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Caro Carlos
Junto segue um texto com uma historiazinha passada comigo em 1972, envolvendo uma evacuação trabalhosa de Guidage para o Hospital de Bissau.
Um beijinho.
Giselda Pessoa
A DAR AO AMBU
A actividade que nós, enfermeiras pára-quedistas, desenvolvíamos no Teatro de Operações da Guiné, proporcionava-nos por vezes momentos de grande realização profissional. As características particulares da geografia do território em parte também ajudavam. Havia bastantes aquartelamentos a menos de 30/45 minutos de voo do Hospital de Bissau, o que significava que, desde o pedido da evacuação até à entrada do evacuado no hospital poderia decorrer, nesses casos, um período máximo de duas horas, com a forte possibilidade de a evacuação ter o apoio de uma enfermeira, o que aumentava um pouco mais as hipóteses de sobrevivência do evacuado.
Também o facto de o tempo gasto numa evacuação ser mais curto que noutros territórios aumentava a disponibilidade das enfermeiras para fazerem mais evacuações e garantia assim uma maior qualidade dos serviços prestados.
Estou convencida que, comparativamente com os outros Teatros de Operações, essas características permitiam que em igualdade da gravidade do estado dos evacuados, o ferido tivesse mais hipóteses de sobreviver no território da Guiné - possibilidade de maior apoio do pessoal de enfermagem e menor distância a percorrer até à unidade hospitalar.
Assim, viu-se muitas vezes evacuar feridos em estado desesperado que, devido ao apoio rápido recebido, conseguiam sobreviver contra todas as expectativas. Essas vitórias davam às enfermeiras uma grande motivação para prosseguir o seu trabalho.
Lembro-me de uma evacuação que fiz a Guidaje, com essas características. Estávamos em 1972 e fomos chamados para uma evacuação de um ferido militar em estado muito grave. Tratava-se de um cabo enfermeiro do Hospital Militar de Bissau que, no período de férias do enfermeiro colocado em Guidaje, o tinha ido substituir no seu serviço. Estava quase a acabar este destacamento em Guidaje quando teve que ir socorrer um milícia local, o qual tinha pisado uma mina numa zona próximo do aquartelamento, de que tinha resultado a perda de uma perna. Quando ajudava o milícia na sua deslocação para o quartel, aquele teve a infelicidade de pisar uma segunda mina, o que provocou a perda da segunda perna, bem como a amputação de uma das pernas do enfermeiro.
À nossa chegada verifiquei as dificuldades em que o cabo se encontrava, pois tinha perdido bastante sangue, os camaradas não tinham conseguido ainda pôr-lhe o soro e tinha dificuldade em respirar pois encontrava-se num estado de extrema debilidade.
Coloquei os dois feridos nas macas colocadas na traseira do DO e dediquei a minha atenção ao seu estado, enquanto voávamos para a Base. Curiosamente, o milícia encontrava-se mais estável, apesar de ter tido as duas pernas amputadas. Quanto ao cabo enfermeiro, consegui finalmente colocar-lhe o soro e dada a sua dificuldade em respirar coloquei-lhe o Ambu1, que não é mais que uma bomba manual usada para aumentar o fluxo de ar para o doente e consequentemente a sua oxigenação.
Foi um voo extremamente duro - para o doente, claro, e para mim, que tive que dar permanentemente ao Ambu, que o estado do doente assim o exigia.
Em casos graves como este, podíamos decidir pela transferência do evacuado para um AL-III, que recebia o evacuado na placa da BA12 e o transportava directamente para o hospital. Assim fizemos, transferindo o ferido para o heli e dirigindo-nos para a placa do hospital, de onde o levei directamente para o bloco operatório, onde era aguardado.
Devo dizer que durante uma ou duas semanas continuei a sentir dores nos braços , devido ao esforço feito com o Ambu durante toda a evacuação. Mas o meu trabalho continuou e eu fui esquecendo este episódio.
Poucas semanas depois, quando preparava no Hospital de Bissau a evacuação dos feridos para Lisboa, a fazer no DC-6, percorria o Serviço de Recuperação do Hospital quando subitamente ouvi atrás de mim um grito estridente:
- Devo-lhe a vida!
Recuperando do susto, dirigi-me ao doente, que me confirmou ser o cabo evacuado de Guidaje, que tanto trabalho me tinha dado. Disse-me que durante a evacuação tinha conseguido abrir os olhos durante uns momentos e, tendo-me reconhecido (ele era do Hospital de Bissau), pensou: - Ao menos morro ao pé de alguém conhecido. Mas não tinha morrido e estava até bastante melhor; e pelo grito que deu naquele dia, estou convencida que terá conseguido ultrapassar totalmente esta fase má da sua vida.
Giselda Pessoa
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Fotos: © Giselda Pessoa (2009). Direitos reservados.
2. Comentário de CV:
Ao ler e editar este texto da nossa querida amiga e camarada Giselda, pensei se ela, e os outros camaradas enfermeiros e médicos, terão a mesma percepção que nós temos, de quanto importante foram os serviços de saúde militares durante a guerra. Julgo que eles enquanto profissionais desempenhavam as suas funções sem quantificar ou qualificar a sua acção.
A Giselda como enfermeira profissional que era, aplicou em campanha os seus conhecimentos, tendo para tal de receber uma preparação extra que lhe exigiu muito esforço e adaptação ao meio hostil.
Os nossos enfermeiros infantes, quantos deles formados à pressão, foram de uma abnegação desmedida, fazendo o que sabiam e o que não sabiam para nos ajudar, sempre da maneira mais eficaz e humana. A eles ainda competia, nas horas vagas, colaborar na assistência sanitária às populações, fazendo até de médicos, quando estes não existiam.
Mais que companheiros de caminhada, os enfermeiros foram verdadeiros irmãos, expondo, muitas vezes a sua vida para ajudar os feridos, enquanto os demais estavam, como se dizia, instalados, digo eu, abrigados.
Os nossos médicos, alguns jovens licenciados, outros apanhados quando já se julgavam esquecidos, desempenharam a sua missão nos Hospitais Militares sob pressão, nos momentos mais dramáticos, debaixo das maiores carências, sem nunca desanimarem.
A todos o nosso obrigado.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. postes de:
20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3916: Tabanca Grande (121): Giselda Antunes Pessoa, ex-Enfermeira Pára-quedista (Agosto de 1970 / Maio de 1974)
e
14 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4029: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-Quedistas (6): O anjo da guarda do Zé de Guidaje (Giselda Pessoa)
Vd. último poste da série de 21 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4065: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-Quedistas (7): Os tomates do Capelão da BA 12, Bissalanca... e outras frutas (Miguel Pessoa)