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Malta,
Acabou-se a vagabundagem, Fodé Dahaba é o condutor dos eventos. Comecei o dia em apresentações, consegui uns minutos para ir até à Missão do Sono, depois a ponte do rio de Udunduma, Amedalai, Taliurá, Ponta Coli, Xime e Ponta Varela. Nos intervalos, bebi água, comi bolacha Maria, banana-maçã e goiaba.
Enquanto comprava fruta fui abordado por Demba Embaló, que me disse ser guarda-costas do Jorge Cabral e obrigou-me a escrever: 19662, espero que não seja nenhum código secreto, talvez um número mecanográfico.
Outro Demba, Demba Djau, anunciou-se: “Pertenci ao 1.º Pelotão da CCaç 12, peço a todos que me escrevam”.
E agora Lorde Torcato de Mansambo que se acautele: um tal Mamadu Baldé, que se apresentou como pertencente ao pelotão de milícias de Candamã, perguntou por ele. Amanhã, em Samba Juli, começarei as inquirições de que ele me incumbiu.
A minha vida mudou: jantar cedo, deitar cedo, levantar cedo. À cautela, tirei uma fotografia do pôr-do-sol, no Bairro Joli, sobre as bolanhas de Finete e Chicri. Deixara, em definitivo, o chão multiétnico de Bissau, pé entre pé estava a mergulhar no meu mundo.
Amanhã de manhã, vou atravessar Bambadinca sempre com os olhos rasos de lágrimas.
Um abraço do
Mário
OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (3)
DIA 21 DE NOVEMBRO DE 2010
Este edifício era a Missão do Sono, sediada no Bambadincazinho. Depois do ataque de 28 de Maio de 1969, o Bambadincazinho, tal como a ponte do rio Udunduma, passou a fazer parte do plano defensivo, todas as noites um pelotão ficava aqui acantonado, na presunção de dissuadir qualquer ataque do PAIGC a partir do flanco do Xitole. À frente do edifício da missão, havia um gigantesco U com bidões cheios de terra e cobertura de cimento, seria a estrutura defensiva contra o ataque do IN. Aqui vieram “acampar” vários Pel Caç Nat, todos os pelotões da CCaç 12, isto entre 1969 e 1970. Ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970, o Bambadincazinho e a Missão do Sono ficaram a fazer parte dos eventos funestos do Tangomau. Passava das 5 e meia da manhã quando chegou o Xabregas (Mário Dias Perdigão) vinha buscar o contingente de duas secções do Pel Caç Nat 52. Sentei-me ao lado do Xabregas, Uam Sambu sentou-se ao meu lado e estendeu a mão a Quebá Sissé para o ajudar a subir. A fatalidade veio imediatamente. No momento em que o Unimog arranca sucedem-se vários tiros e Uam Sambu caiu-me no colo a esvair-se em sangue: “Ai, me alfero, mim muri…”. E morreu mesmo, para desgosto de nós todos e para a penitência de Quebá Sissé, que metera inadvertidamente a patilha na posição de fogo e, ao dar balanço ao corpo, meteu o dedo no gatilho.
Foi neste sombreado que se deu a tragédia ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970. O Unimog partiu à desfilada, como numa grotesca Pietá, eu levava Uam Sambu em agonia, o nosso médico, Joaquim Vidal Saraiva, tudo tentou, mas hemorragias provinham de órgãos vitais. Rapidamente evacuado, Uam Sambu terá já chegado morto ao HM 241. O Tangomau procurou falar com a sua viúva e lavadeira, Binta Sambu, vive para os lados de Gabu, foi o que lhe disseram. Deixou-lhe saudades e até um grande abraço do Cherno, pura mentira, pareciam o cão e o gato, ela partia todos os botões, ele protestava pois tinha que comprar material substituto e cozê-los. Estamos a menos de 50 metros da casa de Fodé Dahaba, na actualidade.
Quando cheguei às 8:30 do dia 21 a casa do Fodé, tinha um comité de recepção à minha espera. O “homem grande” é Alai Fuma, paizinho de Fodé. Combateu ao lado dos portugueses em Canhabaque, nos Bijagós, em 1936. Está rodeado de vários familiares e dois deficientes das Forças Armadas. Houve abraços e a sessão de cumprimentos terminou proverbialmente com uma oração dirigido a um Deus todo misericordioso que na sua bondade alegra o coração dos homens, reencontrando-os imprevistamente.
A segunda sessão de boas vindas juntou sobretudo mulheres e crianças das famílias Dahaba e Fati, a viverem na órbita do organizador do evento. O Tangomau pede desculpa pela pouca visibilidade da imagem, havia já uma luz tão crua que ele procurou pôr este comité de recepção no recato de uma boa sombra… e excedeu-se.
Findas as duas cerimónias de recepção, Fodé Dahaba deu largas à sua hospitalidade, começavam a chegar os milícias de Finete da sua secção. Aí o meu coração começou a tremer quando apareceu Samba Gêbo ou Samba Baldé, sempre pressuroso e afável, eternamente gaiato. O Tangomau escreveu no seu caderno: “Abracei-o a chorar, era o encontro da minha juventude, o Samba pedia-me livros, era um leitor infatigável. Não me admirei quando me perguntou: “Trouxeste livros para mim?”. Em voz alta, Fodé começou a dar ordens, anunciou que iriam a Amedalai continuar a ver a família. Seguiram todos num carro de combate disfarçado de viatura civil. Enquanto se conversa e naturalmente o Tangomau é questionado quanto ao número de mulheres e filhos (quantos machos, quantas fêmeas?), passam baratas e formigas que dão ferroadas. Na comitiva seguirão três filhos da terceira mulher de Fodé: Calilo, Iaguba e Braima.
Quando o Tangomau procurou a área correspondente ao antigo destacamento da ponta do rio de Udunduma encontrou a nova tabanca, com o mesmo nome. As mulheres dançavam, tanto quanto lhe foi dado perceber celebrava-se um corte de cabelo feminino, todas as mulheres posaram para a fotografia. Até se pode imaginar que nunca houve aqui um destacamento, é ainda por cima odiado por todos que aqui tinham que prestar serviço.
Samba Gêbo em pose sobre a velha ponte do rio de Udunduma. Era aqui que se situava um dos buracos mais infectos que dava por nome de destacamento. O Luís Graça e a CCaç 12 sabem do que falam. Talvez até o Jorge Cabral, não sei. Na retirada da flagelação de 28 de Maio de 1969, as forças do PAIGC tentaram destruir a ponte que cedeu ligeiramente na outra margem. À cautela, todas as noites um pelotão pernoitava perto da ponte em condições inenarráveis: camas a boiar em poças de água, abrigos com seteiras impróprias para responder ao fogo do inimigo, um arremedo de refeitório onde o corpo ficava ainda mais picado à hora do almoço e do jantar. Com a nova estrada Xime-Bambadinca, este caminho e esta ponte só servem a tabanca de Udunduma, que o Tangomau foi visitar, antes de chegar a Amedalai.
Uma perspectiva da nova ponte sobre o rio Udunduma a partir da velha estrada Xime-Bambadinca.
Era obrigatório, chegados a Amedalai, que o Tangomau perguntasse por um dos seus mais dilectos amigos, Mamadu Djau, o 126, bazuqueiro de elite, aquele que na noite de 16 de Outubro de 1969 dera a sua palavra de honra (e cumprira) que defenderia até à morte a coluna de sinistrados que o Tangomau lhe deixara à porta. Djau partira na antevéspera para um choro em Bissau e anunciara à família que tinha de voltar rapidamente para receber nosso alfero. Quando se chegara a Amedala, o Tangomau fora interpelado pelo homem que está sentado no centro, primeiro cabo José Carlos Suleimane Baldé, da CCaç 12. E dera a seguinte ordem: “Mostre-lhes a minha fotografia, quero que saibam que ainda existo, que penso em todos eles e que lhes mando um abraço”. Por detrás, temos a morança de Mamadu Djau e a sua família.
Quando perguntei pelo Mamadu Djau e alguém me disse que ele não estava, apresentou-se um jovem que disse ser “o macho mais velho”. O Tangomau disse-lhe que devia ter muito orgulho no seu pai, tanto pela sua bravura como pelas suas qualidades de carácter. Ele tudo ouviu sem fazer um comentário mas no final disse-lhe: “Tira fotografia, eu e os meus irmãos não temos uma fotografia juntos, é para lembrar a viagem do branco de quem o nosso pai está sempre a falar”. Embargado pelo pedido, o Tangomau não se fez rogado, aqui estão os Djaus, machos e fêmeas.
É o que resta da estrada do Xime, junto ao porto, reduzido a meia dúzia de estacas. O Tangomau pretende mostrar homenagem a quem alcatroou esta estrada que está adubada em sangue. São incontáveis os feridos nas emboscadas e minas. Este porto e esta estrada transformaram-se num ponto vital para o abastecimento do Leste, em finais de 1969. Por ironia, Mato de Cão perde a sua importância, os barcos de maior calado aportavam ao Xime, a partir de 1970 só atracam em Bambadinca as pequenas embarcações civis. A comitiva viera de Amedalai até ao Xime, na povoação o Tangomau foi novamente apresentado à família Fati, conheceu a viúva de Mankaman Biai, um guia muito competente que ele fez louvar quando foi responsável pela operação “Rinoceronte Temível”, que ocorreu em 8 e 9 de Março de 1969. E daqui partiu-se para Ponta Varela. Nas suas notas, o Tangomau escreveu, a este propósito: “Como é bom voltar a esta estrada que se viu crescer e que se protegeu ininterruptamente durante semanas, em Junho e Julho de 1970. Gostei muito de ver as novas tabancas dos manjacos em Taliurá e Ponta Coli”.
O Tangomau fora três vezes a Ponta Varela. Naqueles tempos de guerra, saia-se do Xime, ia-se por um caminho perto do rio Geba, flanqueava-se a bolanha através do interior de um palmar e depois subia-se pela velha tabanca. A partir daí, e sempre a corta-mato (o PAIGC tinha vários caminhos minados) seguia-se ou para o Poindom e depois Ponta do Inglês, ou atravessava-se a estrada Xime-Ponta do Inglês em direcção seja a Madina Colhido, Gundaguê Beafada ou mesmo Baio ou Buruntoni. Eram recordações tão impressivas, havias tantas e tais lembranças dos ataques às embarcações em Ponta Varela que o Tangomau fez questão de ir exactamente ao local do crime. Acontece que o local do crime está a sensivelmente a três quilómetros da actual tabanca de Ponta Varela. Foi uma viagem inesquecível, os raios solares, cor de ouro, infiltravam-se pelos cajueiros, atravessaram-se hortas, avistaram-se mangais, palmares, até que se chegou ao tarrafo do Geba. O Tangomau veio acolitado por um jovem de nome Mussá e Calilo Dahaba andou sempre na minha sombra, o pai não queria que me acontecesse qualquer desgraça… para que fique gravado para todo o sempre, os ataques às embarcações ocorriam neste ponto onde está um pilar em cimento que permitia a leitura das marés, é um pilar semelhante ao que está em Mato de Cão. Havia igualmente pilastras em cimento que suportavam uma escada em madeira: as pilastras estão lá, a madeira foi devorada pelos furores do tempo. Trata-se de uma obra dos anos 50, decorrente das actividades da segunda missão geo-hidrográfica da Guiné, coordenada por Manuel Pereira Crespo, que chegou a ministro da Marinha.
O leitor que se prepare, vai ver variações deste pôr-do-sol, tendo como fundo Finete e Chicri. Foi um dia de emoções, o Tangomau levantou-se cedo, tomou um banho de caneco, bebeu chá de erva cidreira, comeu doce de papaia, eram 8 horas quando chegou Fodé, Calilo, Iabuba e Braima. Os eventos sociais de Bambadinca deixaram marcas. A recepção dos Fati em Amedalai foi demorada, pela primeira vez na sua vida o Tangomau explicou o modo como Fodé Dahaba se sinistrara perto de Madina, no amanhecer de 22 de Fevereiro de 1969. A grande surpresa foi a viagem entre a tabanca de Ponta Varela e o local do Geba onde as forças do PAIGC atacavam as embarcações. Vezes sem conta, em Mato de Cão, o Tangomau ouvira o foguetório e algumas vezes recolheu vítimas que chegaram ao Cuor. Há mais duas variações desta fotografia, ficarão à disposição de quem as solicitar.
Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de Guiné 63/74 - P7417: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (4): 20 de Novembro, de Bambadinca para o Bairro Joli
Vd. último poste da série de 9 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7410: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (2): Dia 20 de Novembro de 2010