quarta-feira, 8 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25494: Estórias do Zé Teixeira (63): O “Diário” do José Cuidado da Silva (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)


Segunda e última parte do "Diário" do José Cuidado da Silva, chegado até nós através do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381[1]

Buba, 22 de julho de 1968

Neste dia saímos do quartel às seis da manhã, e fomos emboscar na estrada de Buba para Aldeia Formosa para passar a coluna vinda de Aldeia. Neste dia estivemos sem comer durante todo o dia, e a coluna chegou já de noite ao quartel. 

Ao entrar dentro do quartel os turras começaram a atacar, mas graças a Deus só houve dois feridos, um alferes e um cabo, e a mim coube-me uma coisa sem importância, pois fiquei dentro de um oleoduto [?] que cheirava mal, ainda pior do que fosse uma retrete, e assim termino este meu [...] , sobre o ataque que eu tive nesta data.


Aldeia Formosa, 19 de agosto de 1968

Neste dia, há
   volta das oito horas da noite, mais um lindo ataque dos turras, mas as morteiradas não chegaram cá, pois apenas caíram duas perto do quartel, mas com certeza eram de canhão porque nós apenas mandamos cerca de dez morteiradas e o ataque durou cerca de vinte minutos, e assim com estas palavras termino.


Aldeia Formosa, 20 de agosto de 1968

Nesta data fomos fazer uma coluna a Gandembel e partimos de cá da terra (Aldeia Formosa) eram 11.30, e sempre a picar a estrada por causa das minas. 

A primeira ponte estava destruída. Tivemos de montar as pranchas para as viaturas passarem, e assim fomos andando. Mais à frente estava o chão cheio de minas, e assim tivemos de parar e o furriel Pedro foi rebentá-las, e rebentou cerca de cinco minas e um dos meus colegas rebentou uma com a vara e caiu para o chão como morto, e foi imediatamente o enfermeiro tratá-lo e foi transferido para Bissau, para o hospital de helicóptero. 

Como a estrada estava cheia de minas, e já era quase de noite tivemos ordem para regressar para o quartel. Este pobre rapaz é de perto da Foz do Arelho e chama-se António.


Aldeia Formosa, 22 de agosto de 1968

Neste dia tivemos de ir novamente fazer a coluna a Gandembel. Partimos de Aldeia eram 6 horas da manhã, e a estrada sempre picada pelo meu pelotão. 

Chegamos ao mesmo sítio anterior onde estavam as minas. Nós rebentamos cerca de 17 minas, e levantamos também algumas, não sei quantas. E aonde estavam também os paraquedistas a montar segurança. Eles levantaram cerca de trinta minas antipessoais, e quando as viaturas iam a passar rebentou uma debaixo de uma viatura, sem haver novidade, e assim chegamos a Gandembel, e tivemos de sair de lá cerca das quinze horas e depois regressar até Aldeia Formosa.

Chegamos até a Chamarra e tudo a correr bem. Daí em diante viemos nas viaturas a cavalo, bem descansados da nossa vida, quando sofremos uma emboscada no caminho e começaram as morteiradas a cair por cima da gente e a costureirinha a trabalhar, etc...

Estava um bombardeiro em Aldeia Formosa, de aonde levantou voo, e foi ter com a gente, ainda nos encontrávamos debaixo de fogo. Ele lá largou as suas mesinhas em cima daqueles cabrões, e eles logo deixaram de dar fogo. Houve cinco feridos. Três soldados da minha companhia e um furriel que era o Samouco e um soldado dos velhos. Destruíram também uma viatura. 

No dia seguinte o primeiro pelotão foi fazer o reconhecimento, e encontraram um morto e manga de sangue, um cantil e um carregador. Assim termino esta minha história vivida pelo meu pelotão e pelo quarto pelotão e alguns homens do Pelotão Fox.


Aldeia Formosa, 25 de agosto de 1968

Na data indicada em cima, tivemos uma tarde de festa que começou cerca das cinco horas, e demorou cerca de 15 minutos. Neste dia andavam africanos a jogar a bola com colegas meus, e o jogo era na pista de aviação.

 Pois os turras quando começaram a atacar, mandaram as canhoadas e as morteiradas para a pista, mas não houve novidade nenhuma dessa parte da pista, e depois começaram a cair para os lados das tabancas, e encontravam-se pessoas [militares ?]  no lado das tabancas. Quando iam a fugir para o quartel, um homem da companhia dos velhos levou com um estilhaço na barriga, e seguiu para o hospital em Bissau.

E estas são as últimas palavras deste ataque.


Aldeia Formosa, 27 de agosto de 1968

Fomos fazer uma coluna a Buba, que nela tivemos pouca sorte, e por isso tenho sempre escrito estes grandes sacrifícios que eu tenho passado junto dos meus colegas. 

E por isso vou agora contar o que se passou nesta coluna. Ia o 4º Pelotão a picar a estrada, tudo a correr bem, e aonde estava uma anticarro debaixo de um cibe e o 4º Pelotão não deu com ela. Passou a primeira viatura, sem haver problemas e quando ia a segunda viatura a passar arrebentou, e foi a uns poucos metros de altura, e o condutor também, pois ficou a contar estar muito esmagado por dentro, e a viatura ficou toda destruída. Ia a montar segurança entre a primeira e a segunda viatura, apenas caiu terra por cima da gente, mas não houve qualquer outro ferimento, e assim começamos a andar. 

Mais à frente estava a ponte destruída, pois tivemos de a arranjar, e aonde estavam quatro minas antipessoais, e um condutor da minha companhia pôs o pé em cima que ficou com o pé todo escavacado, e as três minas o furriel alevantou-as. Pois esse pobre rapaz, desde as 9.15 horas, sempre a gritar que até metia horror, pois só quase à noite é que veio o helicóptero buscar este infeliz. Quando chegamos a Nhala eram oito horas da noite. 

Chegamos de noite devido às pontes estarem destruídas pelos turras. Passamos a noite em Nhala e só no outro dia é que partimos para Buba, tudo a correr em bem graças a Deus, mas esse pobre infeliz rapaz que arrebentou a mina debaixo do pé teve de levar a perna cortada, e assim são estas últimas palavras desta minha guerra.


Aldeia Formosa, 9 de setembro de 1968

Mais um ataque neste dia por esses grandes parvos dos turras. Já era de noite quando eles atacaram, mas as morteiradas e as canhoadas não chegaram ao quartel, e nós mandamos só quarto morteiradass e seis obuzadas e os gajos assim nos deixaram a gente em paz. Ao fim de ter passado à volta de uma hora, mandamos dez obusadas para a Guiné francesa, e assim terminou este encontro.


Aldeia Formosa, 12 de setembro de 1968

Mais outra festa neste dia acima indicado, e assim vou contar esta história. Já quase de noite, os homens da Fox saíram fora do quartel com as Daimlers, e os turras estavam emboscado para atacarem o quartel, mas como ouviram o barulho dos carros a avançarem, logo atacaram os homens das Fox e o quartel ao mesmo tempo. O morteiro do quartel mandou quatro morteiradas e os obuses mandaram duas ameixas, e assim terminou a festa e o pessoal das Fox regressou depois para o quartel sem haver problema. 

Depois de ter passado uma hora, os obuses estiverem sempre a trabalhar toda a noite, pois mandaram dezasseis obuzadas para a Guiné francesa e já terminei.


Aldeia Formosa, 1 de outubro de 1968

Em virtude de me encontrar na Província Ultramarina da Guiné tenho de escrever mais estas seguintes palavras que foram passadas na data indicada acima em Aldeia Formosa. Assim vou escrever o que se passou durante cerca de sete horas, pois choveu tanto, e fazia tanto vento que queria levar as casernas, mas levou, apenas, as chapas de zinco, que estavam a fazer de telhas numa pequena caserna onde estava a secretaria e pessoal da minha companhia a dormir. 

Os papeis da secretaria ficaram todos molhados, e a sorte de um rapaz foi de trazer a mala às costas, senão tinha ficado ferido. Uma chapa de zinco caiu em cima da mala, aonde a cortou ao meio e ainda coisas que continha dentro, e assim com estas palavras, não houve feridos, mas sabe Deus como nós nos vimos nesta aflição. Rebentaram cerca de seis armadilhas devido ao temporal, e assim são estas as últimas palavras deste temporal.


Aldeia formosa, 22 de novembro de 1968

Mais uma história que vou contar desta minha guerra. Nesta data fomos fazer uma coluna a Gandembel, aonde iam com a gente os paraquedistas. Levávamos oito viaturas com géneros, e a malta ia a pé, porque íamos a picar a estrada. Chegamos a meio do sector com tudo a correr bem, e depois tivemos de montar a ponte para as viaturas passarem, e daí em diante nós já fomos encima dos carros, mais à frente tivemos de passar por outra ponte que é a Ponte Balana. 

Ao passar a última viatura a ponte caiu, aonde houve dois feridos da minha companhia e dos paraquedistas, aonde foram logo transportados de helicóptero para Bissau. Depois regressamos a Aldeia Formosa, e assim chegamos ao nosso destino com tudo a correr pelo melhor.


Aldeia Formosa, 31 de dezembro de 1968

Nesta data indicada acima, tivemos mais um ataque ao quartel, e nós já estávamos sabedores, porque o nosso capitão mandou formar a companhia para nos dizer. Eu estava de reforço ao portão dois, eram perto das seis da tarde quando nós ouvimos arrebentamentos. Assim que nós ouvimos arrebentamentos fomos imediatamente para a paliçada, e quando eram perto das dez horas, nós começamos a fazer fogo, quando eles atacaram com mais umas morteiradas e canhoadas. Os melros não conseguiram meter nenhuma dentro do quartel, e só acabou era meia-noite e meia. 

Assim entramos no ano de 1969 ao som das morteiradas e canhoadas. Os melros atacaram com seis canhões sem recuo e morteiros 120, e vieram com viatura pois foi a Companhia velha foi fazer o reconhecimento e nada encontraram. Esta guerra por hoje terminou.


Buba, 4 de fevereiro de 1969

Como andamos a fazer uma estrada de Buba até Aldeia Formosa, e já temos perto de dez quilómetros, e neste dia nós íamos com a nossa calma pela estrada fora quando caímos numa emboscada. Iam dois pelotões pelos flancos. Era o meu e o quarto, mas a emboscada rebentou do lado onde ia o quarto. 

Eles tinham dois fornilhos montados, e quando ia a passar o quarto pelotão, eles arrebentaram com um fornilho, aonde mataram um pobre rapaz cujo nome era o "Velhinho",  e houve cinco feridos, e nós tivemos ainda muita sorte foi o outro fornilho não ter rebentado.

Quando fomos fazer o reconhecimento, só encontramos quatro granadas de roquete. Isto será o fim [deste episódio] .


Buba, 9 de fevereiro de 1969

Neste dia tivemos um ataque ao quartel que quando começou eram 10.30h. Eu já me encontrava a dormir, mas o ataque era tão grande que eu até acordei. Alevantei-me da cama, e ia para fugir para a vala, mas já estava tão cheia que fui para debaixo da cama. 

Assim terminou o ataque, metendo só uma que furou uma parede de uma caserna aonde estava a companhia de Gandembel . Apenas houve um ferido dessa companhia, e esse foi para Bissau, e depois essa companhia foi no dia seguinte fazer o reconhecimento, aonde eles atacaram com 10 canhões e 4 morteiros 82, e encontraram manga de granadas de canhão, e pronto já está escrito.


Buba, 13 para 14 de fevereiro de 1969

Na noite de 13 para 14 de fevereiro às cinco da manhã sofremos mais um ataque estava a malta ainda a dormir quando elas começaram a cair. Eu não tive nada. Fui para debaixo da cama, e vários camaradas também. Eles meteram muitas canhoadas e morteiradas dentro do quartel, mas só houve um ferido da Companhia 2382 que foi o “Esgota-pipas”, e foi para o hospital, e o meu pelotão e o segundo foram fazer o reconhecimento donde eles nos atacaram com 14 canhões, 3 morteiros 82 e com armas ligeiras. Apenas apanhamos algumas granadas de canhão, e isto é o fim.


Buba, 19 de abril de 1969

Tudo isto é guerra. Mais um ataque que começou pelas oito da noite. Apenas meterem duas canhoada,s e uma delas furou a parede da minha caserna, mas sem haver qualquer acidente, e durou cerca de 10 minutos. No dia seguinte foram dois pelotões da minha Companhia fazer o reconhecimento, aonde estavam 18 granadas de morteiro, e encontraram postas de sangue. Atacaram com 8 canhões e 3 morteiros, e pronto por hoje já chega.


Buba, 4 de maio de 1969

Fomos fazer uma coluna até Nhala e ia a engenharia também, mas a engenharia ficou no segundo pontão, e aonde estava minada de minas, pois alevantamos 38 minas antipessoais e uma anticarro, e mais à frente nós íamos a picar, e encontramos a estrada toda escavacada e aonde alevantamos três minas, e havia outra que um rapaz da minha companhia lhe pôs o pé encima, e ficou com o pé todo partido. Foi socorrido pelos primeiros socorros e depois foi para o hospital em Bissau. 

Ao fim de cinco minutos da mina ter arrebentado, rebentou uma emboscada e caíram duas morteiradas de 82 a 3 metros da estrada aonde se encontrava o pessoal, e trabalhou a "costureirinha", e armas pesadas, mas não houve mais feridos. 

Depois eu estava à rasca da cabeça, e fui pedir ao alferes para vir para o quartel, e ele deixou-me vir. Vim mais o rapaz que tinha arrebentado a mina com o pé e chama-se Miguel. Vim sempre a segurar a perna, e o resto da malta seguiu até Nhala, e alevantaram mais mina anticarro, e depois tudo correu bem, e assim termino. Tudo isto é guerra


Mampatá, 17 de maio de 1969

Estive em Mampatá cerca de 15 dias, e no dia 16 os turras fizerem um pequeno ataque. Foi apenas com lança.roquetes, e armas ligeiras, mas não houve qualquer novidade, e no dia seguinte fomos fazer o reconhecimento e nada encontramos. 


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > Um foto aérea de povoação e aquartelamento... A unidade de quadrícula anterior terá sido a CCCAÇ 3326 (1971/73, Mampatá e Quinhamel) a que pertenceu o nosso camarada António Amaral Brum, há 36 anos emigrado no Canadá. Em 1968, no último trimestre, esteve aqui destacado o José Teixeira, o José Cuidado da Silva, o Eduardo Moutinho Santos, o José Belo, o José Manuel Samouco  e outros "Maiorais" (CCAÇ 2381, 1968/70).

Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mampatá, 31 de maio de 1969

Neste dia saímos de Mampatá na coluna de Aldeia Formosa para Buba, e foram alguns rapazes da minha companhia a picar a estrada até ao meio do sector. Ao fim de alguns quilómetros tivemos uma emboscada, onde houve dois mortos e seis feridos. Os mortos e os feridos eram de uma companhia que já tinha dezanove meses, e assim seguimos para diante. 

Mais à frente encontramos uma mina anticarro, e por cima ainda estava um antipessoal. Passei eu e mais outro rapaz ao lado dela. A nossa sorte foi ele não a ter pisado, pois se a gente a pisasse, nem sequer se viam os nossos ossos, pois alevantamos a mina e começamos a andar. Ao fim de alguns quilómetros houve outra emboscada, aonde caiu uma roquetada aquase ao pé de mim e dos meus camaradas ferindo dois rapazes da minha companhia.

Um chama-se Manuel Luís que é da Azinheira e o outro era o Silva, e nós ao fim destas duas emboscadas já não tínhamos aquase 
[sic]   nenhum material de guerra.

 Tivemos de ser abastecidos de helicóptero, e mais à frente tivemos mais outra emboscada que o fogo durou cerca de vinte minutos. Aquase que não tinha fim, e era aquase de noite. Houve um rapaz das Fox que levou um tiro na testa, e aonde veio a falecer ao fim de alguns momentos. Os bombardeiros andaram todo o dia por cima de nós, e os Fiat andaram também, cerca de quinze minutos, e também tivemos mais à frente outra emboscada, mas os bombardeiros deram com eles, e fizeram fogo, e depois daí em diante tudo nos correu bem até chegarmos a Buba, mas com muitos sacrifícios não chegamos, menos aqueles infelizes que morreram.


Empada, 13 de junho de 1969

Aqui, neste pequeno quartel de Empada, foi o meu primeiro ataque que eu tive na data indicada acima. Nada me meteu medo. Eu nessa altura estava a comer galinha e a beber aqueles copos da ordem junto de alguns camaradas.

 Nós ficamos tão descansados, como não fosse nada connosco pois elas caíram a 500 metros desviadas do quartel e assim por hoje já chega. Envio cumprimentos para os turras desta emboscada. José Cuidado da Silva


Empada, 16 de junho de 1969

Era uma hora da noite e eu estava dormindo num pequeno abrigo, mais alguns camaradas bem descansados, mas foi só ao som das canhoadas e morteiradas que nós acordamos. 

Fomos ver, eram os nossos amigos turras a darem-nos os bons dias, mas além de ser um quartel pequeno, eles ainda conseguiram meter algumas lá dentro ferindo dois rapazes. Um foi para o Hospital, o outro não foi preciso, e também caiu uma canhoada dentro da tabanca matando dois africanos e deixando um em perigo de vida. 

 No dia seguinte fomos fazer o reconhecimento e só encontramos invólucros, e agora termino. Cá fico esperando os turras para um novo ataque.


Empada, 28 de junho de 1969

Mais uma vez uma linda festa feita pelos turras. Eram oito horas quando eles começaram a mandar morteiradas e canhoadas, mas elas caíram bem longe deste pequeno quartel, pois ficaram a meio do caminho. 

Quando a festa começou eu estava no café a beber aqueles copos da ordem, e eu ainda naquele momento disse estas seguintes palavras ao Eusébio: "Dá-me agora mais um tinto, e se quiseres beber aproveita agora, pois agora vai à saúde dos turras, não é verdade? Eles de vez em quando lembram-se de nós."


Buba, 31 de julho de 1969

Mais umas palavras tenho a acrescentar, mas desta vez é em Buba. Neste dia fomos picar a estrada para a coluna de Aldeia Formosa passar. O meu pelotão picou até cerca de quatro quilómetros, e foi tudo a correr bem. Depois rebentou uma mina na viatura da frente, aonde levava cerveja e tabaco. Foi tudo pelos ares, e nós a beber cerveja e roubar tabaco. Foram aquelas bebedeiras da ordem, e os pretos a roubar sabão, pois só houve dois feridos. Um era da minha companhia, e o outro era africano. 

Depois trouxemos a viatura para Buba e a coluna seguiu para Aldeia Formosa e pronto.


Buba, 3 de agosto de 1969

E agora, mais uma vez, aproveito cinco minutos para escrever estas palavras. Mais um lindo ataque neste tão belo dia. Eram seis da tarde quando caiu uma canhoada dentro do quartel e feriu duas vacas. Foi uma pena não as ter matado…e todas. 

E não houve mais novidade. Talvez para a próxima já haja novidades. Tu és Buba o alvo de canhoadas e morteiradas, mas só me faltam sete meses para acabar os meus sofrimentos.


Buba, 19 de setembro de 1969

Eram perto das seis da tarde, quando os turras começaram a atacar, mas elas caíram todas dentro do rio, e eu nessa altura estava dentro do refeitório para arreceber  
 [sic] a comida quando elas começaram a assobiar, e houve apenas um ferido e houve apenas um ferido [repetido] , mas foi devido a fazer fogo com o morteiro 60, e esse partiu dia 20 para o hospital, e não houve mais problema, apenas um preto fugiu no mesmo dia com uma G3. Pronto.


Buba, 21 de setembro de 1969

Eram 4.30 da tarde quando os turras resolveram novamente atacar, mas as morteiradas e canhoadas caíram todas dentro do rio, e apenas só nos assustaram, e nada mais.


Buba, 29 de setembro de 1969

Mais um ataque. Pois eram perto das 4 horas da tarde quando algumas morteiradas e canhoadas caíram dentro do rio. Apenas uma caiu dentro do quartel, e algumas também assobiaram por cima, e assim se passou mais um ataque sem haver problema, e quando eram perto das seis horas voltaram novamente, mas essas ficaram todas dentro do rio. Decerto era para matarem o peixe, e nós nesse segundo ataque não fizemos fogo, e por hoje já chega.


Buba, 10 de outubro de 1969

Neste dia fomos fazer uma coluna a Nhala, e quem foi a picar foi a minha malta. Saímos do quartel eram 6 horas da manhã, e nós ao meio do setor encontramos um fornilho. Quem o encontrou foi o Rio Maior. Era um fornilho com carga elétrica. O furriel Pedro alevantou-a, e assim começamos novamente a andar. Avançamos mais um km. e ficamos emboscados. Aguardamos perto das cinco horas, e depois viemos nas viaturas até Buba. 

Era quase de noite quando nós chegamos, e foi quando começou mais um ataque, mas as morteiradas e canhoadas ficaram a meio do caminho, e nós nem sequer fizemos fogo, e assim termino este historial.


Buba, 12 de outubro de 1969

Eram 5.30 horas da tarde quando os turras mais uma vez nos atacaram. Caiu manga de canhoadas e morteiradas dentro do quartel, mas não houve feridos, e assim que acabou o fogo, a malta saiu fora do quartel, e fomos ao local que eles estiveram a atacar.

 Nada encontramos, e já era quase noite, e amalta regressou ao quartel. Também estavam cerca de trezentos turras do outro lado com armas ligeiras para fazer a tentativa para entrar dentro do quartel, estava um pelotão da 2382, e a milícia emboscados, e quando os turras fizeram o seu esforço para entrar, a malta abriu fogo, e assim eles fugiram, pois no dia seguinte foram os fuzileiros fazer o reconhecimento, aonde encontraram 150 granadas de morteiro 82, 3 de roquete, seis de canhão e também uns binóculos, manga de fio e ainda telefone. Atacaram-nos com 8 canhões e quatro morteiros 82, e pronto e nada mais por hoje.


Empada, 9 de janeiro de 1970

Mais um ataque no qual arderam 6 tabancas, e não caiu nenhuma dentro do quartel. Eram 11.30 horas quando nos atacaram. Noutro dia seguinte fomos fazer o reconhecimento, e nada encontramos, e eles roubaram mandioca aos pretos, pois fomos atacados a quinhentos metros do arame com roquetes e outras armas ligeiras.


Empada, 13 de janeiro de 1970

Eram dez horas da noite quando a festa começou pelos turras, mas desta vez ainda não caiu nada dentro deste tão pequeno alvo. Apenas queimaram seis tabancas. Noutro dia seguinte fomos fazer o reconhecimento, e nada encontramos. Atacaram-nos com um canhão, um morteiro 82, roquetes e outras armas ligeiras.


Empada, 31 de janeiro de 1970

Mais um ataque com canhões e morteiros 82, mas não caiu nada dentro do quartel. Ficaram ao meio do caminho. Noutro dia seguinte fomos fazer o reconhecimento. Os nossos morteiros não chegaram lá, e assim foi o último ataque que nós tivemos. Depois viemos para Bissau, e aonde nos encontramos à espera de um autocarro para nos levar até à Metrópole, para visitar as nossas famílias.

Parti para esta Província da Guiné em defesa da Pátria - 1 de maio de 1968 e terminei a 9 de abril de 1970

Assim termino esta minha comissão de reforço com suor e lágrimas no meio destas matas em defesa da Pátria. Agora quero ir embora abraçar os meus pais.

Quero ir embora para matar as saudades que há tanto tempo me encontro ausente. A caminho de 24 meses gozando (?) estas terras desta tão pequena Província da Guiné com suor e lágrimas, e assim defendi, e lutarei sempre pela Pátria.

José Cuidado da Silva

(FIM)

(Revisão / fixação de texto: José Teixeira / LG)
_____________

Nota do editor

[1] - Vd. post anterior de 7 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25491: Estórias do Zé Teixeira (62): O “Diário” do José Cuidado da Silva (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Guiné 61/74 - P25493: Convívios (992): XXVIII Almoço/Convívio dos combatentes que passaram por Bambadinca entre 1968/1971, dia 25 de Maio de 2024, em Vila Nogueira de Azeitão (João Gonçalves Ramos, ex-sold radiotelegrafista, CCAÇ 12, 1969/71)






_____________

Nota do editor

Último post da série de 30 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25461: Convívios (991): 51.º Almoço/Convívio da CCAÇ 12, Pelotões Daimler e Caçadores Africanos, dia 25 de Maio de 2024, em Mora (Jaime Pereira, ex-Alf Mil Inf)

Guiné 61/74 - P25492: Parabéns a você (2269): Arsénio Puim, ex-Alf Graduado Capelão da CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/71)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25479: Parabéns a você (2268): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835 (Gandembel e Nova Lamego, 1968/69)

terça-feira, 7 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25491: Estórias do Zé Teixeira (62): O “Diário” do José Cuidado da Silva (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

O Diário de José Cuidado da Silva

1. Em mensagem enviada ao Blog no dia 3 de Maio de 2024, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) fala-nos de José Cuidado da Silva, um militar, como muitos outros que todos conhecemos, inadaptado à dura vida em campanha que lhe deixou marcas psicológicas para toda a vida. Só muito recentemente, há dois anos, deu a conhecer ao "seu furriel" Samouco, um diário que escreveu durante a comissão, que manteve em segredo até então.


O “Diário” do José Cuidado da Silva

O “Diário” em verso e em prosa, do meu camarada Maioral (CCAÇ 2381), José Cuidado da Silva, foi o que mais me comoveu e mais gozo me deu a ler e a transcrever para que os camaradas que passaram pela guerra do ultramar, possam apreciar.

Comecemos por descobrir o José Cuidado da Silva. Apareceu na Companhia, já esta estava a preparar-se para partir para a Guiné. Foi parar ao terceiro pelotão e acolhido na equipa do Furriel José Manuel Samouco. Este, começou por perguntar-lhe o nome, de onde vinha e qual a profissão. O pobre do José, aparentemente um simplório, na forma de se apresentar e de falar, disse-lhe que era “cortador de calipos”. Que bela profissão pensou o Furriel e disse estás apresentado. Logo pela aragem viu que era mais um, uma figura típica como soe dizer-se, que tinha de acompanhar de perto e… de “proteger”.
O José Cuidado da Silva

Eu, que fui uma das últimas peças a “encaixar” na Companhia, só me apercebi do José Silva em Ingoré. Aparentemente muito ingénuo, mas bem-educado e respeitador. Eu era “o nosso cabo enfermeiro” tratado por você, a quem foi pedir comprimidos para dores de cabeça. Só muito mais tarde, já em Buba, voltamos ao convívio, quando me juntei ao grosso da Companhia e nos aproximamos nas saídas para a estrada e colunas. A sua forma de se expressar em voz alta escondia um jovem sensível, educado, que pensava, mas não expressava o seu pensamento. Muito disponível e cumpridor de ordens, segundo afirma o Furriel J. M. Samouco. Um militar que nunca deu problemas, mas era marcadamente uma “peça” típica pela forma “atabalhoada” de falar e sujeita a ser gozada pelos camaradas, pelo que precisava de especial atenção.
O Alferes Magro e o Furriel Samouco, ao centro da foto, ladeados por praças do 3.º Pelotão. À direita o Zé da Silva
Da esquerda para a direita: O "Calhordas", o Furriel José Manuel Silva,  Furriel José Manuel Samouco e o Zé da Silva, como era conhecido o nosso herói.

Acabada a Comissão, o José Cuidado da Silva, regressou a Rio Maior, organizou a sua vida, casou e da união nasceu um rapaz.

Em 2016, após alguns anos de batalha, por parte de alguns de nós, foi possível que uma Junta Médica o classificasse como doente psíquico, com stresse pós-traumático de guerra, e assim, aumentar a sua reforma mensal em perto de 500€, para além do acesso ao Hospital Militar. Um bónus bem merecido para uma vítima de uma guerra cujos mentores, até atrasados mentais classificavam como aptos e enviavam para a frente de batalha. Tenho provas disso, num outro camarada – O José Salvaterra, já falecido, que ao atraso mental, agregava uma deficiência físico-motor.

Em 1990, O José Silva foi um dos primeiros a apresentar-se ao toque de clarim que lancei, para iniciarmos os convívios anuais. Logo no primeiro convívio, apresentou-se na sua motorizada, ele, a mulher e o filho. Fizeram a viagem de Rio Maior a Coimbra. Infelizmente, o filho tem um grau de deficiência mental elevada, mas durante uns anos seguidos, lá vinham os três na motorizada.

A esposa, que é uma mulher, tão simples quanto ele, mas de garra apurada, e muito trabalhadeira, sempre fez questão de vir, e o Zé lá vinha, e ainda vem. Nunca falhou. Ela até conseguiu tirar a carta e juntar dinheiro para comprar um carrito (diz ela) para vir à festa dos Maiorais. O filho, esse teve de ser internado num Lar.

Infelizmente, a esposa, sofreu um acidente e partiu o perónio há mais de um ano. A recuperação não está a correr bem e ela tem muita dificuldade em se deslocar, mesmo com duas canadianas, mas, dizia-me há dias, que já consegue conduzir e não ia faltar ao Convívio que se realizou no passado dia 13 de abril. Foi um dos primeiros casais a aparecer naquela manhã de sábado, onde juntamos oitenta pessoas entre combatentes e familiares. Mulher sorridente, resistente, é ela que motiva o Zé.
Convívio de 2024, em Fátima. O José Cuidado da Silva à mesa com o Acácio

Há dois anos, o Jose Cuidado da Silva, entregou ao “meu furriel” Samouco, como ainda o chama, um tesouro. É verdade, um tesouro. O seu “Diário de guerra” escrito em verso e prosa, durante a sua estadia na Guiné e guardado, anos e anos.

Escrito num português simples por uma pessoa simples, conforme foi sendo vivido. Reflete um jovem ligado à sua família e bem-querido na sua terra. Um homem atento ao que o rodeava e seguro de si. Um homem que viveu como todos nós o drama da separação da família, a ansiedade de partir para o desconhecido, que não se envergonha de ter chorado, quando entrou no Niassa. Que conta pormenores do seu sofrimento com uma agudeza de espírito. Uma autêntica lição de vida. Não desce a pormenores, nem regista todos os momentos em que se cruzou com o inimigo. Talvez tenha registado apenas os que mais o marcaram.

Termina escrevendo: Quero ir embora para matar saudades, que há tanto tempo me encontro ausente. Agora quero ir embora abraçar os meus pais.

É esse diário que apresento aos estimados camaradas, leitores do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.

José Teixeira


********************

História da minha vida militar em verso

José Cuidado da Silva

Assentei praça em Viseu
No dia 24 de outubro (e não em abril),
Na parada superior
Nós eramos mais de mil.

Recebi a farda inteira
Para vestir naquele dia,
As calças eram grandes,
O blusão não me servia.

Tocou para o almoço,
Para a formatura fui então,
Quando entrei no refeitório
Só havia massa e feijão.

Na maior força de Inverno
Esta semana passou,
Só vos tenho a dizer,
Que muito mesmo me custou.

E assim passou a recruta,
(Numa grande bandalheira),
E quando tudo acabou
A continência fiz, à bandeira.

Estive por ali mais uns dias,
E o que aconteceu depois,
Voltei a fazer as trouxas
E fui parar ao R.I.2

Quando ao R.I.2 cheguei,
Cansado de caminhar,
Para aquelas paradas olhei,
E deu-me vontade de chorar.

Quando lá dentro entrei
Chegou-me uma grande saudade,
Da casinha que deixei,
Tão longe daquela unidade.

Lá do alto do quartel
Ouviu-se cantar o fado,
Mas logo para meu azar
De lá fui mobilizado.

Fui transferido para Abrantes,
Terra ribatejana,
Para tirar o IAO,
Logo na mesma semana.

Fui com a mochila às costas
Cinco horas a caminhar,
Já tão longe da cidade
A um deserto fui parar.

Quinze dias lá acampado
No meio de pinheirais,
E aqui fomos tratados
Como se fossemos animais.

Quando cheguei ao quartel,
Para me recompensar,
Deram-me o fim de semana
Para ir até casa gozar.

Quando ao quartel voltei,
Disse-me o capitão,
Vai gozar vinte e dois dias,
Que são da mobilização.

Logo apanhei o comboio
Para a casa regressar,
E assim que lá cheguei
Minha mãe fui abraçar.

Passei lá os vinte e dois dias
Dos melhores da minha vida,
A seguir veio a tristeza
Da hora da despedida

Deixei meu pai e minha mãe,
Toda a família a chorar,
Deixei todo o meu bem,
E lá fui parar ao Ultramar.

Quando de casa eu saí,
E a despedir-me dos meus,
Muita gentinha eu vi
A chorar, dizer-me adeus.

Quando cheguei a Lisboa
Senti minha alma gritar,
Entrei para dentro do Niassa
E comecei a chorar.

Às doze horas e cinco
O Niassa deu a partida,
Tanta gentinha a chorar
Pela nossa despedida.

Quando a Bissau cheguei
Já não aguentava em pé,
Embarquei numa LDG
E fui parar a Ingoré.

Quando a Ingoré cheguei,
Triste, me pus a pensar,
Minha família deixei
E para a selva, vim parar.

Setenta dias lá estive,
Era um lugar sossegado,
Fui transferido para o sul
Onde fui um desgraçado.

Quando a Buba cheguei,
A três dias de lá estar,
Apareceram por lá os turras
Para o quartel atacar.

Estive lá quase um mês,
Sabe Deus a minha dor,
E logo para meu azar
Fui para o sítio pior.

Mudei para Aldeia Formosa
Onde era sempre atacada,
Dia sim e dia não,
À canhonada e morteirada.

Tantas colunas eu fiz,
Patrulhas e operações,
Muitas vezes rastejei
Quando ouvia os canhões.

Por vezes de madrugada
Estava eu, a dormir,
E ouvia as canhonadas
Perto de mim a cair.

Levantava-me em cuecas
Mesmo sem alguém mandar,
E com a G3 na mão
Numa vala me ia deitar.

Triste vida eu passei.
Fui homem de pouca sorte,
Tive dias que cheguei
A pedir a Deus, a morte.

Depois voltamos para Buba,
A malta andava arrebentada,
E ainda por cima nos disseram,
Que íamos parar à estrada.

Então andávamos na estrada,
Fartos de cansaço e porrada,
Uns tempos depois nos disseram
Que íamos parar a Empada.

José Cuidado da Silva

(continua)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 10 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24938: Estórias do Zé Teixeira (61): Crónica de uma tarde, em sábado de Festas Natalícias (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Guiné 61/74 - P25490: Os 50 anos do 25 de Abril (18): Guerra Colonial - Pequenas Grandes Verdades (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887)

Corpo Clínico de Bigene - Dr. Adão Cruz em primeiro plano, à esquerda
Foto: © Adão Cruz


GUERRA COLONIAL

A vida é uma sucessão de acasos, o que leva a que seja muito difícil dizer o que nela se perde e o que nela se ganha. Com a dura e cruel guerra da Guiné, não sei calcular o que perdi, mas sei o que ganhei em experiência de vida. Aprendi que o colonialismo, o neocolonialismo e o imperialismo, por mais que tentem branqueá-los, suavizá-los e justifica-los, bem como as guerras a que conduzem, são verdadeiros crimes contra a humanidade. Não posso dizer que sinto saudades da minha vida na guerra, mas tenho recordações que ainda hoje arrancam dentro de mim uma espécie de nostalgia estranha, um rebuscar no fundo do tempo o sentido do sangue que me corria nas veias, uma sensação de perda profunda, semente de uma vida que até hoje aceitamos como vitória. Sempre disse que os dois anos que passei na Guiné, anos de sofrimento e saudade, de tristezas e alegrias, de coragem e desânimo, mas sobretudo de inigualáveis fraternidade e vivência humana, valeram vinte anos de toda a minha vida. Não sei dizer porquê, mas sinto-o até ao mais fundo do meu ser. Sei apenas que me levaram a um futuro do qual nunca saberei o valor que o define, mas que sempre construí em consonância comigo mesmo. Sei apenas que sem esses dois anos, seja eu quem for, nunca seria quem sou.

O texto que se segue, baseado em factos rigorosamente verdadeiros, não é um texto de descrição comum. Ele tenta criar a envolvência um tanto filosófica, um tanto psicológica e mesmo psicopatológica com que as guerras, todas as guerras estrangulam as nossas vidas.

PEQUENAS GRANDES VERDADES

Fiquei sempre com esta paradigmática sensação desde que, por volta de 1970, encontrei no átrio da Faculdade de Medicina da Salpêtrière, em Paris, um busto holográfico de Hipócrates que parecia dizer-me: Mon fils, la vie est le chemin pour la rencontre de nous-mêmes. Mas já muito antes, na guerra colonial, as longas horas a olhar para o vazio se enchiam inesperadamente de pequenas explosões, não de granadas, mas de pequenas grandes verdades de um pensamento acorrentado à la rencontre de nous-mêmes.

Sentado numa pedra junto à margem, no meio do dilema entre vida e suicídio, depois de encontrar um dedo humano na boca do peixe-serra que tinha um fígado de um metro quadrado, dizia o filósofo, condenado a mais nove meses de mato por tentar embarcar para a metrópole uma G3, com o fim de matar o sogro que lhe havia violado a mulher: Este é um sítio porreiro para alguém se suicidar, não acham? Mas não havia ninguém à volta para receber a pergunta. Concluiu que falava para si mesmo. Ora merda, ninguém me ouve. Mas têm de concordar que é um poço fundo, tão fundo que não dá tempo para chegar vivo lá abaixo.

A verdade procura sempre o amor na densidade dos processos e na empatia do sofrimento, clamava bem alto o meu amigo, capitão e arquitecto, pés bem assentes no escuro do pequeno cais de madeira, entre a amplidão do espaço de uma noite estrelada e os limites das margens do Rio Cacheu. Muito se tem falado sobre o facto de umas coisas da vida imitarem as outras ou não coincidirem com as outras. Não se trata de uma questão de imitação ou discordância, mas de procurar saber o que acontece quando duas coisas se juntam, naturalmente, para criar algo de novo, isto é, saber o que acontece se ambas descobrem a verdade absoluta ou se a verdade absoluta não é mais do que a verdade relativa e circunstancial dos momentos das nossas vidas. Não entendi muito bem, mas compreendi perfeitamente porque é que ele trazia debaixo do braço meia dúzia de discos de Beethoven, em vez da espingarda.

Assim que for dia, se dia chegar a ser nesta escura paisagem, lembraremos o amigo que na véspera escrevia versos com sangue da primeira bala, com a força da vida que cedo se apagou na segunda bala, gritando entre sonhos para os jagudis que o miravam e esperavam comer-lhe o corpo: O valor simbólico da percepção da vida está para além das filosofias baratas, e lembra que entre as grandes verdades da vida, outras mais pequenas se encontram a uni-las, como o amor, a poesia… e a morte.

A lua ia já muito alta, e caía a pique nas águas fundas do Cacheu. Eu e o padre capelão embarcávamos numa lancha LDM em direcção a Binta, que ficava vinte milhas a norte. Ele levava como missão confortar as almas e eu levava como missão tratar uma caganeira geral do pelotão que ali se encontrava. A margem esquerda do Rio Cacheu, o Oio, era uma mata completamente cerrada de tarrafe, e território dos guerrilheiros. A meio do caminho, nas entranhas do mais absoluto silêncio, apenas apunhalado pelo arrepiante pio de alguma ave nocturna, o padre perguntou-me: O que é para si a verdade? E eu respondi: Neste momento, para mim, a verdade não é esta enorme lua andar à volta da terra, mas as bazucas que, eventualmente, estarão por trás do tarrafe e nos farão mergulhar no fundo do rio, onde uma legião de jacarés esfomeados nos espera. A verdade para mim, caro padre, está no facto de estarmos aqui os dois, no coração da selva, sem termos a coragem de confessarmos um ao outro que não nos cabe um feijão no cu. O Senhor com o breviário e eu com Les Damnés de la Terre, de Frantz Fanon, duas realidades completamente diferentes, unidas pela força de uma pequena verdade circunstancial, o cagaço. E o Padre, com duas lanchas no fundo do rio desde há dois meses, ancoradas na sua cabeça, pedia explicações não se sabe a quem: Alguém tem de me indicar a saída da noite sem regresso, não pode haver quem não saiba o caminho da derradeira fome, do calor do resto de lume do último verso, não acha caro doutor? E eu respondi: Já viu estes passarinhos fritos, amavelmente e inesperadamente oferecidos por dois fuzileiros, no meio do Rio Cacheu, noite fora, nos confins da selva? Somos quatro dentro de uma lancha perdida no tempo, dois fuzileiros, um crente e um ateu. Enquanto deus anda à deriva, esta metralhadora com balas do tamanho de um palmo, não.

Os gritos sem voz das mães dos filhos que por aqui ficaram, nem sequer beliscavam o silêncio. Não havia mães nem filhos, nem momentos de aflição. Apenas medo. A sensação de que o tempo era de morte, e a superfície espelhada do rio um vidro vermelho de sangue deram para conversar: A noite e o vazio estão na origem cosmológica do mundo. Sofrer pode ser apenas sorrir. A pequena grande verdade do ser dissolve-se na tensão interna de quem ama a vida. Não será verdade? E o fuzileiro, ainda com alguns passarinhos na sertã de meio metro de diâmetro avançou: Já fiz muitas missões por este rio fora, mas nunca com um padre e um médico. Uma bênção e um privilégio, mas que, nem por sombras, me dão a segurança desta Browning. E deu um beijo na metralhadora.

Já a lua se havia sumido e o sol faiscava nas três ou quatro garrafas vazias, quando abrimos os olhos, estendidos no convés. Ainda ecoavam nos ouvidos as pequenas grandes verdades, libertadas pelo estimulante whisky que os dois fuzileiros conseguiram no contrabando: Parecendo às vezes um lago tranquilo de um qualquer paraíso-diz o segundo fuzileiro-e embora os rios corram para o mar, este parece nascer do mar, avançando sobre nós e tentando afogar-nos como aconteceu no último afundamento da lancha. Pois é, comenta o padre, parece uma blasfémia, mas os desígnios de Deus nada mais são do que interacções sensoriais e perceptivas entre realidades virtuais e realidades reais, indispensáveis à compreensão da vida e do papel do ser humano. Esta grande verdade nada mais produziu nos presentes do que um eructante soluço. Não se riam. Assim como a dor transforma em humilde ignorante todo o que a sofre, também a mente humana, no meio do cagaço, discorre sabiamente sobre todas as filosofias, respondi eu, com as palavras ainda envoltas em vapores etílicos: Nada se confunde plenamente, nada se distingue de forma absoluta, mas toda a nossa vida comporta áreas de intersecção muito importantes. Na relação gemelar entre os seres humanos, só a queda da hegemonia dos disparates torna possível as pequenas verdades da simplicidade da vida, no seu sentido antropológico.

Ao fim de dois dias, estancada a diarreia e reacesa a luz do Espírito Santo, alguém levantou, mais ou menos a despropósito, não o modus faciendi do seguimento para norte, mas a questão da transdisciplinaridade da vida, relação profunda e não superficial entre os saberes, uma das atitudes e estratégias fundamentais no avanço do conhecimento para a justiça, para a ética, para a solidariedade e cidadania, a fim de acabar com a puta da guerra. Dizia o alferes, já no fundo da garrafa de bagaço que trouxera de férias: Ainda há quem pense que existe um qualquer tipo de antagonismo entre imaginação de natureza poética, política, e bélica, mas não há. O que há é uma relação podre entre a razão e anti-razão, levando à morte das pequenas verdades e à destruição do ser humano.

Ora, nada destas filosofias tinha a ver com a terrível picada de vinte quilómetros que tínhamos pela frente, através da selva, durante sete horas, entre Binta e Guidage, já na fronteira do Senegal, onde íamos tentar acalmar alguns apanhados da cuca, pertencentes ao pelotão que lá se encontrava desterrado. O ataque de um enxame de abelhas selvagens a meio do caminho, ataque mais temido do que uma emboscada, foi uma daquelas pequenas verdades que se agarram como crude ao caminho da memória. Como não havia qualquer deus na farda do padre capelão a receber as angústias dos homens, concedi a mim mesmo a difícil tarefa de ser eu o senhor e dono do nosso desígnio. Com muita sorte e pequenas verdades dentro de uma caixa de ampolas de hidrocortisona, conseguimos reverter dois graves choques anafilácticos. Diga-me lá meu caro padre, de que nos servem as grandes verdades? Servem para lhe pagar, com todo o gosto, caro Doutor, a pequena verdade de uma cerveja, quando chegarmos a Guidage.

As pequenas grandes verdades da vida continuam a dizer-me que a relação do Homem com os inúmeros fenómenos que o rodeiam, com tudo o que vê e ouve, com tudo o que entende e não entende, é a mais poderosa essência da vida. A razão do Homem, fruto da obediência ao facto de existir…é um facto. Três perguntas: Não será esta cerveja, saída do fundo do bidon de gelo para uma goela a quarenta graus, um milagre? Acha que, algum dia, a terra engolirá os exércitos genocidas que se empanturram de vidas e se embebedam de sangue para glória do Senhor dos Exércitos? Há alguma razão para andar com um colar de orelhas ao pescoço ou dar um sabonete Lux às bajudas e fuzilá-las de seguida? O capelão, com um pé no Senegal e outro na Guiné – a fronteira era o caminho da fonte – encolheu os ombros, sorriu e sentenciou: Sempre haverá espinhos nos olhos e aguilhões nos flancos da vida. Sim, respondi, sempre haverá “grandes” verdades na noite do Homem, a tapar as pequenas verdades do nascer do sol.

_____________

Nota do editor

Último post da série de 6 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25485: Os 50 anos do 25 de Abril (17) : Conversas sobre "Portugal-África. Guerra Colonial. Madrinhas de Guerra", com Marta Martins Silva e 3 antigos combatentes, Hélder Sousa, Luís Graça e Jaime Silva. 3ª feira, dia 7 de maio, no ISCSP-ULisboa, Campus Universitário do Alto da Ajuda

Guiné 61/74 - P25489: Os nossos seres, saberes e lazeres (627): "Monumento aos Combatentes do Ultramar - Belém", um apontamento filmográfico de Manuel Lema Santos, 1.º Tenente da Reserva Naval

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Lema Santos, 1.º Tenente da Reserva Naval, enviada no dia 3 de Maio de 2024,via WhatsApp, ao coeditor Carlos Vinhal:

Meu Caro Carlos Vinhal,

Grato pela conversa telefónica havida com duração acima de 01:30. Grande paciência a tua!

O link permite o acesso a um filme que rodei com a minha "GoProHero12Black" em 20240424.

Depois de o referir com alguns elementos históricos descritivos, editei o filme que titulei com o nome de "Monumento aos Combatentes do Ultramar - Belém".
Apenas uma legenda: «esquecidos"
Em:
https://youtu.be/eYEqiJC60Fs


2. Ainda no mesmo dia, via WhatsApp, resposta enviada ao camarada Manuel Lema Santos:

Caríssimo Manuel Lema Santos,

Já vi o teu filme, que mostra muito bem o nosso Memorial, só tenho uma dúvida quanto aos mais esquecidos. Serão os falecidos em campanha, cujo nome ali fica perpetuado, ou nós que passámos uma vida na condição de anónimos até que a maravilha da internet nos pôs todos em contacto para que unidos pudéssemos gritar que ainda cá estamos?

Se não te importares, aproveito a tua mensagem para encimar o link para o teu filme, quando publicar no blog. Publiquei um pequeno comentário ao teu filme no youtube (sou o MrCaresvi). O filme está muito bom, quase um trabalho de profissional.

Aqui fica o meu abraço e os votos de saúde para ti e para a tua excelentíssima família.
Carlos Vinhal


3. Nova mensagem de Manuel Lema Santos

Meu Caro Carlos Vinhal,

Na minha perspectiva aglutinadora é o conjunto de ambos... todos "esquecidos". Julgo que quando falamos de Antigos Combatentes estaremos a referir todo os que se bateram por Portugal, mesmo no pós Guerra do Ultramar. Houve outras pelejas...

Uns tiveram menos ou nenhuma sorte e cairam em combate. Aos que regressaram vivos compete, ainda que com mazelas várias ou saúde mental diminuída de que as memórias históricas são parte, alertar permanentemente responsáveis Políticos e Instituições, para a necessidade de distinguir e honrar os que se bateram pelo País, independentemente do destino último de cada um.
Afinal o que os distingue dos que nunca compareceram à chamada, dos refractários ou dos desertores? Claro que não me permito considerar um devassado conceito de "objector de consciência", onde eventualmente nos classificamos todos em relação a um filosófico conceito de guerra.

Forte abraço,
MLS





Localizado junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém, Lisboa. Foi criado para homenagear todos os militares que combateram nas várias frentes, em defesa da Pátria. Criado em 1991 por uma equipa liderada pelo arquitecto Francisco José Ferreira Guedes de Carvalho.
Foi inaugurado a 15 de janeiro de 1994 por Prof. Doutor Adriano Moreira e pelo General Altino de Magalhães, ao tempo Presidente da Liga dos Combatentes. Desde esse ano, em cada dia 10 de Junho, é ali realizado o Encontro Nacional de Combatentes.

O monumento é constituído por um lago com uma estátua central. No ano 2000, ao longo do Forte do Bom Sucesso, foram afixadas lápides onde figuram os nomes dos caídos no cumprimento do dever pátrio.

Durante o período da guerra em África (1961-1974) foram empenhados nas três frentes cerca de 800.000 militares portugueses, dos quais a maioria, cerca de 70 %, eram oriundos de Portugal Continental, Açores e Madeira e cerca de 30 % de recrutamento local (Angola, Guiné e Moçambique).

As forças militares portuguesas eram constituídas essencialmente por militares do Serviço Militar Obrigatório e, no Exército, essa realidade era bastante mais expressiva, pois os militares do Exército representavam 92 % do total do pessoal, a Força Aérea 5 % e a Marinha 3 %.
Registaram-se 202.000 faltosos e cerca de 20.000 refratários, o que representa um universo superior a 220.000 homens que, deliberadamente não se apresentaram para cumprirem o serviço militar durante o período da guerra (1961-1974), aos quais se juntam cerca de 9000 desertores.

Durante o período em que decorreu a guerra morreram mais de 10.000 militares, sendo a maioria do Exército (9.638), seguidamente da Força Aérea (511) e finalmente da Marinha (260). Entre os civis contaram-se aproximadamente 6.200 mortos e 12.200 feridos.
Entre os movimentos independentistas (Angola, Guiné e Moçambique) contaram-se 28.226 mortos e 9.450 feridos.

Filme, imagens e edição do autor da publicação
Fontes da descrição: Wikipédia, Revista Portuguesa de História Militar, Ano I - nº 1 (Dezembro 2021) e Marcha dos Marinheiros pela Banda da Armada

Manuel Lema Santos
1TEN RN, 1965-1972
LFG «Orion» - Guiné, 1966/68
CNC/BNL, 1968/70
EMA, 1970/72

Música
Marcha dos Marinheiros
Banda da Armada Portuguesa
Antologia do Centenário 1903-2003

_____________

Nota do editor

Último post da série de 4 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25477: Os nossos seres, saberes e lazeres (626): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (152): Lembranças de Manuel de Brito e da Galeria 111 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25488: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (23) : Camisa Mara, o guardião e guia deste projeto, votado ao abandono depois da morte do Pepito, em 2014... Aqui recordado numa peça da agência Lusa.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 20 de Janeiro de 2010 > Inauguração do Núcleo Museológico Memória de Guiledje > Chegada do Presidente da República, Malam Sanhá Bacai, com a esposa  (à sua esquerda) e o primeiro ministro, Carlos Gomes Júnior, atrás (à sua direita)... 

Embora esteja de perfil,  reconhecemos, de imediato,  de lado direito, cumprimentando o Presidente, o nosso amigo Domingos Fonseca, quadro técnico da AD, então responsável do Núcleo Museológico e membro da Tabanca Grande.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 20 de Janeiro de 2010 > Inauguração do Núcleo Museológico Memória de Guiledje   > O Primeiro Ministro, Carlos Gomes Jr,  "Cadoco", entre a multidão.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 20 de Janeiro de 2010 > Inauguração do Núcleo Museológico Memória de de Guiledje > A nossa representante na cerimónia, Júlia Neto, viúva do nosso camarada José Neto (1929-2007), em conversa com a combatente do PAIGC Francisca Pereira, sob o olhar do nosso amigo Pepito.

Fotos (e legendas): © Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2010). Todos os direitos reservados (Legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine)


1. No passado dia 5 de maio, domingo,  o Patrício Ribeiro, o nosso "cônsul em Bissau", autor da série "Bom Dia desde Bissau", sempre atento e oportuno, mandou-nos um link do portal Sapo, com uma peça da Lusa sobre o antigo quartel de Guileje (ou o que resta dele), e onde se fala de um personagem curioso, o Camisa Mara (e não Cassima Mara, como grafou a jornalista).

O nome desse guardião (e guia local) do que foi "o mais fortificado quartel português nas ex-colónias" (sic), aparece, no programa do Simpósio Internacional de Guiledje, como "Camisa Mara (ex-milícia do Exército Português)" (*), tendo inclusive apresentado, na parte da manhã do dia 6 de março de 2008, uma comunicação oral sobre a vida quotidiana em Guileje, antes do seu abandono em 22 de maio de 1970 pela tropa portuguesa (CCAV 8350 e subunidades adidas).

O título da peça é "O guardião que sonha nova vida para o histórico quartel de Guiledge na Guiné-Bissau". A reportagem da Lusa é assinada por Helena Fidalgo (texto) e Júlio de Oliveira (vídeo). Não vamos, naturalmente, reproduzir na íntegra a peça (até porque tem erros factuais), mas resumi-la, e citar algumas declarações deste histórico guardião e guia local.

Esta história, de resto, interessa-nos, a nós, Tabanca Grande, por que demos muito apoio (incluindo material) à construção do Núcleo Museológico Memória de Guiledje (descritor que tem vinte e tal referências no nosso blogue).

Já suspeitávamos (e temíamos) há muito do desleixo e ruina a que a fora votado este projeto que era tão caro ao nosso Pepito, o engº agr. Carlos Schwarz da Silva (Bissau, 1949-Lisboa, 2014), e onde colaborámos com muito entusiasmo. 

Diz a jornalista da Lusa, Helena Fidalgo: 

"Este guineense esteve na luta ao lado dos portugueses e agora está empenhado em fazer cumprir o propósito daquele a quem chamavam 'o fazedor de sonhos', conhecido por 'Pepito', e que sonhou para Guiledje o único espaço museológico na Guiné-Bissau sobre a luta de libertação nacional para a independência' ". 

A jornalista constata, catorze anos depois da sua inauguração (em 2010, com a presença do presidente da República e o primeiro ministro da Guiné-Bissau, Malan Sanhá Bacai e Carlos Gomes Jr, respetivamente) (**); que "o projeto parou com a morte do (seu) mentor, em 2014" e ficaram apenas dois pavilhões com algum espólio" (...)... O resto são ruinas. 

O Mara serviu de guia à equipa da Lusa, numa visita recente ao local. E esclareceu a jornalista que ele passou a frequentar o quartel quando tinha entre "15 e 16 anos". Terá, hoje, portanto, cerca de 65 anos (ou mais, não sabendo nós em que ano se tornou "milicia" ou passou a servir no quartel como "djubi", fazendo-nos lembrar a figura do Cherno Baldé, "menino e moço em Fajonquito"). 

O Mara, nascido em Guileje, tem consciência da importância histórica daquele lugar: "a história não se perde, a história valoriza um local". (...) "Sente orgulho quando fala de Guiledje"... E, exagerando um bocado, diz: 

"Aqui era o grande amparo dos portugueses, havia todo o tipo de materiais aqui, inclusive abrigos blindados. Só os militares portugueses eram um batalhão, também havia aqui milícias recrutadas, militares locais muito valentes para os portugueses". (...) 

"O Mara 'fazia alguns serviços para os portugueses, lavava pratos, trazia a comida, levava as roupas para a lavadeira e trazia água para os militares' ". (...) "Também fazia carregamento de munições de armas pesadas quando havia um ataque ao quartel".(...) 

Não saía para o mato, como saíam os milícias e os militares, "mas se houvesse guerra aqui no quartel eu era uma das pessoas que ajudava os portugueses a carregar as munições das armas"... 

Recorda depois o dia (o do abandono das instalações, na noite de 22 de maio de 1973), "em que fugiram juntos e o destino foi Bolama, depois de uma longa caminhada de militares, mulheres e crianças"... 

Há aqui um erro de registo ou de interpretação por parte da jornalista: os militares e civis de Guileje foram para o quartel mais próximo, Gadamael Porto. É possível, depois, que alguns civis, para fugir da ewscalada da guerra em Gadamael,  se tenham refugiado na ilha de Bolama.

(...) "Este guineense e outros conterrâneos decidiram voltar para a tabanca depois da independência, quase um ano passado e com o quartel já na posse do PAIGC e do novo Estado guineense." (...)

Mais tarde, por volta de 2006, o Pepito, diretor executivo da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, no bairro do Quelelé, começa a trabalhar a ideia de criar ali o "Núcleo Museológico Memória de Guiledje", com financiamemto externo (União Europeia). E o Camisa Mara foi um dos habitantes locais que deu o seu melhor para ajudar a levar o projeto para a frente (o que está muito bem documentado, aliás, no nosso blogue)..

(...) "No início da construção do museu, tivemos que desmatar o local, porque havia perigo para andar, tinha minas, tinha cobras, fui eu que fiz o caminho e contratei pessoas". (...).

No final o Pepito encarregou-o de gerir o museu (sic). E ele continua a guiar as ocasionais visitas. Mas o que foi feito, "está desprezado", votado ao abandono, por incúria de todos, a comunidade local, a ONG AD, a administração pública, o Governo...

(...) "Gostava que esta ideia, que sonharam juntos (ele e o Ppeito), se concretizasse e que a memória não se apague." (..:)

(...) "Nas memórias guarda o dia da abertura do quartel de Guiledge, em que 'veio um batalhão de artilharia' (sic) "(leia-se um Pelotão de Artilharia).

Lembra-se da visita do próprio António Spínola

(...) "Pepito", como recordou, "fez um grande esforço" para revitalizar este espaço, "mas a canoa ficou pelo caminho" porque "sem sucessor o trabalho não vai".

Ninguém lhe paga nada por esta tarefa, ele tem outras fontes de rendimento. Mas é o seu amor a este projeto que o leva a guiar os visitantes e a zelar pelo que resta. (***)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 7 de fevereiro de 2018 > Núcleo Museológico Memória de Guiledje >  Memorial à CCAV 8350 (1972/1974) e ao alf mil Lourenço, morto por acidente em 5/3/1973. De seu nome completo Victor Paulo Vasconcelos Lourenço, era natural de Torre de Moncorvo, está sepultado na Caparica. Foi uma das 9 baixas mortais da companhia também conhecida por "Piratas de Guileje" e um dos 75 alferes que perdeu a vida no CTIG..

Em segundo plano, vê-se o nicho que ao tempo da CCAÇ 3477 (1971/77), "Os Gringos de Guileje", abrigava a  imagem de Nossa Senhora de Fátima e do Santo Cristo dos Milagres. A CCAÇ 3477 era, na alturam, comandada pel cap mil Abílio Delgado, nosso grã-tabanqueiro.

Fotos: © Anabela Pires (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]




 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje >  > Placa indicativa do local onde existiu um dos espaldões de artilharia. do obus 14.

Foto (e legenda);  © Carlos Afeitos (2013). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]





Guiné < Região de Tombali > Carta de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Pormenor: posição relativa da povoação de Guileje, situada a cerca de 8 km da fronteira com a Guiné-Cronaki (a leste).

Infografia: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013). Todos os direitos reservados.

___________

Notas do editor:

(*) Simposium Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008) > Quinta-Feira, 6 de Março, na Assembleia Nacional Popular

Painel 4 > Guiledje: Factos, Lições e Ilações

(depoimentos e testemunhos de elementos da população, dignitários, testemunhos presenciais, régulos, ex-combatentes do PAIGC e ex-milícias africanas do Exército português)

Moderadora: Isabel Buscardini (Ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria)

9h00 - 9h30: Úmaro Djaló (Comande Militar do PAIGC) – A minha experiência de guerrilheiro e de comandante no Sul da Guiné-Bissau: achegas para a História de Guiledje.

9h30 - 10h00: Buota Na N’ Batcha (Comandante Militar do PAIGC) – A acção dos bi-grupos e dos corpos de Exército do Sul na guerra de libertação nacional: o caso do assalto ao aquartelamento de Guiledje.

10h00 - 10h30: Joãozinho Ialá (ex-guerrilheiro do PAIGC) – Memórias do Assalto ao Quartel de Guiledje, Gandembel e Balanacinho.

10h30 - 11h00: Francisca Quessangue (Enfermeira do PAIGC) – Os aspectos sanitários-logisticos do PAIGC no assalto ao quartel de Guiledje

11h00 - 11h30: Pausa Café

11h30 - 11h50: Fefé Gomes Cofre (ex-guerrilheiro do PAIGC) – O meu testemunho sobre o assalto ao Quartel de Guiledje.

11h50 - 12h10: Salifo Camará (Régulo de Cadique) – O papel das populações civis na guerra de libertação no Sul e no assalto ao aquartelamento de Guiledje.

12h10 - 12h30: Camisa Mara (ex-milicia do Exército português) – A vida no Quartel de Guiledje

12h30 - 12h50: Cadjali Cissé (ex-guerrilheiro do PAIGC) – A minha participação no Assalto a Guiledje

12h50 - 13h10: A designar (condutor) – A minha experiência no transporte de munições e mantimentos

13h30 - 15h00: Almoço (...)


(**) Vd. poste de 19 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P6020: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (16): Um dia de ronco, um lugar de (re)encontros, uma janela de oportunidades (Parte I)

(***) Último poste da série > 8 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12127: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (23): A placa toponímica "Parada Alf Tavares Machado" estava afixada na parede da messe de sargentos (Luís Guerreiro, Montreal, Canadá, ex-fur mil, CART 2410, 1968/70)

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25487: Notas de leitura (1689): Não há tesouro literário como este na Guiné-Bissau: uma criança, uma guerra, uma bicicleta (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Lê-se sempre esta joia e descobre-se mais um ângulo iridescente, este feliz acaso de escrever uma fábula que é capaz de iluminar o mundo pela inocência de uma criança que se transforma num estafeta da guerra, mas sempre sem perder de vista que soterrou a sua tão querida bicicleta, uma amizade inquebrantável. Aquela guerra de horrores inenarráveis não lhe subtraiu a alegria do sonho, o desejo de partilhar a felicidade com a malta fixe de Porto dos Batuquinhos, se bem que todos ficassem muito mais crescidos depois de tanto ódio e tanta destruição, danos incalculáveis na sua formação. E termina a fábula porque o sonho vai ser reavivado, tudo termina como numa ode triunfal: "Quando se sentou no selim sentiu-se de novo dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternindade".

Um abraço do
Mário



Não há tesouro literário como este na Guiné-Bissau: uma criança, uma guerra, uma bicicleta

Mário Beja Santos

Custa-me entender como esta obra não conhece reedição, em Portugal ou na Guiné-Bissau, não é um conto para crianças, embora o herói seja um jovem que se vê envolvido naquele pesadelo do conflito político-militar de 1998-1999, é uma fábula a quatro mãos, um escritor prodigioso e um desenhador exímio, Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira. Como escreve José Vegar na nota introdutória desta crónica de guerra para leitura dos adultos, o que aqui preside é uma luminosidade própria de crianças, a geografia e o tempo são brutalmente reais e ali o menino consegue manter vivo o seu mundo, a sua carga afetiva é uma lição para a humanidade.

O discurso encantatório enleia-nos naquela história que começa num domingo, dia de missa e futebol, de carne ao almoço e tolerância de ponto ao acordar, mas nesse dia explodiu uma guerra. Se é fábula, temos que saber se é de opulências ou de agruras redentoras, o melhor é começarmos por conhecer a família Sissé que vive em Porto dos Batuquinhos, na margem de um rio que a seca engoliu: “Vivia numa casa com paredes de cartão, telhados de colmo, alcatifa de terra batida. As camas eram esteiras que, enroladas durante o dia, serviam de cadeiras. A cozinha, bem no centro da palhota, não passava de meia dúzia de pedras calcinadas dispostas em círculo, a casa de banho, um buraco aberto no quintal. A única mobília era um calendário de Nossa Senhora de Fátima que a madrinha de Hussi ofereceu à mãe no dia do seu nascimento.” O pai de Hussi chama-se Abdelei Sissé, vai partir para a guerra ao lado do brigadeiro Raio de Sol. A mãe é dona Geca, e há três irmãos, todos mais novos do que ele. Ora, naquele dia de futebol em que o senhor do apito era o dito brigadeiro, primou pela ausência. Acontece que o brigadeiro se saturou das prepotências do comandante Trovão, o tirano da terra, juntou os veteranos na guerra colonial e partiram todos para a Guerra do Balão.

O pai Abedelei ordena à família que regressem à aldeia dos antepassados, logo se pôs a questão da bicicleta, descobrimos que Hussi tem uma bicicleta que fala, ele sossega a bicicleta que tem medo, enterra-a, prometendo que logo a guerra acabe a irá buscar. Lá se põem todos a caminho, as saudades da bicicleta são imensas, Hussi vai fugir, apresenta-se ao pai, este furioso, enfim, Hussi vai intervir no confronto. “Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante de cozinheiro. Aprendeu a cozinhar arroz de todas as maneiras e feitios, mas durante quase um ano o prato principal foi uma mão-cheia de nada. Não matou mas viu morrer. Conviveu com o cheiro nauseabundo dos cadáveres em decomposição, partilhou o dia-a-dia de combatentes com nomes estranhos como Capacete de Ferro ou Rambo das Facas, assistiu ao espetáculo dos abutres a depenicarem restos de corpos de mercenários estrangeiros, tropeçou em esqueletos de soldados que não tiveram direito a última morada. Caminhou entre os horrores de uma guerra fratricida com a mesma inocência com que antes pedalava na sua bicicleta pelas ruas da cidade de asfalto.”

E assim se arrastou a Guerra do Balão. O comandante Trovão acreditava que aquela guerra eram favas contadas, todos aqueles sublevados iam ser atirados à água, no seu círculo de cortesãos mentia-se sobre a realidade da guerra, houve mesmo quem se atrevesse a dizer que estavam empatados, o chefe de Estado-Maior deu explicações: “Nós controlamos a cidade do asfalto, o inimigo a cidade de terra. Quando conquistamos uma alfeia do litoral, eles tomam logo conta de uma no interior. Mandamos no mar, eles no rio. A frente norte é nossa, a leste é deles”. A fúria do comandante Trovão não tinha medida, fulminou o chefe de Estado-Maior com um tiro de pistola. Como tudo é fábula, não faltam bruxos, profecias, fala-se mesmo numa bicicleta que ajuda muito a causa dos sublevados, o comandante Trovão dá mesmo essa ordem, é preciso destruir tal bicicleta, pôr termo ao feitiço.

Até que num domingo, as forças do brigadeiro Raio de Sol fizeram um assalto ao Palácio, Trovão teve que fugir, Hussi assistiu ao fogo-de-artifício da artilharia, viu o Palácio ser pilhado, livros queimados, saqueado, o menino anda eufórico pela cidade, ele é a mascote dos revoltosos, a guerra de Hussi ainda não terminou, tem que pôr a sua bicicleta em funcionamento, o coração aperta-se quando ele vê a casa destruída. Teve uma visão, o talismã que colocara sobre as cinzas para proteger a bicicleta na altura da fuga deu-lhe o sinal onde devia cavar, não há mais belo reencontro neste arremedo de literatura infantojuvenil para gente que padeceu de uma guerra sanguinolenta, que deixou brechas ainda hoje por colmatar como este, Hussi vai cavando as entranhas da terra e conversa com a sua bem-amada bicicleta, emocionam-se, a bicicleta sempre soube que Hussi iria voltar.

E o final desta magia ou desta pérola da literatura luso-guineense é mesmo assim:

“Hussi e a sua bicicleta ainda tinham muito para falar. Era toda a conversa de uma guerra para pôr em dia. Havia algumas coisas boas mas sobretudo muito más para partilhar. À luz do dia, olhos nos olhos, sem transmissão de pensamento. Hussi limpou o retrovisor com o seu velho lenço amarelado, sacudiu o pó que asfixiava o cachecol do Barcelona, colocou a fitinha tricolor do outro lado do guião, ajustou os pedais com a sola das sandálias. Quando se sentou no selim sentiu-se de novo dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternidade.”

Dizem os autores que Hussi existe, nasceu em Bissau, de uma família pobre e tem três irmãos, andará hoje pela casa dos 35/36 anos. Insisto que não entendo como é que esta lição de vida, esta inocência tão resiliente não anda na boca do mundo, como fábula e como monumento literário. Coisas do destino – será?

Pedro Sousa Pereira e Jorge Araújo
Fotografia de João Francisco Vilhena no semanário “O Independente”, maio de 1999
_____________

Nota do editor

Último post da série de 3 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25474: Notas de leitura (1688): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (1) (Mário Beja Santos)