altura dos acontecimentos.


Este poste resulta de uma pequena reportagem feita a pensar sobretudo nos camarigos que, vivendo fora de Lisboa, não irão ter oportunidade de ver esta exposição de grande interesse cultural e historiográfico... Afinal, trata-se da nossa história e da nossa marinha... É também uma pequena homenagem aos nossos camaradas da Marinha que passaram pelo TO da Guiné, entre 1961 e 1974, bem como a todos os meus parentes, os Maçaricos de Ribamar, Lourinhã, que ao longo de séculos viveram (e ainda vivem) no mar, junto ao mar, com o mar, do mar,  para o mar e por causa do mar, servindo nomeadamente a nossa Marinha... (Um exemplo extraordinário de gente de gente corajosa e abnegada que não se deixa facilmente encantar pelas sereias de terra...). (LG)



O papel da Marinha foi determinante no triunfo da República em 5 de Outubro de 1910... O desenvolvimento da nossa moderna Marinha de Guerra está, por sua vez,  associado à reacção do País ao Ultimato Inglês, em 1890, e à expansão colonial...


Legenda > 1- Rotunda; 2- Quartel de marinheiros (em Alcântara); 3 - Baixa.... No estuário do Tejo, estavam ancorados três cruzadores (D. Carlos I, S. Rafael e Adamastor) e um navio de transporte (Pêro de Alenquer)...




A adesão de oficiais, sargentos e marinheiros aos ideais republicanos é explicada, na exposição, por factores de natureza sociológica: (i) duas importantes unidades da Marinha, em terra - o Arsenal da Marinha e o aquartelamento de marinheiros em Alcântara - situavam-se em zonas de habitação popular onde era maior a implantação do Partido Republicano; (ii) a longa permanência, no estuário do Tejo, de navios da Marinha, ou em fase de construção no Arsenal... Um desses navios, o cruzador Adamastor, tinha sido construído graças a uma subscrição pública nacional... 


Foto acima:  Os cruzadores da Marinha salvando a terra, aquando da proclamação da República. Imagem de Illustração Portugueza, nº 243, de 17 de Outubro de 1910.

As canhoneiras Zagaia e Lúrio navegavam, em 5 de Outubro de 1910, pelas águas de Cabo Verde e Guiné...



A esquadra de guerra portuguesa, em 1910, defendia a soberania do país nos diferentes territórios ultramarinos, desde a África à Ásia... Portugal dispunha de um couraçado (Vasco da Gama) e de cinco cruzadores (D. Carlos I, S. Gabriel, S. Rafael, Adamastor e Rainha D. Amélia)...


A canhoneira Pátria, óleo sobre tela, da autoria de Jorge Estrada (1906) (Museu da Marinha)... Construído no Arsenal da Marinha em Lisboa com fundos recolhidos por portugueses do Brasil, no âmbito de um Subscrição Patriótica... Entrou serviço da Armada em 1903...




O famoso Mapa Cor de Rosa (1886) cuja contestação, pela Inglaterra, levaria ao humilhante Ultimatum, de 1890... O  ultimato do governo britânico, então chefiado pelo primeiro ministro Lord Salisbury,  foi entregue a 11 de Janeiro de 1890 na forma de um Memorando que exigia a retirada das forças militares portuguesas, chefiadas pelo major Serpa Pinto,  do território compreendido entre as colónias de Moçambique e Angola (actuais Zimbabwé e Zâmbia).  Essa vasta região, de Angola à contra-costa, era reivindicada como direito histórico por Portugal. O  famoso Mapa cor-de-rosa terá nascido justamente da Conferência de Berlim (1884/85), na altura em que as grandes potências europeias (Inglaterra, Alemanha e França) disputam entre si a partilha de África...


Cartoon do grande Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905)... A claudicação de Portugal face às exigências britânicas será vista como uma suprema humilhação nacional pelos republicanos portugueses, que crucificaram o governo e o rei D. Carlos I. António de Serpa Pimentel será então nomeado primeiro-ministro, na sequência da queda do governo. Estes acontecimentos estão também na origem da criação de A Portuguesa, o nosso futuro hino nacional.


Sob a liderança do Ministro da Marinha, o açoriano Jacinto Cândido da Silva (1857-1926), e com a lei de 21 de Maio de 1896, Portugal iniciou um programa de modernização da sua esquadra de guerra, substituindo por modernos cruzadores as velhas e obsoletas corvetas mistas (compare-se a esquadra de 1880 com a de 19910). Foram construídos cruzadores no estrangeiro, em Inglaterra (D. Carlos) e em França (S. Gabriel e S. Rafael), mas também no Arsenal de Lisboa (Rainha D. Amélia)... Mas o primeiro cruzador a ser construído, em Itália, será o cruzador Adamastor, fruto da Grande Subscrição Nacional, uma campanha patriótica de recolha de fundos que mobilizou o país, na sequência da humilhação que foi o Ultimato inglês e da nossa incapacidade de resposta, política, diplomática e militar...




A canhoneira Chaimite, no Rio Tejo, em 3 de Outubro de 1898 (Foto do arquivo fotográfico do Museu da Marinha). Foi, além ao cruzador Adamastor, a outra unidade naval adquirida com os fundos resultantes da Grande Subscrição Nacional... Foi, além disso,  a primeira unidade naval a ser construída em aço, no nosso país, no estaleiros da Parry & Son, em Lisboa... Lançada à água em 1898, será abatida em 1920, aos efectivos da Armada, depois de intensa actividade operacional.




Ainda com os dinheiros da Grande Subscrição Nacional (, iniciada em Lisboa, no Teatro da Trindade, em 23 de Janeiro de 1890, doze dias depois do Ultimato), foram construídos duas lanchas-canhoneiras, a Pero d'Anaia e Diogo Cão, em aço, nos estaleiros da Parry & Son. Foram navios como este que participaram nas campanhas de pacificação em África, nos últimos anos da Monarquia e depois durante a República... Ambos os navios foram lançados à água em 1895... Na foto acima, a Diogo Cão "num dos rios africanos por onde navegou entre 1895 e 1910" (Imagem do arquivo fotográfico do Museu da Marinha).



O cruzador Adamastor... Entrou ao serviço da Marinha em 1897 e foi abatido ao efectivo em 1932.  A revolução industrial e os progressos tecnológicos no domínio da metalurgia permitiram substituir a vela e a madeira pelo aço e pela energia a vapor, bem, como equipar os novos navios com peças de artilharia mais potentes, sofisticadas e seguras. Houve igualmente uma revolução a nível do armamento e das transmissões: por exemplo, o cruzador D. Carlos foi a primeira unidade da nossa Armada a dispor de telegrafia sem fios (TSF).

Marinheiros do cruzador Adamastor, em exercício de manobras, em 1905. Na madrugada de 4 de Outubro de 1910, a guarnição tomou conta do navio e,  sob as ordens do 2º tenente Mendes Cabeçadas (1883-1965), foram disparados três tiros de artilharia, sinal de código, para as forças em terra, significando que os navios no Tejo estavam sob controlo dos revoltosos... (Pormenor de fotografia do arquivo fotográfico do Museu da Marinha).



Machado Santos (1875-1921), o "herói da Rotunda", tinha o posto de 2º tenente... Morrerá assassinado,  na noite de 19 de Outubro de 1921...





O resto da exposição é para se ver,com tempo e vagar, no Museu da Marinha, até ao próximo dia 5 de Janeiro de 2011. Sobre as comemorações do I Centenário da República, e as iniciativas culturais que se realizaram ao longo de 2010, vd. o sítio oficial da respectiva comissão.


Reportagem fotográfica: Luís Graça (2010) (com a devida vénia ao Museu da Marinha...)
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Nota de L.G.:


Último poste da série > 3 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7376: Agenda Cultural (93): A Sociedade Filarmónica de Crestuma (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp, CART 1689, 1967/69)

Guiné 63/74 - P7422: Parabéns a você (186): Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Tertúlia / Editores)



1. Estamos de novo a festejar mais um aniversário. Desta feita, hoje dia 12 de Dezembro de 2010, completa mais um ano de vida o nosso camarada Luís Dias*, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74.

Caro Luís Dias, a Tabanca está aqui a dar o seu testemunho de amizade, desejando-te um dia cheio de alegria condizente com a data.
O domingo é um dia em que é possível juntar mais as pessoas pelo que provavelmente vais ter junto de ti muitas das pessoas que mais queres e que te querem.


Em nome da Tertúlia e dos editores deixo-te um abraço e votos de boa saúde

O editor de serviço
Carlos Vinhal




Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > CCAÇ 3491 (1971/74) > "Chegada a Galomaro da CCAÇ 3491 [, pertencente ao BCAÇ 3872,]  no dia 9 de Março de 1973. No jipe podemos ver o Alf  Luís Dias, atrás o Fur Baptista,  do 1º Gr Comb,  e ao lado, a sorrir, um guerrilheiro do PAIGC que, no dia anterior, se tinha entregado a uma patrulha nossa na área do Dulombi. A arma é uma Shpagin PPSH 41, no calibre 7,62 mm Tokarev, mais conhecida por "costureirinha" e com a particularidade de ter um carregador curvo de 35 munições, em vez do habitual tambor de 71". (Foto do Luís Dias, reproduzida com a devida vénia, do seu blogue, Histórias da Guiné, 71-74:  A CCAÇ 3491, Dulombi.
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

30 de Maio de 2008> Guiné 63/74 - P2901: O Nosso Livro de Visitas (15): Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491 (Dulombi e Galomaro, 1971/74)

5 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3022: Tabanca Grande (78): Luís Dias, ex-All Mil da CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro (1971/74)
e
12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5451: Parabéns a você (51): Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Editores)

Vd. último poste da série de 10 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7413: Parabéns a você (185): Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700, Dulombi, 1970/72 (Tertúlia / Editores)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7421: Blogpoesia (95): Malefícios da água não potável (Manuel Maia)

1. Mensagem de Manuel Maia* (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), com data de  10 de Dezembro de 2010:

Caro Carlos,
Aqui seguem mais umas quantas sextilhas subordinadas ao título acima referenciado,pra editares se assim entenderes.

abraço
manuelmaia


MALEFÍCIOS DA ÁGUA NÃO POTÁVEL

Num corpo com gordura a liquefazer-se,
em dia de "assa canas", soe dizer-se,
garganta pede cervejinha fresca...
Acção Temor, Tagana, nunca soube,
Rinoceronte, Trio d`oitos, coube
aos grupos da Terrível soldadesca...


As pernas pedem pausa no andar,
cansadas de jornadas de estafar,
três dias nesses matos a ração...
Vazio está o cantil de água filtrada,
do sumo das rações não resta nada,
e há um rio de água suja ali à mão...


A sede é nesta fase, irracional,
e a amarela água que faz mal
bebida foi à falta de melhor...
Bem dentro do cantil, "empastilhada",
desfeita no tal líquido e agitada,
bebê-la foi apenas mal menor...


De volta à base, "whisky prevenção",
ao " paludismo e toda a criação",
foi alvo dum "ataque" inusitado...
Em dose tripla ou mais, o "tratamento",
matou a bicharada no momento"
deixando o pessoal mais descansado...


Queixaram-se intestinos e vísicula,
do tratamento choque ante a canícula,
anti parasitário inigualável...
Dois dias chá de tília, e sopa branca,
uns LM e o problema estanca,
mostrando uma eficácia assinalável...


A simples "caganeira" popular,
soltura ou diarreia, "outro falar",
definem desarranjo intestinal...
Pastilhas LM, abrangentes,
p`rós calos, tosse, dores até p`rós dentes,
protegerão a fauna do local...

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7412: Efemérides (58): 1.º aniversário do lançamento do livro História de Portugal em Sextilhas, de Manuel Maia

Vd. último poste da série de 6 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7390: Blogpoesia (94): Pesadelo (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P7420: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (33): Tradutora pede ajuda ao nosso blogue para as expressões zone-call e clock-code, usadas em especial pela artilharia (José Martins)

1. Mensagem de José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2010, para a qual pedimos a atenção dos camaradas:

Caros Camaradas e Amigos

A prova de que não somos só nós, os antigos combatentes, a visitar o nosso blogue, são os vários pedidos que recebo, sobre os mais variados assuntos.

A satisfação que sinto ao receber esses pedidos,  não é porque se me dirigem, mas porque reconhecem nos combatentes uma fonte de informação que é útil a outros que não passaram pela nossa experiência.

O caso presente é/foi iniciado com um mail que me foi dirigido, por uma senhora, tradutora de profissão, que me colocou umas questões técnicas, mas a que não sei responder, de que transcrevo:

“Antes de mais nada, o meu pedido de desculpas por 'invadir' assim a sua caixa de correio. Mas preciso de ajuda de alguém que perceba de transmissões militares e encontrei-o na Net.

“Passo a explicar: sou tradutora e estou a traduzir um romance que se passa em França, durante a Primeira Guerra. O herói é um observador e utiliza dois códigos na transmissão das observações.”

Pensando que esta nossa leitora pretendia conhecer alguns procedimentos de transmissões, falei-lhe como se processavam as mensagens quer entre “unidades em quadrícula” e entre estas e as forças em operação e como eram processadas as mesmas, utilizando não só a criptografia convencional, mas também aquela que “emanava” das nossas mentes, permitindo conversações cifradas utilizando, muitas vezes “linguagem clara e coerente”.

Mas não era estas explicações que se pretendiam:

“ E eu não faço a mínima ideia de como é que isto se diz em português. Será que pode ajudar-me? Estamos a falar de sinais 'zone-call' e 'clock-code'. Este último tem uma tabela (chart) que ele consulta para emitir as referências. Isto diz-lhe alguma coisa?

A designação zone-call, pela pesquisa que fiz na Net, pareceu-me tratar-se de coordenadas já que, iniciada em 1916, durante a I Grande Guerra, menciona a divisão de um mapa em áreas e, estas, em sub-áreas. Quanto à designação clock-code e recorrendo à mesma fonte, é um método de cálculo mental de divisão de um ângulo entre zero e sessenta graus, apresentando uma tabela, no texto consultado.

É assim, desta forma, que dirijo ao todos os camaradas, especialmente aos artilheiros, tertulianos ou não, um pedido de ajuda, já que se trata de “observação de tiro de artilharia” dado que, na altura em que decorre a história que o livro conta, pois trata-se de uma história passada na I Grande Guerra, ainda não havia aviões de combate.

Resumindo: a questão que nos é colocada é saber qual a tradução das expressões zone-call e clock-code, para português.

Agradeço antecipadamente A TODOS, A COLABORAÇÃO POSSÍVEL.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7331: Em busca de... (149): Pedido de informação sobre a naturalidade de Vitorino António Marques (José Sampaio/José Martins)

Vd. último poste da série de 4 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7378: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (32): Estava no Cantanhez, no dia 1, e fiquei emocionado com o vosso poste de parabéns que só agora, em Bissau, posso agradecer (Pepito)

Guiné 63/74 - P7419: (Ex)citações (119): O destino marca a hora? (Jorge Picado, ex-Cap Mil, 1970/72)

1. Comentário de Jorge Picado ao Poste P7401 [, O Jorge, foto à esquerda,  foi Cap Mil da CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, CART 2732, Mansabá e CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72):


 Camarigo Luís Graça:


Referes uma situação em que a "tua montada", e não sei quantas antes, passou e a seguinte "voou", dizendo que tinha sido sorte, a tua.


Ora, quantos de nós tivemos sorte, uma vez..., n vezes, enquanto outros nem uma vez a tiveram?


Foi por essas situações de "sorte", do "acaso" ou seja lá de outra coisa, que às tantas, lá na Guiné, me comecei a interrogar e a "filosofar" comigo. Será isto o destino? Será que o destino está mesmo traçado? Será que ao nascer a nossa vida já está de facto pré-definida? Podem crer que a partir de algumas situações que ocorreram comigo e que me levaram a esses questionamentos interiores, passei a acreditar nesse determinismo.


Quanto às vias de comunicação, a que chamas "estrada", sempre que escrevo algo sobre as paragens que pisei, uso "itinerário", com excepção dos percursos, Bissau-Mansabá e Bissau-Teixeira Pinto-Bachile, onde uso "estrada", uma vez que eram asfaltadas e dignas desse vocábulo. Todas as outras por onde circulei, não passavam de "picadas".


Os abastecimentos, a logística em geral, das NT movimentavam e ocupavam de facto muitos efectivos. Mesmo no Sector de Mansoa, quando lá estive, isso era uma realidade.


Por Mansoa passavam, várias vezes por mês, colunas de abastecimentos para Bissorã e Olossato, em que o pessoal da CCaç 2589,  destacado em Braia e no Infandre,  tinha de assegurar a limpeza do itinerário até ao alto de Namedão, bem como a segurança com emboscadas nos pontos "mais vulneráveis". 


Quanto às colunas para Mansabá, não havia necessidade de picar a estrada, mas montar a segurança, pelo pessoal destacado em Cutia, quase no limite da zona, visto haver um cruzamento com um dos carreiros IN Sara/Canjambari-Morés.


Abraços
Jorge Picado


PS - Quando me refiro ao pessoal da CCaç 2589 (Mansoa, Braia, Infandre e Cutia), quero indicar todo aquele que dependia desse comando e não apenas o da subunidade orgânica.

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Nota de L. G.:

Último poste da série > 10 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7415: (Ex)citações (118): A propósito do vídeo da ORTF sobre a Op Ostra Amarga: "As imagens que vi, foram uma espécie de murro no estômago e cimentaram a admiração que nutro por todos aqueles que sentiram o silêncio bem no meio do capim" (Miguel Sentieiro)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7418: Memória dos lugares (116): As colunas logísticas ao Xitole e Saltinho no tempo do Paulo Santiago (1970/72) e do Joaquim Mexia Alves (1971/73)

1. Comentário do Paulo Santiago (ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)  ao poste P7401 (*):

Nos primeiros meses que passei no Saltinho, as colunas logísticas ainda seguiam esse itinerário: Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho.

Houve uma, não sei a data, onde andei com o [Pel Caç Nat] 53, entre Xitole-Ponte dos Fulas. Lembro-me da chegada ao Saltinho da malta da CCAÇ12, onde no primeiro Unimog 404 vinha o Alf Mil Carlão, e comentavam os camaradas da  [CCAÇ] 2701, que ele não gostava de apanhar...pó.

Assim é possível que ainda tenha encontrado, no bar do Saltinho, o Henriques, o Humberto, o Levezinho... sei lá, era muito piriquito na altura.

Depois abriu-se uma picada que aproveitou o carreiro dos dgilas, e as colunas logísticas para o Saltinho passaram a ter o itinerário Galomaro-Duas Fontes-Chumael-Saltinho. Este percurso, até
ao fim da minha comissão, era seguro, não havia picagem... era percorrido, com frequência, pelos camiões do Jamil e do Rachid [, os dois comerciantes do Xiotole, de origem libanesa]...




Guiné > Zona leste  > Região de Bafatá > Os longos e tortuosos caminhos para se chegar ao Saltinho, no Rio Corubal... Em Agosto de 1969, foi reaberto o troço Mansambo-Xitole-Saltinho, passando o Saltinho a ser abastecido a partir de Bambadinca... Mais tarde, o Saltinho (que pertencia ao Sector L5, Galomaro)  passou a ser abastecido por Galomaro com o aproveitamento do carreiro dos djilas (Saltinho - Chuamel-Duas Fontes)... Todo o abastecimento do Leste passava pelo eixo rodoviário principal  Xime -Bambadinca - Bafatá - Nova Lamego...  A distância entre Bambadinca e o Saltinho era de 55 km; e entre Bambadinca e Bafatá, 30 km; e entre Saltinho e Galomaro, cerca de 50 km; Galomaro e Bafatá distavam entre si à volta de 25 km...  (LG)


2. Comentário ao poste P7401 (*), da autoria do Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp, CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52  (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73:

Caros camarigos: Tal como já referi noutro comentário, estas colunas no tempo do BART 3873, faziam-se sem problemas, mas apenas com muito pó e cansaço, sobretudo daqueles que montavam segurança, pois era um dia inteiro no mesmo local.

Aí, nessa estrada e por causa de uma coluna levantei uma mina conforme descrevo aqui:
http://pontedosfulas.blogspot.com/2008/06/1-mina-do-bart-3873.html (**)
e que os editores podem aproveitar se quiserem, embora me pareça que há uns anos talvez tenha havido um poste sobre isso.

Refiro também, (e também acho que já o tinha feito), a realização de uma coluna da CART 3492, (por causa, salvo o erro, de um funeral de um guineense), pela estrada Saltinho/Galomaro que estava fora de uso há já largo tempo.

Todos consideravam uma temeridade tal coluna mas ordens... são ordens. O meu tio Jamil Nasser, que tudo sabia, tentou dissuadir-me de fazer tal coluna, ao que eu obviamente não acedi. No dia da coluna lá estava ele com duas camionetes carregadas, colocando-se como passageiro também. (***)

Tirando o cansaço, nada mais aconteceu!

Grande e camarigo abraço para todos
Joaquim Mexia Alves
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de  8 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7401: A minha CCAÇ 12 (10): O inferno das colunas logísticas Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho, na época das chuvas, 2º semestre de 1969 (Luís Graça)



(**)  Reproduzido, com a devida vénia, do blogue Xitole > 9 de Junho de 2008 > A> primeira mina do BART 3873 ? 

No início da nossa estadia no Xitole e,  salvo o erro, logo na primeira coluna vinda de Bambadinca à qual a nossa Companhia montou segurança, calhou-me, a mim, e ao meu pelotão, como não podia deixar de ser, o ponto mais afastado do Xitole,  para montar segurança à dita cuja.

Se bem me lembro era junto a um pequeno pontão, (não me lembro do nome, Jagarajá?), pois a partir daí era terreno da Companhia de Manssambo [, a CART 3493, 1972/73]. Aí chegados,  enquanto colocava o pessoal na mata, os guias e picadores foram picando a estrada junto ao pontão e chamaram-me porque tinham detectado uma mina.

As penas de periquito ainda esvoaçavam por todo o lado e, cheio de sangue na guelra, decidi levantar a mina. Mandei afastar os que estavam mais perto e lancei-me ao trabalho, não me lembrando agora se tive alguma ajuda no início. Depois de escavar a coisa, passou-se à parte mais difícil que era desarmar o detonador, para depois, pelo sim pelo não, puxar a dita mina com uma corda, não fosse o diabo tecê-las.
A mim pareceu-me que tudo isto demorou uma eternidade, mas segundo me disseram até foi rápido. Sei que suei rios de água e não era por causa do calor.

Lembro-me de pensar em desistir a meio e rebentar com aquilo, mas o orgulho e o pensar o que é que o pessoal vai dizer, levaram-me a continuar e acabar o trabalho.

Ao que sei, foi a primeira mina levantada no Batalhão [BART 3873, Bambadinca,1972/1974]. Na minha fraca memória, vem-me à ideia que deixámos uma qualquer mensagem de ronco no sítio da mina. Enfim, gabarolices!

Diziam que pagavam não sei o quê pelas minas levantadas, mas não me lembro de ter recebido nada. Mais tarde e já no Pel Caç Nat 52, com o clima e outras coisas, cometia a rematada estupidez louca de ir pisando o caminho à frente do Pelotão, o que os soldados africanos muito apreciavam, só me valendo o facto de Deus nunca estar distraído.

Envio prova fotográfica do feliz evento [, imagem acima,], chamando a atenção para a qualidade da revelação da fotografia, feita num estúdio de um qualquer curioso militar no Xitole, do qual não lembro a identificação.

Joaquim Mexia Alves

Nota: Se esta história não está bem contada, e eu estou para aqui armado em "herói", peço que a rectifiquem, pois a memória já não é o que era.


[ Revisão / fixação de texto / bold a cor: L.G.]


(***) Último poste da série Memória dos lugares > 30 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7360: Memória dos lugares (114): Fajonquito, fotos de Sérgio Neves, ex-Fur Mil Mec Auto da CCAÇ 674, 1964/66 (3) (Constantino Neves)

Guiné 63/74 - P7417: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (4): 20 de Novembro, de Bambadinca para o Bairro Joli

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2010:

Malta,
O traçado da estrada, a partir de Jugudul, está substancialmente modificado. Toda aquela recta que vai até Finete foi afastada do Geba. Ao princípio desorientei-me, os meandros do rio estavam longe, apareciam difusos.
Em Mato de Cão, vi-me rodeado de casas, quase em cima da encosta, senti que a confusão era total. Depois tudo se esclareceu, mas foi preciso andar muito à pata, subir e descer Mato de Cão, Chicri, Gambaná, Finete. Irão ser dias irrepetíveis. Haverá até um momento, conversando com o Sr. Biloche, um ilustre empreendedor de Finete, em que cheguei mesmo a apalavrar uma casa para o Jorge Cabral.
Há coisas que acontecem só na Guiné.
Quanto ao dia que que aqui se fala, começou e acabou bem. Entreguei bacalhau e azeite de Avis em duas moradas.
A minha amizade com o Fodé crescera em Missirá, à mesa, comendo bacalhau cozido com batatas. Era indispensável regressar com bacalhau, se as plantas precisam de água, aquela amizade tinha que ser regada, na circunstância solene, com bacalhau.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (4)

Beja Santos

20 de Novembro: De Bambadinca para o Bairro Joli

1. A primeira incursão da manhã está reservada ao local em que funcionou o QG, o Quartel-General, a respectiva messe de oficiais e um conjunto de instalações onde se albergavam os oficiais do quadro permanente e milicianos. É um amanhecer abafado, depois latejou o calor e agarrou-se às casas, à estrada e aos corpos. O Tangomau está furioso, não repararam o duche da casa de banho, já fez as malas, deixou a bagagem no quarto, tal como combinou com a encarregada de recepção, esta desfaz-se em sorrisos tal como se desfaz em promessas quando fala nas reparações, há três dias consecutivos. O Tangomau inflecte à esquerda e sobe a antiga estrada de Santa Luzia, vai à procura, de acordo com a sua memória, dos locais onde teve reuniões, onde recebeu guias de marcha, onde se apresentou nos momentos em que chegou a Bissau, onde comeu e dormiu, até onde viu cinema.

2. Esta estrada de Santa Luzia é a mesma Pansao N’Isla de que já se falou, liga o antigo QG até Amura e Bissau Velho. O que vai encontrando pelo caminho tem pouco a ver com a realidade de há 40 anos: há cantinas, estofadores e até uma agência funerária com um jogo de matraquilhos à frente. Sente-se a decomposição dos edifícios da era colonial, algumas organizações não-governamentais procederam a restauros antes de ali se instalarem. Há hortas e, um pouco antes de chegar à guarita que assinala a chegada ao QG, emerge, muito populoso, o Bairro de Santa Luzia. O Tangomau limita-se a ficar especado à entrada das instalações do Quartel-General, o edifício principal está esventrado, foi num daqueles gabinetes que explodiu a bomba que matou um chefe de Estado-Maior das Forças Armadas da República da Guiné-Bissau, numa espiral de ajustes de contas que culminou com o assassinato de Nino Vieira, e ainda não se sabe se findou, em definitivo. Não se pode entrar, o Tangomau não pode rever os sítios pode onde andou em 1991, quando ali trabalhava diariamente como cooperante do Ministério da Indústria e dos Recursos Naturais.

Embrenhou-se em Santa Luzia e deu consigo a visitar em primeiríssima mão o hotel Azalai que maquilhou as instalações do antigo QG e do antigo hotel 24 de Setembro. O que era a messe de oficiais e as salas de convívio ainda é perceptível no traçado exterior, nada mais. A fisionomia dos bangalós está modificada, há ajardinamentos novos, adaptaram-se ruas, o Tangomau deambula surpreso por tanta novidade e chega à antiga piscina onde turistas tostam ao sol. Sem dificuldade maior, logo identificou o espaço onde, há mais de 40 anos, era possível estar ali sentado nas noites de cinema. E até aconteceu uma coisa curiosa, o Tangomau regressou ao passado e recordou um filme desempenhado por Rod Steiger, uma criação admirável de um usurário que acabou vítima da sua concupiscência pelo dinheiro, num bairro esconso de Nova Iorque, talvez o Bronx.

Nada há mais a ver, ele ainda anda à procura de uma instalação tipo armazém onde funcionava o Vaticano III, era um albergue de passagem para milicianos, aí se despediu da Guiné, entregaram-lhe um lençol roto, fora obrigado a aceitar, não vale a pena esmiuçar as peripécias, já em Portugal um agente da PSP bateu-lhe à porta e foi imperativo: ou pagava 17 escudos e 50 centavos pelo lençol danificado. O Vaticano III desapareceu, não faz parte dos equipamentos do hotel Azalai, paz à sua alma.

Segue-se a descida da estrada de Santa Luzia, depois inflexão para a Praça dos Heróis Nacionais, faz-se uma paragem para beber uma bica na Pastelaria Dias & Dias. Como não há pejo em contar, o Tangomau fez um estranho escrutínio de livros para lhe fazerem companhia nesta viagem. Desta vez, nada mais nada menos que “Novas Cartas Portuguesas”, por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, 9.ª edição, anotada por Ana Luísa Amaral.
O café não é dos melhores, mas o regresso à leitura deste livro é compensador, marca a pausa antes de descer a Baixa de Bissau até ao Pidjiquiti. A primeira vez que leu as “Novas Cartas”, sentiu-se inseguro: não era um romance, havia ali um amontoado de cartas, poemas, confissões sobre o corpo feminino, alguma crueza sobre relações sexuais, tudo a pretexto das cartas seiscentistas de Soror Mariana Alcoforado. Já lá vão quase 40 anos, o brado que a obra teve, a sua imediata proibição e os interrogatórios da PIDE às autoras, o processo judicial, podem hoje ser vistos como ridículos, anacrónicos, pois então. Voltar a mergulhar nesta obra é menos importante para apurar a consolidação da igualdade de género e mais para sentir um incontestável apuro literário, pois estas três autoras souberam escrever a seis mãos coisas tão belas, assim:

“Um vinho velho que adormeceu há séculos, amodorrado nos frascos postos em fila, com as suas pesadas rolhas de vidro trabalhado.
Eis, meu amor, a morte à qual tu afinal não pertences:
desço sozinha, ambiciosamente, pela vertigem, e descanso enfim nos degraus escondidos debaixo das árvores:
enormes degraus de pedra carcomida, escavada pelos anos, de onde a minha cabeça pende e onde os cabelos se espalham ainda aquecidos e vivos. Agarro com as mãos as tuas mãos que já me desprendem para o vácuo.
Nas ancas tenho ainda a marca dos teus dedos; a marca da tua boca, o traço molhado da língua, dos teus dentes.
Desço:
macio deve ser o chão que as árvores conservam com a sua seiva.
Não necessariamente meu amor sem ti a liberdade ou a pressa de morte no meu corpo.”

Emerso nesta prosa poética, neste género literário gongórico, excessivo do princípio ao fim, atém-se menos às teorias feministas e mais à plenitude deste encontro de mulheres, à análise de percurso e de processo e à expressão literária singular que faz com que “Novas Cartas Portuguesas” continue a ser uma obra singular, impar, na literatura portuguesa.

3. Entrando por uma rua lateral de Baixa de Bissau, o Tangomau encontra-se numa praça onde esteve outrora a estátua de Honório Pereira Barreto, dali o apearam depois da independência, sabe-se lá com que acusações, e talvez na ignorância de que sem este governador nado e criado na Guiné as fronteiras da actual República da Guiné-Bissau poderiam ser outras, a hora é imprópria para dissertações históricas e moralidades. Regista um edifício denominado Centro Cultural Francês, entra e bisbilhota, confidencia para os seus botões que tem ali atmosfera para passar para o caderno as suas impressões de viagem. Não hoje, quando regressar de Bambadinca. E segue para o Pidjiquiti, caminha pelo esporão do cais, há barcos a atracar, outros a partir, as gaivotas esvoaçam, ouve-se nitidamente o bulício das negociações do peixe.


Aquele cais é um pólo de atracção. Poucos são os livros sobre literatura da guerra colonial que não tenham começado aqui. Deste cais avista-se agora o terminal cargueiro que destruiu a panorâmica da antiga marginal. Há um ponto do Pidjiquiti que é inultrapassável, tem a ver com enfiamento da Avenida Amílcar Cabral, é um traçado linear, de cá para lá permite uma vista desafogada, consegue até esquecer as ruínas permanentes de tantos edifícios. Seguindo pela sua esquerda, o Tangomau progride, em passo estugado, para a Embaixada de Portugal, são perto de 13 horas, é ali que vai almoçar a convite do Sr. Embaixador.

4. O interior da Embaixada tem decoração personalizada, o Tangomau percorre as salas com um copo de gin na mão, aguarda a chegada do diplomata, vê retratos (seguramente dos seus familiares), obras de arte criteriosamente escolhidas. António Ricoca Freire aparece e confirma que é o responsável por aquele desenho de interiores, introduziu cores, mudou os conteúdos das paredes, estão ali os seus haveres, que o acompanham em todas as suas missões, leva uns bons anos a atravessar África.

O Tangomau não vai falar da cooperação militar, nem científica e técnica, jurídica ou agrícola, na saúde ou na segurança social. Conta o que viveu naquelas paragens há 40 e há 20 anos atrás, como ofereceu os seus livros referentes à comissão militar ao Sr. Embaixador, sente-se desvanecido quando este lhe fala empolgado do primeiro volume cuja leitura está praticamente concluída.

Conta ao que vem, parece um paradoxo esta despedida, afinal tem 65 anos, tirando uns problemas no joelho direito nada de grave tem no cadastro, que se saiba. É verdade que tem havido uma verdadeira razia entre os seus soldados, não há ano que passe que não cheguem notícias de óbitos. Só raramente lhe chegam boas notícias, olhe, mal chegou a Bissau e quando se mostrou compungido com a morte do Benjamim Lopes da Costa, antigo primeiro-cabo que em momento desvairado até lhe chamou “branco assassino”, alguém observou: “Nada disso, está vivo e bem vivo, reformou-se, pode encontrá-lo no bairro da Ajuda”.

Para ser preciso, conversava ele à mesa da sala de jantar, já se tinha comido uma sopa de feijão encarnado com uns olhinhos de azeite, a que se seguira uma estupenda lasanha de carne, repetira, sem vergonha, sentia-se mentalizado para as dificuldades que se adivinhavam a partir de Bambadinca, viera, confessou, não só para se reconciliar e até espanejar os últimos fantasmas mas para encontrar a encenação do final de um livro que tem entre mãos. É uma conversa ciciada, são dois interlocutores cúmplices, um que revela um segredo, outro que tem como profissão absorver e filtar os segredos dos outros. Nos jardins ouve-se o piar das aves entre o sombreado de poilões e cajus.

Até que alguém vem avisar que o Sr. Sabino está pronto para partir.
António Ricoca Freire acompanha o expedicionário à porta, augura-lhe a plenitude dos sucessos, pede-lhe prudência e reclama que pretende informação dos resultados.

Recolhe-se a bagagem da Pensão Lobato, está confirmado que a casa de banho continua a aguardar reparação, e de Bissau, por via de Bissalanca, Safim, Nhacra, Jugudul, sempre o jipe a dançar entre o alcatrão esburacado, comentando o Sr. Sabino o cultivo do arroz pam-pam, um arroz de sequeiro muito apreciado no chão manjaco, chega-se àquela recta que passa pelo Enxalé, Saliquinhé, Mato de Cão, Gambaná, Finete, a estrada agora enviesa em torno da bolanha, já se passou a ponte sobre o Geba, segue-se pela Bantajã Mandinga, de certeza que ali à direita é o caminho para Fá, já junto a Bambadinca é certo e sabido que temos Santa Helena, mas vamos estrada fora, inflecte-se à esquerda, contorna-se o velho porto e até a estrada que o Tangomau fez vezes sem conta, subindo ou descendo a pé, e lá no alto avista-se um arremedo de mercado ou feira, pergunta-se onde vive Fodé Dahaba, um adolescente entra no jipe e encaminha os viajantes para a morada demandada.

Diga-se em abono da verdade que o reencontro é comovente, há gente entre os Dahaba, os Fati e os Sanhá que lacrimejam ou incitam à coragem, entre gritos e clamores, nisto de reencontros o chorar é explícito, consentido, partilhado.
O Sr. Sabino a tudo isto assiste estupefacto, ninguém viera até hoje à Embaixada para se lançar nos braços de antigos combatentes, preparado para calcorrear lugares ermos, manda a sabedoria da vida que há sempre uma primeira vez para ver e até acreditar no que os olhos vêem.


O Príncipe Samba, o meu querido amigo Albino Amadu Baldé, que vive em Sinchã Indjai, perto do Xitole, deixou ao Tangomau esta carta amorosa. Foi o suficiente para que, na manhã seguinte, a caravana dos camaradas da Guiné se deslocasse ao Xitole… É tão bom que alguém nos escreva uma carta tão bonita!

5. A carta enviada há semanas atrás é lida em voz alta, como se de edital se tratasse. As viaturas são apresentadas, o Tangomau olha transido para duas viaturas semiarruinadas, com carências impossíveis mesmo numa Roménia ou Bulgária: vidros esmagados, partidos e presos com fita-cola; farolins desaparecidos; capôs boquiabertos, mostrando o interior arruinado; bancos esfarrapados, adaptáveis a qualquer contingente, e mais que se sabe acerca de viaturas que se movem por milagre. No mínimo, o Tangomau aguarda que esse milagre dure todo tempo da estadia. Fodé dá ordens para o dia seguinte:

“Amanhã o Calilo vai-te buscar às 8 da manhã, há milícias de Finete que querem falar contigo, depois vamos visitar a minha família aqui, seguimos depois para Amedalai. Depois vamos ao Xime e a Ponta Varela. É impossível irmos à Ponta do Inglês, a estrada está cheia de água. A mesma coisa entre Amedalai e Demba Taco. Tem paciência”.

O Tangomau tem paciência. Já cumprimentou meio mundo, como não tem o caderno à mão não fixou nomes que se irão tornar tão comuns como Braima, Madjo, Aliu, Fatu ou Nhalim. Calilo no que resta de uma Renault Express leva-o até ao Bairro Joli, é em casa da família Semedo que se vai aboletar. É melhor ficar por aqui. É que muito há a dizer sobre o Bairro Joli e esta quinta que Inácio Semedo ergueu com tanto amor, muito antes da guerra. O importante é saber que a bola de fogo paira sobre os palmares de Finete quando ele é acolhido no Bairro Joli. E por hoje, ponto final.
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Notas de CV:

(*) Vd. Postes de:

7 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7397: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (3): O segundo dia em Bissau
e
9 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7410: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (2): Dia 20 de Novembro de 2010