quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8864: VII Encontro da Tabanca Grande - 2012 (2): Inquérito para escolha da data e recolha de opiniões (2) (A Organização)

1. Decorre até ao próximo dia 15 de Outubro um inquérito para escolha da data do nosso próximo Encontro e outras opiniões que hajam por bem emitir. Como nas diversas eleições e referendos havidos, os portugueses são pouco participativos, não estranhamos que aqui também se note um número de respostas de longe inferior ao dos participantes nos Encontros da Tabanca Grande.

De realçar entre as 38 respostas recebidas, os camaradas que se propõem a organizar futuros Convívios (Carlos Pinheiro, Valentim Oliveira e Manuel Traquina) e algumas críticas, das quais apenas duas negativas (João Lourenço e Luís Rainha).

Quanto à data do Encontro, neste momento temos 21 de Abril de 2012 como a mais provável, já que é a mais votada (30,3%) entre as propostas. Para 45,5% dos votantes qualquer das datas é válida.

Achamos que o próximo Encontro se deva realizar ainda em Monte Real, e que lá, com calma, ouçamos as propostas dos camaradas que se propõem a organizar os próximos, quanto ao local, acesso, restaurante, hipótese de pernoita, ocupação de espaço até ao fim da tarde, ementa e preço (aproximados) de almoço com lanche incluído, etc.

Pode-se submeter a escolha definitiva dos presentes, agindo assim democrática e transparentemente. Se mais camaradas quiserem levar e apresentar propostas, estamos receptivos, como é óbvio.

Entretanto pedimos às pessoas que colaborem com as suas opiniões que não são vinculativas, até ao dia 15 de Outubro.




2. Comentário de Luís Graça, chegado à caixa de correio já este poste estava para sair:

Por mim, Monte Real, de pedra e cal. Mudar, porquê? Não vejo melhores argumentos. É equidistante, entre o norte e o sul, tem acessos de cinco estrelas. O hotel e restaurante são de quatro estrelas. A relação preço/qualidade imbatível. E a comissão organizadora (onde se inclui o Joaquim) tem, para mim, direito a "todas as estrelas do céu"...

Podemos fazer melhor? Mas, com certeza... O convívio prima sobre tudo, mas também podemos repetir a experiência do ano passado: uma pequena exposição fotográfica, uma sessão de autógrafos, um sessão de "slides" da última viagem à Guiné, um momento musical apropriado, dentro das limitações logísticas que o hotel nos impõe...

É preciso ocupar e mobilizar os nossos camaradas e amigos... A malta tem ideias... O encontro é (mas não só) convívio *a volta da mesa... Mas pode haver mais iniciativas para o fim de semana...

Opto pelo 21 de Abril... A 23, simbolicamente, faz o nosso blogue 8 aninhos de vida, e nessa altura pode já ter atingido os 3,5 milhões de visitas... Parabéns a todos vocês que estão no "back office" desta iniciativa, mantendo a chama viva... O meu aplauso, a minha solidariedade, a minha camarigagem... 
Luis Graça

Pela Organização
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 21 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8800: VII Encontro da Tabanca Grande - 2012 (1): Inquérito para escolha da data e recolha de opiniões (A Organização)

Guiné 63/74 - P8863: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (27): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte III) (Cherno Baldé)


URSS > Ucrânia > Kiev > 1987 > O Cherno Baldé, à esquerda, com mais dois colegas da Guiné Equatorial

Foto: © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados.


 Continuação do relato do Cherno Baldé [, hoje quadro superior da administração pública da Guiné-Bissau,] sobre as aventuras e desventuras do Chiquinho, enquanto estudante,  no país dos sovietes (1986-1989).


(3) A primeira viagem de comboio


A viagem para Kichinev  [, capital da Moldávia,] foi de comboio. Depois da viagem do avião, esta era uma nova descoberta não menos interessante. BLAGAT...BLAGAT...BLAGAT. Este som, provocado pelos veios de um velho e lento comboio, tinha ocupado os seus ouvidos durante toda a noite, povoando o seu sono inquieto.

Viajavam dez a doze pessoas por vagão, divididos em compartimentos, com camas individuais, o que, visto com a lupa de hoje, constituía de facto um grande luxo se comparado com as condições dos outros comboios, que viria a conhecer nas terras mais a oeste, fora do território da URSS.

Tudo decorreu conforme estava previsto. Receção na estação, distribuição de residências, roupas de frio, visita médica, salas de aulas; era simplesmente impressionante a capacidade de organização das estruturas que os recebiam. Tudo estava planeado ao mínimo detalhe, uma máquina a perfeição como só o espírito europeu sabe criar. Quando chegavam num sítio já estava alguém à espera para recebê-los e conduzi-los, a seguir, para o local indicado. Se o comunismo era assim, então, de certeza que podiam contar com ele, dizia para com os seus botões. Viva o Lenine!... Viva a revolução comunista!...

Bem, depois passou por uma pequena afronta durante a inspeção médica que teria diminuído um pouco o seu entusiasmo. Que fosse obrigado a entregar as suas fezes e urina já era um grande sacrifício e quase que um atentado à sua dignidade de homem africano, agora pediam que tirasse toda a roupa que cobria a sua nudez, assim como veio ao mundo, diante de uma mulher.

Ele ficou aterrorizado, outros gracejavam. É bom que conste, também, que só um espírito europeu, talvez comunista, era capaz de exigir uma coisa semelhante a um indígena africano que tinha passado toda a sua vida sob uma dupla educação conservadora, tradicional e muçulmana. Mostrar tudo!?... Subahaanallai!

As enfermeiras que procediam ao exame não queriam saber de tabus, ele tinha que mostrar-lhes tudo. O Chiquinho recusou e, por isso, foi acantonado ao lado, dando lugar aos outros menos envergonhados. Quando finalmente cedeu, pegaram no seu sexo,  ou do que dele restava, virando e revirando-o em todos os sentidos como que para mostrar a insignificância do seu falso sentido de pudor.

Apanhado de surpresa, o desgraçado do sexo, centro nevrálgico de pudor, de timidez mas também de orgulho e da força masculina, ficou tão retraído e minúsculo ao ponto de ser ridículo. Para o Chiquinho tinha sido uma experiência decepcionante e, para aquelas curiosas senhoras de bata branca também, mas por motivos diferentes.

Uma das enfermeiras, pegando numa ferramenta que parecia um martelo, bateu ao de leve nos seus joelhos. De seguida, pegou no seu braço esquerdo, depois o direito à procura de uma veia saliente donde poderia retirar sangue para as análises. Deu trabalho encontrar a veia e no fim, dirigindo-se ao tradutor, aconselharam o Chiquinho a pegar numa enxada e ir trabalhar a terra todos os dias a fim de desenvolver os seus músculos de bebé. Com tais características, certamente que não se enquadrava na classe dos trabalhadores, um conceito caro aos comunistas.

As aulas começaram de imediato. Uma primeira fase de aprendizagem da língua onde, diga-se de passagem, se utilizava um método tão eficiente quanto brutal, em salas especiais de audição linguofónicas durante horas intermináveis. Após quatro meses de aulas intensivas da língua russa, quando o Chiquinho se sentava para escrever uma carta em português já não encontrava as palavras certas nos espaços onde estavam antes.

Ele percebeu então que o método de ensino utilizado provocava este fenómeno de erosão cerebral. Percebeu também que, apesar das graves insuficiências de instrução escolar no seu país, faziam figura de avantajados diante de outros estudantes vindos de países ditos amigos da URSS, confrontados com profundas mudanças políticas, sociais e/ou de orientação ideológica como o Congo, de Marien N’gouabi, a Etiópia,  de M. Hailé Marian, a Nicarágua, Laos, Camboja, entre outros. Alguns, como era o caso do meu amigo Peruano, Aníbal, não teria feito nem o ensino primário e tinha que lidar com o teorema de Pitágoras ou dissecar o capitalismo com as pinças de “O Capital” , de Karl Marx.

Passados alguns meses, o Chiquinho começou a sofrer de um estranho mal-estar físico, com sintomas de uma espécie de nostalgia aguda acompanhada de uma sensação de vazio profundo provocado, provavelmente, pela desoladora visão da natureza morta à sua volta, pela omnipresença do frio e pela escassez da luz solar.

Um dia, recusou-se a ir às aulas, pronto. Só queria que o deixassem dormir aconchegado no calor do quarto e dos cobertores. Impossível. A sua professora de língua russa, a meiga e simpática Victoria Aleksandrovna, veio falar com ele para dissuadi-lo. Juntamente com a professora, tinha vindo também a Vika, uma jovem moldava, sua afilhada, que ela o tinha apresentado. Parecia ter encontrado o remédio certo. A Professora, ao menos, compreendia o mal que o clima provocava nos africanos e estava habituada a resolver estas situações de crise emocional à sua maneira. As suas palavras calmas e serenas mobilizaram o Chiquinho ao ponto de fazê-lo desistir da greve.

Não obstante, a primeira vítima desta sua estranha doençaa seria ela, Victoria Aleksandrovna. Num dia normal de aulas de língua russa, após três dias sucessivos a falarem do mesmo assunto, o Chiquinho não tinha conseguido conter a sua irritação e tinha afirmado, em voz alta, que já estava farto das aulas que só falavam de Lenine. Lenine na Suíça!... Lenine em Petrogrado!...Lenine em Moscovo!... Poça,  vida!

Para a grande surpresa de todos, que esperavam ouvir uma repreensão muito dura da parte da professora, ela simplesmente desatou a chorar,  feita uma criancinha, revelando as linhas da idade que começavam a aparecer na sua linda cara de velha solteirona.
- Teria ele mexido no tabu do espírito sagrado da União Soviética e Empiriocriticista?...

O Chiquinho não sabia e, na verdade, nem queria saber. Não era aquela a manifestação do espírito comunista que esperava encontrar, depois de toda a propaganda sobre o comunismo científico e a dialética marxista que tinha lido durante anos. Era simplesmente incrível como um espírito tão crítico, tão pragmático e oportunista como Lenine teria podido parir (produzir) uma mentalidade tão seguidista e apática, um charco de água parada. Para ele já era o bastante para perder a razão.

Depois das aulas mandaram-no chamar no gabinete do Reitor para interrogatório. O que no lhe surpreendeu, pois já estava prevenido pelos mais velhos de que uma provocação destas podia valer a expulsão.
- Com que então, estava farto de Lenine!?...

Quiseram saber, entre outras coisas, a profissão dos seus pais. Ele disse-lhes a verdade, que a sua mãe era camponesa e seu pai comerciante. De filho de comerciante, certamente, terão deduzido que era da pequena burguesia, logo reacionário, anticomunista. 

“Autant mieux” [, tanto melhor, em francês], pensava ele. Se o mandassem de volta, até agradecia, maldito clima. Desde que o inverno começara, ele não conseguia andar direito, os pés gelavam, escorregava e caía com muita frequência, não raras vezes tivera que andar de gatas para descer ou subir nas encostas, embrulhado num enorme paletó e botas de tropa que mal conseguia arrastar com os seus pequenos pés de criança. Deslizar em cima da neve era um exercício delicado para um homem dos trópicos. Nunca poderia imaginar que pudesse sentir tanta saudade dos raios do sol e do chão firme e vermelho da sua terra natal.

O reitor foi brando com o Chiquinho, quase simpático. Provavelmente, os ventos da mudança (**) já estavam a soprar. Não o mandaram embora e, ao invés, redobraram a atenção para com ele, convidando-o para excursões e visitas culturais. Foi durante esse período que o levaram ao teatro da cidade para assistir ao ballet de Lebedinoye Ozero (O lago dos cisnes),  de Tchaikovsky.

Extraordinário!... Sem o saberem, tinha sido a melhor prenda que lhe poderiam oferecer. Tratava-se de uma interpretação poética e musical de envergadura universal, executada num cenário de sonho, animada com uma cativante variação de estilos e ritmos. A dança dos cisnes, a dança polaca, húngara, russa, espanhola. Tempo de valsa, allegro, allegro moderatto, allegro vivo. 

Ao contrário da maioria dos seus colegas, tinha passado a melhor noite desde a sua chegada à União Soviética. Aconteceu naturalmente. Tchaikovsky constituiria assim o primeiro passo e a porta de entrada para a poesia e a música clássica russa e europeia.

___________________

RASSIA

Eu fui a Rassia
Para ler poesia,
Cheguei no Outono,
O maldito nevoeiro
Que mudou o sentimento;
Acordei no inverno
Quando a terra,
A Ukraina inteira,
Não era beleza para sedução,

O mar de lágrimas, eu vi,
Deste povo que nunca chorou,
As vítimas isoladas
Porque justamente vitimadas,
O regresso doloroso, eu vi,
Desta gente que nunca partiu.

Eu fui a Rassia
Para ler poesia
Adorei ECENIN e TSVETAEVA
PUSHKINE e AKMATOVA
Em toda a m+istica e gratidão,
Em toda a dor e solidão,

Eu fui a Rassia
Onde a beleza de forma radiante
Acompanha a rudeza de gente arrogante
Ha...! POLTAVA!...
Ha...! SMOLENSK!...
Ha...! TCHORNOBYL
E as vossas lavras?
E as vossas lágrimas?
E KANIEV TCHERKASSY?
E TARAS SEVTCHENKO?

“Dumi moi...”
“Dumi moi...”

(Viagem pelo Dnepr/Kiev-Kaniev, Abril de 1989)

Notas de C.B.: 

Rassia=Rússia; Ukraina=Ucrània; 
Ecenin+Tsvetaeva+Pushkine+Akmatova=Poetas Russos do virar do sec.XIX/XX; Poltava+Smolensk+Tchornobyl=Regiões e localidades Russas e Ucranianas, teatros de batalhas sangrentas e de tragedias humanas; 
Tcherkassy+Kaniev=Região e localidade histórica e cultural ucraniana ligada ao maior poeta ucraniano de todos os tempos, Taras Sevtchenko [1813-1861]
“Dumi moi...”= Pensamentos meus...= expressao poética de Sevtchenko num poema da sua coletânea Kobazar, o Bardo.
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Estava de novo apaixonado, o Chiquinho, desta vez, por uma mulher do Iémen do Norte (ou era do Sul?), sem hipótese de aproximação. Ela era casada e vivia com o marido num quarto isolado. Tinha tanta inveja do homem que queria matá-lo. Foi, talvez, a mulher mais bonita que os seus olhos alguma vez tinham visto. 

Mas, ou era o sentido universalmente humano que o guiava ou era a tolice de um coração desorientado, pois no meio de tanta diversidade étnica e cultural, tinha que apaixonar-se logo por uma mulher árabe, com a carga de desprezo secular que estes beduínos do deserto nutrem pelos negros. 
 - Acorda,  preto!.. - Apetecia dizê-lo. Era mais um daqueles amores platónicos, impossíveis, destinados a colmatar o vazio do seu coração. O frio agudizava o seu sentimento de solidão. Começou, assim, a criar o hábito de deambular sozinho pelos parques da cidade na secreta esperançaa de encontrar, numa viragem qualquer, a sua europeia de cabeleira reluzente, a promessa de um destino que o empurrava para o desconhecido. 

No entanto, ainda tinha muitas questões sem resposta. Por exemplo, por onde a pegaria?...Pela mão, no braço ou por cima dos seus ombros?... Seria capaz de adivinhar seus sentimentos encarando os seus olhos azul-marinhos ?.. O que lhe diria, e como lhe diria?...Contar a verdade ou mentir descaradamente sobre a sua vida como faziam alguns colegas para melhor seduzir?... Na sua terra natal ouvira dizer que a mulher conquista-se com a mentira e mantem-se com a verdade. E para os europeus, seria o mesmo?... Tinha muitas duvidas e uma certeza, a certeza de que a amaria muito, dentro do seu coração.

Com a chegada da primavera, o Chiquinho começou também a recuperar a boa disposição mental e fez mesmo parte de um grupo de estudantes que, vestidos de trajes multicolores, ensaiavam a dança tradicional moldava para apresentar em palco, para mostrar a integração cultural dos africanos. Não resultou tão bem assim, tecnicamente falando, mas permitiu apertar e acariciar as partes arredondadas das colegiais ainda adolescentes, recuperando assim um pouco da sua jovialidade e amor próprio. 

A sua amiga, a Vika, parecia gostar dele, mas nunca dizia nada, limitava-se a olhar para ele e a sorrir. Também ele sorria, dividido entre o desejo de seduzi-la e o medo de enganá-la. Pode-se mentir a quem se ama?... O Chiquinho ainda vivia no mundo em que um homem era incapaz de transformar o mundo com o enredo das palavras dúbias, enviesadas, entorpecentes como a morfina.

Em finais de Junho de 1986, terminaram os exames e muitos estudantes foram a Moscovo tratar de vistos nas embaixadas para viajar aos países do ocidente. Ele recebeu o convite de um irmão que era estudante em Lisboa, mas ainda não queria afastar-se muito do universo que queria integrar e também da posibilidade de aproximar-se da Vika. Todavia, a menina com os seus cabelos cor de trigo, não correspondia muito à imagem da europeia dos seus sonhos. 

Adiou a visita para o ano seguinte. Entretanto a expetativa da viagem aos paises do ocidente fazia furror entre os estudantes estrangeiros, particularmente nos congoleses que sonhavam com as luzes de Paris e não escondiam o seu entusiasmo. Lisboa era o destino preferido dos guineenses e angolanos.

O Chiquinho, aspirante comunista e de altos valores, não compreendia porque razão os estudantes eram tão atraídos pelo ocidente, atitudes que ele considerava como subproduto da mentalidade neocolonial e servil. Para ele, era mais importante a apropriação da doutrina marxista-leninista, em especial o pilar da economia política que encerrava as premissas para a verdadeira libertação dos povos do terceiro mundo. 

Mais surpreendido ficou ainda quando viu a avidez com que os próprios soviéticos consumiam os mais insignificantes produtos trazidos do ocidente pelos estudantes em contrabando, bugigangas de um regime em decadência. Afinal, as férias dos estudantes escondiam outras realidades que, não sendo  políticas nem filosóficas, contribuíam para minar os alicerces de base sovietica e comunista.

(Continua)

[ Revisão / fixação de texto: L.G.]

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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

 4 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8856: Memórias do Chico, menino e moço (25): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte I) (Cherno Baldé)

5 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8861: Memórias do Chico, menino e moço (26): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte II) (Cherno Baldé)

 (**) 'Ventos de mudança' que se traduziam nas célebres expressões russas  Glasnost (гла́сность, transparência) e  Perestroika (Перестройка, reconstrução, reestruturação) introduzidas no vocabulário político dos russos, em 1985, pelo governo de Mikhail Gorbachev, num processo de reforma que conduziria em 1989 ao fim da guerra fria e ao desmantelamento da URSS.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Guiné 63/74 – P8862: Memórias de Gabú (José Saúde) (8): Guiné em tempo de paz: Visita a Madina Mandinga


1.   O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem para esta sua série, que, segundo ele me segredou, será parte de futuro um livro com o mesmo título. Também nos enviou mais 3 fotos do seu álbum de memórias, onde facilmente se deduz a sua amizade e empatia com os putos de Madina.

GUINÉ EM TEMPO DE PAZ: VISITA A MADINA

PASSEIO SEGURO À BEIRA DO ONDULADO CAPIM

Foi um dia memorável! Uma visita amigável à 2ª Companhia do BART 6523 sediada em Madina Mandinga, apresentou-se como uma viagem antes impensável. As estratégias no terreno estavam definidas. O PAIGC e a nossa tropa haviam estabelecido princípios de entendimento e o medo da picada, e a sua imprevisibilidade, antes constatado, oferecia agora uma segurança absoluta.

Foi a um domingo e já em tempo de Paz que um grupo da CCS, em Nova Lamego (Gabú) e a Companhia destacada em Madina, combinaram um jogo de futebol. Dois unimogues com malta que se entregava entretanto a brincadeiras pontuais, e eis-nos perante o grupo disposto a desbravar conteúdos de uma picada onde a ondulação do capim se misturava com árvores de grande porte nascidas na exuberância da densidade do mato.

O resultado final não interessou, tão-pouco ficou registado nas minhas memórias. Não interessa! O único objectivo foi o amplo convívio constatado. O festim decorreu de forma cordial, trocaram-se impressões, comentou-se o último ataque a Madina, apontou-se para o sítio das valas que serviram de protecção aos ilustres soldados e recordou-se os locais onde os foguetões haviam caído. Pelo meio de dois dedos de conversa umas fotos para mais tarde recordar.

Dessa viagem, com o pessoal completamente dispensado das G3, bazuca, ou do morteiro 60, ficaram momentos inolvidáveis passados entre camaradas de armas que contemplavam então a Paz agora sentida em toda a largura do terreno. Recordo, que a dita viagem entre as duas populações distavam cerca de 20 kms. Todavia, os quilómetros de picada assumiam-se como um osso duro de roer. Lembro que o percurso dividia-se entre o asfalto (alcatrão) e terra batida.

Revivendo esse já longínquo convívio em terras da Guiné, recordo agora a forma desinteressada como fomos recebidos pelos ilustres anfitriões. Uma recepção extraordinária, uns chutos numa bola já defeituosa, um almoço bem regado, uma cavaqueira que se arrastou ao longo da tarde, uma mesa cheia de bebidas e, finalmente, as despedidas aos companheiros de Madina que determinou, como foi evidente, o nosso regresso a Gabú.

O Cap José Luís, sempre simpático, congratulou-se com a visita, mas foi com o 1º Sargento Brito que dissequei os momentos mais ávidos sentidos pela Companhia ao longo da comissão em Madina. A “talho de foice”, e com toda a justiça o digo, que o 1º Sargento Brito era, e é certamente, um homem de se lhe tirar o chapéu. Gostei dele!

Soube, recentemente, através do ex Alferes Miliciano António Barbosa, um camarada de armas que integrava o nosso BART 6523 e que pertencia à 3ª Companhia sediada em Cabuca, que o então 1º Sargento Brito está, actualmente, aposentada como Major. Confesso que me congratulo por saber tão feliz notícia. Um abraço, e bem grande, meu Major. A vida, por norma, sorri-nos quando dentro de nós existem factores humanos que suplantam o nosso querer, a nossa vontade e o nosso ego.

Na “minha guerra” – Operações Especiais/Ranger, Lamego – evocava-se, com vaidade absoluta e estilo próprio, um grito (com a devida vénia e respeito) que arrepiava o mais incrédulo efebo da então apelidada tropa “macaca”: “Vossa Excelência, meu Major, dá-me licença que evoque o seu bom nome para o colocar no meu Quadro de Honra?”. Creio, com certeza, que a resposta do meu Major será: SIM!

FOTOS


Um brinde com whisky entre o então 1º Sargento Brito, hoje Major, e claro, eu, José Saúde. As tabancas, ao fundo, retratam realidades num espaço distante onde as fortes e medonhas trovoadas se cruzavam com um cacimbo atroz e um arco ires que se sobrepunha a um horizonte belo mas sempre carregado de incertezas. O calor sufocante hostilizava, também, as nossas vidas.

Três meninas, hoje senhoras, de Madina


Com um “mascote” apadrinhado nessa célebre visita a Madina. Atrás o Cap José Luís (de costas) e o Alferes Miliciano Santos, da minha Companhia.

Um abraço a todos os camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

1 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 – P8846: Memórias de Gabú (José Saúde) (7): “Piriquitos” exploram o centro “nevrálgico” da urbe guineense

Guiné 63/74 - P8861: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (26): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte II) (Cherno Baldé)

 
 E 
Kichinev, Moldávia, ex-URSS > Dezembro de 1985 > O Cherno Balde (à esquerda)  e um outro bolseiro. peruano,  de nome Aníbal...

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados.



Continuação do texto do Cherno sobre as suas memórias de estudante na ex-URSS (*)

2.
2.  Moscovo,  escala de boa esperança

Em 1985, debaixo de uma chuva torrencial do mês de Agosto, [o Chiquinho e outros bolseiros] saíram finalmente para o Aeroporto a fim de apanhar o avião da Aeroflot. 

Na despedida a Irmã Beatriz ofereceu-lhe uma pequena bíblia de cor azul para lembrança da sua amizade e disse-lhe que, dentro em breve, iria ter a oportunidade de conhecer um pais do primeiro mundo. 

Chegaram a Moscovo no dia seguinte, com escalas em Nouakchot (Mauritânia), Casablanca (Marrocos) e Budapeste (Hungria). Do Aeroporto levaram-nos para uma residência de estudantes onde já se encontravam centenas de outros bolseiros vindos dos quatro cantos do mundo. 

Havia mais de 24 horas que não dormia, mas mesmo assim não conseguia pregar olho. A alegria e a curiosidade da descoberta de um novo mundo constituíam um lenitivo que suplantava tudo o resto. Sob o efeito contagiante da alegria, tinha saído para o corredor, passado ao jardim, depois à rua. Queria contemplar, queria absorver tudo, queria abraçar Moscovo e seus habitantes metidos nos seus trajes sombrios num dia enublado com brisa suave de fim de verão. 

Foi assim que ele se deixou levar num passeio pela cidade, indo de autocarro até uma estação do Metro de Moscovo donde penetraram por meio de escadas rolantes compridas descendo, descendo, para dentro das entranhas da terra, gritando uns aos outros, sob o olhar atónito de alguns utentes que se içavam para cima no sentido inverso. 

Não foi difícil perceber que os silenciosos moscovitas faziam o possível para evitar o contacto com o grupo dos jovens africanos, inebriados com a sua bem expressiva e barulhenta maneira de falar, gesticulando ora à direita ora à esquerda. E, provavelmente, teriam um cheiro diferente, peculiar, no meio dos brancos em seu habitat natural. 

Eram recordações antigas que afluíam à mente misturando-se na indiferente algazarra a entrada e a saída do Metro que, de resto, era de fácil orientação, pois circulava em forma de anel à volta do centro da cidade e depois se expandia como uma teia de aranha cobrindo as diferentes zonas da grande megalópole: Paveletskaya, Aktyabrskaya, Krasnapresyenskaya, Kamsamolskaya... O Metro de Moscovo não tinha limites de espaço nem de tempo. Acabámos por voltar à nossa residência, já era noite. 

Sílvia, a boliviana, a primeira paixão

O grupo do Chiquinho ficou dois dias em Moscovo, o tempo suficiente para preparar a sua afetação. O único acontecimento relevante nesses dias da sua primeira passagem por Moscovo foi uma breve aproximação com uma boliviana,  de nome Sílvia. Bastaram alguns segundos para tocar o seu coração. Baixinha, cabeleira farta e reluzente, sorriso aberto, parecia uma rapariga lusa da geração mais antiga, daquela que não escondia a cor dos seus cabelos de origem árabe. 

Apaixonou-se pelos seus olhos grandemente abertos debaixo de umas sobrancelhas pretas a condizer. No seu rosto largo vislumbravam-se feições mestiças, amazónicas. Aproximou-se dela, falou em português, ela sorria, mas parecia não perceber. Não sabia nada da Guiné-Bissau, e provavelmente, não sabia mesmo nada de África. Alguém a chamou, ela foi e não voltou. O voo de um pirilampo na escuridão da noite. Nunca mais voltaria a encontrá-la. Sílvia...  

Apaixonar-se por imagens fugidias, amores impossíveis, era um defeito natural que o Chiquinho trazia da sua infância e adolescência, feitas de miséria e de mil privações. Introvertido e tímido, nunca tivera muito sucesso com as meninas, limitando-se a consumir com frugalidade o que via ou ouvia dos colegas. 

A brusca ausência da Sílvia fez reavivar os velhos fantasmas do antigamente que, como um balde de água fria, fizeram descer a pressão interna que embriagava os seus sentidos, fazendo sentir o cansaço e fome. 

Mais tarde saberia que a bonita Sílvia assim como a maioria daquela geração de estudantes latino-americana, amiga da farra e da boa comida,  detestava, no entanto, o ofício de cozinhar. Nessa altura agradeceria a Deus e à sua estrela de sorte, pois era de admitir a possibilidade de ser cozinheiro por um dia sim, mas toda a vida, não. 

 Colocado em Kichinev, Moldávia, para frequência da fase preparatória

Do seu grupo de mais de quarenta jovens, Moscovo só aceitou receber dois, os restantes foram repartidos por diferentes cidades da imensa URSS. Pelas informações dos antigos estudantes, sabiam que as Repúblicas da Ásia Central e do Cáucaso eram de evitar a todo o custo, devido à intolerância racial para com os pretos, numa região fortemente influenciada pela civilização Árabe e Turco-Otomana.  

Ao Chiquinho, calhou a cidade de Kichinev, capital da Moldávia, uma pequena porção de terra situada entre a Ucrânia e a Roménia, integrando um grupo de mais de cinquenta jovens de diferentes origens, para a frequência da fase preparatória. 

Mais uma vez, o Chiquinho estava com a sua estrela de sorte, pois não iria viver no meio dos bárbaros do Cáucaso nem ficaria na Universidade Patrice Lumumba onde a maioria dos estudantes era africana. Nem que fosse por algum tempo, ele queria ficar longe de África e dos africanos. 


(ix) Namorar, sim, mas não casar com uma...tubab

Na verdade, o Chiquinho alimentava um sonho secreto e antigo, nascido não sabia donde, de namorar uma europeia. Sim, só namorar. A sua imaginação, sendo muito ousada a este respeito não se atrevia, todavia, a pensar no casamento. “Casar com uma tubab!?... Hééé Tchernô!!!...” Era o eco da voz discordante da sua avó que lhe perseguia.[ Avó materna, Mariana Baldé, Fajonquito, Sancorlã, 1900-1993; foto à esquerda].

Ela conseguia adivinhar todas as suas intenções e, armada de verdades e razões ocultas da velha sabedoria fula e africana, denunciava os aspectos mais desviantes da sua educação infecta. “A mulher tubab é uma senhora e uma senhora não é uma mulher”, dizia ela. O Chiquinho não comprendia esta relação ilógica do tipo: α=β, β≠α. Talvez não casasse. 

Na verdade, também não conhecia nenhum antecedente de um fim feliz nas relações preto/branco e vice-versa. As histórias eram muitas e antigas num caminho ainda estreito, semeado de armadilhas reais ou imaginárias. 

Ainda assim, ele queria uma europeia. A vida não é um cenário de jogo onde se ganha e se perde!?... Pensava, teimosamente.

(Continua)

[ Revisão / fixação de texto: L.G.]

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Nota do editor:

 (*) Vd. poste anterior da série 4 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8856: Memórias do Chico, menino e moço (25): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte I) (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P8860: O Nosso Livro de Visitas (117): Samuel Vieira, guineense da diáspora, engenheiro informático no Brasil, elogia o nosso blogue


1. Mensagem de um guineense na diáspora, Samuel Vieira, com data de ontem:

De: Samuel Vieira
v_samuel2003@yahoo.com.br


Data: 4 de Outubro de 2011 18:07


Assunto: Elogiar o vosso trabalho não tem limite para um povo que valoriza sua história!

Prezados,

Sou Samuel Vieira, natural da Guiné-Bissau, residente no Brasil. 

Sou formado em Ciências da Computação (Engenheiro Informático,  em Portugal) e hoje trabalhando como Gerente de Tecnologia de Informação da Motoshop.


Possuo um blogue: http://www.djemberem-samuel.blogspot.com/ onde criei um link para que grande parte dos visitantes do meu blogue pudesse também fazer um passeio pelo vosso blogue:


http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2011/10/guine-6374-p8856-memorias-do-chico.html 

para conhecer histórias fantásticas de alguns guineenses como esta história maravilhosa vista nessa página que é do Cherno Abdulai Baldé - Chico de Fajonquito.


Continuem esse trabalho maravilhoso que encanta os guineenses e faz reviver histórias de personalidades diferentes que passaram ou vivem na Guiné-Bisssau.

Um abraço fraterno,

 Samuel Vieira
(Analista de Sistemas)

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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8739: O Nosso Livro de Visitas (116): Ex-Alf Mil Orlando Silva, CCAÇ 3325 (Os Cobras), Guileje e Nhacra, 1971/72

Guiné 63/74 - P8859: Notas de leitura (283): Tarrafo, de Armor Pires Mota: censura e autocensura, em tempo de guerra. Cotejando as edições de 1965 e 1970 (Parte II) (Luís Graça)




 Excerto de Tarrafo, de Armor Pires Mota (1ª edição, Aveiro,  1965), p. 127. Este título foi substituído por "É com ferro estrangeiro", na 2ª edição (Braga, 1970), p. 192.


Continuação do poste P8830 (*):

1. Do livro de crónicas sobre a guerra colonial na Guiné,  Tarrafo, da autoria de Armor Pires Mota, há duas edições: a primeira, de 1965, logo de imediato posta fora do mercado, pela polícia política de então; e uma “2ª edição, autorizada” (sic), de 1970.

Possuímos, da 1ª edição, um exemplar fotocopiado, provável cópia de um exemplar autografado, pertencente à Biblioteca do Seminário de Aveiro (de que o autor foi aluno) . Tem, além disso, diversas páginas com o carimbo “Confidencial” , além de cerca de um centena de parágrafos e frases sublinhados, possivelmente com ordem de eliminação ou sugestão de correção.  

Segundo o próprio autor, são marcas da PIDE, como ele próprio escreveu ao Beja Santos:

" (...) Finalmente, fiz seguir os livros, entre os quais o Tarrafo. Esgotado que está, envio-lho fotocopiado, um dos exemplares 'vistos' pela PIDE. É o único que tenho e que me veio às mãos quase por milagre. APM"

Possuímos, por outro lado, na biblioteca da Tabanca Grande,  um exemplar da 2ª edição (1970). Cotejando as duas versões, verifica-se que o autor eliminou todas as referências ao nosso armamento e equipamento, por razões supostamente  de “segurança militar",  impostas pelos "censores" (por exemplo, caça-bombardeiro T-6, espingarda automática G-3, rádio transmissor AN/PRC 10)… 

O mesmo se passa com alguns topónimos e datas, referentes à atividade operacional da CCAV 488, a que pertencia o Alf Mil Cav Pires Mota… E muitos dos parágrafos e frases assinalados com marcas dos "censores", no exemplar da 1ª edição, foram eliminados ou, no mínimo, revistos na versão de 1970 (publicada pela Pax Editora, de Braga).

Na I parte deste nosso texto de "notas de leitura" (*), vimos, a título de amostragem, e num primeiro resumo, que os censores em tempo de guerra fazem questão de esconder, escamotear ou ignorar, por exemplo, certas situações sociais de miséria que eventualmente poderão ser exploradas pela propaganda inimiga, tanto no plano interno como a nível internacional (por ex., as crianças de Bissau, a prostituição no Pilão, a fome de mulheres, crianças e velhos no mato)…

Estupidamente ou não, os censores querem por outro lado suavizar a própria violência da guerra (e o realismo dos combates), incluindo o comportamento dos combatentes debaixo de fogo… Sem que se saiba exatamente o que vai nas suas cabeças, preocupam-se aparentemente com o moral da retaguarda, procurando de algum modo subestimar ou sub-valorizar a força do inimigo...Aconteceu historicamente em todas as épocas e em quase todas as sociedades...

Referências à atividade operacional e a agressividade do IN, são eliminadas ou suavizadas na 2ª edição deste "livro de crónicas". Por exemplo, títulos como aquele que se reproduz acima ("Cem casas de mato", p. 127, 1ª edição) são inadmissíveis aos olhos dos "censores"... E na edição de 1970, o autor é obrigado encontrar um título mais neutro: "É com ferro estrangeiro" (referência à origem do material de guerra apreendido pelas NT, de diversa proveniência: 1 metralhadora Bren BK1, 1 pistola metralhadora Thompson, 2 carabinas Mosin Nagan)...

O autor relata, neste episódio, o assalto a (e a destruição de) um acampamento IN, em Fambantã, no setor de Farim (se não me engano), a 6 de Março de 1965. As fotos da pág. 129, mostrando a destruição do acampamento, foram retiradas. Também se explora, por outro lado,  os pontos fracos do IN, mas isso não levanta obviamente qualquer objeção por parte dos "censores", bem pelo contrário (mesmo mantendo a menção às tais cem casas de mato): 

(...)"Tão grande acampamento [, cem casas de mato,]  causou-se admiração, de certo modo, porque de facto, eles não se moviam muito há uns meses para cá. Apenas nos roubaram algumas vacas que andavam na pastagem e tentaram atacar o quartel à bazookada, mas falharam os intentos, porque caíram numa emboscada montada pelos fulas, Além disso, estão com os azeites: uns querem como chefe de zona Mamadú Indjai [, mandinga, que será gravemente ferido na Op Anda Cá, no Sector L1, Bambadinca, em Agosto de 1969]; outros não. Que deem com a cabeça nas árvores, que se esfolem e se matem. Trará vantagens. Outra causa, que os leva a não se mexer muito, é a fome. Só têm uma refeição por dia, às 9.30. Depois cada um que se oriente com as raízes e frutos selvagens" (edição de 1965, pp. 128 e 130).

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Tarrafo (2ª edição, 1970): o dia a dia da guerra de contra-guerrilha, no T0 da Guiné, entre Junho de 1963 e Junho de 1965, contado pela primeira vez na primeira pessoa do singular, por um comandante operacional, alferes miliciano, da CCAV 488, natural de Oliveira do Bairro, região da Bairrada,  onde nasceu em 1939. Reprodução das palavras do autor na contracapa. Tarrafo (1ª edição, 1965) é já a promessa do grande escritor que depois se veio a revelar Armor Pires Mota.
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Veja-se também, na 1ª edição, o parágrafo, a páginas 21/22, sobre o que se passava em Mansabá, em Outubro de 1963, com a guerra do gato e do rato: os “bandidos” punham abatises na picada, durante a noite, as NT removiam as árvores cortadas durante o dia…

(…) “ Depois, as coisas continuaram na mesma com poucas variantes. Eles punham de novo, noite dentro, as árvores que nós tirávamos até ao meio dia e derrubavam ainda mais. O estendal começou a tornar-se verde e seco. E assim andámos a fazer este jogo, até que resolvemos nós derrubar todas as árvores à beira do caminho. Mas nem assim nos deixaram em paz muito tempo, fazendo rebentar debaixo das viaturas dois fornilhos e, emboscados, carregaram” (…) . 

A referência aos "fornilhos" também desaparece subtilmente na edição de 1970 (pp. 38-43). Em boa verdade, os "fornilhos" sempre foram,  no TO da Guiné, talvez até mais do que as minas, o tipo de engenhos explosivos que mais terror nos causavam...

A descrição de ferimentos nas NT, o sofrimento dos feridos,  e a imediata prestação de socorros, pelos enfermeiros, também eram situações a eliminar ou a suavizar… (p. 22). 

Por outro lado, nessa época, ainda a G3 tinha coronha de madeira e os nossos camaradas usavam capacete (p. 24).

São anos de brasa, esses, em que mudou profundamente a geodemografia da Guiné, posta a ferro e fogo: aldeias inteiras foram destruídas, Mombocó, Cai, Flora,. etc.; populações inteiras são deslocadas...  E em que não se perdoava, de um lado e do outro,  a traição ou não colaboração (pp. 32/33). A história do “agente duplo” Malan (, antigo guerrilheiro, feito prisioneiro, depois reabilitado e posto ao serviço das NT como guia) fica a meio caminho, ou seja, fica  por contar o seu desfecho, na 2ª edição (1970)…

(…) Malan enganou. Ninguém sabia até esse dia que ele era engajador. Levava bajudas às casa de mato para noites de orgia. Nem ninguém sabia que ele era informador também do outro lado e tinha um rádio escondido numa mala.
- Mim bandido… Tropa amigo. Perdão!
Mas ninguém lhe perdoou.” (p. 33).


2. Notável, entretanto, é a descrição da travessia da bolanha, a caminho de Flora, em Novembro de 1963 (pp. 35-36). O autor vai buscar memórias da sua infância, os sargaços da Ria de Aveiro, mas também as suas leituras de guerra, a Indochina, o “Amanhecer no Pântano” (p.36), do “grande [Jean] Lartéguy”, acrescenta ele, na 2ª edição (p. 62).

Outra referência literária é o Platero, da obra homónima (Platero y yo, 1927) do poeta  espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958),  no episódio “Um burro com sorte, Bissorã, 24 de Novembro de 1963” (p. 37/38).  Platero é a alcunha do burro, aprisionado em Fajonquito…

(…) “Gosto do meu Platero e, ao cair da tarde, de armas a tiracolo, vou dar-lhe de beber ao rio.
- Arre, bandido! Goss, goss… (p. 38)…

3. A terminar esta 2ª parte das minhas "notas de leitura" do Tarrafo, escritas em plenas férias de verão, convirá fazer o seguinte aviso:  não há aqui, da minha  parte, nenhuma crítica subjacente ao autor no subtítulo: "censura e autocensura em tempo de guerra"... Sou um simples leitor, apaixonado, complacente, atento, crítico, curioso...

Não escrevi crónicas de guerra nos jornais da época, como Armor Pires Mota... Podia tê-lo feito, embora me faltasse a motivação. E também não o fiz pela simples razão de levar a sério a existência e a omnipresença da censura, no meu país...  Escrevi cartas a amigos, a partir do TO da Guiné, que nunca cheguei a pôr na caixa do correio... Queria entregá-las pessoalmente, na altura das férias... Acabei por nunca o fazer... Também nunca escrevi aerogramas, porque achava que eram ou podiam ser facilmente censurados... E as relativamente poucas cartas, tranquilizadoras,  que mandava para a família, com fotos minhas, nunca falavam da guerra... Eu também fiz autocensura. L.G.



 Tarrafo, 1ª edição,. 1965. Indice da obra, pp. 157-158. Comparando com a edição de1970, há títulos que foram retirados ou substituídos. Outros foram acrescentados (em 197'0)


(Continua)

Lourinhã, Agosto de 2011

[ Texto redigido em conformidade com o Novo Acordo Ortográfico: L.G.]

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Notas do editor:

(**) Último poste da série > 3 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8850: Notas de leitura (282): Do Cacine ao Cumbijã, 67 Guiné 69, de Guilherme da Costa Ganança (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8858: Agenda Cultural (160): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (7): Rescaldo do dia 30 de Setembro de 2011

O nosso camarada Carlos Cordeiro (ex-Fur Mil At Inf CIC - Angola - 1969-1971), Professor na Universidade dos Açores, em mensagem do dia 3 de Outubro de 2011, enviou-nos algumas fotos da Conferência-debate do dia 30 de Setembro, integrada no ciclo "Os Açores e a Guerra do Ultramar – 1961-1974, história e memória(s)".

Caros e bons amigos,
Agradecendo mais uma vez a vossa generosidade no destaque que conferiram ao anúncio da conferência “Açorianos na Guerra do Ultramar: uma abordagem parcelar”, que apresentei na última sexta-feira, 30 do corrente, envio algumas fotos do evento.

Na minha comunicação, preocupei-me sobretudo em apresentar um panorama geral da participação dos açorianos nos 13 anos de guerra: Unidades mobilizadoras, número e destinos das Companhias e Batalhões, quantitativos aproximados de açorianos no Ultramar em cada ano, baixas, etc., tudo isto, naturalmente, acompanhado pela projecção de gráficos, quadros e algumas fotos.

Como se pode ver pelas fotos, a sessão foi muito participada, sobretudo por antigos combatentes, alguns acompanhados pelas esposas, mas também por outras pessoas interessadas e um número interessante de jovens alunos. O debate foi extremamente vivo, prolongando-se por cerca de uma hora e meia.

Como temos sempre referido no início de cada sessão, o período de debate não deve ficar circunscrito à temática específica de cada conferência, mas abrir-se também a outras questões e à(s) memória(s) individuais.

As comissões organizadora e científica têm já programadas novas sessões.

Um abraço amigo do
Carlos Cordeiro


A Prof.ª Doutora Gabriela Castro, Directora do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores, fazendo a apresentação do nosso amigo Carlos Cordeiro.

Carlos Cordeiro dirigindo uma palavra de agradecimento à sua Directora de Departamento.

Um aspecto da assistência.

Carlos Cordeiro na sua apresentação

Período de debate. O antigo Fur. Mil. CMD Paulo Teves (Angola, 1971-73) intervindo.

O Prof. Doutor Carlos Amaral, da Comissão Científica, dirigindo o debate.
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Notas de CV:

Vd. poste de 26 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8820: Agenda Cultural (158): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (6): Prosseguindo com o ciclo de conferências, haverá nova sessão no próximo dia 30 de Setembro de 2011, pelas 17h30 no Anfiteatro B da Universidade dos Açores

Vd. último poste da série de 28 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8829: Agenda Cultural (159): Sopros de vida, um livro de José Lemos Vale (José Eduardo Oliveira)