sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P530: Frutos Proibidos (Zé Teixeira)

Guiné-Bissau > Saltinho > A sobrinha do Mudé Embaló (1)
© José Teixeira (2005)

Com a minha preocupação em rever a Binta da Chamarra, gerei algum movimento nas mulheres de Sinchã Sambel. Ninguém me soube dizer o que era feita dela, mas apareceu o filha da outra a bater-se ao lugar, na ambição de vir a conhecer o pai e sacar algum.

No dia em que deixei o Saltinho, sei que a Awá de Mampatá, irmã da outra, a Binta Bobo, ia lá visitar-me. Só que eu saí de madrugada, mas fiquei com pena. Do pouco que conversei com a Dadá, mulher do Régulo, os filhos de brancos foram bem aceites e estão integrados nas comunidades locais.

Eu conheci mal a história da Binta da Chamarra. Quando fui colocado lá, já ela tinha engravidado e ido para Quebo. O Catarino (enfermeiro que esteve lá antes de mim) é que sabe bem da sua história e foi a pedido dele que a tentei reencontrar.

Em Empada havia uma mulher da raça papel que tinha um filho de branco e estava perfeitamente integrada na sua comunidade.

Em 1975, já em Bissau, o guinéu que nos tratou do embarque, era filho de branco e mostrou muito interesse em localizar o pai que, segundo ele, devia morar aqui em Leça do Balio. Parece que chegou a corresponder-se com uma irmã do pai, mas perdeu a ligação. Este jovem tinha um bom emprego e apenas gostava de conhecer o pai. Ainda tentei localizar o rastro, mas nos registos desta terra não existia ninguém com o nome que ele me deu.

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > O Zé Teixeira com um antigo milícia e a sua filha.
© José Teixeira (2005)

Creio que este também é um tema com muito interesse para o Blogue. Recordo apenas o que aconteceu em Mampatá. O Alferes, comandante do Destacamento, logo no primeiro dia que lá estacionamos, reuniu o pelotão e teve uma conversinha:
- Amigos, todos somos homens e aqui há muitas mulheres. Estamos aqui para voltarmos para a Metrópole e só o conseguiremos se não arranjarmos sarilhos... Eu não quero sarilhos de saias. Cada um que se desenrrasque como puder e souber. Porém se houver algum problema, eu serei duro, porque não aceito que um de nós possa pôr a vida de todos em perigo, por atitudes menos sensatas.

Foi mais ou menos isto o que o Alferes Costa Belo disse à sua gente. A relação durante seis meses foi excelente e, como já passou no blogue, eu até tive um milícia que me ofereceu a mulher para me pagar, pelo facto de ter enviado o pai para Bissau e assim lhe ter dado mais uns anos de vida.

Houve situações difíceis de ultrapassar. É que o raio das bajudas eram lindas como o sol, com um corpinho! Ai . . . está-me a crescer água na boca.

Um abraço
Zé Teixeira
__________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXIII: Estórias do Zé Teixeira (1): Dôtor, Bô ka lembra di mim ?

"Passados largos anos, após o regresso da guerra, recebi um telefonema do Dr. Azevedo Franco, meu querido amigo, médico, que fez grande parte da sua comissão em Buba. Tinha-lhe aparecido no Hospital o Mudé Embaló e não tinha soluções de futuro para o puto.

"O Mudé tinha-se iniciado, como ajudante de fermero, com onze/doze anos, na Chamarra, com o meu colega de Companhia, Jorge Catarino que lá se encontrava integrado no seu pelotão (...)".

Guiné 63/74 - P529: Estórias cabralianas (5): o Amoroso Bando das Quatro em Missirá

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Reguladodo Cuor > Missirá > 1969 > Aqui esteve destacado, com o seu Pel Caç Nat 63, o Alf Mil Art Cabral, em 1970/71 /(1)
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)


O Amoroso Bando das Quatro (2)

Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; hoje, advogado e professor universitário):

Nos Destacamentos em que vivi, todos eram bem recebidos, à boa maneira da gente da Guiné, cuja cativante hospitalidade foi muitas vezes confundida com subserviência ou portuguesismo.

Djilas, batoteiros profissionais, artesãos, doentes, feiticeiros, alcoviteiros, parentes dos soldados, visitavam o aquartelamento e às vezes ali permaneciam, fazendo negócios, combinando casamentos, tratando-se ou tratando, ou simplesmente descansando. Desconfio mesmo que alguns guerrilheiros terão passado férias em Missirá…

Uma regra porém, tinham todos de cumprir à chegada. Deviam apresentar-se ao Comandante, dizer quem eram e o motivo da visita. Claro que muitos mentiam, o que era irrelevante, pois o que interessava era o significado simbólico da apresentação, como expliquei muitas vezes aos que não concordavam com esta política de porta aberta.

Estávamos pois, habituados às mais estranhas personagens, mas ficámos agradavelmente surpreendidos, quando num dia de Dezembro, ao pôr-do-sol, entraram no quartel quatro trabalhadoras sexuais. Eram jeitosas fulas do Gabu que, respeitadoras da hierarquia, comigo combinaram os preços e as condições dos serviços, encarregando-me da cobrança.

Encontrando-se o Furriel Branquinho com paludismo e o Cabo Morais com dor de dentes, restavam apenas sete brancos, capazes de usufruir de tão inesperada benesse. Efectuados os pagamentos, começou a actividade, que eu previa satisfatória, mas que a curto prazo foi interrompida por alta gritaria.

Primeiro, irrompeu uma, dizendo ter sido enganada, pois cabo e furriel a queriam usar, com um só pagamento. Acontecera que o cabo substituíra o furriel na função, pensando que a mulher não repararia, esquecendo-se que o Furriel tinha um braço engessado, pormenor que logo a alertou. Furiosa, acolheu-se na minha cama, juntando-se à que lá se encontrava.

Ainda nem um quarto de hora passara, logo à porta do abrigo aparece outra, queixando-se do Cabo Rocha. Dizia ela que não era como as raparigas de Lisboa, que até no sovaco… Também esta se meteu na minha cama.

De seguida, surgiu a terceira afiançando que o Básico-Cozinheiro era suma bajuda, pois sangrava, sangrava. Claro, mais uma na minha cama.

Eis-me assim feito sultão, aconchegado entre as quatro, tranquilo e em Paz. Rei e súbdito, protector e protegido, entre seios e ventres, negros e suaves, nunca dormi tão bem.
De manhã partiram.

Quem as teria mandado, passou a perguntar todos os dias o Básico-Cozinheiro, sarado já o freio e louco de desejo.

Garanti-lhe ter sido uma oferta do Movimento Nacional Feminino. Convencido, sei que lhes escreveu, implorando uma repetição. Nunca lhe responderam. E o certo é que elas não voltaram…

© Jorge Cabral (2006)
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(1) Amigos e camaradas: Deixem-me hoje ser tendencioso: Quero confessar aqui, em público, que sou fã das estórias cabralianas, o que não significa menor apreço pela produção literária dos demais tertulianos... L.G.

Jorge: Da tua janela vê-se outra Guiné, outra guerra, outro mundo, os homens e as mulheres em carne e osso… O teu sentido de humor é único… Sou fã das tuas short stories… Cuida-me bem dessa mina literária… Eu sei que é uma técnica difícil… Quanto à tua carta (que eu pressupus aberta…), ela merece o meu aplauso e a minha total concordância (3)… Amigalhão, um abraço. Luís Graça

Sobre a pessoa do Jorge Cabral, vd. post de 17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXII: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Fá, 1969/71)

(2) Vd. posts anteriores:

21 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCIII: Bendito Cabral, entre as mandingas de Fá e as balantas de Bissaque

5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...

"A mulher do Major e o castigo do Cabral

"Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso (...)

Guiné 63/74 - CDXXII: Estórias cabralianas (2): rally turra ?

"Numa tarde de tédio convenci o motorista da viatura existente em Missirá, um humilde Unimog, a dar um passeio. Pretendia visitar o Enxalé, seguindo pela estrada de Mato Cão, pela qual não passava qualquer veículo há muito tempo.

"Progredimos alguns quilómetros, e perto de S. Belchior, ouvimos tiros, pelo que retrocedemos, perdendo no regresso um jericã (...)"

6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: Estórias cabralinas (3): o básico apaixonado

"O Pel Caç Nat 63 esteve quase sempre em Destacamentos. Comigo em Fá e Missirá. Antes no Saltinho, e depois no Mato Cão.

"Para os Destacamentos eram mandados os "especialistas" que a CCS [do Batalhão sediado em Bambadinca] não queria. Assim, tive maqueiros que não podiam ver sangue, motoristas epilépticos e até um apontador de morteiros cego de um olho. Tudo boa rapaziada, aliás! (...)"

18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVIII: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos

"Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética (...)".

(3) Vd post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

"O Jorge era, para mim, o mais paisano dos militares que eu conheci na Guiné: alferes miliciano, foi o comandante do Pel Caç Nat 63 (...).

"Em Fá [e depois em Missirá] não se limitava a ser um heterodoxo representante do exército colonial, actor e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais. Um verdadeiro Lawrence da Guiné. Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente cafrealizado!" (...)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P528: O raio do puto era branco (Zé Teixeira)

Guiné > 2005 > A nudez (sempre perturbante) de uma bajuda banhando-se no rio...Houve ou não houve ligações perigosas, casos de paixão e de amor de tugas e de jovens guineenses, nomeadamente fora de Bissau ?
© José Teixeira (2005)

1. Perguntei ao Zé Teixeira: Já publiquei a estória nº 3...
Diz-me o que querias dizer com o "raio do puto era branco"... Não encontro (ou perdi) a nota de pé de página.
Um abraço.

Ventura da minha vida
Ver uma criança parida
No momento da chegada.
De mãe preta bem pintada,
Negro pai, para meu espanto,
O raio do puto era branco (1)


De pronto, o Zé satisfez a minha curiosidade::

Reafirmo a minha admiração quando peguei no Bébé e vi uma criança branca. Parece que tinha vindo da praia. Um branco escuro e muito coradinho. Ao perguntar porquê, tive como resposta um sorriso e depois a informação de que as crianças nascem brancas e rapidamente escurecem. Assim aconteceu, de facto.

Conhecia a mãe, mas o pai nunca o tinha visto e até hoje . . Parece que era djila [comerciante ambulante, entre os fulas e futa-fulas].

Conheci outro caso, a Binta de Chamarra, que teve um filho de um colega meu e foi repudiada e recambiada para Aldeia Formosa (Quebo).

Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > O que é que mudou entre 1968 e 2005, pergunta o Zé Teixeira ? Pouco, a não ser talvez o uso (maior) do sutiã que agora é ronco...
© José Teixeira (2005)

Quando lá estive, em 2005 procurei-a, sem conseguir encontrá-la. Apareceu-me um jovem de trinta anos a dizer-se filha da Binta e de um branco, só que o outro era mais velho. Vim a saber que este era filho de uma Binta Bobo, de Mampatá, que também conheci e parece que já faleceu.

Deixa-me dizer-te que o blogue continua a crescer em quantidade de bloguistas e sobretudo de história. Trabalho o teu que muito admiro. Perante o que tenho lido a minha estória é tão pequenina !

Um abraço
Zé Teixeira
Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > "Filho de branco quer conhecer o pai"
© José Teixeira (2005)


Comentário meu (L.G.):

Discordo totalmente da tua última frase: "Perante o que tenho lido a minha estória é tão pequenina!"...

Zé, não tens razão, estás a ver mal a questão: o nosso blogue não é um concurso literário, não é um mostruário de vaidades, não é o hit-parade com os dez mais qualquer coisa do mundo...

Cada estória é uma estória.... Única! Cada membro da nossa tertúlia merece (ou deve merecer) a mesma atenção, o mesmo carinho, o mesmo tempo de antena... Se assim não for, é porque eu não estou a gerir bem o blogue... A minha obrigação é garantir a igualdade de oportunidades em relação a cada um dos camaradas e amigos que me mandam textos para publicar... É claro que nem todos temos o mesmo talento para a escrita, a arte de contar estórias, descrever uma situação, caracterizar um tipo, retratar uma paisagem ou transmitir emoções...

Se eu estiver a proceder mal e a favorecer alguém em detrimento de outrem, por favor corrijam-me, apontem-me o dedo, chamem-me nomes feios... É claro que às vezes sigo o critério da actualidade ou da importância editorial, procurando manter um certo fio condutor em relação aos posts ou textos ou mensagens que vão sendo inseridas... Por exemplo, não publiquei o teu diário todo de seguida, fui rendendo o peixe, publicando a coisa por partes... Tem que haver variedade mas também consistência e um certa continuidade... É bom, por exemplo, tentar esclarecer o que se passou em Cheche, no dia 6 de Fevereiro de 1969, procurando divulgar o maior número de depoimentos, sem a veleidade de esgotarmos o assunto... Daqui a um mês pode aparecer um camarada que retoma a conversa, sempre inacabada, sobre as nossas aventuras e desventuras na Guiné...

O mesmo estou a fazer com o Zé Neto, o Mário Dias ou o Carlos Marques dos Santos, só para citar alguns tertulianos que ultimamente têm sido mais profícuos ou têm mandado mais coisas... Basicamente o critério é o da ordem de chegada, do interesse e da actualidade...

Se tenho sido injusto para com algum tertuliano, é com o Jorge Santos, o nosso fuzo do Niassa, de que tenho ainda muito material em stock... É verdade que ele não é guinéu, mas está atento a tudo o que se escreve e diz sobre a guerra colonial na Guiné...

Acrescento ainda mais o seguinte: nem sempre o que circula na tertúlia, por e-mail, é publicável no nosso blogue. Por sistema, tento evitado transcrever posts de outros blogues (com excepção dos blogues dos nossos amigos e camaradas, e sempre que for apropriado). Interessam-nos textos nossos, originais, e se possível inéditos... Os dos outros podem, de tempos a tempos, ser inseridos na rubrica a que eu chamei antologia...

Também, por sistema e por uma questão de princípio, não tenho publicado opinião política sobre a actualidade (portuguesa, guineense, ou outra), a menos que possa ter a ver, directamente, com o objecto constitutivo da nossa tertúlia...

Por fim, deixa-me dizer-te, Zé, que tu levantaste aí uma questão, no mínimo delicada mas de grande interesse humano: os filhos da guerra, os frutos (proibidos) dos amores dos tugas e das fulas (as mulheres que estavam mais próximas de nós)... O que é feito deles ? Como vivem ? E as suas mães, como estão, como se sentem ?... Talvez por pudor, não temos falado disto, mas tu, com a tua especial relação com a população de Ingoré, Buba, Quebo,Mampatá e Empatá, tu, querido fermero, mauro, sábio, médico, curandeiro..., tu conseguiste pôr o dedo na ferida... Suavemente, profissionalmente...
Já agora explica-nos como e porquê a Binta, de Chamarra, foi repudiada e expulsa da sua tabanca, por ter dado à luz um filho de um tuga... Como é que os fulas (e outras etnias) lidavam habitualmente com estes casos que, se calhar, não foram tão raros quanto isso... Basta lembrar-nos que em mais de uma década de guerra na Guiné passaram por lá largas dezenas de milhares de homens, muitos dos quais tiveram relações sexuais, consentidas, com mulheres da população local...
Não estou a faltar de prostituição nem de violação, estou a falar de relações nalguns casos até maritais, mais ou menos estáveis e até toleradas, quer pelas autoridades militares quer pelas populações locais... Houve ou não houve casos de paixão e de amor de tugas e de jovens guineenses, nomeadamente fora de Bissau ?
Alguém mais quer falar sobre isto ? Contar estórias que conheça ? O Zé Neto já nos trouxe aqui a estória do Dauda, o Viegas (2), o presumível filho de um capitão de Cacine.
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVIII: Estórias do Zé Teixeira (3): a festa da vida

(2) Vd. post de 21 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda, o Viegas

Guiné > Guileje > CCART 1613 (1967/68)> "Dauda... Era a cara do pai... e a mascote da companhia... Este menino, na altura com onze, doze meses de idade, era filho da Sona, uma jovem de Cacine, comprada pelo alfaiate de Guileje para ser a sua terceira esposa. Tinha o nome de Dauda, mas era tratado por todos nós por Viegas, apelido do pai, capitão que comandara a companhia de Cacine"...
© José Neto (2005)

Guiné 63/74 - P527: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo


Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968> Bajudas da tabanca (1): a Maria, a lavadeira do nosso primeiro... Ainda recentemente mandou partir saudades ao seu amigo tuga, através do Pepito
© José Neto (2005)

XIX parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).


A Operação Bola de Fogo

A abertura da picada estava a dar pelas barbas à nossa tropa.

Era impossível jogar com o elemento surpresa porque tornava-se necessário retirar abatizes, detectar e fazer explodir fornilhos (até uma viatura GMC em tempos abandonada pelas NT foi pelos ares porque se desconfiava que estava armadilhada) e, principalmente, derrubar árvores para substituir os troncos apodrecidos que, no leito dos regatos, serviam de ponte para a passagem de viaturas.

Os turras nem precisavam de atravessar a fronteira para morteirar os lenhadores. E nós não podíamos ripostar por respeito às convenções internacionais.
Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968> Bajudas da tabanca (2)...
© José Neto (2005)

Ao fim de duas ou três semanas, com muitos ferimentos ligeiros, mas sem qualquer morto, o itinerário foi dado como praticável e ia seguir-se a segunda fase, que era a marcha da companhia para Gandembel.

Parecia-nos que, das duas, a CCAÇ 2316 era a que ia avançar, já que a CCAÇ 2317 tinha sido inicialmente designada para nos substituir em Guileje, mas afinal veio a ser a esta última, a do 1º Sargento Martins, comandada pelo Capitão Barroso de Moura, a quem coube o petisco.

Ao mesmo tempo, como manobra de pressão, iniciou-se do lado norte a abertura da picada Chamarra – Gandembel.

A valentia e pertinácia dos bravos de Gandembel devem ter impressionado o inimigo que fez deslocar para aquela zona um potencial de fogo considerável.

Pelo itinerário de Chamarra juntou-se à CAÇ 2317 a CART 1689 e, com acções pontuais dos Paraquedistas e dos Comandos e o apoio do fogo de artilharia e bombardeamentos dos Fiat da Força Aérea a posição consolidou-se, mau grado as flagelações contínuas de que era alvo.

Guiné > Guileje > 1968 > Bajudas da tabanca (3)... 
© José Neto (2005)

Mas o cerne da questão continuava. Como o IN precisava de manter o reabastecimento dos seus grupos que actuavam no interior do território, passou a utilizar trilhos um pouco a sul de Gandembel, perto de Paroldade, e esses trilhos cruzavam-se com as nossas colunas que também iam reabastecer o novo aquartelamento.

Nestas condições, cada reabastecimento nosso era uma autêntica operação de três, quatro dias, com fogachadas por todos os lados.

Na última das três operações desta natureza em que a minha companhia e outras unidades estiveram empenhadas, houve três mortos, sendo um nosso (o 1º Cabo José Augusto da Silva Leal), outro do Pel Caç Nat 51 (o Furriel Milº Sebastião Dionísio) e o terceiro do Pel Rec Fox 1165 (o Soldado Manuel Vieira).

Dois soldados nossos foram gravemente feridos e evacuados para Lisboa, o Júlio Rodrigues Calado e o José Alves Pereira e mais doze, de várias patentes, dos quais três do Pel Rec Fox 1165, feridos com menos gravidade e evacuados para Bissau.

O regresso ao quartel foi difícil e dramático.

O Capitão Corvacho teve de pedir fogo dos obuses de 8,8 cm dando as coordenadas dum lugar já bem do outro lado da fronteira, mas que sabia ser o ponto de onde o IN o estava a atacar com armas pesadas. O alferes comandante da força de artilharia hesitou e, ao pedir a rectificação dos elementos de tiro, fez saber que o fogo ia cair na zona da fronteira da Guiné-Conacri. Pelo rádio percebeu-se bem a irritação do Capitão que insistiu e perguntou ao alferes se desconhecia que ele era oficial de Artilharia.

Resta um pormenor que revela a grandeza dos homens quando confrontados com situações extremas. Aquando do regresso desta última operação os tempos calculados para o trajecto modificaram-se devido à forte concentração de fogo do IN, com as consequências que já descrevi, e o Capitão Corvacho tinha a certeza que, se permanecessem na mata depois do sol-posto, poucos sairiam dali com vida. As viaturas rodavam em marcha lenta porque havia que inspeccionar cada metro da picada. A certa altura veio um grito da frente da coluna:
-Mina!

O Capitão acorreu ao local e viu uma granada de morteiro intacta espetada entre dois troncos dum passadiço sobre um regato.

O tempo não chegava para efectuar todos os procedimentos e o mais rápido, destruir o engenho a tiro, estava fora de hipótese porque também se destruía a obra que dava passagem às viaturas. Chamou o Furriel Arclides Mateus, especialista de minas e armadilhas, e mandou afastar o pessoal.

Os dois deitaram-se, olharam em toda a volta do objecto e o Arclides disse ao Capitão:
-Tenho quase a certeza que a espoleta não esta armada. Estou a ver a cavilha. Saia daqui que eu vou puxá-la para cima e seja o que Deus quiser.

O Capitão Corvacho encarou o Arclides, recuou dois passos e disse:
-Vou ficar aqui atrás de si porque tenho de levar a companhia até ao quartel.

Quando o Arclides pousou o objecto no chão, inerte, um apertado abraço uniu aqueles dois corajosos combatentes.

Mais ou menos por esta altura chegou à Guiné o Brigadeiro António de Spínola, logo depois promovido a General, para substituir o General Schultz no Governo e Comando-Chefe da Província.

Notou-se perfeitamente uma alteração na cadeia de comando principalmente porque, como diziam os soldados, enquanto o primeiro nunca tinha saído do asfalto de Bissau, o segundo aparecia em todo lado sem se fazer anunciar.

Uma das suas primeiras visitas foi ao inferno de Gandembel onde quase obrigou à força o tenente piloto do helicóptero a descer. Foi-lhe fácil concluir que a posição era pouco sustentável e ordenou a retirada progressiva de modo a salvar a face das nossas tropas.

Constou, não posso garantir, mas acredito, que naquela aventura, as NT tiveram cinquenta e dois mortos e muitos feridos graves.

© José Neto (2005)

Guiné 63/74 - P526: A verdade sobre o desastre do Cheche (Rui Felício)

Camarada e Amigo Luis Graça:

Obrigado por teres publicado o texto que escrevi (1).

Compreendo que queiras mais informações àcerca de alguns militares
que refiro no texto. Lamentavelmente, porém, a estes anos de distância há pormenores que se apagam da memória, pelo que tenho dificuldade em identificar devidamente
o Major, 2º Comandante da Operação e o Alf Mil Diniz.

Recordo-me do seguinte:

1 - A operação era comandada, no terreno, pelo então Coronel Hélio Felgas que comandava o Agrupamento sediado em Bafatá (2);

2 - O 2º Comandante, cujo rosto ainda me lembro, mas que só conheci naquele dia do desastre do Cheche, era Major e, suponho eu, pertenceria igualmente ao referido Agrupamento de Bafatá.

3 - Quem o conhece bem, certamente, será o Capitão Aparicio que, se quiser, poderá dar uma achega a este assunto.

4 - Aliás, quando se levantou a questão na altura da transmissão pela SIC do tal filme, o Capitão Aparício, então salvo erro já Coronel, telefonou-me tentando convencer-me que as coisas não se teriam passado como eu dizia e que, embora elogiando-me (!!!), me disse que possivelmente após tantos anos eu já não estaria bem lembrado dos factos (!).

5 - O elogio era um tanto descabido, dado que ele mal me conhecia... Agradeci-lhe contudo a simpatia...

6 - Relativamente à minha eventual perda de memória, entendi a sua preocupação, na medida em que a minha versão dos factos contrariava os depoimentos que, no próprio filme da SAIC, o Cap Aparicio tinha feito e que davam como causa do desastre as tais "morteiradas" e algum pânico que se instalou entre os soldados.

6 - Quanto ao Alferes Miliciano Diniz, conheci-o apenas na travessia de Norte para Sul do rio Corubal no inicio da operação (ida para Madina de Boé ) e que já estaria próximo do fim da sua comissão de serviço na Guiné.

7 - Sei que era o responsável pela travessia porque ele próprio se me identificou como tal quando embarquei com o meu Grupo de Combate, recebendo dele as instruções adequadas à colocação do mesmo dentro da jangada.

8 - Suponho que ele era o Comandante do destacamento do Cheche e que ali se encontrava habitualmente estacionado, pertencendo organicamente à Companhia de Canjandude.

9 - No entanto, não estou inteiramente certo que assim fosse.

Um abraço e uma vez mais o meu agradecimento pela paciência de teres lido o que escrevi...

Rui Felicio
ex-Alf. Mil. Inf.
CCAÇ 2405 (Galomaro, 1968/69)
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

(2) Vd. pots de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre do Cheche, na retirada de Madina ...

Guiné 63/74 - P525: Pidjiguitgi, o verso e o reverso da verdade:comentários ao post do Mário Dias

1. Texto de David Guimarães:

Acho de capital importância este facto narrado e, pelos vistos, finalmente com verdade... Sempre digo que contar a história por aquilo que nos contam dá sempre coisa errada...

Eu continuo a embriagar-me com cada notícia que vou lendo. Sim, e desta vez não é com cerveja a comer ostras no Solar dos Dez... É com emoção...

Honro os nossos historiadores, claro, mas estas são outra histórias que farão os doutos entrar na terra, vir à guerra e servir-se com verdades...

Ficamos agora a saber como é que o Pidjiguiti entra na história da guerra da Guiné... Na sua Crónica da Libertação, Luís Cabral também fala disto, mas creio que com outra entoação, o que eu entendo...

Obrigado ao Mário Dias e a todos aqueles que falam daquilo apaixonadamente... Ainda queria descobrir porque afinal tanto gostamos daquilo... Não sei se na tertúlia há algum psicólogo que tente explicar estes sentimentos... Gostava de perceber isto....

Um dia - estava eu no destacamento da Ponte dos Fulas -, veio um cabo ter comigo com um aerograma na mão... Aberto e já sujo, tinha sido perdido entre o Xitole e este destacamento. Era de outro soldado nosso...

Ai que curiosidade !... Até pelas características do soldado, cozinheiro, haveria toda a curiosidade em lê-lo e mais nada. Dizia qualquer coisa assim:
- Querida, ontem tivemos uma grande operação em que estiveram aviões, espingardas metralhadoras e tudo... Eu estava lá... etc., etc., etc. - Ele tinha tido a acção preponderante nessa batalha. E que batalha, uma grande batalha!...

Chamei o soldado em questão e perguntei, sem lhe mostrar o sobrescrito:
- Oh! fulano - ainda é vivo!- , então ontem houve um combate muito grande e tu não disseste nada !?

Ele começou a olhar para mim, de lado... O resto que já não interessa contar. Rimo nos, ele reconheceu que estava a pregar uma grande peta à pobre da noiva.... Enfim, era assim que as notícias dos heróis chegavam à metrópole...

Um domingo, igual a todos os dias passados na Ponte dos Fulas, rimo-nos com vontade, como há tempos não nos ríamo-nos... Mas se a carta tivesse chegado ao seu destinatário, o que pensaria a noiva dele, hoje possivelmente sua mulher?

Que grande história, que perigos, que heroísmo!... Ele, um simples soldado, básico, cozinheiro, escrevia mesmo mal e contava a história de uma batalha que nunca viveu... Deus me livre que ele desse um tiro com a espingarda, era um perigo!...

É óbvio que com isto reforço o valor dos nossos testemunhos sem romances... Romances era só com as bajudas ou mesmo mulher grande sem marido ver, mas essa ficção era bom... Quanto ao resto,. a guerra romanceada, não. É isso que vejo por aí... Tenho lá um livro em que um oficial - não interessa o noime - conta contos de outros e estórias que não viveu...

Maria Dias, eu tinha a a ideia dos 50 mortos e da centena de feridos... A alguém convinha isso. Que houve chatice, sim houve, números diferentes e objectivos aproveitados... Isso sim é importante... Uma certeza, sim, um povo explorado, disso não temos dúvidas... Mas é bom que os fantasmas da Guiné apareçam... e que nunca se realizem as fantásticas batalhas como aquelas que o nossop básico relatava à noiva no na estrada Xitole - Ponte dos Fulas...

Um abraço, David Guimarães.

2. Do historiador guineense e doutorando pela Universidade de de Lisboa Leopoldo Amado:

Caros amigos,

A Tertúlia tem-se revelado de uma prodigiosa utilidade: pela qualidade e quantidade de textos produzidos no seu âmbito; pelo justificado nível da audiência que consequentemente têm conquistado; pela importância que encerra no que tange a depoimentos e/ou testemunhos presenciais por parte de elementos que observaram acontecimentos, etc., etc.

Sempre o disse e repito-o: todo esse trabalho de importância incomensurável terá que ser (deve ser) partilhado com um maior número de pessoas, se possível, em livro com o grande público. Só assim se poderá com toda a propriedade afirmar-se no futuro que – para lá de toda a emotividade que a Tertúlia suscita(ou) –, possui(u) igualmente a função de guardiã da memória dessa guerra que importa conhecer cada vez melhor, até para que possamos reconciliar-nos com os aspectos que lhe subjazem, à montante e à jusante do seu aspectos intrínsecos.

Com efeito, a importância do texto que Mário Dias produziu sobre o Massacre de Pindjiguiti ou assim chamado, interpelou directamente a minha sensibilidade de interessado nessa guerra enquanto historiador guineense, mas também enquanto cidadão do mundo, pelo que aqui fica a minha promessa de nos próximos dias produzir um comentário crítico sobre o mesmo, não obstante ver-me antecipadamente e desde já na contingência de dar os meus vivos parabéns ao autor por mais esta importante contribuição que, além de animar um debate que reputo construtivo e altruísta, ainda possui o condão – assim espero – de trazer ao de cima senão toda a luz e toda a verdade (porque imossível, ao menos irá contribuir para a desmistificação histórica dos aspectos próprios dessa guerra, reduzindo consequentemente as zonas cinzentas, as inverdades ou as meias-verdades que essa recente historiografia necessariamente comporta, porquanto é igualmente recente o correspondente sujeito histórico.

Leopoldo Amado

Guiné 63/74 - P524: A Guiné-Bissau vencerá (Carlos Marques dos Santos)

Comentário do Carlos Marques dos Santos aos dois últimos posts:

BRAVO. BRAVO. BRAVO.

Isto é tudo o que tenho a dizer em relação a estas palavras encadeadas, de certeza vividas e sentidas. Eu vivi e senti como tu.

Ainda uma nota para o que foi escrito sobre a Guiné e àcerca do Pepito.

A Guiné-Bissau suprirá todas as dificuldades e vencerá.

Aquele povo merece. Posso, ainda hoje, admirar a sua serenidade, apesar de todas as dificuldades.

Que os seus dirigentes regressem à terra e passem à acção.

Construir um País não é fácil, mas é possível.

Que cada um tome em suas mãos as inerentes responsabilidades e será fácil.

A Guiné ainda continua no meu coração. Nunca a esquecerei. A guerra sim. Essa, esqueço.

Os momentos vividos, a terra vermelha, as gentes, o pôr e o nascer do sol, os rios, a mata, as bolanhas e as lalas, o caju, não se esquecem nunca mais.

CMSantos

Guiné 63/74 - P523: Blopoesia: O meu país megalítico (Luís Graça)

o meu país megalítico / luís graça

um estranha maneira de dizer adeus.
um estranho povo este
que vem ajoelhar-se
no cais da partida.
não em oração
para aplacar a ira dos deuses
mas vergado.
vergado à toda poderosa razão
de estado.

a tentacular força centrífuga
que de há séculos
te leva os filhos teus
para fora.
paridos e expulsos da mátria
para longe.
bem para longe.
muito para lá do mar.

uma despedida breve
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos em fundo preto.

todas as despedidas são breves e tristes.
o momento
em que o niassa apita três vezes
e levanta a âncora
nunca se poderia eternizar:
diz o capitão de mar e guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a vate 69,
fotocine, cinéfilo,
garboso, charmoso,
pronto para a acção.

há um briefing às cinco da tarde
já em velocidade de cruzeiro,
depois do bugio,
no mar alto português,
anuncia o capitão
pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo,
pequeno-burguês.
vai na segunda comissão,
o oficial provinciano,
que nunca ouviu falar
da batalha da ilha do como.

e o filme da noite é
uma comédia,
acrescenta o nosso primeiro,
a servir de porteiro
do cais do sodré.
um gajo bacano
num país de bacanos,
de soldados rasos, primeiros cabos,
furriéis e segundos sargentos.

uma tragicomédia,
escreverei eu
no meu diário
a que mais tarde chamarei
o diário de um tuga.
cadé os oficiais ?
cadé a elite da nação ?
os filhos-família
os primeiros
a fina flor
os morgados
os primogénitos
os fidalgos
a casta
a raça
o sangue azul
o pedigree
os melhores de todos nós ?
morreram todos
em alcácer quibir.

lisboa revista
em filme de oito milímetros.
a preto e branco.
ou a preto e negro,
uma só não,
valente e imortal,
ironiza alguém.
o niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir
parar à sucata.
inglória a sucata da história
que eu perdi
aos dezoitos anos
quando dei o nome para as sortes.
estranha palavra esta, das sortes,
que rima com desnortes
e com mortes.

a despedida breve e triste
do niassa
e ainda mais triste é o filme.
sem som.
sem palavras desnecessárias.
a preto e branco
que alguém terá feito
no cais das sete partidas.
talvez a noiva
que ia vestidade de branco
com xaile preto.

a ponte de salazar.
o velho abutre que alisa as suas penas,
dirás sofia, pitonisa,
quase morto mas não enterrado.
os últimos golfinhos do tejo.
a última fragata de vela erguida.
a última caravela.
o último império.
lisboa e o seu casario.
branco.
o filme a preto e branco.
um gato preto à janela.
lisboa e as suas ruínas
pré-pombalinas.
o poço dos mouros.
o poço dos negros.
o lundum. a umbigada.
a procissão
da nossa senhora da saúde.
a santa inquisição
zelando pela pureza do sangue.
o cemitério dos prazeres
ao alto
com os seus altos ciprestes negros.
os mastros dos navios
da carreira colonial.
o império por um fio.
a vida que se recapitula
de fio a pavio
no último comboio da noite
que veio do campo militar
de santa margarida.

as santas das nossas mães
que ficaram em casa
a acender a vela à santa das santas.
um fado que eu ouvi no bairro alto
e que já não era batido
nem dançado nem cantada
um fado apenas gemido.

ordeiros os soldados
como os cordeiros da matança da páscoa.
no cais da rocha conde de óbidos,
alinhados
como os eléctricos amarelos
que vão para a cruz quebrada.
empilhados. aboletados.
requisitados
às mães para servir
a pátria.
o pai-patrão
que nos cobra o dízimo
em sangue suor e lágrimas.

mudos, agrilhoados, os básicos,
uns refractários,
outros desertores,
cozinheiros, corneteiros,
apontadores de diligrama,
municiadores de metralhadora,
atiradores,
coitadas mães que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho.
subindo o portaló o cadafsaldo
com um nó na garganta
bem disfarçado.
os lenços brancos
como em fátima no 13 de maio.
algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos não são
de exaltação
patriótica.
o hino
canta-se com voz rachada,
em disco riscado
pelas tias
do movimento nacional feminino.

a mesma atitude
admirável
de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo podem.
diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos.
da tragédia inelutável.

senhora minha, protege-me,
das minas e armadilhas,
dos fornilhos e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas,
dos estillaços
e dos tiros de costureinha
do IN.
dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas
e das formigas carnívoras.
mas também do cone de fogo
das nossas bazucas e canhões sem recuo.
das piçadas e dos louvores dos meus comandantes.
e sobretudo de mim mesmo,
soldado malgré moi
soldado à força
arrebanhado, arregimentado, aboletado,
requisitado, condenado, ameaçado,
camuflado.
livra-me, senhora,
da fome, da peste e da guerra,
e do inimigo da minha terra
que me manda para tão longe.

lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
pus o combate do possível
na minha agenda
de expedicionário da guiné.
pus o fio com a medalha de ouro
ao peito.
que me deu a namorada,
coitada.
não, não uso a cruz. o crucifixo.
não vou para a guerra santa,
senhor capelão.
alguém há-de rezar por mim
para que eu volte
são e salvo.
do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico
13151468
e o picotado ao meio.
para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos
tudo isto face ao risco,
bem real e concreto,
de eu morrer longe.
bem longe
para lá do mar
em terra que não me viu nascer.

descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio.
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos
e engraxará as tuas botas.
se não morreres de morte súbita.

levarei comigo a pedra-chave
que me liga ao além.
uma chapa de zinco,
picotada ao meio.
outrora era de xisto ou de grés,
entre os meus antepassados
da pré-história recente.

camaradas
(que colegas é só nas putas):
se eu morrer, que me enterrem
numa anta do meu megalítico país.

luís graça
lisboa/ niassa, maio de 1969 / lisboa, tejo e tudo, fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P522: Projecto Guileje (9): obus14, precisa-se! (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Guileje > 2006 > O brasão da CCAV 8350 (Os Piratas de Guileje), novinho em folha... 
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

Como prometido, o Pepito está cá, em Lisboa. E esteve hoje connosco, pelo menos com o Zé Neto (de manhã, na Fundação Marquês de Valle For) e comigo (à tarde, no meu local de trabalho).

Foi muita gentileza, da parte dele, ter-se deslocado só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele ama com um coração muito grande), falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos - que é o Projecto Guiledje (com dj, como ele gosta que se escreva) - e, ainda, presentear-me com o livro de contos do seu pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade, já aqui por nós justamente evocado (1). Noutra ocasião, farei a recensão bibliográfica de O Cativeiro dos Bichos, um colectânea de 25 contos, seleccionados pelos seus filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz), alguns dos quais escritos na prisão de Caxias, em 1966. O livro acaba de ser editado em Bissau (Fevereiro de 2006, edição de autor).

A conversa, de cerca de 1 hora, que tive com o Pepito (ninguém o conhece por Carlos Schwarz, nem quando foi ministro dos transportes num governo de transicção) só pecou por ser curta... Mas deu para, de imediato, eu fazer mais um amigo guineense...

Bem razão tinha o Zé Neto: vou cometer aqui uma inconfidência - e eventualmente sofrer as consequências da ira do autor da confidência - mas é uma homenagem aos dois, ao Zé Neto e ao Pepito. Escrevia-me há um mês atrás o nosso capitão:

" (...) Eu conheço pessoalmente o Engº Carlos Schwarz da Silva, o nosso Pepito. Passei uma tarde a conversar com ele em casa do nosso amigo comum, Engº António Estácio. Eles foram colegas de infância e condiscípulos, pois o Estácio também é guineense.

"Tenho a pretensão de conhecer o carácter dos homens ao fim de dois dedos de conversa. Não tão cientificamente como tu, profissional do ramo, mas, como dizia o outro, raramente me engano.

"E asseguro-te que o Pepito é do melhor que há. Talvez um pouco sonhador, porque abdica duma vida confortável que poderia gozar cá em Portugal, em troca das mil e uma tarefas que desenvolve na sua querida Guiné em prol do seu povo. É fácil entender que o seu espírito superior choca com certo primitivismo que grassa naquela região, mas não desiste e essa é a qualidade que faz dele um amigo que muito admiro e a quem dispenso a minha modestíssima colaboração sem reticências.

"Quando ele vier, para o mês que vem, vais confirmar o quer te digo" (...).

Só posso subscrever - inteiramente - a opinião do Zé Neto, que é um grande conhecedor da natureza humana. Foi, de facto, um privilégio conhecer, ao vivo, uma pessoa com a qualidade humana do Pepito. Espero que outros tertulianos também possam vir a conhecê-lo, de preferência na nossa querida Guiné, e na companhia do maior número possível de amigos e camaradas...

Guiné-Bissau > Guileje > 2006 > "Laranjada Convento / Mafra / Marca registada"... © AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

Guiné-Bissau > Guileje > 2006 > "Composição: Sumo - Popa e óleo de laranja - Açúcar granulado - Água esterelizada / Corado artificialmente / Fabricado por Francisco Alves & Filho Lda / Venda do Pinheiro" © AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

E agora vamos a um pedido - quiçá um pouco insólito ! - que o Pepito me acabou de fazer, jà quase à despedida: ele precisa de um obus 14, para pôr no seu quartel de Guileje, agora em reconstrução... Algum de vocês sabe de um velho obus 14, para aí abandonado num qualquer ferro-velho da tropa ? Se souberem, digam-nos... Levá-lo até Guileje será outra carga de trabalhos, mas até lá folgam as costas...

O pedido justifica-se: ao que parece, Guileje foi o único quartel das NT bombardeado pelas... NT. Segundo o Pepito, o Spínola terá mandado arrasar tudo, posteriormente à retirada da CCAV 8350.
Nas limpezas e escavações que têm sido feitas, vão-se encontrando objectos do quotidiano dos tugas, alguns curiosos como garrafas de cerveja com o rótulo de papel intacto (!) ou garrafas de sumo de laranja - de um conhecido fabricante de refrigerantes de então, com sede em Venda do Pinheiro, Mafra... Publicam-se duas curiosas imagens de uma garrafa com inscrições pirogravadas... Em suma, isto já é quase arqueologia militar...

Divertidas, para o Pepito, têm sido as manifestações de humor (e de carinho) dos fulas para com os seus antigos aliados, os tugas: ele refere-se às gravações audio que estão a fazer e em que os antigas combatentes fulas, que estiveram do lado das NT, imitam descaradamente os tugas, quando estes estavam debaixo de pressão (na época ainda não se usava o termo stresse...):
- Seus c...! Seus f... da p...!

O Pepito prometeu-me depois mandar alguns excertos dessas gravações audio, reveladoras do superior sentido de humor fula... Ora quem diria! ... Eu, pessoalmente, sempre os achei inteligentes e com grande capacidade para negociar e estabelecer alianças estratégicas. O Pepito também corrobora este ponto de vista: os fulas são orientados para o poder, aliaram-se ao Spínola contra o Amílcar Cabral; e depois ao Luís Cabral, a seguir à independência, contra os balantas... Como diria o Príncipe de Salinas, protagonista do filme O Leopardo (Visconti, 1963), eles eram os leopardos, os leões, enquanto os novos vencedores - que se aliaram ao PAIGC - não passavam de chacais e de hienas... Mesmo assim, eles têm a consciência de que, presas e predadoras, têm de coexistir (mais ou menos pacificamente) naquela terra, que é a sua terra...

O Pepito mostrou-se, por outro lado, deveras impressionado com o que está a acontecer com o nosso blogue e o ritmo de produção das nossas memórias... Eu avancei com uma explicação de vulgata sociológica:

(i) a nossa geração, os machos, têm mais de ou quinze anos de esperança média de vida;

(ii) para muitos de nós, a experiência da guerra colonial terá sido porventura o acontecimento maior, talvez o amis emociante, das nossas vidas cinzentas;

(iii) tivémos a sorte de sobreviver e, ao fim de cinco anos, retomar a marcha do comboio, não contando com os que ficaram precocemente pelo caminho: os mortos, os traumatizados, os inadaptados, os desadaptados, os cacimbados;

(iv) muitos de nós já deixaram a vida activa e sentem o vazio do presente: os filhos que partiram, os netos que só se vêem nos dias festivos, as companheiras que sempre se recusaram a partilhar essa experiência, a guerra, que é uma actividade de machos;

(v) enfim, a memória selectiva do passado, a disponibilidade de tempo, a redescoberta da camaradagem, o apelo dos verdes anos...

O Pepito não dispensa a visualização diária do nosso blogue. Acha que este fenómeno (a vontade de abrir o livro, o baú da memória...) também está a acontecer na Guiné: os antigos combatentes sentem necessidade de falar do passado e passar a escrito (ou ao gravador) as suas memórias... A necessidade de falar da luta, na cidade ou nas matas, com alguém...

Grande parte da memória (escrita) de guerra de libertação, na posse do PAIGC, dos seus militantes e ex-militantes, desapareceu, foi destruída, extraviou-se ou foi parar à... Fundação Mário Soares. Há um sério risco da geração pós-independência ver amputada uma grande parte da memória do seu povo, a luta pela independência, a difícil construção da Guiné-Bissau, a revolução que devorou os seus filhos, a fabricação dos novos mitos, os ajustes de contas, o cinismo pós-revolucionário...

Daí que o Pepito e os seus colaboradores da AD - Acção para o Desenvolvimento estejam afanosamente a gravar depoimentos dos antigos combatentes e habitantes de Guileje... Começaram pelas bases, mais acessíveis e espontâneas... Numa segunda fase, esperam poder entrevistar os dirigentes, os comandantes operacionais, os comissários políticos, quando as defesas psicológicas e as pressões dos pares se começarem a quebrar...

Nós também cá temos esse problema: como diz o Jorge Cabral, há ainda muito boa gente (militar) com culpa e vergonha de ter feito (e perdido) a guerra da Guiné, a começar pelos nossos oficiais superiores... A hierarquia militar não me parece ainda disposta a dar a senha e a contra-senha de acesso aos arquivos militares da guerra colonial...

O que o Pepito e a sua ONG estão a fazer é um trabalho meritório e sobretudo patriótico, com dividendos para o futuro... Não há futuro para um povo que tenha perdido a memória e a identidade. E o tempo urge, porquanto a geração que fez a guerra colonial (ou a guerra de libertação, conforme os lados do campo ou da barricada), está a desaparecer... Mais rapidamente na Guiné, devido à menor esperança média de vida à nascença dos homens guineenses da geração da guerra(2)...

Também falámos da actual situação económica, social e política da Guiné-Bissau. Dos medos e das esperanças que os guineenses sentem em relação ao futuro. Do retorno à pertença e à identidade étnicas, na ausência de um Estado de direito que garanta a protecção e o respeito do indivíduo e da sua família... Dos terríveis acontecimentos de 1998, que levaram o Pepito e a família a refugiar-se em Cabo Verde, terra de seu pai... E do doloroso regresso a Bissau, um ano e tal depois, o retorno à casa completamente pilhada, violada, destruída... Os livros, as fotografias, as memórias de uma vida... O que é espantoso é ouvir este homem, que é um profissional do optimismo, contar isto sem ódio, sem ressentimento, sem rancor, qause sem mágoa... Tem vindo a recuperar algumas coisas, com emoção: uns negativos, umas cartas, uns livros... E isso é suficiente para lhe dar alento...

Para além das suas obrigações como deputado (independente, creio eu), o que mais lhe dá gozo é viajar de jipe - apesar dos problemas de coluna de que já sofre, em consequência dos milhares de quilómetros feitos através das picadas da Guiné... E estar no sul, em Guileje, com os seus amigos e vizinhos... A Mata do Cantanhez, o futuro Parque Transfronteiriço do Cantanhez, é um espanto, com riquíssima fora e fauna - onde se incluem elefantes ! - e, felizmente, ainda ao abrigo, devido ao seu isolamento, dos apetites vorazes da clique político-militar no poder em Bissau e em Conacri...
Last but not the least, o Pepito também gostaria de ter contactos com todas as companhias que passaram por Guileje e, se possível, ter acesso a uma resumo da sua actividade operacional na região. Não creio que isso seja difícil de conseguir... Mais difícil será desencantar o raio do obus 14!...
__________

Notas de L.G.

(1) pots de 16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

"(...) Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.

"Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schultz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.

"Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu" (...).

(2) No âmbito do Projecto Guiledje, são consideradas acções prioritárias, entre outras, a recolha de documentos históricos, e nomeadamente:
(i) fazer entrevistas e tirar fotografias a testemunhas do tempo de guerra, recorrendo às rádios locais e à televisão comunitária, e pedindo o apoio a pessoas que possam identificar com facilidade testemunhas que viveram a batalha de Guileje;
(ii) criar um banco de fotografias com os marcos e as referências de guerra que ainda existam no antigo aquartelamento de Guileje;
(iii) recolher registo em suporte de papel, digital ou audivisual, com interesse documental sobre a época;
(iv) recolher canções de luta, em especial as referentes a Guileje, e editá-las para conservação em CD-ROM...

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P521: Estórias do Zé Teixeira (4): A festa da vida (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiné-Bissau > Quebo > 2005 > Cartaz, em crioulo, integrado numa campanha de defesa da natureza, no âmbito do "projecto de reabilitação" da GTZ (organização alemã para a cooperação técnica) © José Teixeira (2006)


Texto do José Teixeira (ex-1º cabo enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).


A FESTA DA VIDA

Como prémio de ter assistido ao parto, fui convidado a participar na Festa da Vida (Baptismo) do recém nascido.

Manhã cedo, juntaram-se em roda, os convidados com as vestimentas mais garridas. Os tantans (três), vestidos a rigor com instrumentos nas pernas e nos braços, assobio na boca e tambores a jeito.

O homem do cabrito acabou de afiar a faca e encosta esta ao pescoço da vítima. A fogueira está pronta para ser acesa pela cozinheira.

Dois pilões, cheios de arroz, com três bajudas em cada um, prontas para iniciar a faina.

A criança ao colo da mãe e ao lado o Barbeiro com uma lasca de vidro laminada, proveniente de uma garrafa de cerveja.

Por último o Mouro (1) prepara-se, voltado para Meca, para iniciar a oração a Alá.

Tudo pronto ? Vamos lá começar.

O Mouro inicia um canto e em simultâneo começa a festa. Os tambores e o pilão dão o ritmo. Tudo djenti canta e dança.

O Barbeiro inicia a rapadela da farta cabeleira do bebé, enquanto o cabrito dá o último suspiro, pois a fogueira já foi acesa.

E a festa dura, dura até que a noite cai e... o Hamadu, sargenti di milícia, aparece e recomenda o silêncio.

Bem perto há uma aldeia nas mãos do IN.


VIDA

Ventura da minha vida
Ver uma criança parida
No momento da chegada.
De mãe preta bem pintada.
Negro pai, para meu espanto.
O raio do puto era branco.

Vi-te nascer.
Não sei teu nome, não importa.
Foste e és esperança, um novo ser
Nesta sociedade morta.
Lançaste um grito. Alegria.
Tua vontade de viver.
A esperança a renascer.
No meio da dor, como sempre.
Em ti, peguei com jeito,
Como um pai, que estava ausente.
Na guerra, da tua terra.
Encostei-te bem ao peito,
Teu olhar, que encanto,
Ternura, paz, bem estar.
A tua pele macia. . .
Tua brancura de espantar,
Nesta terra, vermelha, queimada,
De uma África em sofrimento,
Que anseia em cada momento,
Como tu.
Ser amada.

Mampatá, 25/09/1968

© José Teixeira (2006)
________

(1) Coordenador da oração na Mesquita (equivalente ao nosso Padre) (JT).

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Lisboa: Círculo de Leitores. 2003), na Guiné-Bissau o termo mouro hoje significa "espécie de vidente e curandeiro que prepara mezinhas, supostamente benéficas ou malignas, utilizando versículos do Alcorão" (Tomo V, pag. 2554) (LG)

Último poste da série de

Guiné 63/74 - P520: Fazer o espólio de guerra de uma geração (Virgínio Briote)

Guiné > Bissau > 1967 > O alferes comando Briote (ao meio) com os alferes comandos Sampaio faria e Ovídio (do lado esquerdo) na recepção da 5º Companhia de Comandos, do cap Albuquerque Gonçalves (à direita).
© Virgínio Briote (2006)


Texto do VB [Virgínio Briote], nosso camarada, activo tertuliano e agora patrão do blogue Tantas Vidas:


Olá Luís,

Antes de mais quero agradecer as tuas referências ao meu jovem blogue no nosso foranada.

Como diz o nosso camarada Tunes, comandas as tropas expedicionárias com saber e garbo. Desta vez não estás a defender a Cruz e o Império. Estás a fazer o espólio como nunca ninguém o fez até agora. Conseguiste reunir um grupo de combate e motivá-lo a entregar aos nossos filhos, nossos e dos antigos Inimigos, as armas, os dilagramas, morteiros, rpgs, rockets, relatórios, imagens de todo aquele inferno que todos nós vivemos e fomos aguentando até dizer basta!

As novas entradas do nosso blogue estão preocupadas em pôr a verdade no local que a nossa geração exige. Que sejam bem-vindos, se sentem e abram a alma. Faz-lhes bem a eles e aos veteranos do blogue.

Um abraço
vb

PS - 1. Peço autorização para citar o foranada, bem como imagens (c/ citação, claro).

[Despacho do L.G.: Concedida!... Depois de uma chapelada daquelas ao nosso blogue e aos nossos tertulianos!...]

2. No seguimento das memórias de Guileje, do cap José Neto, envio-te uma foto da chegada a Bissau da 5ª companhia de comandos do cap Albuquerque Gonçalves (1).

[Comentário do L.G.: Obrigado, em meu nome e do Zé Neto]
_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino

"(...) Entretanto chegaram as duas companhias, pertencentes ao BCAÇ 2835 e tivemos notícias de que a 5ª Companhia de Comandos (comandada pelo Capitão de Artilharia Comando Gonçalves) tinha sido afecta ao nosso Batalhão e estava pronta a actuar na área de Aldeia Formosa, o que adensava as expectativas do que ia suceder nos próximos tempos".

Guiné 63/74 - P519: Carta aberta a... Ao Luís (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral (ex-Alf Mil Art, comandante do Pel Caç Nat 63, Bambadinca, Fá e Missirá, 1969/71). Esta carta (aberta), dirigida à minha pessoa, honra-me e sensibiliza-me. Prendem-me, ao Jorge, laços de amizade e de cumplicidade.
Orgulha-me tê-lo cá, nesta tertúlia, entre amigos e camaradas. Obrigado, Jorge, pela tua (corrosiva) lucidez e sobretudo pela tua (generosa) abertura de espírito à aventura humana e à descoberta do outro bem como pelo teu arreigado anti-etnocentrismo. Poupa-me as palavras. Por mim, disseste tudo... LG

Caro Luís,

Nunca será demais enaltecer o teu blogue, o qual nos tem permitido, principalmente recordar.

Como tu dizes, fui um tropa desalinhado, marginal e quase sempre provocador, características que mantive ao longo da vida. Sempre procurei realçar os aspectos ridículos das pessoas e situações, gozando e criticando, às vezes com um humor um demasiado ácido…

Sobre a Guerra Colonial na Guiné, sei que lá estive, e procurei ver.

Não sinto nem orgulho, nem vergonha.

Não fui herói, nem cobarde, limitei-me a garantir a minha sobrevivência, bem como a dos que comigo se encontravam.

Tratava-se obviamente de uma guerra absurda e previsível, logo evitável, para a qual nos mandavam mal preparados, num estado de absoluta ignorância sobre o país, sua gente e cultura (contei-te daquele soldado-periquito, que apresentado em Missirá, me pediu para ir ver o jogo do Sporting que dava na televisão naquela note, na Tasca da Muda, ali mesmo à esquina…).

Se alguma qualidade intelectual possuo é a curiosidade, que me leva a tentar compreender tudo e todos, ciente que as diferentes formas de estar e ser são legítimas e sempre explicáveis.
Assim, na Guiné, quer em Fá, quer em Missirá, procurei entender, e através de longas conversas com Homens e Mulheres Grandes aprendi alguma coisa. Dessa forma me inteirei da excisão (a qual depois presenciei) e do infanticídio ritual, dois temas que há mais de vinte anos, falo nas minhas aulas.

Percebi que uma Guiné idílica e pacífica, de negros portuguesismos, nunca existira… Todo o território ao longo dos séculos foi palco de imensas guerras, sangrentas repressões e alguns desastres das nossas tropas. Perante o meu espanto, indicaram-me em Fá, o local onde no tempo, dos avós, dos avós deles, havia sido aprisionado o Governador, que teve de pagar resgate aos beafadas (1). E em Missirá levaram-me a conhecer o campo onde as forças portuguesas e seus ajudantes estiveram longo tempo entrincheirados, preparando a conquista de Madina/Belel, na luta contra o grande guerreiro Unfali Soncó, no princípio do século XX (2).

Foram também os velhos que me falaram de Abdul Injai, régulo do Cuor e do Oio, companheiro de Teixeira Pinto, herói tão amado quanto odiado, caído em desgraça no fim da vida, e degredado para Cabo Verde.

Chegado a Lisboa, e desde então tenho tentado estudar, convicto que é impossível compreender a guerra colonial e o que se seguiu, sem reflectir na história do país e nas múltiplas acções de resistência armada contra os Portugueses.

Claro que o PAIGC, ao iniciar a Luta Armada pretendeu aglutinar todas essas resistências sectoriais, num projecto global de Libertação, que simultaneamente edificasse o Estado Nação. Pelo menos a Libertação foi conseguida…

Tendo estado sempre com tropa africana e milícias, não fiquei indiferente ao que aconteceu aos meus soldados, uns obrigados a fugir e outros fuzilados.

Alguns ainda hoje lutam por uma pensão, e há poucos anos, tive de confirmar por escrito, que um servira no exército português.

Discutir agora quem foi o responsável pelos fuzilamentos, se foi o Nino ou o Luís Cabral, parece-me supérfulo. A responsabilidade cabe por inteiro aos Portugueses, que não souberam garantir a segurança dos militares africanos. Procederam como os seus antepassados, pois o destino dos aliados dos portugueses, foi sempre o mesmo. Abandonados à sua sorte, vitimas das represálias dos vencedores… Ás autoridades negociadoras competia proteger todos os que lutaram integrados no Exercito Português e mesmo assegurar aos que quisessem, a nacionalidade portuguesa. Isso sim, teria sido uma atitude revolucionária. Foram conservadores. Contradições características de uma descolonização tardia e apressada…

Desculpa a seriedade deste arrazoado, mas considero importante contribuir para a destruição de certos mitos e equívocos, naturalmente persistentes numa ex-potência colonial.

Um grande abraço
Jorge
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(1) – ocorreu em 1861 no âmbito de uma “campanha” contra os Beafadas de Badora, os quais prenderam o Major Correia Pinto, encarregado da Administração da Província na ausência do Governador. Também nessa altura foram hasteadas bandeiras britânicas, em Bambadinca, Fá e Ganjara.

(2) – tratou-se de uma das mais importantes "operações" ocorridas antes da Guerra Colonial. Os efectivos das N.T. eram para a época impressionantes. Estando 50 marinheiros destacados em Bambadinca, a coluna comandada pelo Governador Muzanty, compreendia:
- 7 oficais do estado maior,
- uma companhia da marinha (4 oficiais e 132 marinheiros),
- uma companhia de infantaria metropolitana (5 oficiais e 251 sargentos e soldados),
- uma companhia mista de infantaria (3 oficiais e 101 atiradores),
- uma bateria de artilharia (3 oficiais e 69 sargentos e soldados),
- mais sete oficias (médicos veterinários e de intendência),
- a que é preciso acrescentar o “exército” de Abdul Injai (2 oficiais, 2 chefes e 100 cavaleiros) e
- ainda a nona companhia indígena de Moçambique.

Pois toda esta tropa, atravessou o rio frente a Bambadinca, tendo conquistado todas as tabancas, até junto de Missirá, onde em Carenquecunda, acampou, cavando trincheiras, e preparando a conquista de Madina, que veio a ser tomada em 9 de Abril de 1908, tendo tido papel determinante Abdul Injai e os seus 100 cavaleiros.

Também eu entrei em Madina em 1971, sem cavaleiros, mas à custa de um decisivo apoio aéreo.

P.S. – o desastre do Cheche, tem um antecedente histórico ocorrido em 30 de Dezembro de 1878 na Ponta de Bolor, entre os Felupes. Porém deste, em que morreram mais de 50 militares, conhecem-se os que pela sua incompetência, foram responsáveis: o Governador António José Cabral Vieira e o Tenente Calisto dos Santos.

Guiné 63/74 - P518: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)


Guiné > Zona leste > 1970 > Vista aérea da Ponte sobre o Rio Geba, na estrada Bissau-Mansoa-Bafatá. Os barcos do serviço de cabotagem, vindos de Bissau, do Pidjiguiti, chegavam até aqui. Geba foi, na história da presença portuguesa, um importante entreposto comercial. Na época estava em decadência, tendo sido de há muito suplantada por Bafatá, a segunda cidade da província.

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)


1. Texto do Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66)

Caro Luis

Tinha guardado o propósito de falar sobre os acontecimentos de Agosto de 1959 no Pidjiguiti proximamente. Atendendo, porém, que eles têm sido referidos recentemente no blogue, antecipei a decisão. Espero que se consiga lançar um pouco de luz sobre esta tragédia de forma a que se evitem especulações futuras.

Um abraço
Mário Dias


2. Comentário de L.G.:

O "massacre do Pidjiguiti"(sic) é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, marca o início da "luta de libertação nacional". Este depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF - Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

O depoimento do Mário Dias terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu só conhecia (e mal) a versão do PAIGC, que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos. Na época - é bom lembrá-lo - a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos, uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o Salazar... É bom não esquecê-lo.

Infelizmente, não conheço investigação de arquivo sobre este assunto. Talvez o nosso amigo e membro da nossa tertúlia, Leopoldo Amado, possa fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento sobre a guerra colonial 'versus' guerra de libertação que eu estou ansioso por ver apresentada e discutida, em provas públicas, na Universidade de Lisboa.


Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade a seguir à independência. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante) (LG)
 
© A. Marques Lopes (2005)

Como é timbre da nossa tertúlia, este blogue tem procurado pautar-se pela procura da verdade dos factos, tendo já publicado alguns notáveis (e inéditos) documentos sobre a experiência da guerra na Guiné (1963/74). Nenhum de nós é detentor da verdade. E a verdade não se resume aos factos: mais complexa é a sua análise e interpretação.

O depoimento do Mário Dias honra esta tertúlia. O Mário é um homem que, sem negar os seus valores, a sua identidade e o seu passado, tem revelado uma grande sensibilidade, sabedoria e honestidade intelectual... Estou-lhe grato pelo envio desta peça que também fiz questão de divulgar prontamente no nosso blogue, colocando-a à frente de outros textos que estão na calha.


Guiné > Bissau > Postal de Maio de 1966 > Cais do Pigiguiti (sic)

© Virgínio Briote (2005)

Ele foi uma testemunha (privilegiada) dos acontecimentos: ele estava lá em Bissau, no Pidjiguiti, nesse dia 3 de Agosto de 1959 (que é hoje dia de feriado nacional na República da Guiné-Bissau). Essa circunstância valoriza muito a sua versão (pessoal) do que ocorreu naquele dia e que, à distância de 47 anos, não podemos deixar de condenar e lamentar...
Não vou entrar em polémica (e muito menos com o nosso querido Mário) sobre a contabilidade dos mortos e o conceito (técnico-jurídico) de massacre. Nem sobre sobre outros alegados massacres que terão occorrido na nossa longa guerra ultramarina, tanto na Guiné como em Angola e Moçambique, a começar pelo terrível massacre de população civil cometido pela UPA no norte de Angola, em 1961.
Eu sei que este assunto ainda hoje é doloroso para todos nós. E fracturante. Mas também não é tabu: a janela fica aberta para o debate (se possível, sereno) sobre estes e outros fantasmas da guerra colonial (ou do ultramar, como queiram) que ainda não ainda conseguimos exorcizar... L.G.


Os acontecimentos do Pidjiguiti em Agosto de 1959 (depoimento de Mário Dias)

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas, Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas - umas à vela e outras a motor - que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul até Catió e Cacine.


Guiné > Bissau > 1969 > Cais do porto de Bissau. Foto tirada do lado do Pidjiguiti.

© Humberto Reis (2005)


Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente - na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente Carreira - sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica. Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca (1).

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.


Guiné > 1970 > Vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, a Casa Gouveia ainda tinha um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca-Bafatá (LG)
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoa aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam. A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com espingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado. Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local, os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.
- Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente? - As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

- O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

- Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (2), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

Guiné-Bissau > 2005 > Também eles, os filhos do Pidjiguiti, os filhos das vítimas da repressão da manifestação dos marinheiros do Porto do Pidjiguiti, em 1959, têm direito à verdade... (LG)

© Jorge Neto (2005) (Fonte: blogue Africanidades. Com a devida vénia)


E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.
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Notas de L.G.

(1) Sobre a recruta do Mário Dias , vd. post de 1 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

(2) Fui eu que fiz referência, há dias, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca, no início da guerra,reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus queridos nharros (leais, valentes, insuspeitos, fulas) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P517: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino

Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968> Aspectos da construção de uma abrigo-caserna...
© José Neto (2005)

VIII parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado) (1).

© José Neto (2005)


O ano de 1968 entrou com uma novidade.

O esforço sobre o corredor de Guilege diminuiu de intensidade e a actividade operacional concentrou-se mais para a zona da fronteira, com a prioridade de manter seguro o itinerário Gadamael Porto – Guilege.

Estavam para chegar as CAÇ 2316 e 2317 que iam acantonar, em condições precárias, no Mejo e em Guilege com vista a qualquer acção em grande que estava no segredo dos Deuses de Bissau.

As colunas de reabastecimento passaram a ser mais frequentes e despejaram toneladas de mantimentos numa zona contígua ao perímetro fortificado que foi desminado e aplanado para o efeito.

Numa destas colunas, o Alferes Michael, que teimava em postar-se bem alto na torre da sua Fox, até já tinha sofrido ferimentos ligeiros, foi atingido com alguma gravidade pelo fogo duma emboscada.

Veio o helicóptero para a evacuação e foi a muito custo que a 2º sargento enfermeira paraquedista convenceu o Alferes a deitar-se na maca para ir para o hospital. Era um bravo este alferes. Uma semana depois, ainda cheio de pensos, voltou para junto dos seus homens.

Ao mesmo tempo apareceram-nos uns civis e uma secção de Engenharia, comandada por um sargento, com material para abrir um furo hertziano na área do quartel para obtenção da preciosa água potável.

Estes tiveram o azar de apanhar um festival corriqueiro logo à chegada e, após uma semana de perfuração ao ralenti, um olho na máquina e outro na mata, diagnosticaram a impossibilidade de apanhar um qualquer lençol subterrâneo de água que passasse por ali, desmontaram a traquineta e puseram-se a andar para o sossego de Bissau.


Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968> Construção de um abrigo para a população civil...
© José Neto (2005)

Entretanto chegaram as duas companhias, pertencentes ao BCAÇ 2835 e tivemos notícias de que a 5ª Companhia de Comandos (comandada pelo Capitão de Artilharia Comando Gonçalves) tinha sido afecta ao nosso Batalhão e estava pronta a actuar na área de Aldeia Formosa, o que adensava as expectativas do que ia suceder nos próximos tempos.
A chegada dum pelotão de Artilharia de 8,8 cm com quatro bocas de fogo, instaladas com a direcção nor-nordeste, acabou com as dúvidas de que ia haver “porrada de criar bicho”.

E no dia D, fins de Fevereiro, desencadeou-se a Operação Bola de Fogo.

A finalidade desta mega-operação era implantar um aquartelamento em Gandembel, perto da ponte do rio Balana, a ser reconstruída e guarnecida com um destacamento de segurança, sensivelmente a meio caminho entre Guilege e Chamarra.

Aquele local era praticamente o grande portão de entrada do Corredor de Guilege e assim pretendia-se, se não acabar, pelo menos dificultar a penetração do IN no interior sul do território.

A primeira fase consistia em limpar e tornar transitável a picada, havia anos abandonada, que ia do cruzamento de Guilege a Gandembel, ou seja, a continuação do itinerário Cacine – Gadamael – Gandembel e daí para norte até Aldeia Formosa. Esta primeira fase da operação estava a ser comandada, a partir de Guilege, pelo Celestino (1).

Foi então que ele me ameaçou pela quinta (e última) vez com uma porrada. Para descomprimir vale a pena contar a cena:

O pessoal combatente tinha saído quase todo e, contando com a besta, estávamos vinte e três militares europeus no quartel. A segurança era feita pelo Pel Caç Nat 51 e Milícias.

Durante a noite anterior tinha sido accionada uma das nossas armadilhas e de manhã deparamos com uma gazela morta no local.

Claro que o Álvaro, cabo cozinheiro, se preparou para ser dia de rancho melhorado. Não era todos os dias que nos aparecia a gostosa e suculenta carne fresquinha de gazela.

Como era da praxe, foi anunciar ao Celestino a composição da refeição, neste caso o almoço. Este, fazendo jus à sua fama de bom garfo, disse ao Álvaro para juntar uma lata de chouriço (dois quilos) para refinar a especialidade gastronómica.

Um tanto encavacado o cozinheiro observou que o animal tinha dado vinte e dois quilos de carne limpa o que, para vinte e três comensais, chegava e sobrava.
-Faça o que eu lhe mando! - berrou o Celestino.

De cabeça baixa, o Álvaro retirou-se congeminando o processo de o quarteleiro dos géneros, o soldado Melo, lhe fornecer a lata de chouriço.

O Melo não foi na cantiga. Ele conhecia bem as regras adoptadas para a recuperação dos prejuízos que já descrevi, e chutou a bola para mim.

Tomei a decisão de não se meter chouriço no tacho, mas levar, para os oficiais, um prato com um desses enchidos cortado às rodelas e preparei-me para o temporal que se adivinhava.

Guiné > Guileje > CART 1613 > 1969> O nosso primeiro posando com uma graciosa bajuda da tabanca
© José Neto (2005)

Quando o Celestino enfiou o guardanapo no colarinho e inspeccionou o manjar, ordenou que o cozinheiro viesse à sua real presença.O Álvaro passou pelo sítio onde eu estava a almoçar e disse-me que o comandante, se calhasse, o ia mandar prender.
-Sossegue. Eu vou consigo.

Antes que o trombone começasse a tocar eu adiantei-me e disse que toda a responsabilidade era minha. O cabo tinha cumprido uma ordem legítima, salientei.
-Legítima?!!! Então você contraria uma determinação do seu comandante e acha que a sua ordem é legítima?
-É sim, meu comandante. A administração desta companhia é da responsabilidade do nosso Capitão Corvacho e minha. E, como é do conhecimento de V. Exª., nós estamos a arcar com muitos prejuízos na alimentação e não nos podemos dar ao luxo de desprezar uma migalha que seja.

O homem emborcava garfadas e ia rosnando os impropérios do costume.A certa altura, virou-se para o Dr. Oliveira Martins e disse-lhe:
-Oh doutor, já viu a tropa que eu estou a comandar? Um reles segundo sargento manda mais que um tenente-coronel!!!

O médico, que também não morria de amores pela besta, abriu a sua resposta contemporizadora com a expressão:
-Bem, meu comandante, eu julgo...
-Você julga? Julga o quê? Você é médico, ou juiz? - interrompeu o Celestino.

Bom. Julga ou cura. Cura ou julga, o fulcro da questão desviou-me para os dois verbos e o médico, que não era pêra doce, aproveitou para lhas cantar, como se costuma dizer, forte e feio.

A porrada ficou pendente, mas o pêndulo às vezes tem caprichos do diabo, como se verá mais adiante.
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(1) Vd post de 8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(6): dos Lordes e das bestas:

"Celestino era o nome com que depreciativamente tratávamos o Ten-Cor. Celestino da Cunha Rodrigues, comandante do BART 1896, sediado em Buba, personagem muito sombria da minha memória pois ameaçou-me com cinco punições, nunca concretizadas. Algumas vezes o trato por besta nesta narrativa, com alguma propriedade".