sábado, 13 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22000: Memórias cruzadas da região do Xime: a Op Garlopa e o ataque ao Enxalé, em 19 de julho de 1972, ao tempo da CART 3494 (Jorge Araújo)


Imagem de satélite da região do Xime/Enxalé [Sector L1] com infografia da área percorrida durante a «Operação Garlopa» e o modo como foi pensado/executado o ataque IN ao Enxalé, factos ocorridos ao longo do dia 19 de Julho de 1972, 4.ª feira, e que fazem parte das muitas memórias gravadas pelo colectivo da CART 3494 (1971/74).

 


Foto 1 - Enxalé (Jul'72). Uma das áreas atingidas durante o ataque IN à tabanca e ao Destacamento do Enxalé, onde se encontrava o 2.º Gr Comb da CART 3494, ocorrido em 19 de Julho de 1972, 4.ª feira, a partir das 20h20, e que teve uma duração de 20 minutos (aproximadamente). 

 


Foto 2 - Xime (19Jul72). Grupo de elementos da população sob controlo do PIAGC, no subsector do Xime, capturado em 19 de Julho de 1972, no decurso da «Operação Garlopa», num total de 10 indivíduos.


Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494

(Xime-Mansambo, 1972/1974)

MEMÓRIAS CRUZADAS DA REGIÃO DO XIME EM 19 DE JULHO DE 1972 (4.ª FEIRA) NO TEMPO DA CART 3494

- A «OPERAÇÃO GARLOPA» E O ATAQUE IN AO ENXALÉ -

► ADENDA AO P21960 (02.03.2021)

1.   - INTRODUÇÃO



Previno, desde já, que a presente adenda ao poste acima mencionado, não está directamente relacionada com a narrativa "do baú de memórias" do camarada José Ferraz de Carvalho, ex-fur mil op esp da CART 1746, titulada "não matem a bajudinha!", mas aproveita a legenda da foto que nela consta para a cruzar com outras "Memórias do Xime", em que estivemos envolvidos três anos depois, eu e o camarada cmdt António J. Pereira da Costa… entre outros, naturalmente!


2. - «OPERAÇÃO GARLOPA» EM 19 DE JULHO DE 1972.  


●► A «OPERAÇÃO GARLOPA I», também designada por "Acção", foi agendada para o dia 19 de Julho de 1972, 4.ª feira, para a qual foram mobilizadas as seguintes forças:


■ CCAÇ 12 – a 4 Gr Comb

■ CART 3494 – a 3 Gr Comb

■ CCP 121 – a 2 Gr Comb

■ Apoio aéreo de DO-27 e Helicanhão.


Segundo o livro da "História do BART 3873", p. 75 (capa ao lado), apenas consta o seguinte: "o percurso definido para esta operação/acção foi: "Bambadinca - Xime - Ponta do Inglês - Ponta Varela e Xime, consistindo numa batida, precedida de batimento da Artilharia do 20.º Pel Art (sediado no Xime) e heli-colocação (CCP 121). 


As NT destruíram oito tabancas, vários celeiros e recuperaram dez elementos da população (sob controlo do PAIGC). As NT não sofreram consequências.


Nota: Os locais anteriormente citados estão identificados na infogravura acima.


▬ OUTRAS «OPERAÇÕES» COM O MESMO NOME


●► «GARLOPA II» = Em 22 de Julho de 1972, sábado, envolvendo as seguintes forças:


■ CCAÇ 12 – a 4 Gr Comb

■ CART 3494 – a 3 Gr Comb

■ CART 3493 – a 1 Gr Comb

■ Apoio aéreo de DO-27 e Helicanhão.


A mesma fonte (pp 78-79) refere: "desencadeou-se a "operação/acção" com patrulhamento, emboscada e prévio batimento da Zona, na área de Xime - Madina Colhido - Ponta do Inglês e Poindom. Destruíram-se uma tabanca com dezassete moranças e capturaram-se peças de fardamento usado.


O IN flagelou com RPG-2 a CART 3494, causando-lhe um ferido ligeiro.


Além disso cumpre assinalar o denodo e destemor com que os Militares empenhados encaram os momentos de perigo, tal como sucedeu na flagelação havida no desenrolar da acção «GARLOPA II», aspecto este que se pode e deve reputar uma constante.


●► «GARLOPA III» = Em Setembro de 1972 (?), envolvendo as seguintes forças:


■ CCAÇ 12 – a 3 Gr Comb

■ CART 3494 – a 3 Gr Comb

■ Apoio aéreo de DO-27 e Helicanhão.


Sobre a 3.ª «GARLOPA», segundo a mesma fonte (p 81), é referido: "consistiu em patrulhamento e emboscada na zona Xime - Madina Colhido - Estrada da Ponta do Inglês e Poindom. As NT foram atacadas duas vezes no espaço de meia hora, sofrendo um ferido ligeiro.


3. - «ATAQUE AO ENXALÉ» EM 19 DE JULHO DE 1972.


Para o desenvolvimento deste ponto, recuperamos alguns factos historiográficos já publicados no Blogue, em particular a narrativa do meu/nosso camarada e amigo Luciano de Jesus (ex-fur mil art da CART 3494), escrita na primeira pessoa, por nele ter estado envolvido numa dupla missão: a primeira, por ser mais um elemento do grupo; a segunda, por ser o seu líder.

◙ Cito do P14022:

"Eram vinte horas e vinte minutos da data supra, estava eu a jantar na companha do furriel Benjamim Dias, quando rebentou o fogachal que logo fez estoirar com toda a iluminação do quartel. No céu via-se o rasto das balas tracejantes que tinham por missão orientar o fogo das armas pesadas em direcção do quartel. O furriel Dias saltou de imediato para o abrigo do nosso morteiro e fez um trabalho exaustivo de bater toda a zona circundante.

Eu fui ao gabinete buscar o mapa dos pontos marcados pela nossa bateria de obuses do Xime (20.º Pel Art), com o objectivo de orientar o nosso fogo pesado, logo que se localizassem os pontos de origem do fogo pesado IN. Nesse percurso passou uma canhoada a cerca de dez metros de mim que entrou pelo depósito de géneros, causando alguma destruição. Entretanto, o nosso posto mais acima no quartel, onde tínhamos alguns elementos utilizando também um morteiro pesado, fazia o seu trabalho de contenção, a um eventual avanço, respondendo em conformidade.

O ataque durou cerca de vinte minutos.

O grupo de assalto IN movia-se perto do arame farpado, fazendo fogo. O nosso pessoal despejava metralha. Uns enchiam carregadores e outros disparavam. A bazuca não funcionou. Esperámos nova vaga… mas ela não aconteceu… porque eles tiveram algumas baixas, graças à competência do nosso camarada Fur Art Josué Chinelo, do 20.º Pel Art [obuses 10,5] instalados no Xime, onde este observava perfeitamente, em posição privilegiada da margem esquerda do rio Geba, o desenrolar dos acontecimentos.

Com a sua experiência e saber, ainda que a olho nu, apontou ao ponto de origem do fogo pesado IN (canhão s/r) e… foi na muche. Acertou no posto de comando e fez algumas baixas entre os quais o comandante. Entretanto eles já tinham despejado o fogo todo.

Nessa altura chegou a milícia da tabanca com um ferido grave, um sargento de um dos pelotões. Ainda enviamos um grupo até ao rio para evacuar o ferido para o Xime e recolher mais munições, pois o stock tinha ficado muito em baixo. O ferido entretanto veio a falecer durante a caminhada.

No dia seguinte, como seria de esperar, fizemos o reconhecimento do terreno. Encontrámos um ferido IN junto ao arame farpado; tinha um ferimento grave nas costas e outro na perna e estava em mau estado, crivado de estilhaços.

É de assinalar que este ferido pertencia ao grupo de assalto; tinha vindo da zona do Morés. Estava ferido, mas que eles julgaram morto por isso levaram a sua arma. Vestia uma farda de nylon verde azeitona, calçava bota de lona francesa e as calças tinham elásticos nas bainhas para passar por baixo do pé. Estava, pois, devidamente equipado.

Viemos a saber dias depois, por informantes privilegiados, que o IN, constituído por uma força de 150 unidades (3 bi-grupos, sendo 1 CE), reforçados com 1 canhão s/r, dois morteiros pesados, mais de uma dezena de RPG e um grupo de assalto, tinham feito a sua aproximação durante o dia. Ficaram na orla da bolanha e quando anoiteceu montaram o dispositivo. Um grupo de assalto [o do ferido] oriundo de um mangal e outro arvoredo do lado esquerdo do quartel [para quem está de costas para o Xime, logo a seguir ao final da bolanha).

O mais curioso é que montaram o canhão s/r na bolanha, junto a uma árvore isolada, e que não era visível do quartel mas amplamente observada do Aquartelamento do Xime e que foi [bem] aproveitado pela experiência do Josué Chinelo.

Dois dias depois fui de férias e foi aí que o Jorge Araújo se deslocou ao Enxalé até à chegada do Alferes José Henriques Araújo (1946-2012)".

Para além do guerrilheiro ferido, foram recuperadas cinco dezenas de invólucros de granadas de canhão s/r, um deles ainda com a respectiva granada, que não foi retirada devido ao facto de estar amolgado, e muitas dezenas de invólucros de outras munições, nomeadamente 7,62.

Do ataque ficaram, também, mais duas imagens "memórias" desse combate nocturno, que seguidamente se reproduzem.

 


Foto 3 - Enxalé (Jul72). Um chapéu "cubano" recuperado após o ataque de 19Jul72.




Foto 4 - Enxalé (Jul72). Imagens dum RPG-7 destruído durante o ataque de 19Jun72.



 

▬ O QUE DIZ A "HISTÓRIA" DO BART 3873 SOBRE ESTA OCORRÊNCIA


●► No 4.º fascículo; Julho de 1972, ponto 31. «INIMIGO»; alínea d) Subsector do Xime; refere-se o seguinte:


● "Em 192030, o Destacamento do ENXALÉ foi intensamente atacado e durante 20 minutos. A nossa reacção surgiu pronta e ajustada. Sofremos 1 morto [Milícia] e 2 feridos [Milícias]. O inimigo: 4 mortos, 7 feridos e 1 prisioneiro [ferido]. Salienta-se o tiro acertado de Artilharia do XIME em apoio às forças atacadas.


● Quanto ao ferido [prisioneiro], foi evacuado, primeiramente, para a enfermaria do Xime, sendo aí prestados, pelo camarada Fur Mil Enf Carvalhido da Ponte, todos os actos de enfermagem que se impunham, dos quais fui testemunha, seguido do pedido de evacuação para o Hospital Militar de Bissau (HM 241).

Estava, de facto, muito mal tratado, e ainda hoje me interrogo como é possível um ser humano resistir tanto tempo, sempre a perder sangue. O seu corpo mais parecia um "mapa político" onde, em cada estilhaço, estavam projectados vários espaços. 

Enquanto aguardava pela sua evacuação, perguntei-lhe se queria comer algo. Com um sinal positivo transmitido por um pequeno movimento de cabeça, pedi ao cozinheiro Machado algumas batatas cozidas, que já estavam prontas para o almoço desse dia, vindo a comer algumas metades… mas com muita dificuldade. Enfim… lá foi; mas a minha/nossa melhor expectativa era muito baixa.

Segundo informação oral dada, recentemente, pelo camarada Luciano de Jesus, algum tempo após o ataque, um elemento do seu Gr Comb, ao deslocar-se ao HM 241 em consulta externa, acabou por encontrar este guerrilheiro ferido, estando ele em franca recuperação.

    

▬ A MINHA IDA PARA O ENXALÉ DOIS DIAS DEPOIS


●► Dois dias após o ataque fui "convidado", pelo camarada Cmdt Pereira da Costa, para ir dar uma ajuda ao 2.º Gr Comb do Enxalé, aliás como é referido acima. E lá atravessei o Rio Geba, que as imagens abaixo confirmam.




Foto 5 - Rio Geba (21Jul72). Travessia em canoa entre o Xime e o Enxalé com o objectivo de apoiar o 2.º Gr Comb da CART 3494,  na sequência do ataque IN.

 


Foto 6 - Enxalé (22Jul72). Eu na companhia do camarada Fur Benjamim Dias e de dois elementos da população da tabanca, onde estes fizeram questão de partilhar connosco algumas porções de carne, como reconhecimento do nosso apoio.




Foto 7 - Enxalé (22Jul72). O Furriel Benjamim Dias em amena cavaqueira com alguns elementos da população, onde se falava, ainda, do episódio da antevéspera. 


 

4. - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE ARTILHARIA 3494

       = XIME - ENXALÉ - MANSAMBO - BAMBADINCA - PONTE DO RIO UDUNDUMA (1971-1974)


Mobilizada pelo Regimento de Artilharia Pesada 2 [RAP2], de Vila Nova de Gaia, para cumprir a sua missão ultramarina no CTIG, a Companhia de Artilharia 3494 [CART 3494], a terceira e última Unidade de Quadrícula do BART 3873, do TCor Art António Tiago Martins (1919-1992), embarcou no Cais da Rocha, em Lisboa, em 22 de Dezembro de 1971, 4.ª feira, a bordo do N/M «NIASSA», sob o comando do Cap Art Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques (o 1.º; até 22Abr72), Cap Art António José Pereira da Costa (o 2.º; de 22Jun72 a 10Dez72) e Cap Mil Inf Luciano Carvalho da Costa (o 3.º; de Dez72 a 03Abr74), tendo chegado a Bissau em 28 do mesmo mês.



4.1 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CART 3494


Após a realização da Instrução de Aperfeiçoamento Operacional «IAO», que decorreu no CMI do Cumeré, de 30Dez71 a 26Jan72, a CART 3494 seguiu em 28Jan72, em LDG, para o Xime, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CART 2715 [25Mai70-25Mar72; do Cap Art Vítor Manuel Amaro dos Santos (1944-2014) - (1.º)], assumindo, em 15Mar72, a responsabilidade do respectivo subsector do Xime com um Gr Comb (o 2.º) destacado em Enxalé. 

Em finais de Mar73, foi substituída pela CCAÇ 12 [do Cap Mil Inf José António de Campos Simão] e foi colocada no subsector de Mansambo, onde rendeu a CART 3493 [28Dez71-02Abr74; do Cap Mil Inf Manuel da Silva Ferreira da Cruz], tendo destacado um Gr Comb para Bambadinca em reforço da guarnição local. 

Em 09Mar74, foi rendida no subsector de Mansambo pela 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4616/73 [05Jan74-12Set74; do Cap Mil Inf Augusto Vicente Penteado] e recolheu seguidamente a Bissau a fim de aguardar o embarque de regresso, tendo ainda colaborado na segurança de operações de descarga de navios. 


O regresso à metrópole realizou-se em 03 de Abril de 1974, a bordo do TAM (Transporte Aéreo Militar), (CECA; 7.º Vol; pp. 236-237).


Fontes consultadas:

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

03Mae2021

sexta-feira, 12 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21999: Agenda cultural (769): "Judeus portugueses na América: uma outra diáspora", de Carla Vieira (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2021, 344 pp.)


 Carla Vieira: "Judeus portugueses na América: uma outra diáspora" (2021). 


Título: Judeus Portugueses na América: Uma outra diáspora
Autora: Carla Vieira
ISBN: 9789896269036
Ano de edição ou reimpressão: 03-2021
Editor: A Esfera dos Livros
Idioma: Português
Dimensões: 165 x 235 x 20 mm
Encadernação: Capa mole
Páginas: 344
Tipo de Produto: Livro 
Classificação Temática: Livros > Livros em Português > História > História de Portugal

Preço de capa: c. 18,5 €

Fonte: Bertrand Livreiros

Sinopse:

A Liberdade, que desde 1886 recebe de chama na mão quem se aproxima de Manhattan, guarda aos seus pés a memória de uma diáspora com origens no outro lado do Atlântico.
Emma Lazarus, a autora do poema gravado no pedestal da estátua, conseguia recuar a sua ancestralidade até um judeu de Lisboa que, em 1738, chegara naquela mesma cidade de Nova Iorque. Mas a história dos judeus portugueses na América do Norte havia começado bem antes, quando, em meados do século XVII, o navio St. Catrina aportou em Nova Amesterdão, trazendo a bordo 23 refugiados do Recife.

A gesta continuou ao longo das décadas e séculos seguintes, repleta de personagens inolvidáveis. Do rabino patriota ao príncipe mercador, do herói revolucionário ao daguerreotipista do Faroeste, da matriarca que escrevia poemas ao médico que catalogava as maleitas da Virgínia, este livro revisita estas e outras histórias de judeus portugueses que marcaram os primórdios dos Estados Unidos da América.

O presente livro resgata do esquecimento as histórias destes indivíduos cujas vidas espelham a extraordinária epopeia dos judeus portugueses, uma outra «Expansão» da língua e cultura ibéricas pelo mundo, perpetuada por um grupo marginal, perseguido, alvo de ostracismo, mas, ainda assim, capaz de se reinventar, de reconstruir vidas e fortunas, e de manter aceso o sentimento de pertença a uma entidade grupal que atravessava impérios e culturas. 

Lá fora, apelidavam-nos de «a nação portuguesa».Apesar de dignas de nota, estas e outras histórias da diáspora judaico-portuguesa na América do Norte têm sido praticamente votadas ao silêncio pela historiografia portuguesa. Um silêncio ainda mais ensurdecedor quando comparado com a proficuidade com que a literatura norte-americana trata o tema, mote de numerosos livros e artigos publicados em periódicos de referência.

Suprimir uma lacuna? Só em certo ponto. Afinal, esta não é uma obra historiográfica. É um livro de divulgação científica, destinado ao leitor comum, que não abrirá este volume à procura de material e referências para o seu trabalho académico. O rigor nos dados transmitidos e a metodologia aplicada na busca de informação são comuns a um estudo historiográfico, mas não a forma nem os objectivos. 

A intenção é que o leitor se envolva na trama partindo de casos particulares, em registo biográfico, que abrem janelas para um retrato do tempo e das comunidades em que se inserem e dos episódios históricos dos quais participam. 

O aparato crítico inerente a um estudo historiográfico, como as notas referenciais ao longo do texto, foi sacrificado em prol de maior fluidez do texto. Para minorar essa ausência, no final do livro poderá encontrar uma breve nota sobre as fontes e bibliografia consultadas na composição de cada um dos capítulos. E ainda há muito mais por saber.


Autor: Carla Vieira

Carla Vieira é investigadora de pós-doutoramento no CHAM – Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e membro da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste. 

Nos últimos anos, tem centrado a sua pesquisa em torno da diáspora sefardita e das relações luso-britânicas no século xviii. É autora de vários artigos científicos publicados em revistas da especialidade portuguesas e internacionais, bem como dos livros 

(i) Uma amarra ao mar e outra à terra. Cristãos-novos no Algarve (1558-1650) (2018), baseado na sua tese de doutoramento, 

(ii) Mendes Benveniste. Uma família nos alvores da Modernidade (2016), em co-autoria com Susana Bastos Mateus, 

e (iii) Olhão, Junho de 1808. O levantamento contra as tropas fracesas através da imprensa e literatura da época (2009), que recebeu o Prémio Nacional de Ensaio Histórico Francisco Fernandes Lopes.

Para mais informações ou contato com a autor:

Victoria Gallardo > victoria.gallardo@esferalibros.com

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21998: Agenda cultural (768): a propósito do livro "Ataque a Conacry: História de um Golpe Falhado", José Matos deu uma entrevista à RTP - África, no passado dia 9



Capa do livro, montagem do editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 
com a devida vénia. O  livro é publicado sob a chancela da  Fronteira do Caos Editores
Lisboa, 2021.


1. Mensagem do José Matos, historiador militar e membro da nossa Tabanca Grande, ainda a propósito do seu livro (em coautoria com Mário Matos e Lemos), "Ataque a Conacry: História de um Golpe Falhado" (Lisboa, Fronteira do Caos, 2021, 170 pp., il.) (*):

Date: quarta, 10/03/2021 à(s) 10:43
Subject: Re: Mar Verde

Olá, Luís

A respeito do livro sobre a Mar Verde enviava-te mais alguma informação sobre o seu conteúdo, que podes publicar no blogue.

O livro está dividido em 4 capítulos de forma a enquadrar a operação no período em que Spínola esteve na Guiné. Vejamos então o que é abordado.

Capítulo 1- Spínola na Guiné - Começa com a nomeação do general Spínola para a Guiné e faz uma análise do seu desempenho até à Mar Verde.

Capítulo 2 - Os antecedentes da Mar Verde - Neste capítulo são analisados os contactos entre as autoridades portuguesas e os movimentos dissidentes guineanos com especial de destaque para a FLNG [, Frente de Libertação Nacional da Guiné-Conacry].

Capítulo 3 - A invasão de Conakry - Aqui é analisada a preparação da invasão e a sua execução.

Capítulo 4 - A impossibilidade de uma solução militar - Uma análise sobre o período seguinte com as tentativas de Spínola para negociar uma solução para resolver o conflito na Guiné.


Ver, entretanto, a  partir do minuto 24:56, a entrevista que dei para a RTP África sobre o livro,

Guiné 61/74 - P21997: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (43): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2021:

Queridos amigos,
O homem põe e Deus dispõe, vai estar mau tempo nas férias da Páscoa, ir para as praias do Mar do Norte com aquela borrasca não é boa sina, o melhor será ficarem-se pelos passeios da proximidade, e Annette dá sugestões, conhecedora dos gostos e preferências do seu amado português. Não lhe disse, mas está a preparar um Domingo de Páscoa muito especial, virão os filhos e respetivas companhias, uma irmã, filha de sangue dos seus pais adotivos, Angelique Roubaix, está ansiosa por conhecer Paulo. Annette sofre com o que está a escrever na comissão da Guiné, muito estremeceu com toda aquela história no dia 15 de outubro de 1969, que culminou numa pequena desgraça, houve negligência e a fatura é muito pesada. Os problemas de visão são preocupantes, o médico e querido amigo David Payne manda-o ao hospital militar, em Bissau. Ainda ninguém sabe, mas vai nascer uma grande amizade com esse oftalmologista micaelense, José Luís Bettencourt Botelho de Melo, recentemente falecido.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (43): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon inoubliable Paulo, escrevo-te para te dar conta de que temos as férias na zona costeira e na ilha dos Países Baixos altamente comprometidas. Segundo a meteorologia, teremos borrasca, neblina, pesados aguaceiros quinta e sexta-feira. Sábado e domingo o tempo estará um pouco cinzento, temperatura amena, a chuva regressará domingo à noite e não dará descanso à Bélgica até tu partires. Na circunstância, acho que podíamos aproveitar a quinta-feira para visitarmos duas exposições, tu disseste que gostarias muito de haver os simbolistas belgas e franceses no Museu de Ixelles, podíamos aproveitar para ir ao Museu da Banda-Desenhada, está lá igualmente uma exposição que tem a ver com a banda-desenhada belga no período que precedeu a II Guerra Mundial. Como sempre faço, preparo um dossiê, e tu defines a ementa…

Para sábado, em que há uma certa movimentação cultural e nem todos os museus fecham, tudo depende da tua vontade de espreitarmos o mercado da Praça do Jeu de Balle, e haverá uma visita-guiada ao circuito da Muralha Medieval de Bruxelas, é evidente que tu conheces de vista os principais vestígios mas lembrei-me de que apreciarias os comentários de um perito, aquelas torres que restam, até mesmo as construções da 2ª muralha do século XIV temos vestígios, poucos, em Bruxelas, no sábado também se pode visitar a Porte de Hal. O circuito começa na Torre Anneessens, percorre várias muralhas, há depois a Torre Negra e esta pequena viagem termina na Torre do Palácio das Belas-Artes. Ou seja, podíamos começar de manhã cedo por ir ao Petit Sablon e fazer depois o circuito da muralha medieval. Descobri na Rue Montagne aux Herbes Potagères um pequeno restaurante que serve aos sábados a sopa tradicional flamenga, galinhola e tem uma receita especial de mexilhões, com estragão. Achas bem? Na edição do Mad (suplemento do Le Soir, que tu conheces bem) refere que sábado à tarde há uma digressão a Ixelles, também com guia para visitar os edifícios Arte-Nova, que tu tanto aprecias. Esqueci-me de te dizer que no Parque do Cinquentenário decorre uma exposição intitulada “Arte-Nova e Design 1830-1958”, é outra possibilidade. Tu conheces muito bem o Museu Horta, estará aberto no sábado, mas eu lembrei-me de certas casas como a Maison Cauchie ou o Hôtel Hannon. Não te rias, disseste-me que aprecias imenso os cemitérios ingleses pela sua envolvência serena, tens um cemitério cheio de Arte-Nova, o da comuna de Uccle, o cemitério do Dieweg, vê se te interessa. Se fossemos ao Parque do Cinquentenário, podíamos voltar ao Pavilhão das Paixões Humanas e ver a escultura de Jeff Lambeaux, pessoalmente gosto muito, aprecio aquela sensualidade sobre o pretexto da felicidade e dos pecados humanos. Tu escolhes.

Li todos os documentos que me mandaste. Já estamos em outubro de 1969. Ainda não te refizeste da dor que foi a perda do teu colaborador Luís Casanova, o médico de Bambadinca avisou-me de que será uma recuperação lenta. É admirável o aerograma que te enviou o comandante Teixeira da Mota, de Bissau, tudo a propósito de uma brochura que te ofereceu quando lá estiveste e tu me enviaste com a dedicatória dele, a obra intitula-se A Primeira Visita de um Governador das Ilhas de Cabo Verde à Guiné, António Velho Tinoco, 1575. Que bonito texto que ele te enviou:
“António Velho Tinoco foi o corregedor que condenou à morte o piloto açoriano trânsfuga Bartolomeu Baião, o qual lhe foi levado preso para a Ilha de Santiago por um lançado da Guiné. Sobre o Baião tenho reunidas dezenas de documentos em Lisboa, Madrid e Londres e que permitem reconstituir uma vida aventurosa, tipo capa e espada, de um piloto português – um entre muitos – que se valeu da sua arte náutica para roubar navios e intrujar ingleses e espanhóis (fugiu de uma prisão de Sevilha pelo telhado e depois andou a ludibriar em Londres o embaixador de Espanha). Um colaborador em Sevilha acaba de me enviar mais uma boa dose de documentos sobre o mesmo, catados no Arquivo das Índias, e onde se explica como, quando comandava uma frota de corsários ingleses que andava à caça de navios ingleses, foi apanhado pelo rei da ilha de Jeta, que depois o entregou ao lançado que levou à justiça de António Velho Tinoco”.
Obviamente que li esta viagem de Tinoco, é um texto belíssimo.

Arrumei já o episódio da destruição das embarcações do rio Geba e achei inacreditável aquele depoimento do teu amigo Queta Baldé sobre as cumplicidades familiares entre gente que estava no PAIGC e gente que se pôs do lado dos Portugueses. Apercebi-me que este período chamado da época das chuvas provoca imensa doença, tu falas de um soldado milícia, de nome Samba Embaló, vitimado pela malária, reduzido a pele e osso, houve que pedir uma evacuação de helicóptero, tal o depauperamento em que se encontrava. Falas numa folha à parte dos preparativos da presumível partida para Bambadinca, afinal tudo me parece complicado, com conferências de material, as limpezas, os chamados abates de coisas deterioradas, pacientemente tudo se foi arranjando para o ato da transferência.

E brutalmente segue-se a descrição da mina anticarro num sítio chamado Canturé, tu alegas que nesse período o cansaço era imenso, tinhas baixado as guardas, que sofrias muito pela falta de efetivos subtraídos para outras missões, foi um dia azafamado, foste buscar arroz a uma população qualquer, atrasaste-te, o próprio condutor pediu para ficar em Finete, que não, que tinhas no dia seguinte imenso que fazer. Não sei como consegues fazer este documento que tanto me arrepiou, o teu amigo Cherno Suane vai no guincho da viatura, a caixa desse Unimog 404 vai carregada de bidons e sacos de arroz, lá no alto o bazuqueiro Mamadu Djau. E tu explicas-me como viveste esse anoitecer, o fragor da explosão, os fios elétricos a morrerem, os urros do condutor, a tua saída em voo, felizmente com a espingarda na mão, uma emboscada que durou pouco, tu explicas que a noite não é boa companheira para ninguém, todo aquele fogo iria provocar matança entre companheiros. E como é possível que tu te sentisses agradecido só porque julgavas ter perdido o olho direito enquanto vais até Finete pedir auxílio, além de um moribundo há vários feridos, Paulo, Paulo adorado, lacrimejei enquanto via a fotografia e a interpretação que tu fizeste. Foste escrever tudo sobre a tua ida a Bambadinca e os apoios que tiveste, as dores físicas e as dores morais. Como os dias seguintes não foram fáceis, o olho a arder, a face queimada, o joelho direito inchadíssimo. Paro aqui, foi um dia exaustivo, e quanto me custa reproduzir-te o que escrevi e como me rendo ao teu argumento de que a misericórdia de Deus te enlaçou para a vida naquele que até à altura foi o momento mais dramático por que passaras. O que me alivia é que tu chegas amanhã à noite, haja trovoadas, céus plúmbeos, repentinas neblinas, chega a luz que me dá força, um amor chamado presente e futuro, impante pela confiança que me traz, por todos os prazeres que uma mulher sonha de ter a seu lado o perfeito e fiel companheiro. Bien à toi, Annette
A Torre Anneessens, restos da muralha medieval de Bruxelas
A Torre Negra, Bruxelas
Maison Ciamberlani Hankar, Rue Defacqz, Bruxelles
Hotel Hannon, Saint-Gilles, Bruxelles
Em pleno sofrimento, escultura no Cemitério de Dieweg, Uccle, Bruxelas
Pavilhão das Paixões Humanas, de Victor Horta, Parque do Cinquentenário
Emboscada de Canturé, Humberto Reis olha surpreso para os destroços: “Como é que ele saiu vivo disto?”
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21972: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (42): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21996: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IV: O embarque, as 'hospedeiras'… e África Minha


Guiné > Região de Tombali > CCV 8351 (1972/74) > Zona deintervenção (, círuclo a azul) dos Tigeres de Cumbijã. Guileje e Gadamael são referidos apenas pelos efeitos colaterais.

Infografia: Joaquim Costa (2021)



Guiné > Região de Quínara > Buba > Chegaa em LDG... Foto do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné., com a devida vénia...


Guiné > Região de Quínara > Buba > O magnífico pôr de sol em Buba > Foto António Murta / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Com a devida vénia



Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) >  A nossa primeira casa no teatro de operações. Foto do António Murta / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné., com a devida vénia..



Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondamar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.



Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IV (*)


O embarque, as 'hospedeiras'….e África Minha!

 
Por estranho que pareça tenho muita pouca memória do dia do embarque (como eu compreendo o Zeinal Baba !). 

Lembro-me de alguns familiares a despedirem-se dos filhos, maridos e namorados, todos chorosos e tristes, mas longe das cenas que conhecia pela televisão, do cais de Lisboa (Gare Marítima da Rocha Conde de Óbidos), com desmaios, gritos, muito “ranho” no nariz e muitos lenços acenar.

Nunca tinha andado de avião pelo que a expectativa era grande. Ouvia falar das hospedeiras... e do tratamento VIP que todos recebiam nas viagens de avião...

As hospedeiras eram... soldados!... E na aparelhagem sonora do avião eram difundidas as instruções de segurança, com uma linguagem ao nível da do amigo Gil em França e em Veneza (o vernáculo puro e duro do Norte). 

Junto de cada banco um panfleto com as mesmas instruções mais ou menos assim: quem fumar dentro do avião está F...; Não se esqueçam de apertar a M… dos cintos…; e por aí fora.

 Tratamento VIP! Era obviamente um avião dos TAM - Transportes Aéreos Militares...

Chegados a Bissau (depois de uma escala em Cabo Verde para reabastecer), retirado o cinto de segurança e abertas as portas, logo nos entra no avião...  a ÁFRICA TODA (!), com toda a sua força: o calor, a humidade, os cheiros os sons...

A viagem de Berliet até ao Cumeré, não obstante os receios e muita ansiedade, consolidou e confirmou toda a informação colhida através de filmes e revistas sobre África, mas agora (com todos os meus sentidos em alvoroço) com o calor, a humidade, os cheiros, os grupos de mulheres com os seus filhos às costas e seios desnudados na beira da estrada e os sons característicos de África (que nenhum filme ou revista nos proporciona), várias vezes me belisquei à espera de acordar. 

Em meia dúzia de horas, passamos do centro de Lisboa com 13 graus, para o interior da Guiné, na África profunda, com 40º.

A passagem pelo Cumeré onde fizemos a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional), local de adaptação (fundamentalmente aos mosquitos e à rede mosquiteira) e preparação para as tarefas que nos estavam reservadas no teatro de operações, decorreu de forma tranquila.

Contudo, sentia-me anestesiado, como que vivendo um sonho e que logo pela manhãzinha acordaria na minha cama, no verde Minho, como sempre ouvindo os cães, os galos e os pardais.

Não era propriamente um pesadelo, de onde queria muito sair, acordando. Por estranho que pareça tudo fazia para prolongar o sono, pois que me sentia inebriado pelo calor, que me agradava, pelos cheiros que inalava com sofreguidão, com os sons que me soavam a música melancólica e doce.

E que dizer das gentes? Diferentes, mas desconcertantes na sua calma, como suspensos na atmosfera sem gravidade e muito, muito gentis. Ainda hoje me vem à memória as crianças, que quase habitavam o quartel, rodeando-nos entusiasmadas com a chegada dos novos inquilinos.

Parecia a peça que faltava para o quadro ser perfeito, infelizmente logo contrariado pela sofreguidão com que comiam as bolachas que lhe davamos,  denunciando tudo o que não queríamos ver e confirmado pela fila que faziam, cada um com a sua lata na mão, à espera das sobras da cozinha...

Ainda hoje não encontro explicação para o facto de toda aquela miudagem, com 2 dias de Cumeré nos tratarem pelo nosso próprio nome!!!

Passados os 15 dias de adaptação e após o discurso de boas vindas de Spínola (menos dramático do que o do Sargento Redondeiro em Portalegre), lá chegou a hora da verdade com o embarque, numa LDG (Lancha de Desembarque Grande), rio acima (grande Fausto, uma obra prima este LP - Esta viagem está ao nível das muitas descritas por Fernão Mendes (M)Pinto na Peregrinação)...

E lá fomos até Buba, com a companhia de alguns elementos da população local que se faziam acompanhar com toda a “família”, nomeadamente: cabras, galinhas, porcos, etc.,

Em Buba (local deslumbrante. ideal para umas boas férias) lá subimos para as Bierliets que nos conduziram, em coluna, até ao nosso destino:  Aldeia Formosa (hoje Quebo). Esta coluna, que se realizava, creio que semanalmente, tinha como função principal o transito de militares e o abastecimento de todos os produtos, alimentícios, e outros, para toda a região de Aldeia Formosa.

Era uma picada difícil de vencer, em particular na época das chuvas, onde religiosamente avariava sempre uma ou duas viaturas, mas que nunca ficavam para trás (homens e máquinas o mesmo lema!), implicando uma viagem de um dia para vencer umas dezenas de quilómetros.

À frente da coluna seguia a “arrastadeira”, viatura carregada com sacos de areia, onde só lá ia o condutor, geralmente alguém já “cacimbado” que se oferecia para tão arriscada tarefa de limpar o caminho de minas para o resto da coluna. Situação que acontecia com alguma frequência.

Geralmente dois grupos de combate faziam a proteção da coluna e vários grupos eram colocados na mata, ao longo da picada, por forma a reduzir ao mínimo a possibilidade de contacto com o IN.

Não obstante todos estes cuidados era recorrente o rebentamento de minas ou contactos com o IN.

Com o desembarque em Buba deu para constatar que já estávamos na considerada zona vermelha (não confundir com red light district!). Eram evidentes os contrastes:

  • os nossos camaradas que nos recebiam com uma cara de felicidade por nos ver chegar e as nossas de susto e medo;
  • as suas fardas já sem cor de tantas lavagens e rotas, e as nossas ainda com cheiro a goma;
  • os seus corpos tisnados pelo sol e a nossa brancura de lençol a corar ao sol.

Com um sorriso na cara e nas almas iam-nos mimando com a canção mil vezes cantada na Guiné: "Piriquito vai no mato, Olélélé velhice vai no Bissau olélélélé!".... Sacanas!

Ao chegarmos a Aldeia Formosa por todo o lado se ouvia: "Piriquito vai no mato, olélélé velhice vai no Bissau olélélélé".

Fomos recebidos, calorosamente, com direito a banho e rancho melhorado. Depois do banho fomos conduzidos ao bar para limpar as goelas do pó da viagem.

Alguns colegas “velhinhos” pediam ao soldado que servia no bar cervejas para ele e para os novos companheiros: para ele o soldado servia uma cerveja fresca para o periquito uma quente. Reclamamos, ao que o soldado nos diz que fresca só para os “velhinhos”, com o encolher de ombros do dito “velho”.

Como estávamos intimidados e assustados com todo aquele ambiente,  ninguém mais reclamou.

Convidados para o jantar, aos “velhinhos” era servido, com deferência pelos soldados, uma sopa com aspeto agradável, aos periquitos era servida uma água turva, com grandes pedaços de capim e com gestos bruscos do soldado,  entornando a mesma nas nossas calças. 

Aqui a coisa “piou mais fino” e alguns de nós reagiram com alguma violência. Antes que a coisa descambasse, os soldados que serviam no bar,  identificaram-se como colegas furriéis, e que tal não passava de uma praxe habitual aplicada aos periquitos. 

Com tudo esclarecido ... a farra foi até às tantas com direito a cerveja fresca.

Dormimos como justos no chão em colchões insufláveis... ainda vazios…

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Nota do editor:

(*) Postes anteriores  da série:


(...) Foi aqui que me tornei um exímio jogador de lerpa (jogo de cartas a dinheiro) graças aos mestres do ofício - os velhinhos sargentos do quartel. No dia em que fazia serviço aos telheiros (instalações fora do quartel onde dormiam os soldados da companhia) era sempre uma noite sem ir à cama já que o casino se montava no final do jantar e fechava as portas já com os soldados formados em parada para regressarem ao quartel para mais um dia de instrução. Sempre que fazia serviço aos telheiros no dia seguinte seguia carta para casa a pedir mais uma mesada adiantada…

Aqueles sargentos eram tramados. (...)

13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21893: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte II: A minha passagem pela maravilhosa cidade de Chaves depois do martírio de Tavira

(...) De manhã cedinho, depois de um bom pequeno almoço com pão sempre quentinho e muita manteiga a derreter-se no mesmo, formado o grupo, lá fomos nós, todos catitas, a marchar até ao forte de S. Francisco.

Chegados à porta de armas, um soldado aparece ao portão, com um leve sorriso nos olhos brilhantes, e, baixinho diz-me ao ouvido:

– O seu colega Ferreira pede para aguardar só uns segundos.

Achei estranho, geralmente nestes casos já todo e pessoal costumava estar à porta “mortinho” por se ir embora depois de 24 horas passadas naquele buraco. Aproximo-me mais um pouco do portão e vejo o Ferreira ainda a vestir as calças e uma loira a esgueirar-se, escondendo-se por trás dos soldados. Logo a seguir aparece o Ferreira, com um sorriso de felicidade, com um malmequer bravio, colhido no forte, colocado na orelha e a cantarolar a celebre canção, hino do movimento hippie e do amor livre: “Se vais a San Francisco, leva flores no teu cabelo…”(...) 

3 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)

(...) Já na altura, a tropa estava muito à frente! – eram distribuídas as especialidades de uma forma cientificamente infalível, através de testes ditos psicotécnicos que na altura, creio eu, só o exército utilizava.

Era recorrente ouvirmos que escriturários iam para mecânicos, mecânicos para escriturários, enfermeiros para transmissões e técnicos de rádio para enfermeiros... Dado este rigor científico, tinha a expectativa, dada a frequência do 3.º ano em engenharia eletromecânica (Curso de Eletrotecnia e máquinas), que me sairia em sortes, no mínimo, a especialidade de transmissões!

Enfim: Armas Pesadas!... e "ala" para Tavira. (...)

Guiné 61/74 - P21995: Parabéns a você (1942): Sarg. Ajud. Ref da GNR Manuel Luís R. Sousa, ex-Soldado At Inf da 2.ª Comp/BCAÇ 4512/72 (Jumbembém, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Março se 2021 > Guiné 61/74 - P21988: Parabéns a você (1941): Joaquim Cruz, ex-Soldado CAR da CCS/BCAÇ 4512/72 e BENG 447 (Farim e Bissau, 1972/74)

quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21994: Manuscrito(s) (Luis Graça) (200): "A minha esperança mora / No vento e nas sereias / É o azul fantástico da aurora / E o lírio das areias" (Sophia)


Foto nº 1 > Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-Te Ao Mar > 6 de março de 2021 > O lírio-das-areias

 
Foto nº 2 > Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-Te Ao Mar >  6 de março de 2021 > 
 
Foto nº 3 > Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-Te Ao Mar >  O lírio-das-areias em flor
 

Foto nº 4 > Lourinhã > Praia da Areia Branca  > Dunas >  11 de março de 2021 > 


 Foto nº 5 > Lourinhã > Praia da Areia Branca  > Dunas >  11 de março de 2021 >
 

Foto nº 6 > Lourinhã > Praia da Areia Branca  > Dunas >  11 de março de 2021 > O lírio-das-
areias cercado pelo chorão-das-praias (Carpobrotus edulis), 

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Que planta é esta, que cresce à beira-mar ?  Tem muitos nomes populares: lírio-das-areias, narciso-das-areias, lírio-das-praias, lírio-das-dunas, pancrácio marítimo... Nome científico Pancratium Maritimum...

É uma planta autóctone de Portugal continental ( , não existe por exemplo na Madeira), vive nas dunas e areais costeiros, geralmente na duna primária e nos vales entredunares, ao longo de toda a nossa costa, do Minho ao Algarve...

Cantada por poetas como Sophia de Mello Breyner Andresen: "A minha esperança mora / No vento e nas sereias / É o azul fantástico da aurora / E o lírio das areias." (in: Dia do Mar). 

2. Diz a Wikipedia

(i) Descrição:

(...) É uma espécie herbácea, as folhas erguidas sobressaem do solo formando um denso ramalhete; têm entre 5 e 20 mm de largura e são de cor verde azuladas. Têm um bolbo largo, esbranquiçado, com várias capas membranosas. A ingestão provoca uma grade toxicidade, visto conter heterósidos cardiotónicos. As raízes estão situadas a uma profundidade de até 0,8 m abaixo da superfície.

As flores são pediceladas, grandes, de cor branca, com semelhança aos narcisos, muito aromáticas e com um tamanho de até 15 cm de comprimento. A for apresenta 6 tépalas lanceaoladas abertas na periferia e com uma nervura esverdeada dorsal que nasce na base da umbela. A corola com forma de trompete, também branca, contém 12 dentes de forma triangular. Os 6 estames são de cor esbranquiçada, com anteras de cor amarela em forma de rim.

O ovário é trilocular e sobressai sobre o cálice. O fruto é uma cápsula grande e ovóide, em cujo interior se encontram as sementes, negras e de forma triangular, com picos. (...)

(ii) Etimologia:

Pancrácio provem do grego παν (pan, "tudo") e κρατυς (cratys, "potente") em alusão a supostas virtudes medicinais da planta. Maritimum vem do latim "mar", devido ao seu habitat costeiro.

3. Floração:

Já quanto à floração, há divergências nos registos: estas  imagens (Fotos nºs 1, 2 e 3) que fizemos, no Porto das Barcas, na "saída de emergência" da nossa "secreta" Tabanca do Atíra-Te ao Mar (, de que é régulo o nosso camarada Joaquim Pinto Carvalho),  têm a data de 6 de março de 2021... Estes lírios-das-areias aparecem no alto na arriba do Porto das Barcas e já estão a florir... 

Nas dunas da Praia da Areia Branca / Praia do Areal, costumamos vê-las florir mais tarde, a partir de fins de maio e princípios de junho... 

As dunas são ecossistemas muito sensíveis e correm o risco de desaparecer...  Infelizmente este passeio pedonal, ligando a foz do rio Grande à praia do Areal,  está muito degradado... É uma pena!... Mas quando for recuperado,  por favor, senhores autarcas, mandem arrancar os chorões que esmagam as nossas lindas plantas autóctones dunares!... Ofereço um dia ou meio-dia de trabalho voluntário, conforme o estado de saúde das minhas pernas,  para ajudar a arrancar os malditos chorões!

O chorão-das-praias é espécie invasora, proveniente da África do Sul, e como tal está listada no Decreto-Lei nº 92/2019, de 10 julho.(Assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) n.º 1143/2014, estabelecendo o regime jurídico aplicável ao controlo, à detenção, à introdução na natureza e ao repovoamento de espécies exóticas da flora e da fauna.)
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de fevereiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21918: Manuscrito(s) (Luís Graça) (199): Elegia para Isabel Mateus (Soure, 1950 - Lourinhã, 2021)