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quarta-feira, 3 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21967: Antologia (77): Recordando dois generais do fim do império, e em especial Bettencourt Rodrigues, que se confirma ter feito uma visita-relâmpago a Madina do Boé, no último trimestre de 1973, acompanhado de jornalistas estrangeiros (excertos de António Martins de Matos, "Voando sobre um ninho de Strelas", Lisboa, 1ª ed, 2018, pp. 231-239)


1. A propósito da visita-relâmpago que o gen Bettencourt Rodrigues fez a Madina do Boé, em 16 de novembro de 1973, com dois jornalistas alemães (*),  fomos reler o livro de memórias do nosso amigo e camarada António Martins de Matos, na altura ten pilav (BA 12, Bissalanca, 1972/74), hoje ten gen pilav ref, "Voando sobre um ninho de Strel
as" (1ª edição, Lisboa: BooksFactory, 2018, 375.pp.; teve, em 2020,  em 2ª edição revista e aumentada, ver capa acima).(**)

O autor  [, foto à esquerda] fala deste episódio, em breves linhas, no capitulo 35 (pp. 231-239, 1ª ed.), que tem por título "Dois Generais". 

Tomamos a liberdade de reproduzir alguns excertos, para informação e conhecimentos dos nossos leitores, e com a devida vénia ao autor, que teve sob os céus da Guiné uma brilhante e corajosa atuação como piloto do Fiat G-91.


(…) Em 25AGO73 e em Lisboa, o General José Manuel Bettencourt Conceição Rodrigues tomou posse do cargo de Governador Geral e Comandante-Chefe da Guiné.

Militar brilhante, vinha habituado a grandes operações lá pelas vastidões do Leste de Angola. A sua chegada à Guiné só veio a ocorrer em 21SET73, praticamente um mês depois da sua tomada de posse.

(…) Aquele hiato entre a tomada de posse e a chegada a Bissau talvez tivesse sido aproveitada para alguns estudos, mais precisamente em como replicar as estratégias e tácticas de Angola naquele pequeno território.  E bem precisávamos de estratégias, já que, tendo chegado de férias ainda não há uma semana, [eu] já levava 14 missões de alertas e bombardeamentos em Fiat G-91.

(…) Fiquei impressionado com o senhor, militar de grande prestígio, antigo Ministro do Exército e pacificador do Leste de Angola (…). Só não conseguia compreender como se tinha prestado a tal sacrifício, vir ser crucificado em terras da Guiné (…).

(...) Coitado do General, a coisa começou-lhe logo mal, 3 dias depois de chegar a Bissau, o PAIGC declarou a “independência nas áreas libertadas do Boé”. Até parecia que era de propósito…

Estrebuchou, perguntou-nos como tal era possível, por que tazão não tínhamos previsto tal desiderato, lá lhe respondemos que tínhamos estado sempre em alerta, a cerimónia teria sido feita em todo e qualquer lugar menos onde eles afirmavam e garantíamos que naquele último mês e na Guiné nada de diferente se tinha passado.

Naquele tempo não havia GPS, era fácil enganar um qualquer jornalista, certamente não se podiam arriscar a sofrer um bombardeamento em plena cerimónia.

Apenas meio convencido, vestiu o camuflado e foi a Madina do Boé acompanhado por uma série de outros jornalistas [, na realidade, dois, alemães] (*)

Verificação no local (tipo S. Tomé, ver para crer), tudo no Boé continuava igual ao momento em que as nossas tropas a tinham deixado, nada ali tinha ocorrido.

Nunca viemos a saber onde teria decorrido a cerimómia de independência, desde logo suspeitámos que tivesse ocorrido em território da Guiné Conacri. Ainda hoje o tema é confuso, aos poucos a Guiné Bissau tem puxado o acontecimento para dentro do território já que não seria politicamente correcto confessarem terem feito a cerimónia no “estrangeiro”.

Tendo desistido [de Madina] do Boé, há actualmente vários locais candidatos, Vendu Leidi, Lugajole, One Fello… acho que o verdadeiro local do evento será identificado lá para o século XXIII.

(...) Em 26 ABR74 o General Bettencoitr Rodrigues, herói de Angola, foi devidamente enxovalhado preso no Forte da Amura pelos seus próprios subordinados. (...)

(...) Já o General Spínola era um grande Cabo de Guerra mas não percebia nada de política (...).

(…) Tenho saudades do meu “Caco Baldé” (pp. 231-239)

António Martins de Matos



Guiné >Região do Gabu > Boé > Madina do Boé > 16 de novembro de 1973 > O jornalista alemão, da Reuters, Joachim Raffelberg, e o gen Bettencourt Rodrigues, governador-geral e com-chefe que substituiu o carismático gen António Spínola. (Tomou posse do cargo, em Lisboa, em 25/8/1973., mas só chegou ao CTIG em 21/9/1973, três dias antes da proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau; em 16 de novembro de 1973, fez uam visita-relâmpago à antiga Madina do Boé, no âmbito da Op Leopardo, 15-17 nov 1973 )

Fonte: Página do Facebook de J. Raffelber,Raffelnews, Álbum Madina do Boe, 29 de janeiro de 2018 (cm a devida vénia)
______________

Notas do editor:

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21956: Facebook...ando (60): o gen Bettencourt Rodrigues, em 16 de novembro de 1973, em Madina do Boé, com dois jornalistas alemães, para verem "in loco" o sítio onde o PAIGC teria alegadamente proclamado a independência unilateral


Foto nº 1

Guiné >Região do Gabu > Boé > Madina do Boé > 16 de novembro de 1973 > O jornalista alemão, da Reuters,  Joachim  Raffelberg, e o gen Bettencourt Rodrigues, governador-geral e com-chefe que, a partir de 21/9/1973, substituiu o carismático gen António Spínola.


Foto nº 2

Guiné >Região de Gabu >  Boé > Madina do Boé > 16 de novembro de 1973 > Os dois  jornalistas alemães, à esquerda (Joachim  Raffelberg, da agência Reuter, e Guenter Krabbe,  do Frankfurter Allgemeine Zeitung; e à direita  o gen Bettencourt Rodrigues. Ao centro, um oficial superior não identificado e um oficial paraquedista, da força do BCP 12 que montou a segurança no local (Op Leopardo, Madina do Boé, de 15 a 17 de  novembro de 1973,  em que participaram as CCP 121 e CCP 122, tendo a CCP 121 ficado de reserva em Dulombi, segundo informação do nosso camarada Manuel Dâmaso). 

Recorte do Diário de Notícias, 23/11/1973



Foto nº 3

Recorte do Diário de Lisboa, 23/11/1973


Foto nº 4

Guiné > Região do Cacheu > Rio Cacheu > c. 13-20 de novembro de 1973 > O jornalista alemão da agência Reuters,  Joachim Raffelberg a bordo do NRP LFG Cassiopeia, de 300 toneladas, e 27 tripulantes, a caminho da fronteira com o Senegal, depois da visita a Madina do Boé (no dia 16).

1. Na página do Facebook do antigo jornalista da  agência Reuters, Joachim Raffelberg, chamada Raffelnews, Serviço comunitário, encontrámos esta "preciosidade", um álbum sobre Madina do Boé, com fotos (legendadas  em inglês), inseridas em 29 de janeiro de 2018, incluindo recortes de jornais portugueses (Diário de Notícias e Diário de Lisboa) que reproduziram a notícia da agência noticiosa portuguesa, ANI, dando conta de uma visita de jornalistas estrangeiras, de helicóptero, à antiga Madina do Boé, acompanhados do gen Bettencourt Rodrigues, o então novo comandante-chefe do CTIG.  

A visita terá ocorrido no dia 16 de novembro de 1973, quase dois meses depois da proclamação unilateral da independência que o PAIGC reclamava ter sido feita na antiga Madina do Boé, evacuada em 6 de fevereiro de 1969. (*)

Com a devida vénia, reproduzimos alguns desses documentos, que são importantes para informação e conhecimento dos nossos leitores, antigos combatentes  (**),  com tradução nossa, livre,  para português, das legendas (, no todo ou em parte), que se reproduzem, a seguir, em itálico:

Foto nº 1

(....) Os cerca de 500 anos de domínio colonial português estavam a chegar  ao fim. (...)  Apesar das minhas reportagens críticas, em 1971,  sobre o uso de napalm no teatro de operações de Angola, o Governo português convidou-me,  mais uma vez,  para visitar uma das suas colónias africanas, desta vez, a Gyuiné, um pequeno ponto na costa da África Ocidental

[O antigo jornalista também tem um pequeno álbum sobre o alegado uso de napalm em Angola, vd. aqui: Napalm in  Angola 25 jan 2018]

(...)  Aqui, na Guiné,  o PAIGC de Amílcar Cabral, um dos principais líderes anticoloniais africanos (assassinado em janeiro de 1973), esforçava-se por derrubar  as forças armadas portuguesas,  primeiro sob o comando do general do monóculo,  António de Spínola, e agora, em 1973, sob a liderança pelo general José Manuel de Bettencourt Rodrigues, ex-ministro da Defesa.

Lisboa sempre rejeitou, como falsa,  a reivindicação do PAIGC de extensas áreas libertadas no  interior do território, mas quando o PAIGC em 1973 declarou que tinha proclamado a independência da Guiné-Bissau num  local chamado Madina do Boé em 24 de setembro, as autoridades militares portuguesas levaram, até lá,  jornalistas estrangeiros,  sete semanas depois,  para provar que os rebeldes estavam errados.

Hoje já sabemos qual foi o desfecho: o próprio General de Spínola abriu caminho aos libertadores,  com o seu livro “Portugal e o Futuro”,   que pôs em marcha a revolução dos cravos de 1974: ao som da canção “Grândola, vila morena”,  tocada pela Rádio Renascença a partir da meia-noite de 25 de abril, em menos de 24 horas, seria derrubada a ditadura mais antiga da Europa.(...)


Fotos nº 2:

Guenter Krabbe (...) e eu  fomos acompanhados pelo governador Bettencourt Rodrigues (...) no nosso passeio de helicóptero ao local, situado a poucos quilómetros da fronteira com a Guiné-Conacri. Depois de Bafatá, o piloto vestiu o seu colete à prova de bala para não correr nenhum risco. 

Verificamos o percurso no mapa do comandante. Em Madina do Boé, o nosso grupo foi saudado por Forças Especiais Portuguesas [. tropas paraquedistas, CCP 122 /  BCP 12,] que tinham enviadas previamente para limpar a área, em caso de necessidade. (***)

O general  deu-nos 'uma pausa para o cigarro' , o tempo suficiente para dar uma olhadela no terreno à volta,  antes de regressarmos. Tudo o que encontramos no terreno de savana  foram os restos de um edifício que parecia um barraco e as fundações de várias palhotas. Não tínhamos permissão para inspecioná-los porque o local havia sido minado, conforme aviso que nos fora feito. 

Se o PAIGC tivesse ter declarado aqui a independência, eles bem poderiam  ter atravessado a fronteira próxima e regressado a correr,  após uma possível breve cerimónia.

Embora o Krabbe tenha escrito que não havia nenhuma povoação em Madina do Boé, muito menos com aspeto de estar inserida numa zona libertada, os jornais portugueses citaram extensivamente a minha história com um enfoque no colete anti-balas do piloto.

Foto nº 3

(...) Sem mo dizer, o QG da Reuter tinha enviado, ao mesmo tempo que eu,  um colega a Conakry para confirmar, do “outro lado”, a declaração de independência alegadamente feita em Madina do Boé,  e a Reuters atrasou a transmissão da minha reportagem aos nossos nossos subscritores, até que eles validassem comigo as coordenadas do lugar que nos disseram ser Madina do Boé, uma vez que tinham detectado um erro  no grau de latitude no meu fax. Acontece que o grau correto se perdeu na transmissão (...)

J. Raffelberg, na altura  correspondente da Reuter em Bona,  tinha recebido instruções para  explorar a oportunidade de obter informação em primeira mão  sobre um assunto controverso (a proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau), o mesmo é dizer, conseguir um "furo jornalístico", mas o relato do repórter deveria passar primeiro pela sede da Reuter em Londres, com vista a garantir que os padrões da agência, de objectividade,  imparcialidade e triangulação de fontes,  estavam assegurados.

Foto nº 4

 "Os marinheiros nos disseram ter [, a Cassiopeia.]  participado da invasão marítima de Portugal à Guiné-Conacri em [22 de novembro] de 1970 para capturar ou matar Amílcar Cabral, mas a missão falhou. Quando naveguei com eles no rio Cacheu em 1973, o seu comandante  era o 1.º tenente António Silva Miguel".

O gesto do novo comandante-chefe e governador-geral,  gen Bettencourt Rodrigues, parece ter chegado demasiado tarde. E não terá tido grande repercussão na imprensa internacional: os dois jornalistas alemães terão estado menos de 15 minutos em Madina do Boé, e com forte protecção militar. Acrescente-se ainda o facto de a Op Leopardo não ter ficado barata, dada a mobilização de meios que implicou (parte do BCP 12 e parte da frota de Helis AL III).
 
Cerca de 8 dezena de países, sobretudo do bloco soviético, China e países não-alinhados africanos, árabes e asiáticos,  foram reconhecendo o novo país. Portugal, como é sabido, só   um ano depois, em 10 de setembro de 1974, é que reconhece "de jure" a independência da Guiné-Bissau. E também só nessa altura, a 17 de setembro de 1974, é que a Guiné-Bissau é  reconhecido como novo membro da Assembleia Geral da ONU. Guiné-Bissau que é agora um país lusófono, integrado na CPLP.   

(...) Assunto - P3909: Perguntas, por que é que a FAP não bombardeou Madina de Boé em 24/9/73 ?

Não tenho qualquer dado para responder a isso, mas posso contar o que aconteceu em 69

(...) Como sabes, Madina foi abandonada mas ficou "minada". Passados uns dias (?) desta retirada, Spínola foi com um fotógrafo, o Maj Bruno e cinco páras, fazer umas fotos pois o Paris Match tinha publicado imagens de Amílcar Cabral como sendo em Madina, com a legenda "A tomada de Madina".

Eram dois Helis, eu seguia num, com os Páras (picadores na especialidade). As ordens eram as seguintes: Eu largava um Pára que picaria o terreno para os Helis aterrarem. Assim foi executado.

Para que o IN pensasse que havia muita tropa, foi feita uma manobra de diversão. Enquanto o Gen Spínola estava em terra, os dois helis aterravam e levantavam fazendo voltas de pista, para sugerirem muitos efectivos.

As movimentações em terra eram feitas com muito cuidado. No único local onde há montes na Guiné [, as famosas Colinas do Boé,], os Helis apareciam e desapareciam para dar a ideia de muito aparato.

Recuperado o Chefe, Maj Durão, fotógrafo, e julgo mais um graduado, e os quatro Páras, que seguiram comigo, nunca mais voltei a aterrar em Madina do Boé.

Com estas fotos, Spínola queria mostrar que Madina ainda era controlada por nós, mesmo abandonada.

Porquê toda esta tosca explicação?

Acho que seria inapropriado o PAIGC ir com o seu Povo fazer uma cerimónia de independência num local que eles sabiam estar minado. Não saberia a FAP que eles nunca iriam a Madina ?

A cerimónia terá sido mesmo em Madina do Boé, dentro da Guiné? A Guiné-Conacri fica ali a dois passos.

Gostaria de saber se, em 1973, o Gen Bettencourt Rodrigues aterrou em Madina ou só fez umas passagens para ver se havia alguém.

Afinal não estou a esclarecer nada, estou a aumentar as dúvidas!!! (...)

(**)  Último poste da série > 5 de janeiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21736: Facebook...ando (59): Sobre a CCAV 678 a que pertenceu o fur mil Jorge Nicociano Ferreira, já falecido: (i) esteve menos de 3 meses na ilha do Sal, Cabo Verde; (ii) foi render a CCE 342 (?); (iii) em Bissau, e antes de partirem para a Zona Leste (Bambadinca), fizeram escoltas a barcos de reabastecimento às NT em Catió (Rui Ferreira / Eduardo dos Santos Roque Ablú)



Guiné > Região de Bafatá > Dulombi > Op ÇLeopardo (15-17 de nevembro de 1973) > Heli Al III estacionados em Dulombi. 

Cortesia de António Dâmaso / Blogue Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 61/74

(***) Segundo informação prestada pelo Manuel Dâmaso, membro da nossa Tabanca Grande, no Blogue Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 61/74 >1 de setembro de 2011 > Voo 2465: Um comandante de ideias fixas (2)

António Dâmaso, Srgt-Mor Paraquedista.
Azeitão

(...) Gozei as minhas merecidas férias, regressei mais renovado e continuei a comandar o 2.º
Pelotão, nestas funções tomei ainda parte na Guarda de Honra que a CCP 121 fez à recepção da chegada do novo Governador da Província, General Bettencourt Rodrigues em 21 de Setembro de
1973. (...)

A actividade operacional tinha abrandado muito, enquanto estive de férias a Companhia só fez uma operação conjuntamente com a CCP 123.

Comandei o Pelotão até 01Nov73, data em chegou um Alferes para o comandar, participei na Operação “Leopardo” de 15 a 17 de Nov73, em Madina do Boé em que participaram as CCP 121 e CCP 122, consistiu em levar uma equipa de fotógrafos ao local onde diziam que tinha sido declarada a Independência, mas quem lá foi disse que não havia lá nada, nem indícios,  não há dúvidas que filmaram foi noutro local e não em Madina do Boé. (...)

Desta vez não fui como operacional, fui como responsável pela logística da Companhia, no dia 15 fomos jantar e dormir a Bafatá, pela manhã arrancámos até Dulombi em viaturas auto, a minha Companhia  [, CCP 121,] ficou de reserva em Dulombi, já lá tinha estado 4 anos antes em 1969 (...).

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21834: Notas de leitura (1338): "Voando sobre um ninho de STRELAS", por António Martins de Matos; Edições Ex Libris, 2020 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2021:

Queridos amigos,
 
Na escassa bibliografia emanada de Oficiais da Força Aérea que combateram na Guiné, este depoimento de um então Tenente Piloto-Aviador permaneceu em atividade de 1972 a 1974, conseguintemente pôde assistir à evolução da guerra, à chegada dos mísseis terra-ar, fez parte das missões de grande delicadeza como bombardeamentos nalgumas das mais significativas bases de abastecimento do PAIGC, que presenciou os terríveis acontecimentos de maio de 1973 e a mudança dos Comandantes-Chefes, é de uma grande importância, que se saiba, não há outro de igual dimensão. 

Cinjo-me à narrativa dessas atividades, o agora Tenente-General postula considerações que merecem amplo debate e fazer uma recensão não passa por debater conjeturas ou especulações, como ele faz com o projeto de Sékou Touré em manipular o PAIGC para depois se apossar do território.
 
Nenhuma documentação valida estas especulações, elas seriam mesmo inviáveis por falta de apoio dos combatentes guineenses de Bissau, das populações em geral da Guiné-Bissau (recorde-se a trepa que deram aos invasores a guerra civil de 1998-1999), a Guiné-Bissau era então um rasto de luz para os movimentos revolucionários, não havia qualquer apoio internacional para um golpe sórdido de Sékou Touré para asfixiar um povo que se libertara pelas suas próprias mãos.

Um abraço do
Mário



A Guiné de 1972 a 1974 vista por um tenente da Força Aérea ao tempo (2)

Mário Beja Santos

O livro "Voando sobre um ninho de Strelas", redigido pelo Tenente-General António Martins de Matos, 2.ª edição, Sítio do Livro, 2020, é uma narrativa da sua caminhada para a Força Aérea e uma descrição exaustiva da sua comissão na Guiné de 1972 a 1974. Esmiúça ao pormenor a chegada do míssil Strela e como se processou a adaptação para contrariar os seus tão nefastos danos. 

O moral das Forças Armadas na Guiné já conhecera melhores tempos, Spínola aceitou um bombardeamento em território na Guiné Conacri, em Kambera, na zona Sul. 

“Tinha apenas uma vaga ideia do nome, base de apoio do PAIGC, recebendo o material de guerra de Kandiafara e posteriormente fazendo de entreposto para o Leste e Norte”

A missão foi à hora do almoço, o alvo rapidamente identificado, largaram as bombas e tudo ficou coberto por nuvens de pó. 

“Só muito mais tarde soubemos que os resultados tinham sido devastadores, de tal modo que o PAIGC resolveu abandonar definitivamente aquele local”.

E assim chegamos à reunião de 15 de maio de 1973, Spínola convocara uma reunião de Altos Comandos, estas altas patentes apresentaram-lhe os seus pontos de vista e enumeraram os requisitos operacionais necessários para se continuar a manter a superioridade militar na guerra contra o PAIGC, houvera discussão na Base Aérea n.º 12 e identificaram-se necessidades urgentes, a saber substituição das metralhadoras 12,7 milímetros do Fiat G-91 por canhões 20 ou 30 milímetros; em alternativa, a instalação de dois PODs com canhões nas estações interiores das asas. Tece uma reflexão: 

“Aqui que ninguém nos ouve, o armamento que a Força Aérea usava na altura para combater o PAIGC estava completamente em desacordo com o tipo de guerra que estávamos a travar. A ideia de andar a caçar guerrilheiros usando bombas variadas era um pouco como matar formigas com um martelo. A missão do Fiat G-91 nunca deveria ser essa, a sua especialidade era a destruição de objetivos com algum significado. Mas os erros em relação ao armamento utilizado até ao momento não se ficavam apenas nos Fiat G-91. Na área dos helicópteros as coisas não estavam melhores. O transporte de tropas com cinco helicópteros AL-III em coluna logo alertavam o inimigo. A arma mais indicada para combater aquela guerra de guerrilha contra o PAIGC não era o Fiat G-91 mas sim o helicanhão. Nunca soube quantos equipamentos de helicanhão existiam, suspeito que seriam poucos já que nunca vi mais de dois em simultâneo.”

Na reunião de Altos Comandos, o Coronel da Força Aérea salientou a total inexistência de meios de deteção e interceção e a limitada eficácia de defesa com armas antiaéreas, havia necessidade de um radar unidirecional e uma força suficientemente dimensionada de aviões com grande capacidade de retaliação. 

A Força Aérea na Guiné apresentou um documento enumerando os pedidos: 8 aviões SKYVAN para substituírem os DO-27; 5 helicópteros com armamento axial para substituírem os AL-III; 12 aviões MIRAGE para substituírem os Fiat G-91; radar de longo alcance. Todas as outras armas fizeram inúmeros pedidos, a Acta de 15 de maio anda publicada por toda a parte, é uma questão de conferir. Tece depois considerações sobre o radar e segue para o cerco de Guidaje, iniciado em 8 de maio, dá conta das atribulações sofridas pela tropa apeada, para aliviar a pressão realizou-se um ataque a Kumbamori, a Operação Ametista Real: as nossas forças contabilizaram 10 mortos e 22 feridos, o PAIGC teve mais de 60 mortos e a destruição do seu armamento foi uma cifra impressionante. Lamenta que a Força Aérea não tenha sido lembrada ao tempo em que se condecorara o Comandante da Operação Ametista Real. 

Segue-se Guileje, Martins Matos revela-se profundamente crítico da estratégia adotada, inclusive a escolha de Guileje para sede do COP-5. O episódio seguinte está relacionado com o anterior, é aquela cena quase apocalítica de Gadamael. E Costa Gomes volta à Guiné, de 6 a 9 de junho, pelo que propõe não há muitos mais meios a oferecer àquele teatro de operações, fala-se então em retração, o Comandante Militar apoia, Spínola é relutante, é bem provável que esteja aqui o motivo fundamental para ter pedido a demissão. 

O autor interroga o que levou a ofensiva do PAIGC no Sul a deter-se depois de Gadamael e faz a sua reflexão: 

“Por um lado a presença do Batalhão de Paraquedistas condicionou de imediato os movimentos dos guerrilheiros na zona; por outro lado a Força Aérea Portuguesa começou por bombardear as matas à volta de Gadamael, silenciando várias bases de fogo". Mais tarde entrou pelo território da República da Guiné-Conacri, destruindo a maior base de apoio do PAIGC (situada perto da localidade de Kandiafara, e descreve pormenorizadamente a Operação, que constituiu um sucesso. “A capacidade de abastecimento do PAIGC na região Sul ficou seriamente abalada e o grande esforço que vinha realizando nesta área diminuiu-se de imediato”.

Mantinha-se ainda intacta uma base de abastecimentos do PAIGC, em Koundara, a cerca de 50 quilómetros a leste de Buruntuma, o novo Governador, Bettencourt Rodrigues, não autorizou. O autor não esconde o descontentamento com o estilo do novo Comandante-Chefe. Em 31 de janeiro do ano seguinte novo avião abatido por um míssil Strela. Entra depois na questão polémica se havia ou não havia MIG-17 e MIG-19 do PAIGC na Guiné Conacri. Tece também conjeturas quanto à estratégia de Sékou Touré para conduzir o PAIGC à independência. E assim chegamos ao 25 de abril e Martins Matos não esconde uma relativa acrimónia sobre comportamentos e aspetos da descolonização.

O contributo do autor para o conhecimento das atividades da Força Aérea neste período crucial é do maior mérito. Quanto ao mais, como tenho vindo a insistir, há um conjunto de nebulosas sobre os acontecimentos militares na Guiné de 1973 e 1974 que requerem uma investigação dos arquivos dos Ministérios da Defesa Nacional e do Ultramar, pela simples razão que competia ao decisor político a última palavra. Quando o Comandante Militar alvitra na sequência da reunião de 15 de maio, 

“Se não forem concedidos os reforços solicitados e as armas que permitam às NF enfrentar o IN atual, para lhe evitar, a breve prazo, a obtenção de êxitos de fácil exploração psicológica e graves efeitos estáticos da maior influência na moral das NT, julga-se será necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista militar se consideram essenciais (…) Mas neste caso, as missões atualmente dadas às NF, em termos de proteção das populações e apoio ao esforço principal da manobra de contrassubversão centrado na manobra socioeconómica, teriam de ser revistas…”

Costa Gomes irá perfilhar este ponto de vista, não havia possibilidade de reforço do teatro de operações. Iria ser adotada a manobra do retraimento do dispositivo para aquém da linha geral: rio Cacheu-Farim-Fajonquito-Paunca-Nova Lamego-Aldeia Formosa-Catió. Era reconhecido na retração que o PAIGC iria ocupar uma fatia considerável das áreas das fronteiras Norte e Leste, e no Interior, no Nordeste e Boé. T

udo se tinha complicado, como aliás consta do volume da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, 6.º volume, tomo II, livro III, 2015, página 428, quando Bettencourt Rodrigues enviou em 20 de abril uma nota que confessava: “[…] são motivo de grande preocupação para este Comando-Chefe, cumprindo-lhe assinalara as consequências que podem resultar da possível evolução do potencial de combate do PAIGC ou do seu eventual reforço com novos meios das FA da Guiné, quer quanto à capacidade de resistência das guarnições militares que porventura sejam atacadas, quer quanto às limitações de intervenção com meios à disposição do Comandante-Chefe, em especial meios aéreos”

Enfim, o decisor político não tinha mais nada para dar, prenunciava-se um qualquer tipo de holocausto, antevisto numa linguagem elegante e formal de Bettencourt Rodrigues.

O passo decisivo para acabar com estas lendas negras é ir à profundeza dos arquivos, eles estão à nossa espera, com as revelações que permitirão esclarecer as responsabilidades dos últimos avatares do Estado Novo.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21806: Notas de leitura (1337): "Voando sobre um ninho de STRELAS", por António Martins de Matos; Edições Ex Libris, 2020 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20880: Notas de leitura (1280): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:

Queridos amigos,
O conteúdo deste livro impõe-se por si: identificasse o tipo de jornalismo que existiu durante o período que abarcou a guerra colonial, como se encenavam as notícias, como nos jornais, rádio e televisão atuavam os ideólogos do Estado Novo; depois quais eram os mecanismos da censura e da autocensura, vão depor nomes sonantes do jornalismo, tenho para mim que a peça que passará à história é do jornalista Moutinho Pereira.
Haverá testemunhos e interrogações sobre história e jornalismo, desinformação e descolonização. Dirão alguns que da leitura deste livro resultará o que já sabíamos, o jornalismo tinha tremendas condicionantes e a censura era implacável, mas o mais importante é que ficou a visão dos autores, e há quem saiba expender juízo sobre o seu trabalho jornalístico, entre a realidade e a ilusão, e mesmo a memória que ficou desse jornalismo.

Um abraço do
Mário


O jornalismo português e a guerra colonial (3)

Beja Santos

Sílvia Torres
“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma atuava, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este género jornalístico é de estudo indispensável na investigação histórica.

José Manuel Barroso foi colaborador dileto de António Spínola, esteve na Guiné entre Julho de 1972 e Maio de 1974, como capitão miliciano; antes do 25 de Abril, como jornalista, passou pelas redações dos jornais Comércio do Funchal e República. Viu nascer o livro  "Portugal e o Futuro", que virá a ser publicado em Fevereiro de 1974:

“O livro começou a ser construído, ainda em Bissau, no final de 1972, início de 1973, com tarefa de sistematização a que se dedicou o Tenente-Coronel Pereira da Costa, que havia sido Chefe da Repartição de Informações do Comando-Chefe. A base conceptual do livro era constituída pelos discursos e pela posição de Spínola sobre a política ultramarina, já reunida em diversos volumes ao longo dos anos de governo da Guiné. Spínola distribuía os capítulos do original por alguns dos seus mais próximos colaboradores, pedindo sugestões e críticas, que depois recolhia e incorporava, ou não, no texto base. Após esta fase, o livro ainda teve outras leituras externas, até atingir a versão final”.

Confessa que trabalhou numa atmosfera a alguns títulos estimulante, havia a guerra e a visão particular de Spínola sobre a guerra e a política ultramarina.

Preparava notícias que Spínola aprovava. Perguntado sobre o que é que era proibido noticiar respondeu que não se utilizavam por exemplo informações relacionados com êxitos do inimigo.

“No entanto, por vezes, escrevia-se sobre essas vitórias para obter uma reação de Lisboa, mostrando que a situação estava pior e que havia cada vez mais problemas. Explica como se fez a intermediação entre Spínola e Raul Rego e como fez de intermediário e Mário Soares". 

Spínola cessa funções em Agosto de 1973, é substituído por Bettencourt Rodrigues, perguntam-lhe o que mudou nas suas funções, nada aconteceu, responde.

A grande peça da entrevista que este volume organizado por Sílvia Torres oferece foi feita ao jornalista Moutinho Pereira. Avisa o entrevistador que o que vai dizer não é nada agradável.
Logo a origem da guerra colonial, é cortante e direto:

“Até 1961, Angola pertencia a meia-dúzia de entidades. Entre elas estavam os senhores do café. Quando se desencadeou a guerra no Norte de Angola, além dos colonos portugueses, houve uma população negra que foi muito vitimada: os Bailundos. E o que faziam os Bailundos ali, se são do Sul, das terras do planalto do Huambo, e se são inimigos tradicionais das tribos do Norte, como os Bacongos? 

"Os Bailundos eram contratados para ir tratar nas roças de café – só a vida desses contratados é uma longa e terrível história. Sempre que havia problemas no Norte, criava-se uma tropa de Bailundos para lutar contra os Bacongos. Havia um ódio tribal antigo, que foi explorado e mantido pelas autoridades portuguesas durante séculos. A zona do café é a zona dos dembos, que coincide com o reino dos Dembos. Ao contrário do que dizem, o início da guerra não tem a ver com outras descolonizações, o início da guerra está ligado à exploração do café. Todas as revoltas dos Dembos estão relacionadas com altas na cotação do café, que levam os proprietários de plantações a alargarem-nas ainda mais, entrando na terra dos outros, como se não tivessem dono”.

Louva as personalidades de Ferreira da Costa e de Fernando Farinha. Esteve em Mucaba numa das colunas do Tenente-Coronel Maçanita, teve cuidado no que escreveu, e diz que nessa reportagem referiu-se que a tropa da UPA incluía chineses. Sobre o conflito disse que a guerra em Angola foi sempre a mesma.

“Era uma guerra desgastada, em que ninguém ganhava, e isso sabia-se. O conflito só teve um sobressalto quando o MPLA abriu a frente Leste".

E volta a ser cortante e direto:  

“Os portugueses escondem os factos mais relevantes da guerra, porque parece mal, porque os militares que foram para lá segundo a historiografia oficial, foram vítimas de um governo fascista que os obrigou a ir combater contra os nossos irmãos africanos. A verdade está nessa história do café, está no facto de ser proibido ter fábricas de algodão – e a história da Cotonang (Companhia Geral dos Algodões de Angola) é outra que está por contar. Fala-se muito dos massacres de 1961, que foram muito divulgados em Portugal, juntando a UPA e o MPLA na mesma panela, e que de facto foram horríveis, mas ninguém fala dos horrores das fossas comuns que se lhe seguiram e de outras barbaridades mais”.

Explica a sua técnica de observação para a elaboração das suas reportagens. Nunca esqueceu a entrevista que fez ao General Costa Gomes publicada na Notícia a 17 de Outubro de 1970:

“É a primeira vez que se diz que a guerra não tem solução militar, que tem de ter uma solução política. É a primeira vez que se diz quanto é que se está a gastar com a guerra e quem é que a está a pagar”.

Depõem ainda Otelo Saraiva de Carvalho sobre o seu trabalho na Guiné, seguem-se os testemunhos do jornalista Avelino Rodrigues que entrevistou Spínola para o Diário de Lisboa e onde se usou o termo de autodeterminação, Spínola disse que o termo não o incomodava.

Manuela Gonzaga fala do seu trabalho no jornal Notícias, de Lourenço Marques e faz a seguinte observação acerca do teatro de guerra e da vida normal das populações mais a Sul:

“Era como se houvesse dois números, em planos sobrepostos, que, por vezes, entravam em dramática colisão, acordando-nos para um fim que se avizinhava, mas que ninguém, a começar pelas mais altas autoridades da nação, queria ver. Na capital, a guerra não existia. Mas, em breve, o hospital de Vila Cabral rebentava pelas costuras para responder a situações graves. Nesses casos, os soldados tinham que ser transferidos para o Hospital Militar de Nampula em helicópteros cujas pás de ventoinha gigante acabaria por desencadear em muitos civis e militares um reflexo condicionado de puro horror”.

Seguem-se ainda outras entrevistas e no final do livro Aniceto Afonso, José Manuel Tengarrinha e Joaquim Furtado debruçam-se sobre descolonização, desinformação e investigação histórica. Joaquim Furtado adianta que “A consumação das descolonização, nos termos em que ocorreu, é um resultado de desinformação generalizada que atingia também os jornalistas. Mais do que qualquer outra forma de repressão, a censura terá sido o instrumento do Estado Novo cujos efeitos mais penalizaram o desenvolvimento de Portugal, até hoje”.

Insiste-se que este livro sobre o jornalismo português e a guerra colonial é incontornável para todo e qualquer trabalho de investigação histórica no que toca às três frentes que travámos na guerra de África.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20853: Notas de leitura (1279): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20793: Notas de leitura (1277): O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2017:

Queridos amigos,

Se vos trago à reflexão o artigo saído do punho do Coronel Vaz Antunes sobre conversações que teve no último dia de Junho de 1973 com alegados negociadores da fação guineense do PAIGC, que terão entusiasmado Spínola, há que ter em conta todas as alterações do xadrez político-militar daquele tempo: os mísseis Strela, o endurecimento das relações entre Marcelo Caetano e Spínola, a visita de Costa Gomes em Junho, no rescaldo dos acontecimento de Guileje, Gadameal-Porto e Guidage, e em que se definiu a retração do dispositivo em termos tais que Spínola se apercebeu que era o princípio do fim; a nível do PAIGC, caminhava-se para novo Congresso que preparava a radicalização política, com consequências desastrosíssimas para a diplomacia portuguesa, e muito mais. Spínola perdera o é dos acontecimentos, a fação guineense ficou entregue a si própria.

É convergência de todos estes fatores que preludiam o 25 de Abril, o encontro em território senegalês, no último dia de Junho de 1973 é demonstrativo de que os combatentes guineenses caminham para a sua própria independência, o tempo político em Portugal já não permitia consolidar a tal Guiné melhor.

Um abraço do
Mário


O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto

Beja Santos

Cor António Vaz Antunes
O Coronel António Vaz Antunes elaborou um documento, datado de 1987, intitulado “Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê?”. O documento é público, o leitor interessado tem dele acesso através do link indicado em rodapé.[1]

Encontrei-o na Biblioteca da Liga dos Combatentes, em dia sim, pois emprestaram-me a importante história dos Paraquedistas na Guiné e a Engenharia Militar na Guiné, de que já se fez as competentes recensões.

A diligência que o General Spínola pediu ao Coronel António Vaz Antunes, de acordo com esta versão, poderia ter tido o condão de mudar o curso da guerra travada na Guiné. Mas vamos aos factos, tome-se o que escreveu o Coronel Vaz Antunes.

Este militar estava ligado à Operação Guidage, naturalmente desgastante, naquele terrível Maio de 1973. Recebeu a ordem do Comando-Chefe para montar um Comando avançado em Cuntima. O oficial chega à Companhia e o Comandante da mesma não escondeu a sua surpresa, terá suposto que a sua capacidade para enfrentar a situação não era suficiente. No dia 29 de Junho três helicópteros aproximam-se da pista, coisa que não acontecia há meses. Numa conversa a sós, Spínola explica-lhe o que o levou ali:

“No tom mais cordial que imaginar-se se possa, contou-me o que tinha sido a sua acção desde que chegara à Guiné, nos contactos com o Presidente Senghor, com os comandos do PAIGC nos tempos de Amílcar Cabral e as suas diligências na interferência da escolha do próximo secretário-geral do PAIGC, cuja eleição iria ocorrer dentro de dias”.

O Coronel Vaz Antunes ouvia tudo com muita atenção mas não compreendia a natureza desta abertura, esta abordagem de temas tão secretos. Sempre bem-humorado, e sem nunca lhe explicar a natureza dos aspetos tão confidenciais, Spínola regressou a Bissau.

A 30 de Junho, tudo se precipita, Vaz Antunes é procurado por um Fula que era um agente de informações com o nome de código Padre, algo se sabia pertencente ao Front da Guiné Conacri. Conheciam-se, Padre era um elemento de peso, chegara a ir com um agente da DGS de Farim até Bissau de avião. Padre surpreendeu completamente Vaz Antunes: “pediu que fizesse uma mensagem relâmpago para Bissau solicitando a presença do General Spínola nesse dia, ali em Cuntima, para um contacto com alguns dirigentes do PAIGC”.

Vaz Antunes entendia agora a visita da véspera. Começa a troca de mensagens, Bissau responde que não é possível a deslocação àquela hora, 16 horas. Padre mostrou-se angustiado, pediu então a Vaz Antunes para comparecer na referida reunião. Depois de algumas peripécias, Vaz Antunes atravessa a fronteira no marco n.º 104. Na noite cerrada, chegou um automóvel que parou a duas centenas de metros do qual saíram dois indivíduos que se dirigiram para Vaz Antunes e Padre. “Tratava-se do representante pessoal do comandante-geral das forças do PAIGC”.

O interlocutor foi direto:

“Andamos há já 10 anos nesta luta. Somos agora menos do que quando começámos. Actualmente não nos entendemos com o escalão político: eles são cabo-verdianos e comunistas e nós somos guinéus, combatentes e não comunistas. Desejamos apenas uma Guiné melhor. Já chegámos à conclusão de que, sozinhos, não somos capazes de a fazer, mas sê-lo-emos convosco. A nossa proposta é muito simples: em dia e hora que se combine acaba a guerra, nós seremos integrados nas forças da Guiné, sem recriminação nem vingança”.

Vaz Antunes promete rapidamente comunicar o teor desta mensagem a Spínola. A 1 de Julho apresenta-se no Palácio do Governo em Bissau. Será recebido ao fim da tarde. Ouvida a mensagem, Spínola liga para Lisboa, telefona para António Fragoso Allas, o chefe da DGS em Bissau, pede-lhe para regressar urgentemente à Guiné.

Em Agosto Vaz Antunes entrou de licença. Aqui soube da substituição de Spínola por Bettencourt Rodrigues, foi à tomada de posse deste, pareceu-lhe que o discurso do novo Governador e Comandante-Chefe não estava em sintonia com tudo o que se passara anteriormente. Padre, manifestou-se em Farim, mais tarde, desgostoso por se aperceber de que tudo voltara ao princípio, não se entendia o porquê do retrocesso.

E chegamos ao final da história:

  “Um dia, no bar do Estado-Maior do Exército, já em 1976, contava o caso a uns camaradas, dado que a manutenção do segredo já não tinha razão de ser. O então Major Monge estava ao lado interrompeu-o e disse: 'Afinal foi o meu Coronel quem provocou o 25 de Abril' . Fiquei atónito. Mas imediatamente me veio à memória que tinha lido dias antes uma informação do General Costa Gomes para o governo de Marcelo Caetano segundo a qual para Portugal era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada… Porquê?”.

A narrativa do Coronel Vaz Antunes levanta inúmeras questões. É facto historicamente comprovado que naquele mês de Junho, antecedendo o Congresso do PAIGC, que ratificou Aristides Pereira como dirigente máximo do PAIGC, a linha guineense, com todas as cautelas, procurava uma posição de força para evitar um controlo maioritário de líderes cabo-verdianos. Nino sabia-se vigiado, Osvaldo Vieira já não contava, o rumo de ofensiva militar alterara completamente os acontecimentos, era certo e seguro avançar-se para uma declaração unilateral da independência, criando um ainda mais serrado cerco à diplomacia portuguesa. Padre não estaria na posse de informações quanto ao confronto já instalado entre Marcelo Caetano e Spínola, hoje bem conhecido através da epistolografia trocada, o Primeiro-Ministro proibira Spínola de negociar com o PAIGC o quer que fosse.

Seguramente que Fragoso Allas conseguira chegar até ao núcleo dos combatentes guineenses que não se conformavam com a liderança cabo-verdiana em perspetiva. Recorde-se que Aristides Pereira foi hábil, no mando supremo ficou ele, Luís Cabral e Nino Vieira. Mas de Junho para Julho, acontecera algo de decisivo para a desmotivação de Spínola: era fundamental retrair o dispositivo militar, com sacrifício de populações e quartéis nas fronteiras, Lisboa não tinha dinheiro para acompanhar a escalada armamentista do PAIGC, a partir daquele momento era o PAIGC quem estabelecia as regras do jogo, atacando e flagelando onde lhe apetecia e numa posição muitíssimo forte, sabendo que os mísseis Strela impediam a presença da Força Aérea.

Inconformado com a situação, prenúncio de perigos maiores e sabendo já que se caminhava para a declaração unilateral de independência, o que acarretaria a possibilidade da presença de exércitos amigos do PAIGC, Spínola afasta-se de tudo, vem para Lisboa preparar a sua resposta política, o livro Portugal e o Futuro. Não se entende o final do artigo do Coronel Vaz Antunes exatamente por que foi Marcello Caetano e não Costa Gomes quem disse que era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada.

Ainda pouco se sabe sobre os primeiros meses tresloucados de 1974, quando Marcello Caetano decidiu por sua conta e risco abrir negociações secretas com os movimentos de libertação. O que hoje é seguro é que a Guiné já estava fora dos seus planos, congeminou um cessar-fogo antes que fosse demasiado tarde.

[1] - Aceder ao documento em:
http://ultramar.terraweb.biz/06livros_antoniovazantunes_Guine_uma_diligencia_interrompida.htm
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20781: Notas de leitura (1276): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (51) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20121: Historiografia da presença portuguesa em África (175): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Um dia, em conversa com o nosso estimável camarada António Estácio, estava ele a escrever sobre Bolama, referiu-me a importância de se conhecer os conteúdos do Bolamense.
Chegou a hora, li na íntegra todos os números na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. A História de Bolama entre 1956 e 1963 ganha mais luminosidade, caminhava para um escombro quando, fruto da guerra subversiva, escolheu-se Bolama para centro de instrução militar. E havia o turismo, a praia do Ofir, que o jornal tece os maiores encómios. Era publicação nacionalista sem rodeios, os discursos de Salazar eram publicados na íntegra. E havia a cultura, de que neste e no próximo texto se dará notícia.
Vale mesmo muito a pena ler o Bolamense.

Um abraço do
Mário


O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1)

Beja Santos

O primeiro número deste jornal publicado em Bolama data de 1 de agosto de 1956, trazia uma consigna: “Servimos Bolama, os governos da Província e toda a família guineense”. O jornal irá desaparecer em 1963, do que se consultou os editores não deram quaisquer explicações. Era oficioso, nacionalista, teimava pela causa de Bolama, por tudo e por nada. Quando o Instituto Honório Barreto passou a liceu, reclamou-se um liceu para Bolama. Pedia-se colaboração a pessoas entendidas e conhecedoras, Teixeira da Mota foi um deles. Folheando a coleção existente, dá para perceber que havia pouca publicidade, Bolama já estava na mó de baixo, com a ascensão do nacionalismo e a chegada da tropa a Bolama, a cidade ia reagindo, falava-se em turismo, nas belezas do arquipélago, a praia de Ofir parecia rivalizar com Varela, o leitor apercebe-se que havia dificuldades em arranjar bons conteúdos, a redação socorria-se de fotografias entre outras do fotógrafo Geraldo, qualquer conferência era motivo de duas a três detalhadas páginas, o Intendente Santos Lima foi promovido a inspetor, logo uma basta notícia, o jornalista Armando de Aguiar, natural de Bolama visita a sua terra natal e fez uma opípara conferência, casa cheia. Veio a guerra subversiva, e o jornal hasteou a bandeira da sua causa: “Os nossos territórios ultramarinos são a impiedosa cobiça dos desvairados blocos mundiais que se gladiam em feroz luta e por isso reconheçamos no passado as virtudes do presente e unamo-nos sem reservas, nem críticas maldosas, para o bem comum que é o da Guiné, cônscios do dever a cumprir numa tranquilidade de espírito cheia de altos impulsos e de novos sentimentos e não de outros que só deprimem, destroem e desorientam!”.

Para se avaliar o que o leitor pode encontrar com grande interesse cultural na curta vida deste periódico vamos fazer referência a subsídios para a história da ilha de Bolama, da autoria de António Pereira Cardoso, um administrador colonial que era possuidor de raridades, um artigo de Ruy Barreto sobre o fanado Bijagó e um artigo de Teixeira da Mota intitulado “A morte de dois franciscanos setecentistas, na Guiné”, ao tempo, o Comandante Teixeira da Mota era deputado da Nação pela Guiné.

Comecemos pelo trabalho de António Pereira Cardoso, que publica algumas epístolas. A primeira data de Bolama, de 26 de agosto de 1858, assina José Carlos Rebello Cabral, comandante de Marinha Mercante e dirigida a Honório Pereira Barreto. Informa-o que chegara um vapor de guerra inglês, desembarca um 1.º Tenente, arvorara bandeiras britânicas que foram içadas com três tiros de peça a bordo, o tenente percorreu as pequenas povoações e voltou a embarcar, regressou mais tarde e levou para bordo o agricultor João Marques de Barros, preso. E a carta termina assim: “Não sei isto em que acabará, e por isso me apresso a participar a V. Ex.ª pedindo-lhe por parte do Sr. Barros o seu socorro e auxílio para ele, antes que as coisas subam a mais, quer dizer ao ponto de o levarem preso a bordo, para a Gâmbia ou Serra Leoa, por alguma injusta quimera. Nada mais se oferece dizer a V.ª Ex.ª nesta triste situação, em que tanto carecemos dos seus conselhos e incansável auxílio”. Pelo meio, ficamos a saber que o tenente falava na libertação de cativos, era uma das moedas de arremesso dos ingleses, sabiam perfeitamente que ainda praticávamos a escravatura.

A segunda carta é também assinada por José Carlos Rebello Cabral e endereçada a João Marques de Barros. Pergunta-lhe se quer que mande a sua família para Bissau, refere que não está interessado em ficar em Bolama “por causa das intrigas do Manuel Barbosa a meu respeito e que eu já há muito sabia tudo”. E assim termina: “Estimo a sua saúde e felicidade, tal como para mim, e que agora tenha a força necessária para suportar estes pequenos incidentes da vida, e adeus até à vista”.

A terceira carta datada de 30 de agosto de 1858 é dirigida novamente a Honório Pereira Barreto: “Esta só serve para agradecer quanto em mim cabe o obsequioso serviço que V. Ex.ª fizera ao Sr. Barros, em consequência da que eu lhe tinha escrito em data de 26 do corrente; o que V. Ex.ª pode ficar certo é que eu nunca me cansarei em apregoar, se bem que a minha voz é ainda débil, nesta terra esquecida dos verdadeiros patriotas, a nossa infelicidade”.

Comenta António Pereira Cardoso que a violência levada a efeito em 26 de agosto de 1958 era injustificada, porquanto em 29 de abril daquele ano, D. Pedro V declarara livres os escravos portugueses, com obrigação de prestarem serviço aos seus senhores até abril de 1878.

O artigo de Ruy Barreto é sobre o fanado Bijagós dos Kanhocãs. E escreve:
“O Kanhocã é o indivíduo de idade compreendida entre os 15 e os 22 anos, aproximadamente. As cerimónias começam com batuques que duram vários dias e realizam-se em cada uma das tabancas onde há Kanhocãs. Estes apresentam-se durante o tempo das cerimónias com os melhores trajes: ‘lopés’ de couro cuidadosamente curtido e enfeitado, contas, grande variedade de efeitos metálicos, espelhos, campainhas, e na cabeça a conhecida cabeça de vaca. Após os dias de festa, que duram cerca de uma semana, chega o dia, previamente fixado, em que se vão sujeitar ao cerimonial, têm que dar entrada no mato em lugar retirado, onde são feitas barracas para abrigo dos rapazes.
É vulgaríssimo – e parece que até de tradição – verem-se os parentes do sexo feminino, aos quais é vedada a aproximação do mato, acompanharem, em alta grita e lavados em lágrimas, o ruidoso grupo dos homens que formam o cortejo dos Kanhocãs.

A classe dos Kamabis é a dos palhaços. Só se podem vestir de sarapilheira e, quanto mais suja for, melhor. E é de ver as tropelias que fazem e as brincadeiras que inventam. A cerimónia é iniciada por volta do princípio da tarde, com os mancebos de joelhos ou assentados, trajando unicamente um pequeno lopé. Cada Kamabi aparece armado de um bom molho de chicotes feitos de ramos flexíveis e bate em cada um com as chibatas, até que estas se quebrem.
Às vítimas só é permitido defender a cara, para o que só podem elevar o antebraço. Devem mostrar-se insensíveis à dor e vê-se alguém a ser sovado valentemente enquanto, sorridente, conversa com os circunstantes, indiferente ao sangue que corre pelo seu corpo. Grande glória é para aquele, e respectiva família, que suporta com mais valentia e, inversamente, é indizível a vergonha que provoca o que demonstre sofrimento.

Durante alguns dias permanecem os mancebos no mato, assistidos e tratados pelos mais velhos. Cerca de oito dias após a entrada no mato, regressam em visita às casas que tinham percorrido. Assim termina a primeira das duas cerimónias intervaladas de alguns anos a que têm de sujeitar-se os Kanhocãs antes de passarem a Kabarós, adultos".

(continua)


Duas fotografias de Francisco Nogueira, retiradas do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

Comandante Vasco Martins Rodrigues, Governador da Guiné entre 1962 e 1964. Foi efetivamente o último Governador da Guiné, sucede-lhe Arnaldo Schulz, Governador e Comandante-Chefe, acumulação que continuará com António de Spínola e Bettencourt Rodrigues. Imagem retirada do “Bolamense”.

Imagem retirada do “Bolamense”.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20104: Historiografia da presença portuguesa em África (173): “Dicionário da Expansão Portuguesa, 1415-1600” com direção de Francisco Contente Domingues, Círculo de Leitores, 2016 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19091: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 68 e 69: "O meu negócio: Só no mês passado vendi 30 garrafas de uísque, 35 volumes de tabaco e 12 isqueiros Ronson". (...) "Veio cá o general Bettencourt Rodrigues. Formamos todos na parada mas senti-me mal e fui autorizado a ir para a cama. Não vi o Governador da Guiné”.



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  O Dino, de sentinela. "O meu amigo fotógrafo andou comigo a tirar slides. Ainda não sei bem o que é isso mas parece que são fotos de ver projectadas num lençol."


Foto: © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome daPátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*):

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje: que o digam mais de 150 mil portugueses!), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade no âmbito do programa Novas Oportunidades; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré; o dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(v) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas da companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vi) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(vii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe"; a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(viii) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(ix) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogramas por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(x) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xi) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xii) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xiii) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xiv) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xv) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não... no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda; manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada; em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xvi) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas; em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xvi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas; o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xvii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia
(obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xviii) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;

(xix) vê, pela primeira vez, enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente da guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; manda um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão Serrote por quem não morre de amores: na sequência disso, sente-se "perseguido" pelo seu comandante...

(xx) vai de baixa médica para Bissau, mas não tem lugar no HM 241; passa o Natal de 73 e o Ano Novo de 1974 nos Adidos; conhece a "boite" Chez Toi onde vê atuar alguns elementos do grupo musical Pop Five Music Incoporated, a cumprir o serviço militar na Guiné;

(xxi) grande ataque, em 7/1/1974, ao quartel e tabanca de Fulacunda com canhões s/r, resultandodanos materiais, feridos entre os militares e a população e a morte de uma criança.

(xxii) faltam 5 meses para acabar a comissão... e há mais uma "crise" nas relações com a namorada;

(xxiii) em fevereiro de 1974, comunci à namorada que tem, já algum tempo, um pequeno negóco: vendo uísque,  tapetes, tabacos de marcas que não há na cantina, isqueiros Ronson, ettc.


3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 68 e 69

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ] 


68º Capítulo  > É DO SECTOR DE BIANGA

A foto que está na página [, acima,] tem uma história interessante. Foi extraída do primeiro slide que me tiraram. Na carta eu faço o apontamento, está a minha última referência a um ato bélico.

“Meu amor. hoje tenho uma novidade para te dar. O meu amigo fotógrafo andou comigo a tirar slides. Ainda não sei bem o que é isso mas parece que são fotos de ver projectadas num lençol.

Quando estava em cima da torre ouvi o barulho das saídas das bombas de ataque ao quartel e gritei para fugirem. deitei-me lá em cima atrás da beirada, mas as bombas caíram fora do quartel. O capitão berrou par eu espreitar e ver de onde vinha o fogo e eu mais à sorte do que ver mesmo, disse que era de Bianga. Ele disse ao capitão dos obuses, mandaram para lá meia dúzia de bombas e calaram-se logo. Foi à sorte mas decerto acertei.

Tem uma metralhadora anti-aérea lá na torre mas eu nem sei disparar com ela por isso escondi-me”.


Os slides ficaram bem e, por incrível que esta história lhes possa parecer, continuamos a seguir ao ataque a tirar o resto dos slides. Ninguém se preocupava muito com o que pudesse acontecer.

69º Capítulo  > O NEGÓCIO

Só me referi ao meu negócio precisamente em Fevereiro de 74.
“Quero informar-te que montei aqui já há algum tempo, um pequeno negócio. Vendo whisky, tapetes, tabacos de marcas que não há na cantina, isqueiros Ronson etc. Só hoje vieram treze contos e quinhentos de coisas para mim. Devo ter um lucro aproximado de dois contos e quinhentos. Quando for quero comprar-te um anel de noivado em ouro branco com uma pérola que seja bonito para te oferecer.

Quem me fornece é o 1º sargento que conheci em Bissau pelo Natal é a primeira pessoa que confia em mim mesmo sem eu pagar adiantado. Só no mês passado vendi, 30 garrafas de whisky, 35 volumes de tabaco e 12 isqueiros iguais a esse que enviei para o teu pai. Também vendo serviços de café chineses que se vê uma chinesa no fundo da chávena mandei-te um. Vais ter um marido que embora gaste, também sabe ganhar. Com este negócio, vou adquirindo experiencia noutras áreas. Já fumei dois ou três cigarros mas começo logo a tossir”

Fumei depois mais 42 anos. Deixei o vício graças à minha neta.

"Acho que vem cá o governador temos de ter isto tudo impecável”.

Foi talvez a visita mais caricata que algum governador fez a Fulacunda, a visita do General António Spínola.

Dois governadores visitaram-nos, durante o comando do capitão miliciano mais exigente na disciplina que provavelmente existiu na Guiné, e digo miliciano porque normalmente os militares de carreira ou “Os Xicos”, como nós lhe chamávamos, é que eram exigentes na disciplina. O meu capitão meteu completamente o pé na poça.

Decidi juntar num só texto as visitas de dois governadores porque não tenho grande coisa escrita. Apenas isto sobre Spínola, que nos visitou no início de Dezembro.

“Afinal não valeu muito o capitão avisar que talvez viesse aqui o governador e comandante da Guiné o general António Spínola e para nós andarmos sempre apresentáveis. Ele apareceu aqui sem ninguém contar e um condutor ao ver que de repente chegou um Helicóptero à pista foi para lá o mais rápido possível num Unimog sem bancos e em tronco nu. O Spínola entrou pelo quartel dentro em pé em cima do Unimog. Que bronca.

Já viste bem que nem segurança se fez? E se o matavam aqui?

Fiquei desiludido com ele”.


Quanto ao General Bettencourt Rodrigues:

“Formamos todos na parada mas senti-me mal e fui autorizado a ir para a cama. Não vi o Governador da Guiné”

Honestamente, não sei porque me referi a ter ficado desiludido com Spínola, nem se, com Bettencourt Rodrigues foi algum truque para sair da formatura, pois não a escrevi.

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Nota do editor:

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17965: Notas de leitura (1014): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Aqui se põe termo às considerações sobre uma obra de leitura obrigatória para quem pretenda conhecer a montagem e o funcionamento das redes de informações a cargo da PIDE/DGS em Angola, nos países limítrofes, entre 1963 e 1970, e na Guiné, entre 1971 e 1973, 

Fragoso Allas foi protagonista cimeiro de tais atividades. Vemo-lo como alferes e tenente miliciano na Guiné, mais de quatro anos. Em 1962 ingressa na PIDE, depois de lhe ter sido recusada a carreira militar. A convite do inspetor São José Lopes vai para Angola, instala nova cifra e dá vida a um sistema de informações que envolve os dois Congos e a Zâmbia. É nessa fase de notoriedade que lhe determinam que deve ir para a Guiné, Spínola é muito insistente.

Renova a rede de informações, aproveita os comerciantes que se deslocam pelo Senegal e pela Guiné Conacri. Diz categoricamente que a PIDE na Guiné não foi minimamente havida e achada no assassinato de Cabral. Finda a sua comissão, vê as suas férias interrompidas, precisam do seu talento em Moçambique. Segue-se o 25 de Abril e mais tarde a fuga para a África do Sul.
Livro de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


De leitura obrigatória: o diretor da PIDE/DGS na Guiné, no tempo de Spínola, na primeira pessoa (3)[1]

Beja Santos

António Fragoso Allas permanece na Guiné de meados de 1971 a Setembro de 1973, Spínola regressa em Agosto, Allas não aceita o convite de Bettencourt para ficar, diz-se exausto, fizera uma longa comissão na Guiné no período que antecede a eclosão da guerrilha, ingressa na PIDE, segue para Angola e daqui para a Guiné. Supusera vir desfrutar de uns meses de descanso. Mas em Março de 1974 é-lhe comunicado que devia assumir imediatamente o seu novo posto, Moçambique.

Todo este percurso consta do livro “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar, Edições Colibri, 2017.

A sua presença na Guiné foi aqui observada com detalhe. Não é despiciendo tudo quanto ele vai fazer em Angola, logo em 1963, a convite do inspetor São José Lopes. Aqui se inicia uma longa conversa sobre a reorganização da rede de informações, em postos de fronteiras cruciais, com a colaboração de alguns comerciantes e explica porquê:  

“Os guerrilheiros vindos dos países vizinhos entravam no território nacional e, mais tarde ou mais cedo, precisavam de comprar coisas, desde uns fósforos até mercurocromo para as feridas. Se o comerciante era pessoa que estava atenta e quando alguém lhe dizia isto é para os que estão lá, logo se começava a saber algo. Esse próprio comerciante podia chegar a tornar-se a cabeça de uma rede de informadores, dado que ele estava em condições de fazer favores ou fornecer qualquer coisa aos guerrilheiros, que depois nós compensávamos, pagando as coisas fornecidas ou patrocinando-lhe algum favor. No Leste de Angola, os madeireiros sabiam muita coisa. Eles tinham as serrações instaladas no mato. O importante é que eles tinham assalariados africanos e estes, mais tarde ou mais cedo, quando se estabelecia alguma confiança, falavam e começavam a ser ponto de ligação com o outro lado”.

Allas recebera uma importantíssima missão: melhorar a qualidade das informações, intensificar as relações com as autoridades dos países vizinhos onde isto podia ser feito, caso do Congo-Kinshasa ou na Zâmbia. O entrevistado detalha o seu trabalho, o trabalho com a rede de Léopoldville, a criação de corpos auxiliares (o antecedente dos “Flechas”), o que se sabia sobre a FNLA, o MPLA e a UNITA, as operações para intimidar a Zâmbia, grande apoiante do MPLA. E depois Kinshasa, havia que dividir para reinar, estimular o ódio de Mobutu pelo Congo-Brazzaville, deixá-lo intimidado com os catangueses instalados em Angola.

Mesmo depois de Mobutu ter cortado relações com as autoridades portuguesas, as coisas mudaram a partir de 1969, o tirano de Kinshasa propunha às autoridades portuguesas de Angola que convidassem Holden Roberto para visitar Angola e negociar com ele o pagamento a fazer pelos portugueses de todas as contas decorrentes da guerra conduzida pela FNLA contra o MPLA. E Fragoso Allas observa: “Se tivesse sido aceite o plano de Mobutu não teria sobrado um MPLA vivo”.

As autoridades portuguesas rejeitam, o circuito informações em Kinshasa não perdeu importância, a PIDE colaborou nas operações em Brazzaville, era imprescindível desestabilizar o regime de esquerda, chegou mesmo a propor-se a operação Bikini, o Governo de Caetano rejeitou a participação portuguesa, havia o receio de que Mobutu pretendesse ocupar Cabinda. Com minúcia, Allas expõe o seu relacionamento com as figuras gradas as informações zairenses, como se constituíra a rede de espiões em Brazzaville, dá conta do relacionamento entre as autoridades portuguesas e a UNITA, contactos que se estabeleceram na zona Leste, em 1972 e explica:  

“Os aspetos mais importantes, para os interesses portugueses, em todo este processo de conversações resume-se em três pontos: Em primeiro lugar, a obtenção de informações sobre a atividade do MPLA e da FNLA na zona militar Leste e dados referentes às bases e meios do MPLA na Zâmbia. Em segundo lugar, conseguir que a UNITA atue contra o MPLA e a FNLA, sobre coordenação do comando militar português e nas áreas determinadas por este. Esta coordenação conduziu a resultados dignos de menção. Em terceiro lugar, a não intervenção das forças da UNITA contra as tropas portuguesas, as quais, por sua vez não interfeririam com os guerrilheiros daquele movimento quando atuavam nas zonas que tinham atribuídas para a execução de ações devidamente autorizadas para comando português. Em troca desta colaboração por parte da UNITA, as autoridades portuguesas comprometiam-se a satisfazer duas solicitações de Savimbi: o fornecimento de diverso material (medicamentos, sementes, material escolar básico, animais de raça caprina) e, além disso, a assistência de um médico militar português a Savimbi, doente na mata, o que foi concretizado em 2 de Dezembro de 1972”.

É este o inspetor da PIDE a gozar de prestigioso currículo que é chamado para a Guiné, pelo seu trabalho receberá um prestigiante louvor.

Já vimos que as suas férias foram interrompidas, é enviado para Moçambique em 1974. Fala-se do apoio discreto dado por Baltazar Rebelo de Sousa à GUMO (Grupo Unido de Moçambique), cuja figura de proa era Joana Simeão, havia que cooperar no estreitamente de relações entre Portugal e a República da África do Sul e fala-se no plano ALCORA, Allas apresenta-o:  

“O plano ALCORA tinha interesse porque permitia a compra de importante material de guerra. Estão a dizer que era muito importante mas só o era por este lado. Nós comprávamos aviões C-130 e T-6 de treino à República da África do Sul que ali tinham chegado ao fim da vida e nós transformávamo-los em aviões de combate”.

Fala-se a seguir na operação Coliflower, organizada por militares rodesianos. Quando detetavam um grupo da ZANU registavam nos mapas da grande sala de operações e enviavam os helicópteros Alouette III. A seguir iam no seu encalço, dividindo-os em pequenos grupos até os exterminar completamente.

Era previsível que Fragoso Allas assumisse o cargo de diretor da DGS em Moçambique, entretanto dá-se o 25 de Abril, em Maio o General Costa Gomes manda-o prender Jorge Jardim na Beira, aqui descobriu que Jardim nada tinha a ver como fomentador das manifestações contra os militares, além disso não estava na Beira, encontrava-se em Lisboa.

A conversa deriva para o desmantelamento da PIDE, inicialmente supusera-se o aproveitamento da PIDE em África como polícia de informações militar, mas tudo estava em derrisão, os Flechas já tinham fugido para a Rodésia. Segue-se a operação Zebra que tinha finalidade de deter na sua quase totalidade os quadros da direção e investigação da extinta DGS. Allas recebe guia de marcha para Angola, descreve o clima convulsivo que se vive em Luanda. Spínola demite-se após os acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, Fragoso Allas, via Madrid, ruma para a África do Sul, dedicou-se a negócios. Anos mais tarde, passou a visitar Portugal.

O livro inclui um anexo fotográfico e um anexo documental bastante interessante. Doravante, não se pode estudar as redes de informações instituídas pela polícia política do antigo regime sem consultar este imprescindível trabalho.
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Nota do editor

[1] - Vd. postes de:

30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)
e
6 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17940: Notas de leitura (1011): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17956: Notas de leitura (1013): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (8) (Mário Beja Santos)