quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20368: Blogues da nossa blogosfera (115): "A guerra nunca acaba para quem se bateu em combate": o dramático relato da Acção Mabecos, Piche, 22, 23 e 24 de fevereiro de 1971 (texto de Eduardo Lopes; fotos de Jorge Carneiro Pinto, CART 3332, 1970/72)



Guiné > Região de Gabu > Piche > Acção Mabecos >  Rio Campa > 22 de fevereiro de 1971 > "10 segundos antes da emboscada. O 4º pelotão da CART 3332 abrigou -se na mata à direita onde estava postado,


 Guiné > Região de Gabu > Piche > Acção Mabecos > 23 de fevereiro de 1971 > Bombardeamento matinal, após uma noite dramática, entre nevoeiro, pó e fumo, à posição Foulamory (Guiné Conacri)



Guiné > Guiné > Região de Gabu > Piche > Acção Mabecos > 23 de fevereiro de 1971 > Os obuses,   no regresso. O cenário é o  da emboscada no dia anterior


Guiné > Região de Gabu > Piche > Acção Mabecos > 24 de fevereiro de 1971 > "Regresso dos guerreiros a casa (Piche). Empoeirados e tristes e com sede de vingança. A missão 'soube' a derrota"

Fotos do alferes at art Jorge Carneiro PInto, CART  3332  (1970/72). Legendas: Eduardo Lopes. Reproduzidas aqui com a devida vénia....


1. Eduardo Lopes ou Eduardo Teixeira Lopes, ex-1º cabo trms, CART 3332 ( Bolama, Piche, Nhacra, Dugal,Fatim, Chgué, 1970/72)  tem um notável blogue, "A guerra nunca acaba para quem se bateu em combate". Publicaram-se mais de meia centena de postes desde março de 2010 até abril de 2015. Um deles é respeitante à Acção Mabecos, de 22/2/1971. 

Vamos reproduzir, em parte, com a devida vénia e as necessárias adaptações, o seu dramático e emocionante relato desta operação, que decorreu no subsetor de Piche, junto à fronteira, de 22 a 24 de fevereiro de 1971.

 Fica também aqui, além do nosso agradecimento, o  convite para o Eduardo Lopes (bem como o Jorge Carneiro Pinto autor das preciosas fotos acima editadas e reproduzidas) integrar a nossa Tabanca Grande, onde tenos camaradas de todos os períodos da guerra (, de 1961 a 1974), dos três ramos das Forças Armadas e que passaram por todas as regiões e setores do TO da Guiné.



"A guerra nunca acaba para quem se bateu em combate": terça-feira, 22 de fevereiro de 2011 > Guiné : Operação Mabecos, 22 de fevereiro de 1971

Operação Mabecos, segunda feira, 22 de fevereiro de 1971

Ordem de operações nº 1, de 21 de fevereiro de 1971;

Composição das forças: 

(i) 1º,  2º,  3º  e  4º P el / CART 3332.

(ii)  3º e 4º Pel / /CCAV 2749 / BCAV 2922). 

(iii) Duas secções de milícias da CM 249;

(iv) Uma secção de milícias da CM 246, com Morteiro 60, e 30 granadas;

(v) Uma secção Morteiro 81, 30 granadas;

(vi) Artilharia Pesada: 4 peças 11,4 com 160 Granadas, 2 Obus 14, com 100, 3 Obus 14 com 120 ;

(vii)  duas WHITE PEL/REC 2. 

Objectivo: 

Posicionar - se próximo da fronteira, Rio Campa, Junto ao Corubal, e bombardear posições IN na região de Foulamory (Guiné Conacri).

Desenrolar da operação: 

(...) Mas ia ser um dia muito negro e amargo, para estes bravos guerreiros. Nesse dia, depois de ir para o mato, incorporado no 1º Gr Comb / CART 3332 numa manobra de despiste, integrada nos planos da operação Mabecos, regressei e almocei. Já na caserna pequena, (CSS da CART 3332 ) junto à piscina, ouvi rebentamentos dentro do aquartelamento. Com outros camaradas, saltei para a vala e, só depois deste impulso e ouvindo gritos e pessoas a correr, é que admiti que era de facto um acidente. 

Aproximei - me da caserna onde já estavam vários camaradas a prestar socorro e, por entre fumo, gritos e destruição, reparei à entrada, no chão... uma bota com um pé calçado com parte da perna, Um camarada ensanguentado e esbaforido, sai para o exterior sem uma perna. No interior, havia gritos de dor e vultos tombados. 

Enfermeiros e outros que ali se encontravam pediram me para retirar, e assim fiz. Saí dali consternado com o cenário, e como se deve imaginar completamente destroçado com a "derrota" e, sofrimento daquelas vitimas, do 4º  Pelotão da Companhia de Cavalaria 2749 (BCAV 2922). Este, estava nesse dia, destacado para participar na Operação Mabecos. . O seu comandante, alferes at  acv . Luís Alberto Andrade, estava impossibilitado de chefiar, em virtude de uma lesão num joelho, substitui-oo o furriel at cav Carlos Alberto Carvalho, que havia saído da caserna segundos antes, após distribuir rações de combate e saber da operacionalidade da força...Sorte?!. As "sortes" e o azar estavam lançados.

 (...) A Operação Mabecos que tinha começado de manhã às 6:00. Ia ser executada mesmo já atrasada na hora prevista. A força pôs -se em movimento (...)

Conforme o previsto, rumaram ao objectivo. Já próximos, os "piras" do 3º Gr Comb / CART 3332 passam para a testa da coluna. E são vislumbrados à distância negros fardados. Uma consulta rápida para saber se ali havia segurança das nossa tropa..., e não havia...  Há que flanquear a progressão das tropas. Em contínuo e, mal entrados no mato, o IN tenta o assalto. Abre-se a emboscada,que de inesperada e traiçoeira e olhos nos olhos, é sufocante e tremenda. Há que se posicionar fazendo um recuo para se entrincheirar.

(...) Metralha intensa e violenta. Explosões que surpreendem, com fumo e pó que cegam .Tentativa de avanço do IN. Os "piras" do 3º  Gr Comb / CART 3332, defendem, ripostando, como podem a posição.Uma White cai numa cova e fica imobilizada: a metralhadora encrava. A segunda White fica inoperacional, sem ter dado um tiro. Há Unimogues semidestruídos. Feridos: alguns, com gravidade. 

O resto da força tinha ficado fora da linha de fogo. A 1ª secção do 3º Gr Comb já havia pago a factura: 3 mortos e um capturado em virtude da execução do flanqueamento. Anoitecia. O inimigo não abrandava a intensidade do fogo. Os nossos homens ripostavam. 

Entretanto os homens da Artilharia Pesada desengatam as peças de obus das Berlliets e de imediato fazem tiro directo, sobre as copas das árvores em direcção à posição inimiga. E silenciam - na, com mais munições.

A noite vai ser terrivelmente dramática. O inimigo,  "manhoso", vai se aproximar, silencioso, para não ser alvejado. Vai ter oportunidade de assaltar e vandalizar os corpos feridos e, já mortos, do 1º Cabo Costa e dos soldados: Mota e Araújo. Os obuses batem a zona mais próxima com tiro tenso... No terreno os combatentes em trincheiras feitas com as mãos e facas do mato não dormem. 

A manhã que tarda, sabe a poeira, pólvora, e a uma sensação estranha, que só quem viveu a guerra olhos nos olhos, sente. Para todos, era a segunda vez em menos de 15 dias. E ainda havia a lamentável e, dolorosa surpresa. Ninguém sabia, a já contada aqui.... Morte dos nossos 3 heróis e o desaparecimento do 1º Cabo Fortunato. Surpresos, não queriam acreditar.Na acção de recuo posicional e, porque já de noite, não fora dada a falta destes elementos. Assim, era de espanto e derrota o semblante "negro"dos nossos heróis periquitos que juravam vingança....


Relato de 1º Cabo trms inf  Eduardo Lopes, CART 3332 (Guiné, 1970/72)

Fotos de alferes at  art  Jorge Carneiro Pinto, CART 3332 (Guiné, 1970 - 1972)



Um abraço, porque estou comovido. Domingos Robalo, ex Furriel Miliciano Nº 192618/68, do GAC7 / Bissau.

3. Resposta do editor e administrador do blogue, Eduardo Lopes, em 26/10/2011

Domingos: também acabei por ficar comovido com o seu relato que estimo e, agradeço, e que pelo seu conteúdo é subsídio de muito valor para o conhecimento total da Operação e enriquecimento da nossa história e notoriedade do nosso Blogue.

Participei na Operação Mabecos de maneira diferente.Como trms na operacionalidade, passei duas ou três vezes integrado em acções pela Pista de Aviação e, ali, do lado esquerdo, no Campo de Futebol,lá estavam alinhadas as 9 bocas de fogo. No dia da Operação Mabecos fui escalado para saída às 6:00 (+/-). e não deixei de referenciar a imponência das peças alinhadas,e, lá segui em direcção ao Rio Corubal com o 1º grupo de Comb. da CART 3332,  à zona de Sutocó para que,  capinando uma área considerável de mato e árvores, intuisse o IN que seria dali a base de fogos. 

Regressamos ao aquartelamento pelo meio-dia, extenuados, com a missão cumprida.Para mim as acções para esse dia estavam realizadas. Uma escala de quase 12 operadores de rádio quase que que me garantia esse direito.

Mas era um dia de raiva, já contado na história que, emotivamente, acima escrevi.
Ainda no aquartelamento,aquando dos rebentamentos,ficamos apreensivos e ansiosos,fui até ao posto de rádio. onde os operadores "lutavam" contra a electricidade estática que nos deixou sem comunicação. 

Pela noite adentro eram os bombardeamentos dos vossos obuses que nos iam contando as horas à espera do início do dia, para depois, que já com boas condições de sinal, afinal, sabermos que havia três baixas: Cabo,Costa e os Sold. Arújo e Simplício (este natural de Atei, Mondim de Basto, por quem tinha um grande amizade). Que somadas com a três da CCAV 2749 e o desaparecimento do Fortunato, tornavam a manhã radiosa de sol num inferno negro.

Tive a coragem de estar presente quando chegaram as viaturas e nas três mortalhas de ponches camuflados, não consegui verter uma lágrima, a raiva e o desejo de vingança não deixaram. Mais tarde fui beber (não era meu hábito),  perdi as estribeiras, ainda andei à pancada sem razão. Passou - me. Nunca mais bebi whisky ou outras bebidas alcoólicas até ao fim da comissão, e como trms sempre que sa+ia para o mato, além da pistola, levava a G3, dois pares de cartucheiras, 4 granadas, faca do mato, o respectivo Racal, e rações de combate se fosse caso de Operação. Voltamos a ter uma emboscada fatal, mas não estive lá. Será hoje, dia 26 de Outubro, motivo de uma nova edição, aqui no nosso Blogue.

Estou- lhe particularmente grato por se ter apresentado e, pelo oportuno artigo para a nossa história que muito me sensibilizou,  levando-me de volta a Fevereiro de 1971.

Bem Haja. Disponha do blogue sempre que desejar. Grande abraço.
Saudações Artilheiras (...)

[Revisão / adaptação / fixação de texto para efeitos de edição no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné: LG]

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20367: (Ex)citações (262): Acção Mabecos, 22/2/1971: 5 obuses 14.0 cm, 4 peças 11.4 cm, 380 granadas de artilharia pesada (Pel Art Piche, Canquelifá e Sare Bacar) contra Foulamory, 3 meses depois da Op Mar Verde... Mas tudo correu mal... nessa fatídica segunda-feira de Carnaval (Domingos Robalo / Cherno Baldé / Helder Sousa)


Guiné > Região de Gabu > Carta de Piche (1957) > 1/50 mil > Detalhes > Percurso Piche > Amedalai > Sagoia > R Sagoia > R Cimongru > R Nhamprubana. A sudeste dwe Piche ficava a base do PAIGC, Foulamory,na região de Boké, ao alcance, a partir da fronteira, da artilharia portuguesa (peça 11.4 e obus 14).

Infografia: Blogue Luís Graça &  Camaradas da Guiné (2019)


1. Pedi ontem, ao Domingos Robalo, para esclarecer uma dúvida do amigo e colaborador permanente, Cherno Baldé, que vive em Bissau, dúvida essa que ele deixou em comentário ao poste P20364 (*)

Caro amigo Domingos Robalo,

Tenho dificuldades em compreender que uma operação que se passa na secção de Piche, na região de Gabu, a leste, tenha solicitado apoio de artilharia de Saré Bacar, situada no Norte, na região de Bafatá, a nordeste de Contuboel, tendo outros aquartelamentos relativamente mais perto e também com artilharia, casos de Canquelifá, Pirada, e penso que Paunca também. 

Faço esta questão, todavia, sem saber exactamente, qual foi o trajecto seguido durante a tal operação. Pareceu-me estranha esta informação, a não ser que haja outra tabanca com o mesmo nome.

Abraços,

Cherno Baldé

19 de novembro de 2019 às 17:49


2. Resposta do Domingos Robalo (*)

Caro Cherno Baldé, viva.

Com as minhas saudações dirigidas a si, saúdo, também, esse belo povo Guineense com quem tive oportunidade de conviver, uma vez que os homens que tive a honra de comandar eram do recrutamento do Território.

Vinte e quatro meses de comissão, sempre rodeado de militares Guineenses,  foram para mim uma aprendizagem de vida que nunca esquecerei. Através do Luís Graça, colocou uma questão, que, cinquenta anos volvidos, não têm resposta imediata, pelo que tive necessidade de confirmar o que passo a comentar.

A operação [ou Acção] Mabecos, executada a partir de Piche, tinha como objecto a retaliação com fogo de artilharia [, à base IN de Foulamory, na região fronteiriça]. Os obuses adequados e definidos para a operação eram os de 14 cm [, Saré Bacar e Canquelifá, não me recordando se havia peças de 11,4 cm, com maior alcance. [, Sim, havia as de PIche.]

Então, convocaram-se os Pelotões de Artilharia de Saré Bacar, com 3 obuses 14,0; Canquelifá com 2 obuses [,14,0] e o pelotão reforçado de Piche, com 4 obuses [, peças 11.4][. Bajocunda e Pirada tinham obuses 10,5 cm, não sendo adequados à Operação.

Embora Sare Bacar fosse "longe" de Piche, estas foram as decisões, de ordem operacional e logística, que o Comando Operacional Territorial tomou. Por curiosidade, posso referir que o alferes, comandante do Pelotão de Sare Bacar, participante na operação,  era sobrinho directo do então Ministro do Exército [ , Horácio José de Sá Viana Rebelo, 1910-1995], tendo tido eu um outro camarada de artilharia, colocado em Catió, que era filho de um dos deputados à Assembleia Nacional, cujo pai veio a falecer com a queda de um héli junto a Mansoa, na sequência da visita que um grupo de deputados fazia a território Guineense.

Aproveitando esta comunicação: em Maio de 2017 estive num encontro de confraternização com combatentes na Guiné, em que tive a honra de partilhar ideias com o Sr. Embaixador da Guiné-Bissau, em Lisboa, o Sr. Hélder Jorge Vaz Gomes Lopes, que simpaticamente aceitou o convite que lhe tinha sido endereçado.

Uma outra nota de registo, no tempo em que estive na Guiné (1969/1971),  os militares que visitavam as mesquitas, deixavam à porta as botas e as espingardas G3, em sinal de respeito, não só pelos crentes como pela religião que estes professavam. Claro, que nem sempre terá sido assim.

Esperando ter ido ao encontro da sua expectativa atrevo-me a perguntar-lhe se está vivendo na Guiné.

Com um abraço de amizade, fico ao dispor

Domingos Robalo

(combatente e defensor do povo Guineense)

3. Comentários adicional do editor LG:

A Acção Mabecos, em 22/2/1971, destinou-se a escoltar e montar segurança a forças de artilharia, vindas de Piche (4 peças 11,4), Sare Bacar (3 obuses 14) e Canquelifá (2 obuses 14), e que iam fazer barragem de artilharia junto à fronteira, nas proximidades do Rio Nhamprubana, afluente do Rio Coli que divide os dois territórios... O objetivo era atacar ou flagelar a base do PAIGC, em Foulamory, na região de Boké, a sudeste de Piche.

O Pel Art de Sare Bacar, com 3 obuses 14 (longo alcance) vieram de propósito para esta ação, desde a fronteira com o Senegal, via Contuboel, Bafatá, Nova Lamego... Como o Hélder Sousa, que estava lá em Piche nesta altura, houve uma série de contratempos, que inviabilizaram a Acção... E não foi apenas a emboscada, retomaremos o assunto num próximo poste.

De acordo com a carta de Piche (1957), não havia nenhuma povoação com o nome "Sare Bacar"... Os de Sare Bacar, e os de Canquelifá, os Pel Art (Pelotões de Artilharia) é que vieram dar uma ajudinha ao subsetor de Piche... Há assim, à saída de Piche uma tabanca chamada Amedalai, topónimo vulgar na Guiné.

Veja-se o extenso esclarecimento prestado pelo Hélder Sousa (*).

Sobre a Acção Mabecos, sabemos qual era a Ordem de operações (nº 1, 21 de fevereiro de 1971):

Composição das forças;

(i)  CART 3332, a 4 pelotões;

(ii)  3º e 4º Pel / CCAV 2749 ( BCAV 2922);

(iii) 2 Secções de milícias da CM 249;

(iv) 1 Secção de milícias da CM  246, com Morteiro 60, com 30 granadas;

(v) 1 Secção Morteiro 81 - 30 granadas;

(vi) Artilharia Pesada,  4 peças 11,4 com 160 Granadas (Pel Art Piche); 2 Obuses 14 com 100 (Pel Art Canquelifá); e  3 Obuses 14 com 120 granadas;

(vii) 2 PEL/REC 2 Chaimites.

,,, Mas tudo correu mal. Há dias assim em todas as guerras (**).
_____________

(**) Último poste da série > 29 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20285: (Ex)citações (361): Do meu amigo Zé Saúde, com quem estive estes anos todos sem falar da guerra, até ao segredo dos 'Asas Brancas' de Contuboel (Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil, CCAÇ 3547, 1972-74)

Guiné 61/74 - P20366: Historiografia da presença portuguesa em África (187): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (3): "Racismos, Das Cruzadas ao Seculo XX", por Francisco Bethencourt (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Quando “Racismos” apareceu em finais de 2015, o professor Diogo Ramada Curto escreveu “Um marco da historiografia portuguesa. Um grande livro que revela uma maturidade excecional, única no caso de um historiador português”. Francisco Bethencourt é autor da primeira história do racismo, das Cruzadas ao século XX. O seu enfoque não está centrado, como o do professor Charles Boxer nas relações raciais no império português, é muitíssimo mais abrangente, abarcará as Cruzadas, os encontros entre povos decorrente dos Descobrimentos, as sociedades coloniais, as teorias de raça e a emergência dos nacionalismos até chegarmos aos fenómenos mais insidiosos, como o nazismo.
A pretexto da pureza de sangue, da casta, da religião, temos aqui uma longa e dolorosa viagem com matanças, escravidão, imolações, genocídios, tráfico de seres humanos, espezinhamento de direitos. Isto para sublinhar que o colonialismo e as sociedades coloniais, na sua amplitude, são uma das dimensões do racismo.
O que se passou no pós-guerra, com a ascensão dos nacionalismos e o clamor pela libertação do jugo colonial deve ser encarado como a reposição da identidade nacional, mesmo sabendo-se, no caso de África e da Ásia, que muitos novos Estados não tinham a configuração de nações, e no seu interior mantiveram-se (e nalguns casos mantém-se) tremendos conflitos interétnicos.

Um abraço do
Mário


A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (3)

Beja Santos

Entendamo-nos: não há uma modalidade única de racismo, daí ser completamente inútil procurar comparar as práticas de racialidade no nosso colonialismo multisecular com outras práticas de outras potências coloniais. A obra monumental intitulada “Racismos, Das Cruzadas ao Século XX”, por Francisco Bethencourt, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2015, é um completo guia para analisar a teoria das raças, o conceito de racismo num arco histórico que vai desde a Idade Média ao nosso tempo, e nos diferentes continentes. Como observa o historiador português que é titular da cátedra Charles Boxer de História no King’s College de Londres, a discriminação e os preconceitos vêm de muito longe, atenda-se ao que sabemos da Antiguidade Clássica, dos povos bárbaros que invadiram a Europa Ocidental, dos muçulmanos, do que ocorreu na Reconquista Cristã, o tratamento dado a judeus ou a ciganos.

A exploração oceânica trouxe mais conhecimentos e basta ver as representações dadas por cartógrafos ou artistas através de imagens dos povos do mundo conhecido para se sentir claramente que havia hierarquias, categorizações, gente que se dava como superior e que subjugava a gente dada como inferior, em tantos casos os despojos das conquistas.

Francisco Bethencourt
Francisco Bethencourt lembra-nos o príncipe jalofo Bemoim que governava um território próximo da foz do rio Senegal, onde os portugueses comerciavam escravos e ouro, o príncipe foi deposto em 1488, e partiu para Lisboa, em busca de ajuda militar junto de D. João II. Foi recebido com honras de Estado, Bemoim era muçulmano, decidiu que seria convertido ao cristianismo, partiu para recuperar o seu domínio com 20 caravelas comandadas por Pêro Vaz da Cunha. Ao chegarem à foz do rio Senegal, por razão ainda não hoje compreensível, o capitão português mandou matar Bemoim e regressou a Lisboa, o capitão reprovado com veemência, mas o temível monarca não mandou castigar o capitão. O que esta história revela é a força do preconceito étnico. Está hoje bem estudado o projeto político que acompanhou esta aventura dos Descobrimentos, havia necessidade de alianças em África, elas materializaram-se no Congo, em finais da década de 1480, início da de 1490.

Lembra-nos o autor que Duarte Barbosa, feitor do rei português na costa de Malabar, descreveu pela primeira vez o sistema de castas em termos europeus, entre 1512 e 1515.
E escreve:  
“Os clérigos das dioceses portuguesas do Estado da Índia receavam o impacto do sistema de castas nas relações entre hindus e a comunidade cristã, já que os convertidos eram considerados inferiores às castas mais honradas, pois eles tinham de se misturar com indivíduos de diferentes origens. As resoluções do sínodo de Goa proibiam os cristãos de alimentar os indianos contra a sua vontade. O princípio indiano de hierarquia, por oposição ao princípio cristão e muçulmano de igualdade entre os crentes levantaria a questão no seio das comunidades cristãs na Índia suscetíveis ao conceito de pureza”.
E, mais adiante:  
“O conceito português de casta, aplicado ao sistema social indiano, disseminou-se, durante os séculos XVII e XVIII, pelo trabalho de autores franceses, holandeses e ingleses. O conceito de pureza e impureza era expresso através da descrição das fórmulas estabelecidas de tratamento dos alimentos, bem como da sua confeção e apresentação às castas mais elevadas”.
Esta impressionante investigação abarca a perceção europeia da China e do Japão, e voltando à Europa somos confrontados com a questão dos cristãos-novos e de novo com a pureza de sangue, a condição judaica. E assim chegamos às sociedades coloniais e as suas classificações étnicas. Bethencourt fala-nos dessa classificação em África, verifica-se que a taxonomia andava muito próxima nos vocabulários espanhol e português, e que os holandeses no golfo da Guiné adaptaram as anteriores práticas portuguesas no terreno.

Mais adiante, no capítulo que dedica às sociedades coloniais em África, o historiador dá-nos um apontamento de muita utilidade para entender o colonialismo português:
“Os portugueses viviam acima de tudo em portos ou em enclaves onde comerciavam escravos ou ouro, como por exemplo, na Mina, na Costa do Ouro do Golfo da Guiné. Em cada entreposto residia um número limitado de brancos, os quais estabeleciam uniões mistas e tinham filhos com nativas, mas estes descendentes eram reabsorvidos pela sociedade nativa local, pois não existia uma verdadeira colónia de dimensões mínimas. Na África Ocidental, na região dos rios da Guiné, muitas centenas de portugueses conhecidos como lançados ou tangomaus instalaram-se nas comunidades locais. Os tangomaus introduziram-se nas chefaturas locais e desempenharam um papel importante como mediadores entre as potências africanas e a portuguesa.
Nas últimas décadas do século XV criou-se uma sociedade colonial nas ilhas de Cabo Verde. Durante quase dois séculos, as ilhas funcionaram como plataforma para o comércio negreiro a partir da África Ocidental. Em 1582 viviam cerca de 16 mil pessoas nas ilhas, sendo a sua grande maioria escravos (87% da população total). Brancos e mulatos viviam lado a lado num curioso agrupamento de 1600 ‘vizinhos’, havendo já 400 negros livres casados e provavelmente menos de 200 brancos. Em 1731, os escravos representavam apenas 15% da população; a maior parte dos habitantes eram indivíduos livres de raça mista e negros”.

No prosseguimento de uma investigação tão gigantesca como esta, Bethencourt analisa os projetos e as políticas das principais potências coloniais, os modos de discriminação e segregação e envolve-se nas teorias da raça, uma matéria que é verdadeiramente fascinante para nos ajudar a compreender aquilo que se chamou racialidade científica e depois o arianismo forjado pelos ideólogos nazis.
Nas conclusões, Bethencourt dá como comprovado que o racismo foi motivado historicamente por projetos políticos e falando dos dias de hoje, deixa-nos uma importante chamada de atenção:
“A norma do comportamento antirracista prevalece agora na maior parte do mundo. Todavia, o racismo não desapareceu. Abandonou, isso sim, a reivindicação de diferenças físicas, substituindo-as pela incapacidade cultural. A migração não é criticada com argumentos físicos, mas sim através da ideia de atraso cultural e de incapacidade de adaptação. O argumento da inferioridade foi abandonado no debate político; agora, os imigrantes são acusados de desfrutarem de assistência social que não foi criada para eles. Continua a haver disputas sobre a identidade e exclusão; os critérios para a atribuição da cidadania são ainda a principal ferramenta para definir a pertença. Não obstante, as identidades nem sempre coincidem com a cidadania formal, já que as formas informais de discriminação podem ser extremamente poderosas sem enquadramentos institucionais ou a sua aplicação estatal. Sem este o estado da discussão no mundo ocidental, isso não quer dizer que os velhos problemas tenham sido resolvidos, quer aí, quer em qualquer outra parte. A violência diária entre etnias continua a ser visível em diferentes partes do mundo, tal como o são a escravatura e a escravidão, frequentemente baseadas nos preconceitos relacionados com a descendência étnica. Em resumo, é preciso ainda percorrer um longo caminho para cumprir o sonho da dignidade humana e da real implementação dos direitos humanos”.

Para conhecer mais sobre o pensamento de Francisco Bethencourt e os fundamentos deste monumental trabalho, ver o site do jornal Ionline

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20341: Historiografia da presença portuguesa em África (186): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2): "Portugal Vasto Império", por Augusto da Costa (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20365: Álbum fotográfico de Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7 (Bissau e Fulacunda, 1969/71) - Parte I


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Fotos (e legenda): © Domingos Robalo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Tabanca da Linha > Domingos Robalo.
Foto de Manuel Resende (2019)
1. Fotos do álbum de Domingos Robalo,  ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda;  

[, Foto à direita: Domingos Robalo:

(i) tem página no Facebook desde março de 2009 e administra também o grupo Artilharia de Campanha na Guiné-BAC1/-GAC7;

(ii) vive em Almada, está ligado à Universidade Sénior Dom Sancho I, de Almada, onde faz voluntariado, desde julho de 2013, como professor da disciplina de "Cultura e Arte Naval";

(iii) trabalhou na Lisnave; é praticante de golfe;

(iv) e passou a integrar a Tabanca Grande, com o nº 795, desde 21 de setembro último]


Legendas das fotos acima publicadas (*)


(...) A minha mobilização para a Guiné ocorrera para cumprir uma rendição individual de um militar que não teve oportunidade de chegar ao fim. Ia substituir o furriel miliciano Batista [, António da Conceição Dias Baptista, natural de Murtal, São Domingos de Rana, Cascais ], que infelizmente não terminara a sua comissão no tempo normal. No dia 14 de fevereiro de 1969, morre heroicamente ao lado do seu Comandante de pelotão, o alferes Gonçalves [, José Manuel de Araújo Gonçalves, natural de Lisboa], São vítimas de um ataque IN no aquartelamento de Guileje.

(...) A sete de maio de 1969, embarco no “Niassa” com destino a Bissau (Fotos nº 1 e 2].

(...) Ao fim da manhã do dia 12 de maio, o navio “Niassa” está ao largo de Varela, aguardando a ida a bordo da Autoridade Marítima. Ao fim da tarde do mesmo dia está a acostar ao cais de Bissau.

(...) Sou dos últimos militares a desembarcar, por ser de rendição individual e por o meu destino ser o quartel da BAC 1 [Bataria de Artilharia de Campanha nº1, sediada junto ao QG (Quartel General)]. [Fotos 3, 4 e 5]

(...) Chego finalmente ao aquartelamento da BAC1, onde me espera um quarto com cama feita.
Sou recebido por Furriéis e Sargentos e Oficiais que me aguardavam com amizade e simpatia. Ainda hoje me encontro com alguns desses meus camaradas, o Mendes, o Glória, o Faro, o Chaves, o Correia, o Mendes de Almeida e outros tantos, e até o meu Comandante, à altura o Capitão M. Soares.

(...) Durante cerca de quatro meses permaneci em Bissau [, na BAC 1], participando nas “escolas de recrutas” que era levada a efeito com soldados do recrutamento da Província. [Fotos nºs 6. 7 e 8]

(Continua)

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Nota do editor:
Vd. postes de :


3 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20202: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte II: recruta no RI 5, Caldas da Rainha, na 5ª companhia, comandada pelo ten inf Vasco Lourenço


9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20222: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte IV: Depois de 4 meses a dar formação de artilharia de campanha, a graduados de pelotões de morteiro, sou colocado em Fulacunda, a comandar o 22º Pel Art

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20364: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - IX (e última) Parte: Nunca mais esquecerei aquele abraço, num lojeca em Bissau, antes do meu regresso a casa, daquele negro de Fulacunda, o Eusébio, suspeito de colaborar com o IN, e a quem poderei ter salvo a vida...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda >  22º Pel Art (Fulacunda, 1969/71) > "Eu e o Eusébio" [, um antigo milícia, suspeito de colaborar com o IN)

Foto (e legenda): © Domingos Robalo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >   "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Montagem de segurança > Um obus 14, rebocado por uma Berliet. Para i o desse e viesse...


Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > IX (e última) parte 

[ Foto à esquerda: 
Domingos Robalo, 
ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda; vive em Almada]


Está esta prosa mais longa do que eu imaginaria que fosse. Não termino sem antes referir o seguinte: em visita ao aquartelamento, o Comandante Chefe, General Spínola, é recebido com a formatura em parada. Repara que na parada estão alguns militares aprumados, mas sem a “boina negra” na cabeça, pergunta:

- Quem são aqueles que não têm boina negra?  [,os "boinas negras" era a malta da CCAV 2482]


- São o pessoal da Artilharia! [, 22º Pel Art, comandado pelo fur mil art Domingos Robalo]

Mudou o olhar, aconchegando o seu monóculo, concentrou-se nas tropas e população que o “adorava”, e é bom não esquecer estas palavras nem ter medo de as pronunciar. Falou de uma “Guiné Melhor”, a ser construída pelos Guineenses e seriam eles a decidir o seu futuro….

Estou a escrever estes factos, muito resumidamente, 50 anos depois de eles terem acontecido. Só agora dou o verdadeiro valor à memória. Coisas que aparentemente estavam escondidas ou apagadas, aparecem como se ontem tivessem sido vividas.

Mas, o deslizar a pena é como se estivesse a mexer um caldeirão onde as letras aparecem já escritas e a memória as traga à tona. Ideias que já estavam esquecidas, ultrapassadas e limpas aparecem agora em turbilhão.

Quase quatro anos de vida militar, por muito sacrifício que se tenha passado, não tem sido maior do que passar 40 anos com memórias que não tivemos oportunidade de contar ou “carpir”, como contributo de um desabafo coletivo que todos os jovens adultos do meu tempo deveriam ter feito. 


Ter-se-iam, porventura, poupado muitos dos traumas que vamos tendo conhecimento. O 25 de abril de 1974 trouxe-nos uma mudança radical de vida e de pensamento, com a esperança de uma vida em paz e de convivência com os povos que foram por nós colonizados. Com o golpe de Estado deu-se a “independência” aos povos das Colónias (então Províncias Ultramarinas), mas aprisionando-se memórias com uma barreira imposta, e auto-imposta como capa de proteção por um período da vida de quase todos os jovens adultos daquele tempo.

Conforme estou escrevendo, vou avivando essa vivência, mas também não posso nem devo calar o afronto que se fez aos militares portugueses de origem africana que, após a independência, foram assassinados por grupos que se diziam de libertadores. Libertadores de quê? 


Mais grave considero ainda que as autoridades portuguesas tenham tido conhecimento da situação e à época fez-se um silêncio total.

Através de um tripulante do navio Rita Maria ou Alfredo da Silva [, já não recordo ao certo,] fui sabendo de situações que ocorriam na Guiné. Segredo, pedia-me ele; as informações eram muito confidenciais.

Na minha Unidade, em Bissau, foram-me atribuídas várias funções:

-Participar na instrução básica e de cabos na especialidade de artilharia a militares naturais da Província da Guiné;

-Participar nas principais ações do TO, sempre que a artilharia era requisitada;

-Participar nas regulações de tiro de artilharia e elaboração das respetivas “cartas de tiro”, nos vários pelotões espalhados pelo TO;

-Participar, junto do Comando da Unidade, na então designada “sala de informações e operações”...





Infografia da emboscada de 22/2/1971,no decurso da Acção Mabecos, que envolveu forças do BCAV 2922, numa operação de escolta e segurança a forças de artilharia no trajecto Amedalai - Sagoiá - Rio Sagoiá - Rio Cimangru [... e não Camongrou] - Piche 4E545 - Rio Nhamprubana. As baixas das NT foram todas da CART 3332 (**).


Participei na Acção “Mabecos”, na terça-feira de carnaval no ano de 1971 [, em 22 de fevereiro de 1971, três meses depois da Op Mar Verde,invasão de Conacri]. 

Operação complicada, malo rganizada / planeada, com três mortos  e um soldado apanhado à mão que apenas foi libertado no pós-25 de abril de 1974 [, º 1º cabo Duarte Dias Fortunato, foto à direita]: nesta operação, debaixo de fogo na emboscada que sofremos [, no subsetor de Piche, perto da fronteira,quando íamos flagelar Foulamory, na região de Boké] eu próprio tomei a iniciativa de “ordenar”, ao pelotão [, Pel Art,]  de Sare Bacar, para desengatar um obus 14,0 cm e responder ao fogo IN, que estava a ser intenso.



Guiné > Região de Gabu > Carta de Piche (1957) > 1/50 mil > Detalhes > Percurso Piche > Amedalai > Sagoia > R Sagoia > R Cimongru > R Nhamprubana. A sudeste dwe Piche ficava a base do PAIGC, Foulamory,na região de Boké, ao alcance, a partir da fronteira, da artilharia portuguesa (peça 11.4 e obus 14).

Infografia: Blogue Luís Graça % Camaradas da Guiné (2019)



Eu estava sob as ordens do Capitão Osório, homem da artilharia, já falecido. No relatório desta operação está referido a forma elevada como o pessoal da Artilharia participou na resposta ao fogo IN.

O tempo vai correndo inexoravelmente. Estamos em abril de 1971, já com a comissão quase a chegar ao fim. Por vezes vagueei por Bissau na compra de alguns objetos para fazer embarcar num navio com destino a Lisboa.

Num desses dias, acompanhado pelo Furriel Franco, vagueávamos pelas ruelas transversais à avenida onde se situava o hospital civil [, hoje Hospital Nacional Simão Mendes]. Entrámos numa pequena loja, com uma montra muito pequena, onde estavam expostas uma camisas azuis com um monograma interessante.

Entro na loja,  secundado pelo Furriel Franco, e dirijo-me ao balcão onde estão dois “negros”.  De repente sinto-me abraçado por um deles e o peito a apertar. Não percebia o que se passava, mas a primeira impressão era o de estar a ser alvo de agressão.

Passado o sufoco e o outro negro olhando impávido e sereno para mim, recupero o fôlego e sinto que o abraço forte afinal tinha aspeto fraternal. Mas se aquilo é um abraço...

Olho para a cara do “negro” e não podia acreditar... Quem era aquele negro que assim me abraçava? Nem mais: 


- O Eusébio de Fulacunda!!!... (*)

Aquele “negro” reconhecendo-me, estava com aquele abraço a agradecer o pouco que eu, uns meses antes, lhe tinha feito naquele final do mês de setembro de 1969.

Para mim, tinha sido pouco o que lhe fizera. Mas para ele terá representado o reconhecimento de que era um ser humano como qualquer outro. Daí, aquele abraço que eu senti ter a força do Universo. Não é a cor da pele que diferencia os homens.

Onde quer que estejas, Eusébio, nunca me esquecerei de ti nem daquele abraço.

Para finalizar o meu texto. Não posso nem devo esquecer os mortos e os estropiados que as guerras sempre provocam. Elas podem ter um início, mas nunca sabemos quando terminam. Será que a nossa já terminou?

Domingos Robalo

Furriel de Artilharia, 

nº 192618/68

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 4 de novembro de 2019 
Guiné 61/74 - P20313: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VIII: Fulacunda, usos e costumes... Lembro-me pelo menos de uma menina que foi a Bissau ao "fanado", e não voltou... Não havia, na época, preocupação de maior com a Mutilação Genital Feminina, por parte das autoridades. civis e militares


Vd. postes anteriores:

25 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20274: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VII: Em Fulacunda, também havia milagres...

20 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20260: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VI: Eusébio, um preso que eu mandei tratar com dignidade e que me vai ficar reconhecido

12 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20232: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte V: Rumo a Fulacunda, com o 22º Pel Art, passando por Bolama, e com batismo de fogo

9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20222: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte IV: Depois de 4 meses a dar formação de artilharia de campanha, a graduados de pelotões de morteiro, sou colocado em Fulacunda, a comandar o 22º Pel Art

5 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20206: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte III: recebido em Bissau, pelos camaradas do BAC 1, de braços abertos, na noite de 12/5/1969

3 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20202: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1

26 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20178: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte I: Apurado para todo o serviço militar


(**) Vd.poste de  23 de fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3926: Efemérides (17): Piche, 22 de Fevereiro de 1971 ou... Carnaval, nunca mais! (Helder Sousa)

Guiné 61/74 - P20363: Parabéns a você (1712): Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20360: Parabéns a você (1110): António Mateus, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20362: Agenda cultural (714): 26 de novembro, 3ª feira, na Livraria-Galeria Municipal Verney, Oeiras, lançamento da 10ª edição do livro "Longas Horas do Tempo Africano", de Manuel Barão da Cunha. Prefácio de Isaltino Morais, presidente da CM Oeiras.


Capa da 10ª edição de "Longas Horas do Tempo Africano", do nosso camarada Manuel Barão da Cunha, cor cav ref,  que foi cmdt da  CCAV 704 / BCAV 705, Guiné, 1964/66. Em 1961, esteve em Angola  como alferes. Já em tempos foi-lhe feito um convite para integrar a nossa Tabanca Grande. Embora honrado pelo convite,  declinou, face às suas responsabilidades como animador de outras tertúlias.  Tem 70 referências no nosso blogue.


Manuel Barão da Cunha (n. 1938),
Alf cav,  Angola, c. 1961.
Foto de Fernando Farinha-


LANÇAMENTO DO LIVRO “LONGAS HORAS DO TEMPO AFRICANO”

O Município de Oeiras vai proceder ao lançamento da 10ª edição do livro “Longas Horas do Tempo Africano”, de Manuel barão da Cunha, no dia 26 de novembro, às 15:00, na Livraria-Galeria Municipal Verney. Rua Cândido dos Reis, 90, em Oeiras, cenro históricvo.

A apresentação estará a cargo de dr. Isaltino Morais, general Tomé Pinto, coronel Ataíde Montez e Daniel Gouveia, editor.



 

PREFÁCIO DE DR. ISALTINO MORAIS
PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE OEIRAS

Alguém disse um dia que, nos bons livros, os prefácios sobejam e, nos maus, pouco adiantam. Incluindo desde já Longas Horas do Tempo Africano no rol dos títulos com qualidade, darei o melhor para que estas linhas possam, ainda que muito discretamente, valorizar esta edição reestruturada que agora se apresenta ao público.

Prefaciar este livro de Manuel Barão da Cunha representa para mim, quer como Presidente de Câmara, quer como simples cidadão, uma total
identificação com aquilo que sustento no dia-a-dia: uma Oeiras sempre a afirmar-se no terreno da promoção e da divulgação da Educação, da Cultura, do Conhecimento e do Multiculturalismo.

Enquanto narrativa literária, Longas Horas do Tempo Africano sustenta-se também no multiculturalismo e na interculturalidade,
evidenciando uma arquitetura centrada à volta da guerra e envolvida por um discurso ritmado, bem estruturado e tendencialmente autobiográfico.

Além disso, não tenho dúvidas que se trata de um título que dá visibilidade ao conceito de lusofonia no sentido em que, de forma lúcida e competente, aborda sonhos e inquietações da comunidade de povos e de etnias na antiga África de expressão portuguesa, designadamente de Angola e da Guiné-Bissau.

Ocorre que, da mesma maneira que nem todos estamos aptos a pintar uma tela ou a esculpir a pedra, a aptidão para a escrita é privilégio só de alguns. E se nem todos sabemos escrever livros, será certamente porque para isso é necessário motivação e talento, a par de uma boa dose de experiência, de maturidade, enfim, de “mundo”.

Quem se atrever a contar uma história sem tais atributos corre sérios riscos de ver desaparecer os leitores. E um livro sem leitores é como uma livraria sem livros. De facto, para contar uma história há que saber cativar a atenção de quem lê, porque contar uma história é saber reproduzir emoções e sentimentos. É saber interpretar o mundo que nos rodeia. E Manuel Barão da Cunha abalançou-se, com sucesso, a essa árdua tarefa em Longas Horas do Tempo Africano.

Feito nómada por via da condição de militar de carreira, desde muito cedo e em contexto de guerra, começou a pôr à prova a sua capacidade para, nos diversos cargos e funções por si desempenhadas, liderar e
desenvolver um conjunto de esforços para ajudar e cooperar na ajuda às populações africanas mais carenciadas. Em certo sentido poder-se-á dizer que Barão da Cunha praticou no terreno aquilo que alguns se limitam a defender na teoria: mesmo durante a guerra soube construir o bem comum, ajudando terceiros, por paradoxal que isto possa parecer.

Vem à colação recordar que Oeiras acolheu e realojou aquela que será provavelmente a maior comunidade cabo-verdiana na diáspora, ou seja, se o município de Oeiras se preocupou – e continuará a preocupar – com questões relativas ao bem-estar e à coesão social, também Manuel Barão da Cunha, em pleno teatro de guerra, sentiu a preocupação de contribuir para a melhoria da qualidade de vida das populações angolanas e guineenses com as quais contactou de perto, o que, naturalmente, merece desde logo o nosso franco louvor.

No meio de metralhadoras, de carros de combate e de morteiros, este militar dinâmico, culto e meticuloso, reaprendeu, digamos assim, tudo aquilo que sabia do mundo, no meio do mato. Tal como no cinema há uma educação apoiada a partir do olhar, e na filosofia uma reflexão sobre as mais diversas situações, Barão da Cunha terá reaprendido a ver o mundo, baseando-se no poder da interrogação e no poder do silêncio. Na esteira dos velhos filósofos, também o autor de Longas Horas do Tempo Africano faz caber a essência humana dentro dos quatro elementos naturais. O mesmo é dizer que conhecimento, energia, matéria e sentimento, estáveis ingredientes deste livro, se fundem com Ar, Fogo, Terra e Água, somados a muito esforço e a muita dedicação.

Parece ser que o autor se antecipou ao grande desafio do século XXI: a construção de novas formas de colaboração entre todos, em lógicas adequadas às complexas e exigentes expectativas dos tempos modernos.

Veja-se portanto em Longas Horas do Tempo Africano um belíssimo exemplo da proximidade entre povos e entre culturas, e em Manuel Barão da Cunha um novo explorador do continente africano, no sentido etnográfico e antropológico da palavra, fazendo-me até recordar Almada Negreiros no Portugal Futurista, obra com mais de 100 anos mas sempre atualíssima. Dizia Almada: «Eu não pertenço a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração construtiva».

Para nosso deleite este é um livro alimentado por uma narrativa bem medida e melhor organizada, confirmando estarmos na presença de alguém que domina a língua portuguesa e que sabe comunicar de forma interessante as suas ideias. De alguém que terá tido, na sua juventude, bons mestres na aprendizagem do idioma materno. Basta verificar como, ao longo de todas as páginas de Longas Horas do Tempo Africano,a estética direta e despretenciosa da frase coteja com a elegância e o rigor da análise, pormenor só mesmo ao alcance dos bons escritores.

Como se este atributo não fosse bastante, Barão da Cunha revela-se mestre na arte da observação de territórios e de almas, compondo ideias, descrevendo cenários, retratando gentes, criando diálogos e não se cansando nunca de refletir sobre vivências e de se interrogar sobre a natureza humana. Do mesmo modo que Almada, também Barão da Cunha pertence a uma geração construtiva. Associado à sua sensibilidade, tudo isto se traduz num inegável contributo para a historiografia portuguesa contemporânea sobre um dos acontecimentos mais impactantes da vida do nosso país: a guerra colonial ou a guerra de África (1961-1974) que, nos seus 14 anos de duração, mobilizou quase um milhão de jovens portugueses e que − 45 anos depois da “Revolução dos Cravos” − ainda terá abundantes feridas por cicatrizar e traumas por sarar.

Conveniente será destacar que a contribuição de Manuel Barão da Cunha é, neste campo, muito robusta. Basta ver a sua biobibliografia onde, para além de Longas Horas do Tempo Africano avultam – entre outras - obras como A Flor e a Guerra e Radiografia Militar. Depois, há também as dinâmicas preponderantes que impôs ao projeto editorial designado por Colecção Fim do Império, uma iniciativa de responsabilidade tripartida por Câmara Municipal de Oeiras, Liga dos Combatentes e Comissão Portuguesa de História Militar, com o propósito cívico de evitar o esquecimento sobre matéria tão dominante e tão influente na nossa História. Aos militares – e não militares – participantes neste projeto, aqui ficam as minhas mais sinceras felicitações.

Como antes afirmei, mais do que um mero exercício de escrita como memória de um mundo que tão bem conheceu, a obra que concentra agora a minha atenção, comporta-se como um registo autobiográfico ao espelhar a personalidade do autor. Na verdade Barão da Cunha convive bem com este conceito de memória cultural pois não tem qualquer fixação traumática com o passado, procurando tão-só que este funcione como uma espécie de bagagem necessária para que a sociedade saiba construir melhor o seu futuro. Consegue até evitar que aquilo vulgarmente designado por “passado negativo” se transforme em memória verdadeiramente ativa. E se o faz é justamente para não despertar revanchismos já que a memória pode ser perigosa e destrutiva caso desenterre ódios e rancores. Felizmente, nada disso sucede nesta obra de Barão da Cunha.

Longas Horas do Tempo Africano é, pois, um repositório de tolerância, bem como uma coletânea sobre confiança e sobre liderança.

Desperta-nos igualmente para três outras realidades: a primeira tem a ver com a importância do coletivo, em contraponto com o “cada um por si” ou com o “salve-se quem puder”. A outra relaciona-se com a necessidade de nós, em todas as circunstâncias – não nos limitarmos à compreensão de apenas uma parte do problema. Temos de fazer sempre o possível para compreendermos o todo. Mal comparado, será como olharmos para um puzzle tentando encaixar umas peças nas outras até encontrarmos uma imagem final que nos permita compreender todo o painel. Por último, uma terceira realidade: o peso e o valor de rápidas decisões, pese embora as tensões e as pressões do momento.

Longas Horas do Tempo Africano tem o mérito de tratar sensatamente todas estas questões. Todavia, em minha opinião, a virtudemmaior vai direitinha para a capacidade do autor, ele próprio um ex-combatente, analisar as fronteiras dos atos de bravura ou de cobardia.

Atente-se agora, com maior profundidade, no início do título escolhido por Manuel Barão da Cunha para esta obra: Longas Horas... São duas palavras que avançam a ideia de que, numa guerra, a momentos de extrema violência podem seguir-se horas de tédio e tremendo fastio.

Enfim, Manuel Barão da Cunha nesta sua revisitação de terras africanas deixa também antever muita imaturidade em termos de organização no dealbar de tudo, o que não deixa de ser natural num país que, quase de repente, se viu confrontado com uma guerra em três frentes:Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Curiosamente, também António Lobo Antunes, no seu romance Até que as pedras se tornem mais leves que a água, 2017, escreve sobre a vivência dos nossos jovens soldados, muitas vezes submetidos às desorientações e aos caprichos dos seus superiores.

Mas a guerra aprende-se a fazer e, passados os anos iniciais, cerraram-se fileiras e as tropas portuguesas tornaram-se num extraordinário exemplo de coragem e de superação.

Sei do que falo porque estive “lá”. Sei que a guerra nos afeta a todos, embora afete mais diretamente quem está no terreno. Dói mais na alma de quem, por força das circunstâncias, tem de estar alerta para tanto sacrifício e para tanta tormenta e desespero. E aquela terrível dúvida sempre a vir à superfície “naquelas longas horas”: para quê lutar? Porquê lutar? Incertezas a atravessarem-se no espírito dos soldados, como relata Manuel Barão da Cunha.

Quando se faz a guerra há que conhecê-la por dentro como Manuel Barão da Cunha procurou sempre fazer nos teatros de operações por onde passou. Acredito que não será fácil conhecê-la, nem será fácil esquecê-la.

Lembro-me ainda do impacto que tiveram Os Cus de Judas ou Memória de Elefante, outros notáveis livros de Lobo Antunes sobre esta temática.
– Mas porquê falar da guerra e escrever sobre a guerra? Porquê revisitá-la? Por catarse? Para se experimentar a liberdade em relação a uma memória opressora? Não sei, mas de uma coisa tenho a certeza: os efeitos traumáticos da guerra colonial ainda não deixaram de ser um assunto tabu em Portugal, talvez pelo sentimento de perda de que se reveste. Por isso mais valor dou a Longas Horas do Tempo Africano e a toda a historiografia da guerra colonial. Parabéns, Dr. Manuel Barão da Cunha, quer por este livro, quer pela Cruz de Guerra que lhe foi atribuída, premiando atos e feitos de bravura, por si praticados em campanha.

Concluo, esperando com este Prefácio não ter sido formal e redundante. Pela minha parte podem crer que procurei ser útil, objetivo, compreensível e conciso q.b. Muito mais poderia ser dito, é certo, sobre o livro, sobre o autor, sobre a guerra colonial e sobre regimes políticos. Até sobre o Município de Oeiras poderia ter falado um pouco mais. Vontade não me faltou… mas já fico feliz se tiver conseguido motivar todos para a leitura das páginas que se seguem, pois o autor merece-o.

E enquanto ficamos à espera do próximo livro de Manuel Barão da Cunha, deixem-me então findar o Prefácio – que vai longo – citando o Acto Constitutivo da UNESCO, Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura: «Nascendo as guerras no espírito dos homens, é no espírito dos homens que devem ser criados os baluartes da paz». Nada mais verdadeiro!»

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FICHA TÉCNICA:

10.ª Edição: Câmara Municipal de Oeiras (CMO).

Título: Longas Horas do Tempo Africano.

Autor: Manuel Barão da Cunha (mbaraocunha@gmail.com , MBC).

Prefácio: dr. Isaltino Afonso de Morais, presidente da CMO.

Outros textos: drs. João Aguiar e M. Beja Santos; ten gen A. Tomé Pinto, V. Rocha Vieira, A. Sousa Pinto e J. Chito Rodrigues; alm J. Ribeiro Pacheco; gen A. Ramalho Eanes; eng.º M. Anacoreta Correia; prof. doutor H. Coutinho Gouveia; cor tir J. Costa Matos; drs. M. Homem de Mello, Sena e Silva, Luís Rosa e António Carrelhas; pintor e poeta A. Neves e Sousa, profs. doutores António Barreto, Manuel Belchior, Teresa Rita Lopes e René Pélissier; jornalista J. Paulo Guerra; ator Michael Caine; cor Ruben Domingues, José A. Montez, L. Dias Antunes, Álvaro Varanda e Paulo Domingos; outros: combatentes Fernando Farinha, Hélder Teixeira, Armando Inácio, Constantino de Brito, Edgar Silva, Vítor de Jesus, Manuel Dá Mesquita e Góis Pinto; luso-angolanas Teresa Richter, Açucena Arruda e Helena Pinto Magalhães; luso-moçambicana escultora Maria Morais.

Fotografia da capa: rapariga macua do Norte de Moçambique, de Pedro Cunha.

Edições anteriores:

Aquelas Longas Horas, narrativas sobre a atual epopeia africana, Serviço de Publicações da Mocidade Portuguesa, 1968.12, 1.ª edição, 115 pp, 4.000 exemplares;

Aquelas Longas Horas, 2.ª edição revista, do Autor, depositária EditorialmAster, Lisboa, 1970.12, 3.000 exemplares;

3.ª edição revista, do Autor, distribuição Didática Editora, Lisboa, 1971.12, 3.000 exemplares;

4.ª edição revista, do Autor, distribuição Agência Internacional de Livros e Publicações, Lisboa, 1972, 2.500 ex.; num total de 12.500.

1.ª e 2.ª Edições de Tempo Africano: Lisboa, Didática Editora, 1972, 3000 + 3.500 exemplares, 175 pp, num total de 6.500;

Tempo Africano, aquelas longas horas em sete andamentos, 3.ª/7.ª edição reorganizada e aumentada, Câmara Municipal de Oeiras, 2008.11, 368 pp, 500 exemplares; 

Tempo Africano, aquelas longas horas em 8 andamentos, 4.ª/8.ª edição
revista e aumentada, coleção Fim do Império, n.º 2, DG Edições, 2010.11, 508 pp,750 exemplares; 

Tempo Africano, aquelas longas horas, 5.ª/9.ª edição reestruturada, coleção Fim do Império, n.º 2, DG Edições, 2016, 366 pp, 300 exemplares; num total de 1.550 ex.; 

e um total global de 12.500 + 6.500 + 1.550 = 20.550 exemplares.
Composição e maquetagem: DG Edições.

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Nota do editor:


Guiné 61/74 - P20361: Notas de leitura (1237): Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária (2): “Tiago Veiga”; Publicações Dom Quixote, 2011 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Novembro de 2019:

Queridos amigos,
Mário Cláudio apresenta-se sempre como ficcionista, mas estreou-se na poesia antes de rumar para Bissau onde foi jurista no Quartel-General, como se deu notícia no texto anterior a propósito do seu livro autobiográfico "Astronomia". Nesta mesma obra ele refere o prazer de vasculhar em livrarias de segunda mão, onde encontrara uma publicação referente à doença do sono. Que a leu, demonstradamente ficamos a saber, quando se lê esta pretensa biografia de um intelectual imaginário chamado Tiago Veiga que vai até à Guiné, pasme-se, era Governador Carvalho Viegas, estamos no início da década de 1930, procura-se caraterizar a doença do sono.
Quando conversei telefonicamente com o Mário Cláudio para o associar ao nosso blogue, ele sugeriu-me a leitura destas duas obras, já lhe escrevi para saber se há mais, e havendo, aqui se fará o competente registo.

Um abraço do
Mário


Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária:
Um notável escritor que é nosso camarada da Guiné (2)

Beja Santos

Mário Cláudio
Em “Astronomia”, Mário Cláudio fala das visitas aos alfarrabistas e refere explicitamente a compra de uma publicação sobre saúde na Guiné. Em “Tiago Veiga, uma biografia”, Publicações Dom Quixote, 2011, sentir-se-á atraído por um universo anterior aos tempos da guerra, como iremos ver.
Esta obra de ficção aproxima-se das oitocentas páginas, é uma biografia imaginária de um bisneto de Camilo Castelo Branco, que ele trata como um caso singular na literatura portuguesa, um interlocutor de grandes criadores artísticos como Fernando Pessoa, Jean Cocteau, W. D. Yeats ou Benedetto Croce. Tiago Veiga viaja para a colónia da Guiné em abril de 1932 a bordo do paquete Serpa Pinto. Acompanha o Dr. Fontoura de Sequeira, chefe da missão que consistia em avaliar a existência da doença do sono e das particularidades que apresentava. Fonseca de Sequeira entregará mais tarde às autoridades competentes o relatório da sua missão. “O caráter não oficial da participação de Tiago Veiga, e de uma outra personalidade, Jerónimo Paiva de Lima Sagres, explicava que a sua identidade fosse excluída do documento de Fontoura de Sequeira (…). A brigada minúscula ficaria alojada no melhor hotel de Bolama, um estabelecimento que apenas se distinguia de uma pensão qualquer em Fornos de Algodres pelo criado de mesa, um balanta que servia de luvas brancas os camarões grelhados, seguidos da papaia às fatias. O Governador da colónia, Luís António de Carvalho Viegas, receberia Fontoura de Sequeira, e na formal preleção com que o brindaria iria ele reiterar aquilo que constituía o cerne das suas convicções em matéria de política sanitária”.

É o momento propício para Mário Cláudio investir na caraterização da orografia:
“O território guineense surgiria a Veiga como uma espécie de grande bolacha verde, mergulhada em águas lodosas e paradas, e que aos poucos amolecia, terminando por inteiramente se esboroar, a construir ilhas e enseadas, penínsulas e cabos, e aquilo a que se chama ‘a bolanha’, e que não conformava mais do que a infinidade dos pântanos, tornada responsável na imaginação europeia por todos os males deste mundo”. E tem uma palavra para os colonos: “Receosos de que se concretizasse a transferência da capital da colónia, de Bolama para Bissau, pareciam eles optar por uma letargia paradoxal, favorecidos pelo argumento da prostração a que o clima os condenava. Amarelentos e aparentemente subnutridos, associavam-se em grupelhos emborcadores de aguardente de cana.” E traça-se a natureza da missão: “No mapa que estenderam diante do nosso homem, e através da lembrança de que não se esquecesse da dose semanal de quinino, delineava-se a área da incidência da profilaxia da enfermidade do sono. Ela ia de Compiana no Sul a Varela no Norte, e de Bolama no Oeste a Cam Queifá no Leste”.

Afinal de contas, o que andava Tiago Veiga a fazer por aquelas bandas? Mário Cláudio responde:
“Cedendo a esse fatalismo que transforma os salvadores do corpo e alma dos homens em predadores das restantes espécies, Fontoura de Sequeira dedicava à caça o tempo que lhe sobejava das canseiras do serviço, mas Tiago, tendo disparado um ou dois tiros experimentais, reveladores da mais completa inépcia venatória, logo se remetera a ocupações bem menos voluntaristas. Cobriam eles o território com uma celeridade incompatível com qualquer reflexão aturada sobre aquela doença que tão só cinco anos antes se apurara existir na Guiné Portuguesa. Montavam as tendas, arrebanhavam as populações, executavam as análises, desmontavam as tendas, e abalavam na manhã seguinte em direção a mais uma das localidades assinaladas no mapa de que se socorriam. A tarefa de Veiga consistia em anotar em fichas o nome dos infetados, a sua idade e sexo e morada, e qualquer observação pertinente. E não demoraria muito a que se familiarizasse o nosso biografado com uma terminologia que, não sendo científica, não deixava incluir o seu grão de carga poética, suscetível de desencadear um que outro surto de escrita pelo menos mental. (…) E os voos da fantasia de Tiago Veiga obtinham estimulante alimento da observação das preparações microscópicas a que o chefe da missão o convidava. A insídia com que o agente patogénico se manifestava, a selecionar as águas, conforme fossem doces, ou salgadas, e a vegetação, consoante fosse lisa, ou viscosa, denunciava a presença desse mistério do comportamento animal”.

É nisto que Baltasar entra na vida de Tiago Veiga, acontecimento inesperado, com grande carga emotiva:
“Na localidade de Bigina aconteceria aquilo que iria alterar-lhe a normal cadência do coração. Um garotinho dos seus três anos e pico, Mamadu Baldé, mas que os missionários haviam batizado de Baltasar por ter nascido pelos Santos Reis, achegou-se a Tiago. Completamente nu, mas com um colarzito de missangas ao pescoço, e mal atingindo o tampo da mesa que servia de secretária ao nosso homem, deitou-se a mirá-lo com os grandes olhos redondos. O nosso poeta não se deu por achado, a fim de analisar a atitude que o miúdo assumiria. Obstinado a partir daqui, e ao longo dos vinte dias em que a brigada estacionara naquelas paragens, em não se apartar das vizinhanças do nosso biografado, Baltasar não o largava, nem por um instante. E Tiago esforçava-se por aproveitar tal circunstância para distinguir o papel que lhe caberia, e aos seus companheiros, na correção de uma natureza porventura dependente da ausência do branco para fixar os seus equilíbrios intemporais. Essas ameaças, e eram muitíssimas, que rodeavam as incertezas passadas pelo cachopinho, a anemia, a caquexia, e o febrão remitente, tudo isso de caráter palustre, e mais a disenteria, e mais as febres, biliosa e perniciosa, ou a doença do sono, estariam ali talvez para que a terra continuasse como esponja empapada de lamas, insuscetível de conter em cada momento um número de vivos superior ao necessário para compensar o desfalque dos que tinham morrido. Veiga reparava então nos olhitos aguados de Baltasar, dirigia-lhe palavras que nada significavam, e que bem sabia que ficariam sem resposta, e consentia ao garoto que o procurasse à noite, que se insinuasse pelos dentros do mosquiteiro, que se estendesse a seus pés, e que desatando a chuchar no polegar direito, adormecesse como um anjo até os galos cantarem”.
E de seguida Tiago Veiga é sacudido por um ataque de paludismo, e há uma história de lendas da Guiné para contar, como adiante se verá.

(continua)
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Notas do editor

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