sexta-feira, 11 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9885: Cartas do meu avô (3): Segunda Carta: Em Catió (Parte II) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)




Alemanha, Berlim > Páscoa, 2012 > O J.L. Mendes Gomes com os netos.

Foto: © J. L. Mendes Gomes (2012). Todos os direitos reservados.


1. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo presentemente em Berlim.


SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ (PARTE II) (*)

Lichtenrade, Berlim, 14 de Março de 2012

4-  Recordações Boas e Amargas de Catió

 Os momentos da chegada ao quartel, depois do esforço e dos riscos que se tinham sofrido, ficaram para sempre inesquecíveis. Desencadeavam em nós um tal bem-estar e satisfação que quase apetecia dizer que, por eles, tudo tinha valido a pena.

Um banho de chuveiro e uma cerveja grande fresquinha bebida, gole a gole, de papo para o ar e o corpo estendido na cama, acabavam por fazer esquecer e dar-nos a insidiosa sensação de que tão cedo não cairíamos noutra…

Mas não era assim, logo a seguir, haveria serviço noturno a desenvolver, com emboscadas montadas em sítios estratégicos, nas imediações de Catió, para criar  insegurança ao inimigo e afastar-lhes a tentação de ataques súbitos. Para isso, havia uma escala de serviço para cada pelotão.

Nunca me esquecerei daquele Domingo, de manhãzinha, em que fui acordado pelo alferes Arlindo Barros, - exercia, por assim dizer, as funções  de  segundo comandante da Companhia – para sair imediatamente com o meu pelotão, porque andavam a raptar populações inteiras em certo sítio, fora de Catió. [, foto do quartel à direita, 1968, foto do nosso saudoso Victor Condeço]

Rapidamente, sem grandes apetrechos, estávamos a caminhar através de matas e bolanhas, guiados por uns elementos nativos que conheciam bem o terreno.  A caminhada durou o dia inteiro. Apenas levávamos connosco o cantil cheio de água. De comer não. 

O calor era tórrido e sem abrigo, em muitos lanços da caminhada.  O que mais falta fez, na realidade foi a água. Eu pensei a sério, em beber a minha própria urina… não sei se alguém o fez. Só sei que tive de beber água escaldante esverdeada dos charcos das bolanhas filtrada na minha camisa.  Para refrescar o corpo, molhava-nos todos onde se podia. Momentos depois a roupa estava seca sobre a pele.


[Foto do bar do quartel  de Catió, à direita, 1968, foto do  Victor Condeço, 1943-2010; na imagem, ele é o primeiro da esquerda]

O regresso a Catió foi lancinante. Para além do cansaço, tinha-se-me esfolado a zona entrepernas a ponto de sangrar.  Terá sido, para mim, pelo menos, a prova mais dura de todo tempo de comissão. E o resultado foi nulo. Não se aprisionou ninguém. A tal ponto que este feito, no final, inesperadamente, determinou- me a atribuição do meu único louvor, pelo comandante de companhia o qual não mereceu, como seria de esperar, nenhum reconhecimento pelo novo comandante de batalhão.

E  houve de facto uma razão forte.  Foi que, este comandante, o tal de tão mau feitio e igual formação, que lhe mereceu uma agressão de alguém, anónima, na cabeça, pela calada da noite, quando deambulava no interior do aquartelamento.

Quando pôde voltar ao almoço na messe, cabeça toda entrapada, recomendou a todos os oficiais que transmitissem aos seus subordinados que ele mesmo promoveria ao posto acima quem denunciasse o agressor. 

Claro que ninguém quis ser promovido, gratuitamente.

Fosse pelo que fosse, eis que, de supetão, decidiu empreender, por sua inteira iniciativa, uma minioperação, que consistia num golpe de mão a um aquartelamento inimigo, algures, para os lados do Cantanhez.

Sairia a minha companhia só, reduzida a dois pelotões, o 2º e o 3º pelotão, o primeiro ficaria de guarda ao quartel.  À frente seguiria o pelotão de nativos,  comandados pelo famoso J. Bacar Jaló [, foto à esquerda, em Catió, em 1967, já graduado em tenente de 2ª linha: foto de Benito Neves].

Foi a nossa salvação.  Este alferes nativo conhecia muito bem o terreno e o que por lá havia.
 - Ó nosso alferes! Isto é uma grande asneira. Muito perigosa. Se tentarmos lá ir tenho a certeza de que seremos todos mortos como passarinhos. – exclamava-me ele atónito, e preocupado, não por si.

Toda a gente sabia como ele era uma pessoa muito séria, do seu valor, coragem e capacidade de comando no terreno. Se o dizia tão desassombradamente era porque era mesmo verdade.

Que é que nós podemos fazer contra tamanha força ali existente, de fonte segura. Nem um batalhão, quanto mais, três pelotões, armados só de G3, bazucas e morteiros. Sem apoio aéreo ou de artilharia. Era um golpe de mão.

Era melhor ser um único pelotão. Por exemplo o meu…continuava ele espumando de raiva.  Eu era o comandante da operação. Pelo facto de ser mais antigo que o comandante do 3º pelotão, o alferes Gonçalves.

 Conferenciei com ele. Logo se veria o que faríamos. Quando já estávamos a pisar terreno de alto perigo, muito próximo da entrada na mata onde ficava o quartel inimigo, apareceu no céu, muito alta, uma avioneta que transportava o autor da operação.

Entrou em contacto comigo via rádio. Informou que estávamos perto do objetivo . Que estava a chegar um bombardeiro de Bissau para metralhar a mata. De seguida e à sua ordem  deveríamos entrar mata dentro.
 - Entendido, nosso alferes?  -  Não respondi logo.

[Foto à direita: pista de Catió, janeiro de
1968. Autoria: Victor Condeço, 1943-2010]


O raio do rádio tinha de avariar naquele preciso momento…
 - Está-me a ouvir ou não? – gritava lá do alto.

Nunca eu sentira tamanha responsabilidade às minhas costas. Sempre pensei que apenas iria cumprir , mas integrado na companhia, à responsabilidade do comandante.

As palavras do J. Bacar Jaló badalavam-me insistentes na cabeça.
- Não. Não vou pôr , tão ingloriamente, em risco a minha e as vidas dos meus soldados. Aconteça o que acontecer. – pensei para mim.

Recusei responder-lhe, a tudo quanto ouvia, simulando uma avaria nas transmissões. O comandante gritava mais e mais.
 - Ó nosso alferes, está desobedecer-me. Vai ser preso quando chegar ao quartel. Por desobediência em teatro de guerra. Por que, de certeza,  me está a ouvir.

E estava mesmo. O Gonçalves disse que eu é que era o comandante. Fazia o que eu dissesse. O J. Bacar Jaló mantinha tudo o que dissera:
 - Vamos morrer todos, nosso alferes!

Não vamos. Decidi. Ficamos ali parados no meio da bolanha.

Às tantas apareceu lá longe o tal bombardeiro. Deu umas voltas em redor e,  subitamente,  orientou-se na nossa direção, picou sobre nós.  Roncando assustador, como uma terrível fera. Ensurdecedoramente.
 - Vamos ser bombardeados, por engano. – Gritei.

[Foto à esquerda, vista aérea de Catió, janeiro de 1968. Autoria: Victor Condeço, 1943-2010]


Não foi preciso mandá-los. Logo uma série de soldados se despiu as camisas para lá de cima verem que éramos nós… e acenavam-nas desesperados,  mirradinhos de medo.

Por momentos, pensei e todos nós que muitos iriam ficar ali para sempre. Foi tudo muito rápido. Assim como picou em direção a nós assim se elevou, sem nada acontecer.

Passados mais uns momentos, começámos a ser atingidos por granadas de morteiro e bazuca vindas da orla da mata. Respondemos como pudemos. O resto foi o bombardeiro quem resolveu. Metralhando ferozmente toda a mata e a orla donde vinha o fogo.

A famigerada avioneta tinha desaparecido há muito nos céus. Que estávamos nós lá a fazer? Mandei regressar.

 No dia seguinte, fui chamado à sala do comando. A tal onde se explicavam as operações.  Estavam todos os oficiais do batalhão e da minha companhia.   Solenemente, o comandante chamou pelo meu nome. Pus-me em sentido.
- Nosso alferes Mendes Gomes, ontem o senhor negou-se a cumprir as minhas ordens.
- Que ordens, meu comandante?
 - Não me diga que não ouvia o que eu lhe disse pelo rádio.
 - Eu não ouvi nada, meu comandante. Está aqui o comandante do 2º pelotão e o alferes J. Bacar Jaló que estavam à minha beira para testemunharem se foi ou não verdade.


[ Foto à esquerda, da autoria de benito Neves Catió > 1967 > Lagoa entre Catió e Príame].


O rosto do comandante toldou-se, não sei se de raiva se de gozo voraz. Iria apanhar-me de certeza- pensou para consigo.
- Nosso alferes Gonçalves, é verdade o que ouviu da boca do nosso alferes Mendes Gomes?
- Sim. É verdade. O rádio não transmitiu nada.
 - Alferes João Bacar Jaló, que me tem a dizer?
- É tudo verdade o que foi dito pelos nossos alferes.

O comandante ficou embatocado. Nunca esperou ouvir o que ouvira.  Parecia que estava tudo combinado. Mas não. As reações dos meus camaradas foram espontâneas. Em total solidariedade. Aquela operação era um suicídio…

Perante tão claros e peremptórios testemunhos, que provas tinha ele do contrário?  Absolutamente nenhuma.  Mesmo assim, já estava tudo decidido.
Mandou ler a repreensão agravada que já vinha preparadinha…

 Uma vez lida, a magna reunião tão solenemente como começou assim terminou.  Respirei de alívio.
 - Quero lá saber da repreensão…- pensei.

Bem temi que iria parar à prisão militar.

[Continua]

______________

Nota do editor



Guiné 63/74 – P9884: Convívios (433): 7º Encontro da CCAÇ 1426, 7 de Julho de 2012, em Vila Amélia (Fernando Chapouto)


1. O nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426, que entre 1965 e 1967, esteve em Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, enviou-nos, com pedido de divulgação, o seguinte programa da festa da sua Companhia.

VII ENCONTRO DA COMPANHIA DE CAÇADORES 1426 – GUINÉ 1965/67
07 DE JULHO DE 2012 (SÁBADO)

Camaradas, 

Venho informar que o nosso encontro se realiza em VILA AMELIA, junto à FABRICA DA COCA-COLA, no CAFÉ RESTAURANTE “A QUINTINHA”. 

Contamos com a vossa presença, no:

CAFÉ RESTAURANTE “A QUINTINHA

EMENTA

Entradas: Pão, azeitonas, manteigas, queijo e Linguicinhas
Sopa: Creme de Cenoura
Pratos Quentes: Bacalhau à casa frito com molho de cebolada e Carne de porco à alentejana
Bebidas: Vinho a jarro, sumos, cerveja, águas e sangria
Sobremesas: Diversas
Mais: Bolo de Aniversário com champanhe, café e digestivo

Contactos
António Sequeira Gomes: Telef: 212880260, TMN: 969073463
Fernando Chapouto: Telef: 210838708, TMN: 965114882

Programa:
11h30 - Concentração junto ao restaurante
13h00 - Almoço convívio

Inscreve-te até 10JUN2012, vem participar no nosso/vosso convívio.
Não faltes, esperamos por ti, nós estaremos lá.

Preços:
Adultos: 25.00 €
Crianças: Até aos 10 anos não pagam.

ITINERÁRIO: 


Coordenadas GPS: 38.557529 – 8.987091
__________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

10 DE MAIO DE 2012 > Guiné 63/74 – P9882: Convívios (250): Almoço anual da CART 2479 - CART 11 (CCAÇ 11), dias 26 e 27 de Maio de 2012, em Coruche (Abílio Duarte)


quinta-feira, 10 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9883: Da Suécia com saudade (36): Quando os mortos choram os vivos (José Belo)

 
1. Mensagem do nosso camarada José Belo (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70), Cap Inf Ref a viver na Suécia:

Caro Amigo e Camarada
A propósito da fotografia do cemitério de Bissau, junta ao poste de Tiago Teixeira, que é um verdadeiro "Grito em Silêncio".

José Belo



Cemitério de Bissau

Foto: © Tiago Teixeira (2012). Direitos reservados


Quando os mortos choram os vivos

Nós, os que voltámos, nunca iremos esquecer o sabor acre daquela poeira vermelha
que comungámos em rebentamentos de minas...

Nós, os que voltámos, ainda hoje sentimos o calor da terra que abraçámos,
e contra a qual nos comprimíamos em desespero de emboscadas....

Nós, os que voltámos ainda ouvimos o ruído miraculoso das chuvas na mata...
os odores variantes da terra molhada...
os trovões na noite tropical....

Nós, os que voltámos,
 recordamos o bater matinal dos pilöes em tranquila Tabanca...

Nós, os que voltámos!

A terra vermelha lá está...
abraçando-os.

As chuvas caem,
misturando-se com invisíveis lágrimas de saudade.
gritos abafados de "näo haverem sido"...

Os relâmpagos iluminam as lages, ano após ano...

Ver-se-ão nomes?
Datas?
Referências militares?....

Ou, simplesmente...
um soldado de Portugal?...
Esquecido.

Um abraço do
José Belo
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9855: Ser solidário (126): Da mesma maneira que muitos dos ex-combatentes sentem aquela pulsão de regressar, eu também a sinto (Tiago Teixeira)

Vd. último poste da série de 13 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9479: Da Suécia com saudade (35): Humildade cristã e....diálogos provocadores (José Belo)

Guiné 63/74 – P9882: Convívios (432): Almoço anual da CART 2479 - CART 11 (CCAÇ 11), dias 26 e 27 de Maio de 2012, em Coruche (Abílio Duarte)




CONVÍVIO 2012

DA
COMP. ARTILHARIA 2479
GUINÉ 1969 A 1971

Coruche 26 e 27 de Maio de 2012 

Amigos Combatentes na Guiné:

Vamos realizar mais um indispensável almoço-convívio desta vez em CORUCHE, terra do nosso amigo MALTA.

E de tão perto que está de Lisboa, queremos ver aquelas caras que não aparecem há muito tempo ou mesmo que nunca apareceram e que todos gostaríamos de rever. Pelas fantásticas experiências dos anos anteriores, pela camaradagem, pela emoção, pela memória, VALE A PENA.

As inscrições para o almoço deverão ser feitas para o Malta ou para o Leonel até 23 de Maio.

Em anexo vão as indicações para o local do restaurante e a respectiva ementa que é de comer e chorar por mais…

O alojamento é muito variado pelo que juntamos uma lista para cada um fazer as suas marcações. Através da Internet encontrarão mais hotéis (Sug: Google – “Hotéis em Coruche”).

Aqueles que vão do Norte deverão encontrar-se na Estação de Serviço de Sto Ovídio, Gaia, na A1 pelas 9 Horas.

ABRAÇOS E ATÉ SÁBADO, DIA 26 de MAIO

V N Gaia, 20 de Abril de 2012
(M. Pina Cabral)

Contactos:   

MALTA ........ 914599113 (Presidente Organizador 2012)
LEONEL ....... 912848724 (Secretário Permanente) 

__________
Nota de M.R.:


Vd. último poste desta série em:

9 DE MAIO DE 2012 > Guiné 63/74 – P9872: Convívios (249): Pessoal da CCAÇ 2679 e Pel Caç Nat 65, dia 28 de Abril de 2012 em Cascais (José Manuel M. Dinis) 


Guiné 63/74 - P9881: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (23): Manifesto das ONG guineenses sobre a situação atual...

A. Por força do estatuto editorial do nosso blogue,  não nos é permitido abordar a atualidade política da Guiné-Bissau (nem a do nosso próprio país). Mas isso não nos impede de dar notícias dos nossos amigos e parceiros da Guiné-Bissau, como é o caso mais concreto do pessoal que trabalha na ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, alguns dos quais são membros da nossa Tabanca Grande.  


Temos, de resto, apoiado material e simbolicamente várias das suas iniciativas e projetos, individualmente ou em grupo, ou através de outras ONG  e associações humanitárias portuguesas que integram camaradas nossos (Ajuda Amiga, Tabanca Pequena, Memórias e Gentes, etc.). 


O que se passa na Guiné-Bissau não nos pode deixar indiferentes,  quedos, mudos, surdos e cegos... Temos um dever de solidariedade para com todo o povo da Guiné-Bissau, incluindo todos os nossos amigos que lá vivem e trabalham... 


Não confundimos o povo da Guiné-Bissau com a sua elite dirigente. Temos razões para temer pela  vida dos nossos amigos, pela sua segurança, pela sua saúde, pela sua liberdade, pelo futuro dos seus projetos... Por outro lado,  orgulhamo-nos do trabalho que eles têm feito, em prol  do desenvolvimento integrado e sustentável da Guiné-Bissau, orgulhamo-nos também  da sua coerência, verticalidade, frontalidade, lucidez, capacidade de intervenção cívica, coragem moral e física neste momento difícil para a Guiné-Bissau, o seu povo e os seus amigos.


Sabemos que as telecomunicações (e portanto a Internet) estão péssimas em Bissau. Mesmo assim, vamos estando em contacto com os nossos amigos para quem só podemos, à distância,  transmitir um voto de confiança, de esperança e de solidariedade. Deles, acabámos de receber, ao  fim da tarde, este documento que vamos reproduzir, no nosso blogue... 


Amigos, o Mundo é Pequeno, a nossa Tabanca... é Grande, e vocês cabem nela, por inteiro. Na nossa Tabanca, nos/as nossos(as) (c)orações...


Luís Graça. 




B.  Manifesto de ONG Guineenses sobre o impacto do Golpe de Estado de 12 de Abril junto das comunidades 


Reunidos no dia 9 de Maio de 2012 com o objetivo de avaliar a situação das comunidades mais vulneráveis volvidos já cerca de um mês depois do Golpe de Estado ocorrido a 12 de Abril e atendendo as dificuldades constatadas no estabelecimento de soluções duráveis entre os diferentes atores nacionais e da Comunidade Internacional envolvidos, que conduzam à retoma efetiva da legalidade constitucional e restauração de um clima de paz, segurança e respeito dos direitos cívicos e políticos dos cidadãos, as Organizações Não Governamentais signatárias consideram o seguinte: 


1. O não funcionamento do aparelho do Estado e das instituições públicas em particular, o não pagamento dos salários aos servidores do Estado, os entraves colocados à campanha da castanha de caju, principal fonte de receita do país e da maioria dos camponeses, a suspensão de projetos importantes apoiados pelas instituições internacionais do desenvolvimento (BM, FMI, BAD) e a paragem quase que completa da vida económica, está a provocar uma situação de aumento acentuado dos níveis de pobreza e vulnerabilidade das populações do mundo rural e dos bairros da capital; 

2. A paralisia das escolas públicas agravadas pelo Golpe de Estado assim como da generalidade dos estabelecimentos de ensino, compromete seriamente o presente ano letivo consubstanciado na sua provável anulação; 

3. A ocorrência do golpe de estado no início da campanha do caju e nas vésperas da preparação do ano agrícola, compromete gravemente a segurança alimentar, a situação sanitária e a economia das populações no mundo rural, agravados pela fuga das populações da capital para o interior, que se traduz pela diminuição dos bens alimentares já escassos nesta época no interior do país, pelo aumento da pressão sobre os recursos naturais e as reservas de água nos poços e ainda pelo risco de propagação de epidemias (cólera) já existentes nos países vizinhos; 

4. A subida exponencial dos preços dos produtos de primeira necessidade devido à paralisia nos circuitos económicos, aos obstáculos na circulação e no abastecimento destes bens, à escassez do dinheiro no mercado e à consequente tendência para a especulação própria deste tipo de situação, vem-se traduzindo num aumento insuportável das privações das famílias mais vulneráveis e no crescimento da revolta e da contestação da camada juvenil, ainda pouco visível pela interdição de manifestações, o que pressupõe a existência de sementes de violência de impactos devastadores; 

5. A ausência do poder de Estado em todo o país consequente ao Golpe de Estado, está a favorecer a pilhagem crescente dos nossos recursos, pela maior permeabilidade das fronteiras, pela paragem da fiscalização das nossas águas territoriais, e está, sobretudo, a contribuir para a intensificação de negócios ilícitos como o narcotráfico;

 6. A ocorrência de perseguições políticas, de privação dos direitos cívicos e políticos dos guineenses, entre os quais o direito à informação, à expressão e manifestação gera um clima de suspeição e de medo que entrava a união dos guineenses e inviabiliza a busca de soluções efetivas aos problemas com que a Nação se depara; 

7. O recurso a arquiteturas políticas visando protelar e contornar o retorno à legalidade constitucional exigida pelos guineenses, a nível interno e na diáspora, e pela comunidade internacional, levam a um prolongamento da situação de impasse que afeta a paz, a segurança e a democracia na Guiné-Bissau; 

8. Este contexto de ferozes disputas de interesses intestinos acarreta o risco de ver a Guiné-Bissau transformar-se num campo de batalha de influências económicas e geoestratégicas que se sobrepõem e anulam os verdadeiros interesses nacionais e levam a Guiné-Bissau a servir de terra de ninguém onde outros promovem e realizam negócios interditos nos seus países. 

9. As razões invocadas para mais este golpe de Estado acabaram por se revelar sem fundamento, pois nenhuma prova credível foi tornada pública, constatando-se que os que estão direta e indiretamente envolvidos no Golpe de Estado são os principais interlocutores negociais, sendo excluídos do processo as personalidades e instâncias legitimadas pela Lei e pelas urnas em expressão da única vontade que deveria contar e ser sagrada para todos: a vontade popular.

 As ONG guineenses signatárias alertam para a necessidade de: 

1. Garantir a restauração da ordem constitucional e reinstalação do Governo eleito democraticamente e do Presidente da Republica interino;

 2. Assegurar a retoma do processo eleitoral presidencial interrompido, como recomenda o Conselho de Segurança das Nações Unidas; 

3. Devolver a liberdade de expressão e manifestação das populações em condições de segurança; 

4. Recolocar o processo de diálogo conjunto com as autoridades democraticamente eleitas, as instituições legítimas do Estado, todas as organizações internacionais envolvidas (CEDEAO, CPLP, UA, ONU), os partidos políticos e a sociedade civil. 

As ONG signatárias assumem o compromisso de: 

1. Reforçar o trabalho de responsabilização das comunidades locais, para que elas assumam um maior protagonismo na definição das suas posições, na defesa dos seus interesses e direitos cívicos, no fortalecimento da sua capacidade produtiva, económica e social pelos quais as ONG signatárias pugnam com determinação; 

2. Promover debates ao nível local, envolvendo especialmente as comunidades, os agrupamentos e associações, na perspetiva de contribuir para maior informação, conscientização e implicação das populações, para o fortalecimento da coesão social e para a salvaguarda da paz social e do bem comum;  

3. Reforçar a capacidade de análise crítica e de proposta das populações locais no que concerne ao seu posicionamento face à situação atual que o país vive e seu engajamento na procura de soluções duráveis, que pressupõe a reconquista do seu direito legítimo e democrático de opinião e manifestação; 

4. Desenvolver ações de informação e comunicação junto aos seus parceiros e da comunidade internacional, com particular atenção ao nível regional, fazendo levar as preocupações, pontos de vista e propostas das populações locais; 

5. Promover um amplo debate nacional sobre a necessidade e o papel das Forças Armadas no futuro da Guiné-Bissau em pleno gozo do estado de direito e democrático. 

Bissau, 10 de Maio de 2012,


As organizações signatárias: 

AD - Ação para o Desenvolvimento 

AIFA/PALOP – Associação de Investigação e Formação Orientada de Ação de Natureza Participativa nos Países Africanos da Língua Oficial Portuguesa 

ALTERNAG – Associação Guineense para Estudos e Alternativas Federação Camponesa

 KAFO – Autopromoção Comunitária e Desenvolvimento Rural Durável 

TINIGUENA – Associação de Promoção do Desenvolvimento Participativo na Base e Gestão Durável dos Recursos Naturais 

RENARC – Rede Nacional das Rádios Comunitárias

 LGDH – Liga Guineense dos Direitos Humanos 

NADEL - Association Nationale pour le Développement Local et Urbain (Guinea-Bissau)

Guiné 63/74 - P9880: In Memoriam (118): A sã camaradagem e a vil emboscada, morreu o camarada Vasco Almeida (Vasco da Gama)



1. O nosso camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351 "Os Tigres de Cumbijã", Cumbijã, 1972/74, dirigiu-nos a seguinte mensagem.

A SÃ CAMARADAGEM E A VIL EMBOSCADA

Há dezasseis consecutivos anos que a minha C.Cav. 8351 se vem reunindo sempre com grande entusiasmo e enorme alegria. Desta feita tínhamos razões acrescidas para festejar com mais ânimo, pois o organizador conseguira para cima de cem inscrições entre militares, cerca de cinquenta, e familiares a rondarem os setenta!

Proibido de conduzir sozinho, aguardei, impaciente, a boleia de dois camaradas meus o Adérito Neto, ex alferes e o também ex-alferes Mário Castelhano, comandante do pelotão de obuses no Cumbijã, já na fase final da guerra.


Foi bonita a recepção que a malta me dispensou e sorri com gratidão às manifestações de carinho de toda a gente!

Maior alegria tive quando vi o nosso Camarigo JERO, esse companheirão de Alcobaça e membro distinto da nossa Tabanca Grande! Apareceu, tirou umas fotografias e abalou para junto da família, não almoçando, como era o meu desejo, com a tropa.

O organizador, Augusto Covas, sentou-me à sua mesa com os meus companheiros de viagem, com o Machado, o Azambuja, o Barbosa, o Vasco Almeida e o senhor padre!

Outra grande alegria tive da parte da tarde com a chegada do Miguel Pessoa e da Giselda Pessoa. Sabe sempre bem abraçar esta gente! O Miguel tirou inúmeras fotografias que aqui me escuso a publicar.

Abrirei excepção a uma fotografia para exprimir a afinidade das coisas com o sentir!

Correu tudo bem, para o ano há mais, dia 27 em Sever do Vouga e em 2014 em Portalegre!

Regressei feliz a casa e dormi sem sobressaltos!

O nosso camarada Vasquinho Almeida

Segunda-feira, logo pela manhã, o meu camarada Covas telefona-me e a chorar diz-me de supetão: Capitão, morreu o Vasco Almeida!

A viver sozinho, o Vasco Almeida era seguido de muito perto pelos seus filhos que todos os dias lhe telefonavam!

No dia seguinte ao nosso convívio morreu!

O filho encontrou-o deitado, sem vida!

Andava triste, pois perdera a mulher, vítima de grave doença, e manifestava uma tristeza própria de quem perdera o entusiasmo de viver.

Terá tido uma morte serena e resignada!

Despedira-se da malta com o premonitório “este é o último convívio”…

Juntámos dez Camaradas no seu funeral em Lisboa!

Eu reajo sempre mal, muito mal mesmo a estas situações, como aliás o fazia na Guiné!

Um dos meus camaradas presentes, ao ver-me chorar copiosamente, disse-me, ciciando na sua rouquidão, e na sabedoria de quem já sofreu e venceu um cancro na garganta: Capitão quem me dera morrer assim, sem sofrer mais…

A morte atacou uma vez mais silenciosa e traiçoeira…

Do pessoal que “controlamos” vinte e três já partiram…

Só hoje ganhei coragem para escrever estas atabalhoadas palavras, mas o Vasquinho Almeida merecia este abraço solidário meu e de todos os meus Camaradas!

Aqui deixo a sua fotografia no Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, digno repositório dos Combatentes da Guiné!
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Nota de MR:

Guiné 63/74 - P9879: Memórias da minha comissão (João Martins, ex-alf mil art, BAC 1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69): Parte IV : Em Piche, com um Pel Art com 3 peças de 11.4


Foto nº 73/199 > Setembro de 1968 > Chegada da LDG a Bambadinca [Sobre a viagem de Bissau a Piche, vd. poste 9593]




Foto nº 85/199 > Setembro de 1968 > A caminho de Piche, antes de Nova Lamego > Furo em plena picada. Últimos da coluna. Sós. Aguardando ajuda ou o inimigo...



Foto nº 90/199 > > Paragem obrigatória para descansar... [Em primeiro plano, uma das 3 peças de artilharia, 11.4]




Foto nº 103/199 > Setembro de 1968 > Nova Lamego > Pedro Sá da Bandeira, antigo colega de turma no Liceu Nacional de Oeiras e vizinho da mesma rua em Algés.



Foto nº 98/199 > Setembro de 1968 > Piche > Os meus camaradas, alferes de cavalaria.




Foto nº 99/199> Setembro de 1968 > Piche > Em Piche nunca entrei em combate, mas tive encontros imediatos de grande perigo, porque facilitei em demasia... [Na foto, canhão s/r montado em jipe... Não era uma arma de acavalaria, mas uma arma pesada de infantaria...]




Foto nº 101/199> Setembro de 1968 > Piche > [O JoãoMartins com uma temível granada de canhão s/r]


Foto nº 109/199 > Piche > 1968 > Portugueses da Guiné solicitando a ajuda Nacional.


Foto nº 112/199 >  Piche  > 1968 > Mulher amamentando uma cabrinha (!)...


Foto nº 111/199 > Piche > [Fulas partilhando uma refeição]



Foto nº 108/199 > Piche > Setembro de 1968 > Régulo afirmando a sua amizade, veio cumprimentar-nos.




Foto nº 117/199 > Piche > s/d > [Uma bela paisagem, não tenho a certeza se é de Piche... ou de Catió por onde o autor passou, a caminho de Bedanda].



Fotos do álbum do João José Alves Martins, em grande parte disponíveis na sua página do Facebook... 


Fotos (e legendas): © João José Alves Martins (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. (Fotos editadas e parcialmente legendadas por L.G.)


Memórias da minha comissão na Província Ultramarina da Guiné - Parte IIV (*)

por João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69)

(Continuação)



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ÍNDICE

1 – Curso de Oficiais Milicianos
1.1 – Mafra – Escola Prática de Infantaria
1.2 – Vendas Novas – Escola Prática de Artilharia – Especialidade: PCT (Posto de Controlo de Tiro)
2 – Figueira da Foz – RAP 3 - Instrução a recrutas do CICA 2
3 –Viagem para a Guiné (10 de Dezembro de 1967)

4 – Chegada à Bateria de Artilharia de Campanha Nº. 1 (BAC 1) e partida para Bissum

9 – Gadamael-Porto

10 – Guilege

11 – Bigene e Ingoré
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7. Piche


Chegado a Bissau [, de férias na metrópole], novo pelotão e novo destino me esperavam, Piche, e em Setembro de 1968 embarquei numa Lancha de Desembarque Grande (LDG) com um pelotão constituído por três peças de Artilharia 11,4 cm.

Em Nova-Lamego encontrei um ex-colega de turma do Liceu Nacional de Oeiras, o Pedro Sá da Bandeira, a quem tirei uma fotografia.

A viagem estava a decorrer sem qualquer contacto com o IN, até parecia que já não estava em teatro de guerra, e, como tinha vindo da Metrópole, já tinha esquecido um pouco o que era entrar em combate.

Quase a chegar a Piche, depois de passadas Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego, indo eu na última viatura da coluna para me certificar que tudo à minha frente decorria da melhor maneira, a viatura teve um furo na roda esquerda dianteira,  como mostra a fotografia. Éramos dois ou três, isolados, sem armas, só com munições de artilharia que para o efeito não serviam para nada, e assim ficámos bastante tempo, parados na picada à espera que acontecesse alguma coisa.

Apareceram então elementos da população, muito simpáticos e prestáveis como são em geral os fulas e os futa-fulas. Prontificaram-se a remover algumas caixas de munições e a arranjar o pneu da viatura. Entretanto, chegou o auxílio vindo da coluna porque acabaram por dar pela nossa falta.

Por feitio, gosto de interagir com os outros, para mim, era essencial compreender as motivações, as queixas, o que ia na cabeça daquela gente, de modo que mantive sempre uma relação muito próxima, não só com os soldados dos meus pelotões mas também com os que tinham sido colocados circunstancialmente na sede, BAC 1, por começarem a especialidade, por irem ou regressarem de férias ou por estarem a terminar o serviço militar, na sua grande maioria recrutados de todas as etnias da Guiné, e ainda, com todos os que me rodeavam, muito particularmente, quis compreender o verdadeiro sentir das populações e a sua relação com aquela guerra.

O que me deixa verdadeiramente satisfeito, é ter conhecido aquelas gentes, melhor dizendo, aqueles portugueses, verdadeiros portugueses na medida em que, na sua maneira de ser, se aproximam muito de nós, muito provavelmente pela ação missionária e de evangelização a que todos nós, portugueses, fomos de algum modo chamados desde a “Fundação de Portugal”.

Assim como os portugueses da Metrópole têm ideologias diferentes, religiosidades específicas, modos de convivência diferenciados, com o sentimento do “amor ao próximo” vivido de maneiras diferentes, uns, mais crentes, portadores de uma religiosidade mais profunda, outros, menos crentes ou até ateus, também na Guiné fui encontrar as maiores disparidades, até porque não se trata de um povo, mas de uma miscelânea de povos das mais diversificadas origens com dialetos distintos, tendo inclusivamente alguma dificuldade em comunicar uns com os outros, pelo que têm o crioulo em comum que lhes permite entenderem-se. Inclusivamente, informaram-me que os membros de uma das etnias, os felupes, eram canibais.

A única característica comum para além de serem africanos era o fato de serem portugueses. Só esse facto os une, pelo que muito dificilmente se poderão constituir como uma Nação. Mais, o sentimento mais profundo que trago como recordação, é que, na Guiné, eu não estava no estrangeiro, mas em Portugal, e quando estou com alguém de lá, não posso deixar de lhe dar o meu abraço de “irmão”, porque vejo nele um português que vive no estrangeiro.

O mesmo não se passa com os espanhóis com os quais ainda temos um diferendo fronteiriço, o caso de Olivença, e recordamos que no passado, fomos uma região autónoma espanhola, nem temos afinidades com os franceses que nos invadiram no tempo do imperador Napoleão Bonaparte, cujas tropas “saquearam” o que puderam, e ainda menos, com os alemães, com os quais estivemos em guerra e recordo a batalha de “La Lys”, durante a 1ª Guerra Mundial, em que estivemos envolvidos sem grande justificação, entrando em combate em condições verdadeiramente desumanas e em que, em consequência, muitos portugueses perderam a vida.

Parte de mim ficou na Guiné, para sempre, não só pelo sentimento do dever cumprido que é independente do regime que vigorava na altura, mas sobretudo, pela experiência e pelo reconhecimento de cerca de 500 anos de convivência e de pertença à mesma Nação, e esta realidade não se esquece, não se apaga e não está à venda…

Em Piche, aconteceu-me um episódio que não esquecerei. Como não sentia qualquer animosidade por parte da população, nem pressentia qualquer perigo, não pensei que o perigo sempre espreita. Nem mesmo pensei nisso quando chegou ao aquartelamento um carregamento de garrafas de cerveja, e, como estava calor e tinha sede, dirigi-me ao bar para comprar uma; para meu espanto, informaram-me que já tinham sido todas vendidas; não queria acreditar, e perguntei como é que podia ser. Responderam-me que tinham sido vendidas a um libanês que tinha uma tasca a poucos metros do aquartelamento; fiquei sem saber quem é que lucrava com aquele “negócio”.

Sem alternativa, fui até lá e pude apreciar o ambiente. Realmente, sentíamo-nos fora do quartel, e como não estava acompanhado fui-me inteirando do que se passava à minha volta, reparei que havia quem conversava de uma forma muito discreta e pus-me a ouvir, falavam em francês, o que era estranho, mas mais estranho foi o facto de, quando repararam que eu os estava a escutar, terem-se posto em fuga. Realmente, podia concluir que, verdadeiramente, nenhum lugar era seguro, mas não dei demasiada importância.

Dias mais tarde, vieram-me dizer que havia falta de géneros e que era conveniente procurar nas tabancas das redondezas quem vendesse alguns frangos. Como não tinha muito que fazer, dispus-me a dar uma volta para ver se encontrava alguns e também para quebrar a monotonia. Meti-me num “jeep” e fui com um furriel, levava comigo uma G3 e uma pistola à cintura.

Andámos alguns quilómetros para Norte, passámos por uma palhota onde se encontrava uma mulher a dar de mamar a uma cabra, tirei-lhe uma fotografia, e continuámos na esperança de encontrarmos uma tabanca com galinhas.

A certa altura, chegámos a uma, mas só depois de muito andarmos; não se vislumbrava ninguém, o que achei muito estranho, pedi ao furriel que fosse à procura de alguém, e, como estava muito calor, sentei-me à sombra de uma árvore ficando descontraidamente à espera e a descansar de tanto solavanco a que nos obrigavam aquelas picadas.

Passados uns cinco a dez minutos, para espanto meu, vindos do fundo da tabanca, vejo a cerca de cinquenta metros, uns seis africanos cobertos de panos compridos a correrem para mim e a fazerem muito barulho, com catanas nas mãos e com ar de “poucos amigos”… Percebi que estava em “maus lençóis”, e que tinha que tomar rapidamente uma decisão.

Se fugisse, não ia longe porque algum deles correria mais do que eu, se puxasse pela pistola, também não me safava porque nem sabia se estava carregada, a solução só podia ser uma, rezar e encomendar a minha alma ao Senhor, entregando a minha vida nas sua mãos; e foi o que fiz, e serenamente, na “graça do Senhor”, fiquei à espera…

Face à serenidade que se apoderou de mim, e à “Luz” intensa que me envolvia, ficaram espantados, e resolveram espetar as catanas na árvore, mesmo por cima da minha cabeça, e foram-se embora.

É claro que não ganhei para o susto… Pouco depois, apareceu o furriel dizendo que estranhamente não tinha encontrado ninguém porque tinham fugido todos e a aldeia encontrava-se deserta.

Metemo-nos no “jeep” e viemo-nos embora. No caminho, deparámo-nos com uma árvore de pequeno porte a barrar a picada e uns tantos homens, mas poucos, “à nossa espera”. Tinha-me safado de uma vez e não quis abusar da sorte, disse ao furriel que acelerasse a viatura passando por cima da árvore, enquanto eu de G3 em posição e devidamente carregada, apontava para os nossos “amigos”, agora era eu que estava com “ar de poucos amigos”; é claro que nem se mexeram, passámos sem mais problemas e regressámos ao aquartelamento.

Dias mais tarde, por sinal, andando na mesma viatura, observei que algo de anormal se estava a passar; à entrada da povoação encontravam-se uns quatro homens vestidos com os tais panos, portanto, de uma forma diferente do que era normalmente usado pelo pessoal de Piche. Estavam rodeados por muitos populares, que olhavam para eles muito intrigados quanto às suas pretensões, e era bem visível a diferença de uns e de outros porque os habitantes locais, usavam regra geral, calções e camisas.

Por curiosidade e sentido de responsabilidade, aproximei-me convencido que havia problema, parei a viatura relativamente perto e nem queria acreditar no que via. Eram aqueles que tinham corrido para mim com as catanas na mão, sem dúvida sem as melhores das intenções, e que agora se dirigiam para mim.

Ficaram muito felizes quando me viram, demonstrando-o dando-me grandes abraços como se fossemos amigos de longa data que não se viam há muito tempo, o que não era propriamente o caso, e deixando atónitos os populares que apreciavam toda a cena; devem ter concluído que “eu estava feito com os turras”; não falavam português, provavelmente só o crioulo, mas deu para perceber que o que pretendiam era entrar na povoação para comprar agulhas e linhas para cozerem os seus panos; pelo menos, foi o que eu entendi por gestos e por algumas palavras. É claro que esta cena era completamente incompreensível para quem a observou, e devem ter transmitido isso mesmo ao comandante da companhia que mais tarde me perguntou o que se tinha passado.

Como a realidade era um pouco “sui generis”, resolvi dizer que aqueles homens me tinham salvado a vida, na verdade, devia ter dito que me tinham poupado a vida, de qualquer modo, o que quer que dissesse era pouco compreensível, pelo que não deve ter acreditado na minha versão e poucos dias depois tinha uma guia de marcha para me apresentar em Bissau. 

Lembro-me de ter regressado num “Dakota”, que parecia ser da última grande guerra tal era a vibração da fuselagem e o barulho que fazia o motor. (**)

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Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > Guiné 63/74 - P9857: Memórias da minha comissão (João Martins, ex-alf mil art, BAC 1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69): Parte III - BIssau e férias em São Martinho do Porto, em agosto de 1968


(**) Vd. ta,bém poste de 10 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9593: Álbum fotográfico de João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) (1): Viagem de Bissau a Piche, pelo Geba e pela picada, com 3 peças de arilharia 11.4, em julho de 1968

Guiné 63/74 - P9878: Agenda cultural (200): O António Batista, o nosso "morto-vivo do Quirafo", e os projetos solidários da Tabanca de Matosinhos, hoje, 5ª feira, dia 10, às 10h, no programa Praça da Alegria, RTP1


 1. Pelo correio do nosso camarada e amigo José Teixeira [, foto à esquerda, operador de câmara da RTP, em Empada, no Natal de 69], chegado por volta das 22h50 de ontem, ficamos a saber o seguinte:


Boa noite.

Caríssimos:



Amanhã, dia 10, no programa Praça da Alegria, RTP1,  vai estar o António Batista a quem carinhosamente chamamos “ o morto vivo do Quirafo” para falar do que lhe aconteceu na Guiné durante a Guerra Colonial.




No mesmo programa vai-se falar da Associação Tabanca Pequena e dos seus projectos de apoio ao desenvolvimento da Guiné-Bissau, bem como da Tertúlia da Tabanca de Matosinhos.

Abraços
Zé Teixeira



2. Informação sobre o programa Praça da Alegria, na página da RTP na Net:


Género:Talk-Shows
Informações Adicionais: Todo o Público


Participe nesta festa e faça parte da Família RTP. Fique com a Praça da Alegria, pela simpatia, pela amizade e pela companhia!

A PRAÇA DA ALEGRIA continua a ser o programa de todos os encontros, onde se cruzam amizades e gerações.

Gente de todas as áreas e portugueses de todo o mundo partilham dicas e sugestões, conselhos úteis para o dia-a-dia.
Emitido diariamente a partir dos estúdios do Porto, a PRAÇA DA ALEGRIA é uma produção da RTP que aposta em manhãs divertidas e informativas, com rubricas de saúde e moda, culinária e estética, sem esquecer os cuidados de jardinagem e a decoração da casa. Boas conversas e passatempos animados garantem o tempero.
Nomes de respeito da sociedade portuguesa são garante de qualidade na análise feita às principais notícias da atualidade.
Numa casa que é a sua, encontramos a simpatia dos melhores comunicadores da televisão portuguesa, Sónia Araújo, Serenella Andrade, Jorge Gabriel e Hélder Reis, que recebem como ninguém os convidados vindos dos quatro cantos do mundo. (...)
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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9841: Agenda cultural (199): Intervenção de Mário Beja Santos na Tertúlia sobre o livro de sua autoria "Adeus até ao meu regresso", realizada no passado dia 26 de Abril em Lisboa

Guiné 63/74 - P9877: Parabéns a você (418): Daniel Agostinho Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2861 (Armando Pires)

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires, ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70, com data de 3 de Maio de 2012:

Meu Caro Editor. Camarada. 
O Daniel faz anos já no dia 10 de Maio. 
O Daniel Agostinho Silva foi meu Soldado Maqueiro. 
No dia 1 de Agosto de 1969 accionou uma mina anti-pessoal e foi-lhe amputado um dos pés. 
Eu quero contar a sua história e o Daniel merece que eu a conte. E que a conte aqui, no nosso mural, lugar certo e único para fazer das nossas histórias, história. 

Abraços
Armando Pires


Sem ressentimentos 

Chovia desesperadamente naquela manhã do primeiro dia de Agosto.
Eu e o furriel miliciano Moncada Cordeiro estamos à conversa, sentados na torre da sua Panhard. Falamos da cidade onde nascemos, dos nossos lugares, dos amigos comuns, enquanto, em João Landim, aguardamos que a jangada traga do outro lado do Mansoa, vindas de Bissau, as duas últimas viaturas que por nós irão ser escoltadas até Bula e, daí, levadas através da estrada de S. Vicente. É o último movimento do último dia da “Operação Chave de Ouro”.

Uma operação de três dias que visava proteger as colunas de transporte de um Batalhão de Caçadores para S. Domingos, do pessoal e máquinas da Engenharia que iriam abrir e asfaltar a estrada desde Bula até às margens do Cacheu.

A importância estratégica daquela estrada levara a um grande empenhamento militar do PAIGC, com o objectivo de travar a sua construção. Daí o forte dispositivo militar que, do nosso lado, foi colocado no terreno. Uma Companhia de Comandos, a 122 de Paraquedistas, a CCAÇ 2312, a CCAÇ 2466, as Panhard’s do EREC 2454 e o Poletão de Sapadores da CCS do BCAÇ 2861. Portanto, eu e Cordeiro falávamos, olhos postos no lado de lá do rio onde a jangada se tomava de viaturas e homens.

Eram para aí umas onze da manhã, mais uma horita estavam do lado de cá, descarrega e põe-te a andar, seis quilómetros dali a Bula, era só deixá-los já na estrada de S. Vicente, sempre a rodar para norte, na segurança que lhes fora montada. Com tudo a correr bem, do nosso lado, lá pela uma e meia estávamos a almoçar “em casa”.

O rádio da Panhard acordou e o Cordeiro ajeitou os auscultadores. Olhei-o, para ouvir notícias, e ele olhou-me como se, de facto, tivesse alguma coisa para me dizer.

- Estão a pedir uma evacuação lá para cima.

Para onde:
- Perguntei-lhe, num estranho e súbito alarme.

Quis saber se de lá tinham dito quem iam evacuar.
- Népia, pá. Pedem o heli para Ponta Fortuna. O indicativo é da 2466.

Num raio, o Daniel veio-me ao pensamento.

- Furriel, o Daniel está a querer baldar-se. Diz que logo à noite não sai – foi o aviso de ontem, feito pelo Maltez.

Sobressaltei-me, ainda mais do que já ficara, saltei da Panhard e meti-me a pensar ao mesmo tempo que caminhava de um lado para o outro. Só pode ter sido uma mina. Tinham embrulhado, forte e feio, mas bem mais cedo, Logo pelas sete da manhã. E sem consequências. Na véspera, sim, houvera porrada da grossa, quase toda a manhã, a 2466 tivera um ferido grave e o EREC 2454 dois feridos ligeiros, resultado de um roquete que atingira superficialmente uma Panhard. Agora só podia ter sido uma mina.

Voltei a ontem, lá para o fim da tarde, e ao aviso do Maltez.
- Furriel, o Daniel está a querer baldar-se.

Por razões diferentes, a CCAÇ 2466, que ficou em Bula junto do Batalhão, o 2861, ficara privada da sua equipa de enfermeiros. Nessa altura, falei com o meu médico, o alferes miliciano José Manuel Oliveira, e disse-lhe que, depois de ter conversado com os meus homens, os enfermeiros da CCS iam passar a sair com eles. Quando juntei a minha equipa e lhes disse das minhas intenções – que dali nenhum homem saía sem enfermeiro – nem um só recuou.

Reinava, desde então, o acordado princípio da rotatividade. Tinha chegado a vez do Daniel e disse ao Machado, 1º cabo enfº., que lhe comunicasse. Às 22, junto da 66 para sair. Eram para aí umas seis e picos da tarde, no alpendre entre os quartos e a messe, batíamos uma quingalhada a fazer horas para jantar.

- O Daniel está a querer baldar-se – foi avisar-me o Maltez, meu soldado maqueiro.

Perguntei-lhe porquê e ele, o Maltez, mordendo o sorriso, disse-me uma razão, para mim, tão absurda quanto estranha.
- Diz que está de diarreia.
- Ó Maltez, diz-lhe que vá cagar e que às dez esteja no sítio combinado.

Mergulhei, de novo, a cabeça nas cartas, mas já sem atinar com as vasas, sem ser capaz de perceber quem tinha o King nem como me safar das duas últimas. Mas o que é que deu agora neste gajo, hem?

Levantei-me, irritado, coisa que sempre me acontecia para as primeiras impressões, procurando uma explicação para aquela ideia parva da diarreia.

1969 – O Daniel no quartel de Bula 

O Daniel, Daniel Agostinho Silva, Soldado Maqueiro, era um mocetão nascido em Cela, ali para os lados de Alcobaça. Alto, braços de quem cedo tinha começado a fazer pela vida, andar de quem está sempre com receio de chegar atrasado, senhor de um sorriso que até dava gosto e dono de uma farta bigodaça negra, que lhe valeu ter passado a chamar-lhe o Pancho Vila. Nunca o vira nem contrafeito nem de cara virada à luta. E se, às vezes, a coisa até ficava sem graça nenhuma.

Como daquela vez, por exemplo, em que de uma operação, já noite dentro, entrou no aquartelamento um homem da 2466 com o crânio desfeito por estilhaço. Houve quem quisesse enviar o corpo assim mesmo para Bissau.

- Furriel, não senhor. O homem não sai daqui assim. A gente vai tratar do assunto.

“A gente”, eram o Daniel e o Maltez. Curioso estarem sempre juntos aqueles que andavam sempre à porra e à massa, um com o outro.

Lavaram-no, limparam-lhe o crânio feito de massa encefálica e sangue seco, onde já os mosquitos enxameavam, encheram o vazio com maços de algodão, ligaram-lhe a cabeça como se apenas tivesse ocorrido um golpe mais azarado e deram a tarefa por acabada.

Então, e vinha agora aquele gajo dizer-me que estava de diarreia? Decido-me a ir à enfermaria, que ficava junto à porta de armas do quartel, e tirar tudo a limpo.

Estavam lá o Daniel e os outros. Os outros eram o Machado, 1º Cabo Enfermeiro, o Maltez, o João e o Teixeira, todos soldados maqueiros.

- Então, conta lá que merda andaste a beber para estares de diarreia. O Daniel encaixou e respondeu-me naquele tom de quem diz “que se lixe, digo já tudo”.
- Ó furriel, não é nada. Eu é que estou com um pressentimento. É um mau pressentimento, tá a ver?

Aquela fracção de segundo entre a resposta dele e a minha decisão, pesou como chumbo dentro da sala. Oito pares de olhos estavam cravados em mim. Como em outros momentos, aquele era, para mim, um assunto de fácil resolução. Mandaria o Daniel à merda, pegaria na trouxa e sairia eu com a Companhia. Mas senti que esse impulso, tão fácil em mim, significaria perder os meus homens. Não que me vissem, depois, como alguém incapaz de impor o respeito. Não, nunca houve, entre mim e eles, necessidade de chegar a esse ponto. O que percebi foi que, dali para a frente, não mais haveria decisões conjuntas, acordos firmados e cumpridos, desse por onde desse.

Danado por me ver forçado a seguir o caminho que não era o meu, disparei para o Daniel:
- Eu quero que tu e os teus pressentimentos se f… Ou estás às 10 horas pronto para sair com a Companhia ou embrulho-te numa folha de papel azul que nunca mais sais daqui.

Nem bom dia nem boa tarde, nem mais uma palavra, virei costas e saí.

O tempo que se seguiu foi de cigarro atrás de cigarro e olhos sempre postos nos ponteiros do relógio. Passava um bom bocado das dez quando o Maltez me tornou a aparecer.

- Furriel, o Daniel já saiu com a Companhia. Eu respirei de alívio e o Maltez colocou aquele ar de “final feliz” para me contar.
- O Furriel não quer saber que ele foi tomar banho, vestiu roupa lavada e até estreou um par de cuecas. Disse que se lhe acontecesse alguma coisa não queria que o vissem com roupa suja. Ó furriel, e não quer ver que quando saiu a porta de armas baixou um joelho e benzeu-se? Aquilo é que é, hem!?

Todo o resto da manhã, desde que o Cordeiro ouviu, no rádio, pedir uma evacuação, passei-o sempre ocupado a rememorar este filme. De tal forma me absorveu que mal dei por já estar a entrar no quartel, em Bula. Saltei do Unimog, corri na direcção da enfermaria, entrei e estavam lá todos. Incluindo o Dr. Oliveira.

- Já sabes?

Não, não sabia, não precisava de saber, não precisava que me dissessem. Bastou-me aquele silêncio. Aqueles rostos. Os olhos do Dr. Oliveira.
- Foi uma mina, pá – disse o Doutor – Só agora é que chegaram para o evacuar. A chuva atrasou o helicóptero. Ou é o pé ou a perna, vamos ver. O resto parece estar tudo bem.

Levantou-se, passou por mim colocando a mão sobre o meu ombro, fez uma ligeira pressão para me transmitir o seu afecto, e saiu porque, conhecendo-me, percebeu que aquela era a “nossa” hora.

Ficámos ali, a fumar, os que fumavam, a olhar para o vazio, sem palavras, sem descartar que éramos todos, em equipa, culpados de não termos entendido os pressentimentos do Daniel. Só ao fim da tarde, quando a Companhia regressou ao quartel, é que o Xana, furriel miliciano do grupo de combate onde ia o Daniel, é que me contou pormenores.

Fizeram auto, ali na área de Ponta Fortuna, principiaram a instalar-se, um ou outro procurou sítio para uma mijadela, o Daniel ia advertindo para terem cuidado
- “É pá, vejam lá se não há por aí alguma mina” – quando, junto de um bága-bága, pisou aquela que estava ali, à espera que se realizasse o seu pressentimento.

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Passados meia dúzia de dias estava em Bissau. Ia de férias a Lisboa. Fui, eu e outros, ver o Daniel ao Hospital Militar. Fora-lhe amputado o pé, pelo terço inferior da perna direita. Que palavras tínhamos para lhe dizer? Eu iria pedir-lhe desculpa, e ele? Aceitaria? Compreendia a decisão que tomei? O peito mal conseguia suster o alvoroço que ia lá dentro. Na cabeça tinha um estranho eco que fazia parecer tudo tão longe. Mas não tão longe que não me deixasse ouvir, distintamente, aquelas tremendas e generosas palavras do Daniel.
- É furriel, pá! Isto foi o destino. Estava escrito, furriel. Você não tem nada a ver com isto. Foi o destino, sabe o que é?

Talvez que eu não soubesse o que era o destino. Talvez que eu nunca venha a saber o que é o destino. Mas sei, e isso o Daniel só vai saber agora, que foram aquelas palavras decisivas para que eu possa olhar o meu passado na Guiné, com orgulho e sem ressentimentos.

Eu e o Daniel Agostinho num dos recentes convívios da Companhia. Em segundo plano, curiosamente, de sorriso rasgado, o Joaquim Maltez

Armando Pires
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9876: Parabéns a você (417): Henrique Matos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1966/68)