terça-feira, 30 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25460: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XVI: Infandre, de trágica memória


Foto nº 1A


Foto nº 1B


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4A


Foto nº 4


Foto nº 5A


Foto nº 5


Foto nº 6


Guiné > Região do Oio > Mansoa  (1954) > Carta de 1/50 mil  > Posição de Jugudul, Mansoa, rio Mansoa, Braia e Infandre. Braia e Infandre ficavam na estrada Mansoa-Bissorã.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. O José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71); missionário da Consolata, foi um dos 113 padres católicos que prestaram serviço no TO da Guiné como capelães. Neste caso, desde o dia 7 de maio  de 1969 a 3 de março de 1971. 

É membro da nossa Tabanca Grande, nº 859, desde 2 de março de 2022. O BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71; divisa: "Nós Somos Capazes") tinha como subunidades de quadrícula: CCAÇ 2587 (Mansoa, Uaque, Rossum e Bindoro, Jugudul, Porto Gole e Bissá),  CCAÇ 2588 (Mansoa,  Jugudul, Uaque, Rossum e Bindoro)  e CCAÇ 2589 (Mansoa, Braia e Cutia).

O nosso camarada e amigo 
Ernestino Caniço (ex-allf mil cav, cmdt  do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, fev 1970/fez 1971, hoje médico, a residir em Tomar) fez amizade  com o Zé Neves. E este confiou-lhe o seu álbum fotográfico da Guiné, que temos vindo a publicar desde março de 2022. São cerca de duas centenas de imagens, provenientes dos seus "slides", digitalizados. 

Já aqui publicados fotos das suas visitas como capelão aos diversos aquartelamentos e destacamentos do Sector Oeste, O4 e outros: Mansoa, Bindoro, Bissá, Braia, Infandre,Cutia, Encheia, Dugal, Enxalé...

Em 19 de março último, o Ernestino Caniço mandou-nos fotos, do Enxalé (que já publicamos anteriormente) (*) e Infandre.  E diz que ainda lá tem 22 de Infandre.



Foto nº 1C

Infandre era um destacamento que ficava na estrada Mansoa - Bissorã, a seguir a Braia (vd. infografia acima). Não sabemos a data das fotos (possivelmente são do 2º semestre de 1969, as do Enxalé). No caso de Infandre,  tudo indica, pela visita de Spínola (Foto nº 1), que foi numa altura em que já estava em fase de adiantamento o reordenamento de Infandre.(**)

Infandre  (temos maisd e 20 referências a Infandre no nosso blogue) ficará marcada, na história da guerra colonial na Guiné, pela brutal emboscada do dia 12 de outubro de 1970 (***), no itinerário Braia - Infandre, a duas viaturas Unimog, com militares da CCAÇ 2589 e Pel Caç Nat 58 e com civis, de que resulturam pelo menos 10 mortos, outros tantos  feridos graves e um desaparecido (ou capturado).  Na altura a CCAÇ 2589 era comandanda pelo cap mil art Jorge Picado, um dos históricos da Tabanca Grande.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série 15 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25390: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XV: Visita ao Enxalé

(**) Vd. poste de 6 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25344: Reordenamentos Populacionais (4): Uma perspetiva mais "securitária", no final do mandato de Arnaldo Schulz: em março e abril de 1968, foram deslocadas e reagrupadas cerca de 3 mil pessoas do "chão balanta"

(***) Vd. postes de:

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25459: Notas de leitura (1686): O islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, edição de 1961 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
José Júlio Gonçalves escreve este ensaio dardejando um sem número de advertências quanto aos riscos da islamização na Guiné Portuguesa. Não houve trabalho de campo, é uma escrita oficinal de quem conhece bem as publicações do Centro Cultural da Guiné Portuguesa. Compreende-se, no entanto, como a obra se tornou incómoda logo a seguir à sua publicação, foram sobretudo as hostes muçulmanas quem deram maior apoio às forças portuguesas durante a luta armada, a natureza dos perigos que o autor julga estar a visionar diluiu-se completamente, nem o animismo definhou nem o cristianismo colapsou, pelo contrário, tornou-se no quadro das práticas religiosas a força mais atuante pela sua credibilidade no campo da saúde, da educação e até da cultura - veja-se o caso dos dicionários de crioulo e do estudo das lendas e tradições guineenses. Ironias que o pós-Império tece...

Um abraço do
Mário



O islamismo na Guiné Portuguesa, um olhar de há mais de 60 anos

Mário Beja Santos

A obra intitula-se O Islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, a edição é de 1961 e mal se começa a ler percebe-se logo como se tornou obra incómoda para a política do Estado Novo, é uma cartilha de doutrinação para fazer recuar o islamismo na Guiné, encontrando adeptos “civilizados” para lhe fazer frente na linha do catolicismo. É uma obra feita de leituras, embora o autor fale em ensaio sociomissionológico, não há trabalho de campo, baseia-se em doutrina alheia, leu atentamente o que se publicou no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e outros trabalhos alusivos à presença muçulmana na região subsariana. Identifica os métodos catequéticos islâmicos: as escolas corânicas, a pregação através das confrarias religiosas, as prédicas dos chefes religiosos, a identidade dada pela indumentária, o uso da rádio e da imprensa, o aproveitamento da quase completa ausência de missionários europeus, a exploração dos erros da administração europeia.

Falando da indumentária, tece os seguintes comentários:
“Como é que um pobre afro-negro não há-de sentir ganas de se desenraizar, mandar os filhos à mesquita e à escola e tornar-se membro de uma religião que lhe trará elevação social. São impressionantes estes negros atraídos pelo prestígio do balandrau. É vê-los acorrer aos povoados através dos matagais limítrofes; quando se aproximam da povoação aperaltam-se cuidadosamente. Depois entram com solenidade, falsamente aprumados! Lembram algum tanto o ingénuo camponês europeu, quando vai à cidade!”

Adverte quem o lê para os perigos da rádio, a difusão do credo de Mafoma é feita pela rádio Cairo, no fundo estas mensagens acicatam para o nacionalismo, para combater o branco, aguardar a libertação… Estes agentes difusores do Islão infiltram-se através de países fortemente islamizados; e há um inteligente aproveitamento das rivalidades entre os missionários católicos e protestantes; deplora, em linguagem cuidada, a colonização feita por gente iletrada, a sua incapacidade para promover a ocidentalização dos negros-africanos; e, quanto aos erros da administração, elenca a discriminação racial, a manutenção de alguns chefes muçulmanos tendenciosos e a preferência pelos islamizados para servir nas forças públicas.

Procura contextualizar como se tem processado a islamização dos guineenses, faz um enquadramento histórico através do reino de Gana, o império Mandinga e os impérios Songoi e dá seguidamente a relação dos grupos étnicos diferenciados para depois os enquadrar em animistas, animistas ligeiramente islamizados, bastante ou quase completamente islamizados, mostra as resistências dos preponderantes grupos animistas, desde os Felupes aos Bijagós. Temos igualmente um relance sobre a presença do catolicismo a ao papel positivo desempenhado pelos franciscanos a partir de 1932. Diz claramente que não se tem prestado a devida atenção aos problemas religiosos da Guiné Portuguesa, que a presença cabo-verdiana tem sido mal utilizada, eles deviam ser os elementos difusores da cultura portuguesa e do catolicismo. Acha que se devia recorrer a missionários católicos com conhecimentos médicos e outros de idêntica utilidade para os guineenses. Citando Rogado Quintino, acha que é necessário estabelecer um cordão de missões católicas ao longo da linha que separa nitidamente os muçulmanos e os animistas. E não deixa de relevar que cristianizar deve significar aportuguesar. Há para ele um grave perigo com as missões protestantes. A missão que existia ao tempo era anglo-americana, dispondo de amplos fundos e observa que promove uma verdadeira assimilação tecnológica que não se traduz num aportuguesamento. Suspeita dos mouros, vagabundos e comerciantes ambulatórios que percorrem a Guiné Portuguesa, o rosário numa mão, o livro sagrado na outra, infundem respeito e temor, criando em seu proveito uma auréola de prestigiosa admiração. E pior que tudo, mostram-se inimigos irredutíveis da evolução dos guineenses no sentido ocidental.

Discorre com alguma minúcia sobre a ação missionários dos marabus, mouros, jilas, tchernos, almamis, arafãs, entre outros, o papel das confrarias, o trabalho catequético de Fulas e Mandingas, como se desenvolve o seu proselitismo, quando necessário o uso da força, como o Corão influencia as culturas tradicionais, intrometendo-se no próprio direito. É profundamente crítico sobre a influência muçulmana nas artes plásticas guineenses: “O Corão desempenhou um papel preponderante no aviltamento das atividades plásticas dos guineenses, proibiu a representação da figura humana na escultura, até de animais, a escultura é meramente decorativa. Talvez este seja um dos mais evidentes motivos por que a pujante escultura de certos grupos étnicos ditos animistas esmaeceu e só em certos pontos inóspitos ou nas faixas litorálicas e dos arquipélagos costeiros se manteve um pouco mais ao abrigo da forte e operante influência mourisca”. No fundo, as grandes exceções às proibições muçulmanas ainda eram as esculturas Bijagó e Nalu. Mas mesmo assim, observa o autor, a escultura dos Nalus estava em regressão devido à influência dos Fulas e dos Sossos islamizados.

Um tanto fora do contexto, mas sempre com o ar de quem alerta e aconselha os próceres da política ultramarina, lembra os países independentes à volta da Guiné, os apelos do Gana à subversão das elites e das massas da Guiné Portuguesa, enfim, era preciso estar muito atento às provocações e à agitação que estes países independentes iriam suscitar no futuro.

Em jeito de conclusão, parece ao autor que o animismo corre o risco de desaparecer mais cedo ou mais tarde sobre o impacto do Islão; se não houver oposição do cristianismo, o islamismo irá absorver a quase totalidade dos guineenses; impõe-se, pois, ao cristianismo a premência de aumentar a sua ação catequética junto dos animistas. E há delicados problemas políticos, que aparecem aqui enquadrados um tanto paradoxalmente, já que no ensaio não se fez outra coisa do que mostrar os perigos do islamismo na Guiné e agora vem dizer-se que esta corrente pró-muçulmanos colabora amplamente com a administração portuguesa e que o fenómeno independentista não tem tradições na Guiné, não passa de uma inovação de cultura francesa e anglo-saxónica. E como para atenuar o caudal de advertências quanto aos perigos presentes e futuros, parece finalizar com frases tranquilizadoras, dizendo que “O movimento pró-português é, pode dizer-se, desde o século XV, o movimento tradicional das tribos da Guiné Portuguesa que desejaríamos não ver perturbado.”

O rol de contradições que se seguiu à publicação deste ensaio terá contribuído para o relegar às estantes, tais e tantos eram os incómodos que ele poderia suscitar num templo em que as forças islâmicas foram inegavelmente os grandes sustentáculos à luta contra o PAIGC.


Natural de Pampilhosa da Serra, José Júlio Gonçalves nasceu a 19 de janeiro de 1929. Esteve ligado, em 1984, à elaboração da moção da Nova Esperança (de um grupo de figuras do PSD, com Marcelo Rebelo de Sousa, Santana Lopes e Durão Barroso), de alternativa ao grupo de Pinto Balsemão e Mota Amaral. Fez parte do grupo de professores que saíram em divergências com a Universidade Livre e de cuja iniciativa partiu, em 1986 a criação da Universidade Moderna, da qual foi nomeado reitor, tendo sido vogal da Direção no triénio 1991-1993 e Presidente da Direção, no triénio 1997-1999.
Muçulmanos guineenses na reza do Tabaski
Uma mesquita em Bissau
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Nota do editor

Último post da série de 28 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25454: Notas de leitura (1686): Timor Leste, que já foi lugar de desterro e encarceramento (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P25458: No 25 de abril eu estava em... (34): Fajonquito... "A guerra acabou?!"... E, agora, o que será de nós, "cães rafeiros do quartel", que não cumprimos os nossos sonhos de meninos, que eram ser "comandos"? (Cherno Baldé, Bissau)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > Tabanca dos arredores > CCAÇ 2479 (1968/69) (futrura CART 11)  > Centro de Instrução Militar > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece... (mas pode ter sido um futuro soldado da CCAÇ 12).

A placa rodoviária assinala alguns das povoações, importantes, mais próximas, a norte: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)... Foto do nosso muito querido amigo e camarada, Renato Monteiro (Porto, 1946 - Lisboa, 2021), que foi instrutor no CIM de Contuboel, ex-fur mil CCAÇ 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche, 1969/70) e CART 2520 (1970). Notável fotógrafo, com álbuns publicados e diversas exposições, e ainda co-autor, com Luís Farinha, recorde-se, da pioneiríssima Fotobiografia da Guerra Colonial (Lisboa: D. Quixote, 1998).

Foto (e legenda) : © Renato Monteiro  (2007). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Cherno Baldé, quadro superior
com formação em economia e gestão,
vive e trabalha em Bissau;
colaborador permanente do nosso blogue:
integra a Tabanca Grande
desde 19/6/2009
1. Texto do Cherno Baldé, com data de Bissau, 26 de abril 2024. 

No 25 de Abril de 1974 (*), eu estava em Fajonquito, e vivia entre a nossa casa e o quartel dos metropolitanos onde passava a maior parte do tempo como faxina na caserna de soldados condutores e mecânicos-auto (**).

Nos primeiros dias após o 25 de Abril de 1974, de repente, o ambiente no aquartelamento mudou, os militares pareciam estar divididos entre a alegria contida e a preocupaçãoo do que viria a seguir. 

O silêncio e os murmúrios tomaram conta do quartel e perante a incredulidade geral dizia-se sem nenhuma certeza que “a guerra acabou”. 

Entretanto a vida no quartel decorria normalmente e os patrulhamentos no mato também.

No seio da população nativa e as crianças a única coisa de que se ouvia falar era “a guerra acabou”. Ninguém sabia explicar como e porquê, pois as informações que circulavam,  baseavam-se sobretudo no diz-que-diz habitual dos tempos da guerra, onde as pouquíssimas informações que se filtravam do quartel,  rapidamente se transformavam em boatos e inconfidências da última hora. 

O que se passava no mato, entretanto, nós não sabiamos, pois nunca tinhamos tido quaisquer ligações.

−  A guerra acabou !?!?... Mas, como assim?!?!....

Na minha cabeça de criança que desde 1963/4 convivia com a guerra (**), simplesmente apareceu um vazio na minha mente, e não sabia o que pensar, não podia conceber que não houvesse guerra com os seus mortos e estropiados, com as luzes nocturnas das aldeias incendiadas.

Parecia uma brincadeira. E agora ?!?!... O que será de nós ?...
Vamos acordar e não pensar na guerra ?!... E os nossos amigos brancos vão partir de novo, sem se despedir, deixando o quartel virado de avesso, qual acampamento de tropas de Gêngis Cão ?!...

No quartel, mais do que antes, os nossos amigos soldados também olhavam para nós com alguma desconfiança, como se esperassem descortinar alguma coisa no nosso comportamento, como se estivessemos a esconder alguma informação vinda de não se sabia donde. 

Na incerteza do momento, as novas e milagrosas palavras em voga, “a guerra acabou,  parece que tinham trazido mais desconforto do que alegria. Os soldados estavam divididos, uma parte era de opinião que, por precaução, as crianças deviam ficar fora do arame farpado, mas a maioria deles não concordava e esses eram os nossos amigos de verdade, também nós estávamos desorientados.

− Chico, vamos à lenha ! 
− chamava o meu bom e turbulento amigo Dias, sentado na velha Mercedes.

Incredulidade, uma alegria contida e medo foram os sentimentos que nos dominaram nos dias que se seguiram aos acontecimentos do golpe militar em Portugal que chegou até nós em forma de uma mensagem codificada e curta, portadora de sentimentos contraditórios: “a guerra acabou ”.

A guerra tinha acabado com os nossos sonhos de crianças de guerra ainda por realizar.

Acabou sem avisar, acabou sem que pudessemos alimentar a nossa fome de servir nos comandos africanos e experimentar a sorte dos audazes, acabou sem podermos hastear a bandeira das nossas ilusões da república pluricontinental e plurirracial do Minho ao Timor, acabou sem podermos roncar, na tabanca, em passos ligeiros, com a farda e os galões de “Furriel” dos nossos sonhos de meninice, acabou sem que pudessemos mostrar a nossa bravura em combate, ambição suprema, genuinamente irrefletida e para a qual, no espírito, no corpo e na alma nos preparávamos há mais de 11 anos. 

Acabou como tinha começado, de forma caótica e de consequências imprevísiveis. Os elementos das nossas milicias estavam desamparadas e não era por menos.

Hoje, decorridos 50 anos, a minha vida é um questionamento constante. Às vezes penso que tive sorte por não ter sido soldado, sobretudo quando leio no Blogue da Tabanca Grande narrativas sobre as vivências dos antigos combatentes dos dois lados, às vezes fico com a sensação de não ter cumprido uma parte importante,  se não crucial, de tal maneira que estava convencido da sua inevitabilidade e que me completaria como homem, a vida de um soldado, depois da estoicidade sem precedentes demonstrada aos 10 anos de idade, na cerimónia tradicional (o fanado) de iniciação à vida adulta.

Com o 25A74, para nós, a guerra das armas tinha cessado, dando lugar a guerra do ilusionismo politico-ideológico, das mentiras pseudo-patrióticas e das mil e umas promessas que
nunca serão cumpridas por essa geração utópica de combatentes que nos fizeram acreditar no país de mel e maná do céu, o milagre da nova Suíça que nasceria nas bolanhas e na terra vermelha da Guiné-Bissau.

António Spínola, retrato
oficial.
Museu da Presidência
da República

(adapt. com a devida vénia)

Todavia, na minha visão pessoal, o verdadeiro 25 de Abril, tinha acontecido em princípios de 1970, quando o general Spinola chegou ao aquartelamento de Fajonquito, sem pré-aviso, e na nossa frente deu um tabefe na cara branca e surpreendida do Capitão da companhia, arrancando-lhe os galões que ostentava, alegadamente, por abuso de poder sobre a população indígena com cumplicidade do chefe tradicional local.

Hoje, sabemos que em 1974, apesar de toda a propaganda veiculada na altura e tendo em atenção o percurso e a real situação vigente, os nossos países ainda não estavam preparados para uma independência total como aconteceu, e a solução federalista proposta e almejada pelo general Spínola, pese embora fora de prazo e contra os ventos da história, seria o mal menor como solução a longo prazo e uma boa forma de levar Portugal a responsabilizar-se e trabalhar em conjunto com as suas antigas colónias sobre medidas para lidar com os legados de todos os seus actos e desventuras ao longo dos séculos nesses territórios, incluindo a contribuição para uma verdadeira reconciliação e justiça entre os seus povos. 

Mas isso sou eu a falar com os meus pequenos botões.

Bissau, 26 de Abril de 2014
Cherno AB

(Revisão/fixação de tecto, negritos: LG)
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(**) Vd. a notável série autobiográfica do Cherno Baldé, de que já se publicaram mais de meia centena de postes (fora os "avulsos")> 


19 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

Guiné 61/74 - P25457: Os 50 anos do 25 de Abril (15): Exposição na Gare Marítima de Alcântara, Porto de Lisboa, até 26 de junho próximo, de 4ª feira a domingo, entre as 14h00 e as 20h00: "O Movimento das Forças Armadas e o 25 de Abril": curador, Pedro Lauret, Capitão-de-Mar-e-Guerra Ref


O cartaz da exposição «O MFA e o 25 de Abril», a decorrer entre 12 de abril e 26 de junho de 2024, na Gare Marítima de Alcântara, Porto de Lisboa.  Horário: das 14:00 às 20:00, Entrada livre.


1. "A exposição 'O MFA e o 25 de Abril' é uma iniciativa da Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, de curadoria partilhada com a Associação 25 de Abril.

"Esta exposição pretende ilustrar o papel do Movimento das Forças Armadas (MFA) no derrube da ditadura e na construção da Democracia, através do recurso a materiais iconográficos, audiovisuais e sonoros. Será dinamizada através de visitas guiadas, conferências, debates e espetáculos, e complementada por um dossiê multimédia."




Guiné > Região de Tombali > Rio Cacine > c. 1971/72 >  Nesta foto vemos o  Pedro Lauret (então 2º ten), imediato da LFG Orion (1971/73), na ponta do navio, a navegar no Rio Cacine, tendo a seu lado o comandante Rita, com quem ele faria a primeira metade da sua comissão na Guiné. "Um grande homem, um grande comandante", escreveu ele… O 1º ten José Manuel Baptista Coelho Rita, já falecido,  foi comandante do NRP [Navio da República Portugesa] Orion, de 7/12/1970 a 15/10/1972.

Foto (e legenda): © Pedro Lauret (2006). 
Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lisboa > Porto de Lisboa > Gare Marítima de Âlcantara > 12 de abril de 2024 > Inauguração da exposição "O MFA e o 25 de Abril". O curador, Pedro Lauret, e o presidente da República, na visita  guiada. Destaque a vermelho da carta que o nosso camarada J. Casimiro de Carvalho, mandou aos pais a dar a notícia (dramática) do abandono do seu aquartelamento, Guileje, em 22 de maio de 1974. Ele estava temporariamente em Cacine. Foto (adaptada), com a devida vénia:  Sapo 24.


2. Comentário do editor LG:

O curador desta exposição, da parte da A25A,  é o comandante, capitão-de-mar-e-guerra ref,  Pedro Laurett, um dos "históricos" do nosso blogue (*): recorde-se que ele foi combatente no TO da Guiné, na qualidade de imediato da LFG Orion, de 1971 a 1973; tem 36 referências no nosso blogue; e foi um dos participantes do I Encontro Nacional da Tabanca Grande, na Ameira, Montemor-o-Novo, em 14 de outubro de 2006. 

Ainda não tivemos oportunidade de passar pela Gare Marítima de Alcântara, pelo que nos socorremos, com  a devida vémia, do relato que o jornalista Miguel Morgado fez, no  Sapo 24,  no passado dia 21, da inauguração desta exposição:

(...) "Num local de elevado simbolismo para a história de Portugal, ligado à guerra nas ex-colónias e à descolonização, porto de partida e de chegada de militares para e de os territórios ultramarinos, Pedro Lauret conduziu os jornalistas numa visita guiada. O mote do que está exposto, é um: colocar o MFA no 'centro do dia 25 de Abril' "(...)


Acrescenta depois que "os acontecimentos na Guiné-Bissau, onde cumpriu serviço entre 1971 e 1973, marcam a memória pessoal de Pedro Lauret":

(...) " 'Meti uma cunha e coloquei o meu navio (aponta para a fotografia) na Guiné. Chamava-se Orion, era uma lancha de fiscalização', explicou o responsável da Marinha que integrou o Movimento dos Capitães e a Comissão que elaborou o programa do Movimento das Forças Armadas (MFA)" (...)

A exposição está organizada em função de três cronologias: (i) da II Guerra Mundial à guerra colonial"; (iii) os noves meses de génese e desenvolvimento do MFA (1973/74); e, por fim, 0 25 de Abril.

(...) "A situação na Guiné-Bissau mereceu também palavras do curador e antigo combatente, ao recuperar duas imagens. A 'Carta do furriel Casimiro a contar à família o abandono do quartel' e Miguel Pessoa, piloto-aviador cujo avião foi abatido. 'Esteve um dia e meio pendurado numa árvore e foi recuperado pelo grupo de Marcelino da Mata. Tem um simbolismo notável', confessou." (...)

(...) “Mostramos os aspetos dos aquartelamentos, como os soldados viviam. Viviam pior do que um bairro da lata”, comparou. “Tentámos que as imagens, numa exposição destas características, fossem ilustrativas, sem serem demasiado chocantes” (...)

A exposição está patente até 26 de junho, de 4ª feira a domingo, entre as 14h00 e as 20h00, na Gare Marítima de Alcântara. (Não confundir com a Gare Marítima Rocha Conde d' Obidos, donde partiram a maior parte dos navios de transporte de tropas para o Ultramar.) (***)


Documento que enriquece a exposição. Cópia da carta enviada aos pais, pelo fur mil op esp / ranger J. Casimiro Carvalho,  CCAV 8350, Os Piratas de Guileje (1972/73) (**)

Foto (e legenda) : © J. Casimiro Carvalho  (2012). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Cacine, 22/5/73:Queridos pais: Vou-lhes contar uma coisa difícil de acreditar como vão ter oportunidade de ler: Guileje foi abandonada [a negrito, no original], ainda não sei se foram os soldados que se juntaram todos e abandonaram o quartel, ou se foi ordem dada pelo Comandante-Chefe, mas uma coisa é certa: GUILEJE ESTÁ À MERCÊ ‘DELES’ [em maíúsculas, no original].

Não sei se as minhas coisas todas estão lá, ou se os meus colegas as trouxeram. Tinha lá tudo, mas paciência.

Se foi com ordem de Bissau que se abandonou a nossa posição, posso dar graças a Deus e dizer que foi um milagre, mas se foi uma insubordinação, nem quero pensar…

Mas… JÁ NÃO VOLTO PARA LÁ!!!  [em maiúsculas, no original]. 

Não tinha dito ainda que Guileje era bombardeada pelos turras [h]á vários dias e diversas vezes por dia. Os soldados e outros não tinham pão, nem água. Comida era ração de combate e não se lavavam. Sempre metidos nos abrigos e nas valas. A situação era impossível de sustentar. Vosso para sempre (,assinatura).
 
(Revisão / fixção de texto: LG)
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Notas do editor

Guiné 61/74 - P25456: Parabéns a Você (2265): Giselda Pessoa, ex-Sarg Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Bissau, 1972/74)

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Nota do editor

Último post da série de 27 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25449: Parabéns a Você (2264): Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 675 (Binta, 1964/666): Cor Inf Ref DFA, Hugo Guerra, ex-Alf Mil Inf, CMDT dos Pel Caç Nat 55 e 50 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70) e Joaquim Costa, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAV 8351/72 (Cumbijã, 1972/74)

domingo, 28 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25455: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (15): "Laila"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Laila

Laila nunca fora feliz. Nem muito nem pouco. A felicidade não engraçara com ela, talvez por ser feia. Feia não era. Até era muito bonita por fora, o que não acontecia por dentro. Tinha sempre a alma do avesso e os sentimentos fora do corpo. Nunca atravessava a rua pela passadeira, entrava nas portas sempre às arrecuas e não beijava o Senhor na visita do compasso. Puxava o manto do Senhor dos Passos na procissão da Paixão e fazia caretas às zeladoras do Coração de Jesus. Assistia à missa de costas para o padre. Não rezava nem comungava. A bruxa já havia dito que algum mauolhado caíra sobre ela quando era criança ou que o Diabo lhe cravara as garras na gola do casaco.

Também as horas do dia foram sempre trocadas.

Jantava à hora do almoço e, à hora do jantar, fechava-se no quarto a dançar, em lágrimas, até cair exausta. De noite, fazia que dormia, mas só dormia de manhã e com as mãos embrulhadas num pano de flanela. O psiquiatra não lhe via diagnóstico de jeito. Pensava que o mal de Laila era não ter sonhos, não os sonhos do dormir, mas os sonhos do acordar. E achou por bem inventar-lhe um sonho. Um sonho que lhe pusesse a alma às direitas e os sentimentos dentro do corpo. Para isso, tinha de voltar a ser criança. Começar tudo de novo.

Mas Laila não queria voltar a ser criança por nada deste mundo. Nem morta, nem viva. Qualquer pessoa só é criança uma vez. Além disso, Laila só voltaria a ser criança se não houvesse um padre a meter-lhe a mão pela saia acima e a obrigá-la a mexer naquilo. Se não houvesse um padre que lhe dissesse que só assim a alma ficaria direita e os sentimentos bem dentro do corpo. Só se não houvesse um padre a ameaçá-la com os demónios do inferno se abrisse a boca. Só se nunca mais houvesse uma mãe, empregada de padre, a dizer-lhe que o Sr. Prior era o Deus do Céu e o anjo do seu sustento.

Não havia sonho possível, concluiu o psiquiatra. Pensou, pensou e começou a entender e a encontrar as peças de um modesto diagnóstico. Um diagnóstico foleiro de trazer por casa, um diagnóstico meio vesgo, mas de qualquer forma, um diagnóstico. Antes a alma do avesso e os sentimentos fora do corpo, antes o jantar pela hora do almoço, antes dormir acordada do que acordar a dormir, antes a dança em lágrimas do que a paralisia da mente, antes a feiúra que viam nela do que a beleza de um Tantum Ergo. O psiquiatra não via forma de a moldar à feição dos outros. E começou a acreditar que a sua psiquiatria andava pelas ruas da amargura. Na verdade, a haver alguma imponderável cura, ela nunca estaria nos remédios ou nos sonhos, mas tão só no remoto acaso de os outros se moldarem à feição de Laila.

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Nota do editor

Último post da série de 21 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25420: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (14): "Aquela janela"

Guiné 61/74 - P25454: Notas de leitura (1686): Timor Leste, que já foi lugar de desterro e encarceramento (Luís Graça)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Independente desde 2002, esteve sob a brutal ocupação da Indonésia durante 24 nos.   




Timor Leste > 2005 > A Ilha de Ataúro, vista de Dili >  Foto de Hu Yui. Fonte: Wikipédia (com a devida vénia...)


Nota de leitura > Marisa Ramos Gonçalves: 

«A ilha-prisão de Ataúro durante a ocupação indonésia de Timor-Leste: histórias de encarceramento, resistência e legados contemporâneos»

e-cadernos CES [Online], 37 | 2022, posto online no dia 02 novembro 2022, consultado o 18 abril 2024. URL: http://journals.openedition.org/eces/7084; DOI: https://doi.org/10.4000/eces.7084

Marisa Ramos Gonçalves é investigadora do CES - Centro de Estudos Sociais | Universidade de Coimbra | marisagoncalves@ces.uc.pt

Fez o seu doutoramento, em 2016, na Universidade de Wollongong, Wollongong, Australia.  (Título: “Intergenerational Perceptions of Human Rights in Timor-Leste: Memory, Kultura and Modernity” (Perceções Intergeracionais de Direitos Humanos em Timor Leste: Memória, Cultura e Modernidade).  Tese de Doutoramento em Filosofia, Faculty of Law, Humanities and the Arts, School of Humanities and Social Inquiry, University of Wollongong, Wollongong, Australia.)

 
I. Da leitura deste artigo, interessa-nos, no âmbito do nosso blogue, destacar as referências, que ainda são muito escassas, a esta antiga colónia portuguesa que foi Timor. E mais ainda,  Timor como lugar de desterro e encarceramento, desde o séc. XVIII (quando há notícias dos primeiros desterrados, se bem que nenhum ainda fosse europeu). 

Muitos portugueses sabem da brutal  invasão, ocupação e anexação  de Timor Leste com a consequente tentativa de genocídio do povo maubere,  em finais de 1975, tornando-se o território na 27ª província da Indonésia.

Mas muitos  desconhecem que "durante o período colonial indonésio" (sic),  "os colonizadores usaram a ilha para confinar as famílias de membros da resistência em campos de concentração abertos, mas com vigilância militar apertada. Estima-se que, entre 1980 e 1987, tenham sido presos cerca de 6000 timorenses, tendo algumas pessoas morrido devido à fome e má-nutrição."

Por outro lado, mesmo habituados, desde os bancos da escola, a repetir "ad nauseam" que vivíamos num Portugal, que ia "do Minho a Timor", nós sabíamos muito pouco (e continuamos a não saber) da história e da geografia de Timor e da presença histórica dos portugueses naquela ilha do sudoeste asiático, de resto escassa até ao séc. XIX, circunscrita a alguns pontos no litoral e sobretudo à ação de missionários e militares.

Este artigo centra-se neste período  da invasão, ocupação e anexação indonésai (1975-1999), sobre o qual vamos passar por alto (o leitor interessado tem acesso ao artigo completo) , bem como sobre a parte teórica ( "estado da arte sobre o tema", a colónia penal como sistema carcerário ou concentracionário e as memórias das suas vítimas ),  a parte metodológoca (utilização dos testemunhos das vítimas do conflito e entrevistas de história oral) bem como a bibliografia. 

Interessa-nos recuar até Ataúro do tempo dos portugueses, e nomeadamente nos anos 20/30 do séc. XX.

Vamos citar algumas excertos,  mais extensos,  e elaborar uma primeira nota de leitura deste artigo,  dispensando as referências bibliográficas,  dada as limitações de espaço num blogue como este, dirigido não a académicos e especialistas mas a antigos combatentes das guerras coloniais.


II. Vejamos o resumo do artigo:

(...) "A ilha de Ataúro, situada a norte da capital de Timor-Leste, funcionou como ilha-prisão durante o período colonial português e, de forma mais intensa, a partir dos anos vinte do século passado. 

"Durante o período colonial indonésio (1975-1999), os colonizadores usaram a ilha para confinar famílias de membros da resistência em campos de concentração abertos, onde centenas de pessoas morreram devido à fome e má-nutrição. 

"Partindo de uma análise de entrevistas e de material de arquivo sobre as/os antigas/os deportadas/os em Ataúro no período indonésio, este artigo conclui sobre a relevância da preservação das histórias orais sobre as/os prisioneiras/os, bem como da memorialização das histórias desta ilha. 

"O texto reflete, igualmente, sobre memórias e legados coloniais, partindo da observação de que algumas ilhas da região do Pacífico permanecem territórios considerados depósitos e locais de detenção de pessoas que fogem à repressão e violência de regimes ditatoriais e coloniais." (...)

E aqui fica também o índice do artigo (com os respetivos links), para o leitor que tiver mais tempo e vagar:

Introdução
Conclusão

O  texto integral pode ser aqui descarregado, em formato pdf.  PDF 340k. E pode ser utilizado sob licença CC BY 4.0


III. Insularidade e desterro
 
A autora começa por lembrar que a "insularidade", ao longo do tempo e nos mais diversos lugares, tem sido  um "meio de confinamento natural", adoptado por regimes ditatoriais e coloniais,  para deportar e banir inimigos políticos, muitas vezes "sem direito a julgamento ou condenação formal!"...Mas também presos de delito comum.

Os desterrados (muito mais homens do que mulheres) eram, além disso, uma preciosa  fonte de mão-de-obra nas colónias, em todos os impérios coloniais, a começar pelo Britânico.

No nosso caso, "Timor-Leste integrou, desde o século XVIII, o sistema carcerário do império português" (a par das ilhas atlânticas, bem  como Angola e Moçambique):  para lá,  eram enviados militares e civis,  opositores políticos, mas também prisioneiros de delito comum ("deportados sociais)".

A ilha de Ataúro fez parte deste sistema carcerário  durante os vários  períodos coloniais:  português (1702-1975), indonésio (1975-1999), sem esquecer o curto mas não não menos brutal período de ocupação japonesa (1942-1945).  

(...) "A ilha de Ataúro funcionou como ilha-prisão, em particular nos anos vinte e trinta do século XX, quando foi usada como local de deportação de opositores políticos e prisoneiros de delito comum, denominados deportados sociais" (...)  

Ataúro, sendo uma ilha, a norte de Dili, separada por 25 km de mar, não precisava de arame farpado nem muros. Era difícil, ou quase impossível, escapar.

 Na segunda parte do artigo,  a autora apresenta  uma sucinta introdução histórica da colónia penal de Timor , durante o século XX, "em particular os campos de internamento de deportados políticos e sociais provenientes da metrópole e de outros locais do império,  na ilha de Ataúro e no enclave de Oécussi."  

Mas o objetivo principal do artigo é mostrar "a relevância da memorialização das histórias da ilha de Ataúro, através da preservação das narrativas orais" quer dos prisioneiros quer dos seus  habitantes.
 
IV. Ilhas-prisão – Políticas carcerárias dos impérios à atualidade

Algumas ilhas que hoje aparecem nos cartazes das agências turísticas como "paradisíacas", foram no passado espaços carcerários ou concentracionários, criados  pelos sistemas coloniais.  

Os vários  impérios europeus  fizeram dessas ilhas (em geral tropicais ou subtropicais) lugares de desterrro e encarceramento:
  • a França criou as ilhas-prisão da Nova Caledónia, da Cayennne ou Ilha do Diabo na Guiana, das ilhas Reunião e Côn So’n no Vietname;
  • a Grã-Bretanha fez uso da Tasmânia, na Austrália; 
  • a Holanda,  da ilha Nusakambangan nas Índias Orientais Holandesas, atual Indonésia...

 Havia várias tipologias destes lugares:
  • colónias penais, 
  • colonatos,
  • entrepostos, 
  • colónias agrícolas, etc.

No arquipélago dos Bijagós, havia por exemplo a colónia penal e agrícola da Ilha da Galinhas, criada em 1934 (ou pelo menos já existente nessa data), Em Cabo Verde, foi criado o "campo penal" do Tarrafal (1936-1957), reaberto depois como "campo  de trabalho" de Chão Bom (1961-1974) ...


A investigadora  debruça-se depois sobre a ilha-prisão  de Ataúro como local de deportação e degredo no século XX, e nomeadamente nas décadas de 1920 e 1930,   periodo sobre o qual há "mais dados e estudos académicos".

Ficamos a saber que Timor só obteve o estatuto de distrito autónomo em 1896: dependia originalmente do Estado da Índia (Goa) e, posteriormente, de Macau.

Situado na periferia do império, no sudoeste asiático, era visto "como um espaço insular e longínquo da metrópole e de outros centros administrativos do império, como Goa e Macau".

Ser desterrado para Timor  era, pois,  uma condenação pesadíssima, tanto para civis como para militares.

Em 1897 já existia uma cadeia civil, na comarca de Díli, para presos não- indígenas. Dezasseis anos depois, em 1913, foi criado o Depósito dos Degredados de Timor, que recebia maioritariamente macaenses, que vão representar uma importante força de mão-de-obra.  

 Em 1927, existiam três estabelecimentos prisionais:  o depósito de degredadas de Aileu, a colónial penal de Taibesse e a Cadeia da Comarca, em Díli,  para além de três presídios militares (Aipelo, Batugadé e Baucau) e os “campos de concentração” de Ataúro e Oécussi.

No período de 1927-1931, os deportados portugueses  distribuíam-se por várias colónias do império:
  • S. Tomé e Príncipe (29),
  • Guiné-Bissau (46).
  • Angola (456),
  • Cabo Verde (334),
  • Timor (500)
 
(...) Na ilha de Ataúro e no enclave de Oécussi, os denominados 'campos de concentração', foram considerados 'locais malditos', onde os prisioneiros estavam expostos às chuvas e temperaturas elevadas, com dietas pobres, muitos morrendo de malária e desnutrição" (...)
 
Entre 1927 e 1933, e na sequências das revoltas contra a Ditadura Militar e o Estado Novo, chegaram ao território timorense  algumas centenas de jovens,  socialistas, comunistas e anarcossindicalistas, acusados de serem os principais instigadores e participantes no atentado ao comandante da polícia de Lisboa, João Maria Ferreira do Amaral (1876-1931), alguns por alegadamente pertencerem  à rede bombista "Legião Vermelha", e outros na sequência do movimento revolucionário de 26 de agosto de 1931.

Sabe-se, oor outras fontes, que no ano de 1927, a população europeia de Timor era de 11 ocidentais estrangeiros e 378 portugueses, grande parte funcionários estatais, ou elementos das missões católicas,  além de 155 naturais originários de outras colónias.

Ora entre 1927 e 1933, terão passado por Timor  cerca de 600 deportados, quase o dobro da população civil europeia  ali residente.
 

Houve, entretanto,  uma  amnistia política geral, em 1932, para os vários deportados políticos nas diferentes colónis. A maioria  dos  prisoneiros em Timor regressou à metrópole, mas outros puderam ficar em liberdade no território.  


De fora ficou uma lista dos 50 prisioneiros considerados  “mais perigosos”, bem como os "deportados sociais" (presos de delito comum).

(...) "110 homens deportados originalmente em 1927 ficaram dispersos pelo território, constituindo famílias das quais descendem várias figuras da elite política atual de Timor-Leste.(...)

A ilha de Ataúro continuou a servir de prisão depois da ocupação japonesa de Timor, no pós-guerra. Os presos passaram a ser os timorenses que colaboraram com os ocupantes.

 A talhe de foice refira-se, por fim,  que durante a 
  ocupação indonésia de Timor-Leste " estima-se que entre 100 000-200 000 timorenses tenham perdido a sua vida em resultado do conflito e das políticas repressivas da administração militar indonésia, marcada por massacres, assassinatos de membros da resistência militar e civil, práticas planeadas de deslocação forçada e fome das populações, prisões arbitrárias e tortura." (...) 

Como é dos manuais da guerra contra-subversiva,  o governo de Suharto , através do seu exército invasor e ocupante, procurou retirar o apoio que a população dava às FALINTIL  – Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste, a resistir nas zonas montanhosas, para isso criando "campos de trânsito e internamento para essa população".  E, entre outras medidas repressivas, proibiu o uso da língua portuguesa. (**)

O maior destes campos era o da ilha de Ataúro. (A ilha tem 25 km de extensão por 9 km de largura, cerca 117 km² de superfície, e uma população atualmwnte  à volta de 10 mil habitantes.)

Para saber mais ler: A ilha-prisão de Ataúro no período da ocupação Indonésia
 
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 26 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25448: Notas de leitura (1685): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (22) (Mário Beja Santos)
 
(**) "Os 24 anos da ocupação indonésia tornaram o bahasa a língua do ensino e da administração. O português foi banido, e a forma de resistir à total aculturação foi desenvolver a mais disseminada das línguas locais, o tétum. Fê-lo, principalmente, a Igreja Católica, que assumiu o protagonismo da resistência cultural e simbólica.'

"Chegada a independência, há uma geração (todas as pessoas com menos de 30 anos, o que constitui a esmagadora maioria da população) que não fala português. Aprendeu bahasa Indonésia e inglês como segunda língua e fala tétum em casa, além de alguma outra língua timorense, como o fataluco ou o baiqueno. É a chamada geração 'Tim-Tim, do nome Timor-Timur, que os indonésios davam à sua 27.ª província." (...)

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/portugues-tetum-ou-tetugues/1178 [consultado em 27-04-2024]

sábado, 27 de abril de 2024

Guné 61/74 - P25453: Em busca de... (325): O ex-cap inf Manuel Figueiras, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70); cor inf ref, morava em Faro em 2005 (Humberto Reis, ex-fir mil op esp, CCAÇ 12, 1969/71)



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > BCAÇ 2852 (1968/70) > c. 1969 > Sessão de projeção de "slides" ou diapositivos... Tudo servia para ajudar a passar o tempo, embora não fosse habitual esta mistura de "classes" (oficiais, sargentos e praças)... Recorde-se que o nosso exército era "classista" e, em aquartelamentos como o Bambadinca, com razoáveis e desafogadas instalações (Para os oficiais e sargentos), a regra era a da estratificação socioespacial, ou seja, nada de misturas...

O artista principal, neste caso, é o alf mil at cav José António G. Rodrigues, natural de Lisboa, e já falecido, comandante do 4.º Gr Comb da CCAÇ 12 (está sentado no topo da mesa de pingue-pongue, com a máquina de projetar e a caixa de "slides"). 

Os "slides" eram do Rodrigues e terá sido ele a apresentá-los e comentá-los. É muito provável que sejam "slides" tirados na metrópole, aquando da sua 1.ª licença de férias...

Em primeiro plano à esquerda, vemos os capitães inf Manuel Maria Pontes Figueiras, comandante da CCS, e Carlos Alberto Machado Brito, comandante da CCAÇ 2590/ CCAÇ 12. Por detrás dos dois, de perfil, o alf mil op esp Francisco Moreira, da CAÇ 12.

Ainda era tudo "periquito", o pessoal da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, chegado a Bambadinca em meados de julho de 1969.

Em face disto, esta sessão de "slides" em que aparecem 3 alferes milicianos da então CCAÇ 2590 (CCAÇ 12, a partir de 18/1/1970) só pode ter acontecido em finais de 1969 ou princípios de 1970, ainda no tempo do BCAÇ 2852, rendido em finais de maio de 1970 pelo BART 2917. Os alferes são: (i) José António G. Rodrigues (4.º Gr Comb), (ii) Abel Maria Rodrigues (3.º Gr Comb); e (iii) Francisco Magalhães Moreira (1.º Gr Comb).

O cap inf Manuel Figueiras  veio substituir em setembro de 1969 o cap art António Dias Lopes que por sua vez tinha vindo substituir, um mês antes, o cap inf Eugénio Batista Neves, comandante da CCS/BCAÇ 2852, "transferido por motivos disciplinares", segundo reza a história da unidade).

Foto (e legenda) : © Arlindo T. Roda  (2010). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Humberto Reis (2011)

1. Mensagem enviada pelo nosso colaborador permanente, Humberto Reis, através do Formulário de Contacto do Blogger (*):


Data - sábado, 13/04/2024, 17:41
 
Boa tarde,
Alguém tem o contacto do antigo capitão em 1969 em Bambadinca, hoje cor na reforma Manuel Maria Pontes Figueira que organizou o almoço de 2005 do pessoal da CCaç 12 , BCaç 2852, etc, em Faro na Ilha Deserta?

Agradeço 
Humberto Reis, telem 918776460

Cumprimentos,
Humberto S Reis | hreis.lda@gmail.com


2. Comentário do nosso camarada Abel [Maria] Rodrigues, ex-alf mil at inf (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) que vive em Miranda do Douro, sendo bancário reformado:

Olá, Luis!
(...) Em relação à foto, não faço a minima ideia, apenas reconheço também o capitão Figueiras, que está ao lado do Brito e me lembro dele por ser revolucionário e algarvio.

Um grande abraço
Abel Rodrigues (**)


3. Comentário do editor LG:

Humberto, afinal o nome do ex-cap inf Manuel Figueiras, vem na lista dos nossos contactos da malta desse tempo... (Manuel Maria P. Figueiras, cor inf ref, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, com residência em Faro, e n.º de tefefone fixo).

Não sabia que ele tinha estado em Tavira, no teu/nosso tempo... Já agora ficas com o contacto do César Dias (no do nosso tempo de Tavira, e da Guiné, esteve em Mansoa, no BCAÇ 2885, e aparece na lista do genérico do documento "A Conspiração", do António Pedro Vasconcelos: 9 episódios, os próximos, o 3.º e o 4.º; em 1 e 2 de maio):

https://www.rtp.pt/play/p13269/a-conspiracao

Um outro capitão do nosso tempo (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) é o Passos Marques, Gualberto Magno Passos Marques, cap art, cmd CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72); também morava (ou morava) em Faro. Temos o seu telemóvel e o seu email. Pode ser que ele tenha o contacto, mais recente, do Manuel Figueiras.

Comandou a CCS de 15/11/69 a 01/03/71 e de 16/07/71 a 27/03/72. Comandou também interinamente a CART 2915,  de 01/03/71 a 16/07/71. Era major reformado. Tem meia dúzia de referências no nosso blogue. É nosso tabanqueiro. 
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Guiné 61/74 - P25452: Os 50 anos do 25 de Abril (14): 25 de Abril - Um golpe / Uma revolução (António Carvalho, ex-Fur Mil Enf.º da CART 6250/72)

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, (Mampatá, 1972/74), com data de 26 de Abril de 2024:

25 de Abril - Um golpe / Uma revolução

Quando embarcávamos, uns mais contrariados que outros, alguma razão ou razões nos faziam aceitar aquela missão com mais ou menos sofrimento. Uns deixavam para trás para além da família e amigos, a esposa, a namorada e até filhos. 

E, se a uma minoria, o soldo, de algum modo,  dava algum alento, a grossa maioria dos militares nem sequer recebia algo comparável ao mais pequeno salário, passando a comissão de mais de dois anos a contar os tostões para uma cerveja ou um maço de tabaco. 

Aquelas imagens do massacre de milhares de pessoas, incluindo homens, mulheres e crianças, no norte de Angola, às mãos de guerrilheiros selvagens, em 1961, permanentemente recordadas pelos serviços de propaganda do regime, serviam para a construção da ideia errada da justeza da guerra contra bandidos.

Quase todos nós estávamos formatados, desde o berço e dos bancos da escola que Portugal era assim um país pluricontinental e plurirracial e que tínhamos (nós lusitanos) uma missão civilizacional a cumprir no mundo. Estávamos assim formatados, como ainda hoje há regimes políticos e religiões que formatam os cidadãos com ideias retrógradas e mesmo imbecís: supremacia de raça, supremacia religiosa, missões divinas e doutrinas do fim do mundo.

Na verdade é muito mais fácil formatar ignorantes do que instruídos. Muitos de nós, só quando saíamos das nossas aldeias com destinos aos quarteis é que andávamos de combóio e víamos o mar. Então alguns alegravam-se quando, ao fim de seis meses de tropa entravam, embasbacados, num grande navio com destino ao Ultramar, julgando que enfrentariam uns insipientes guerrilheiros de catana e espingarda rudimentar. Muitos só gradativamente, como quem escala uma sucessão de montanhas de altitude cada vez mais acentuada, se apercebiam que aquilo era bem pior do que tinham preconcebido.

Então, instalados no meio, hão de penar, sob calor e chuva, afrontados por comichões e mosquitos, emboscadas e minas, sem terem como fugir do sítio onde mal se come e mal se dorme, onde se vê o sangue do camarada a tingir a terra e os seus olhos sem alma despedindo-se longe dos seus. Fica-se lentamente convencido de que tem que aceitar aquele sacrifício. Talvez não morra, talvez escape, nem que seja sem uma das pernas, coisa que é muito má, mas há muito pior. Depois, quase no fim, quando percebemos que não estamos ali a fazer quase nada, que o inimigo tem amigos que lhe fornece apoio e armamento mais moderno que a nossa G3, que não fomos solicitados para ali permanecer, é que concluímos que fomos enganados. Afinal, eles (os guerrilheiros) têm direito a ter os seus próprios governantes.

Ora, se os portugueses, por essa altura, não tinham o poder de escolher o seu próprio governo, o qual era escolhido por uma aristocracia económica e política, como podíamos ajudar os guineenses a tomar conta do seu próprio governo ?!

Salgueiro Maia e muitos outros militares perceberam, ainda que demasiado tarde, que não havia nenhuma razão para continuarmos a sofrer e morrer numa guerra sem sentido e injusta. Foi preciso o sacrifício inglório de muitos milhares de vidas, para se criar a massa crítica que deu alor ao movimento dos Capitães e a coragem a Salgueiro Maia para enfrentar o carro de combate no Terreiro do Paço.

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Nota do editor

Último post da série de 25 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25445: Os 50 anos do 25 de Abril (13): Testemunhos - Numa Das Malas Velhas Da Minha "Fundação" (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487/BCAV 3871 - RMA, 1972/74)