Caros Camaradas
Gostaria de prestar a minha homenagem a todas as Madrinhas de Guerra.
Sem elas, a guerra teria sido diferente e, seguramente, mais desastrosa. Elas foram o conforto e a esperança, o carinho e o amor que nos acompanhou, nas horas mais difíceis das nossas vidas. Por isso, devemos-lhes uma gratidão desmedida.
A história que hoje junto, parece estranha mas foi verídica. Esta madrinha teria hoje cerca de 110 anos! Todavia, por razões óbvias e por respeito aos seus familiares, substitui-lhe parcialmente o nome.
A todas as Madrinhas de Guerra, um abraço com toda a gratidão do
Silva da Cart 1689
Memórias boas da minha guerra (12)
Uma Madrinha de guerra
Aproximava-se o fatídico dia 26 de Abril de 1967.
O destino estava traçado e o medo parecia aumentar à medida que essa data estava mais próxima. Constava que a guerra na província da Guiné estava cada vez pior.
Vivíamos sob a ditadura de Salazar. A comunicação social era controlada e só éramos informados sobre aquilo que o regime permitia. Ora isso era muito pouco, as cartas eram censuradas, os militares que regressavam temiam a PIDE e receavam falar sobre as experiências vividas. Por outro lado, notava-se uma certa preocupação em abafar e amenizar o assunto, para bem das famílias. É que se tinha já chegado ao ponto de as vilas e aldeias terem visto chegar as caixas de pinho com os seus “soldadinhos”, como lembrado nas baladas do Zeca Afonso. A agravar isto, havia cada vez mais feridos nos hospitais e aumentavam os deficientes mutilados. Claro que os meninos ricos, em dinheiro ou em poder, safavam-se devido a influências ou à fuga para o estrangeiro. (Muitos foram, mais tarde, anti-fascistas).
Os mobilizados viviam já num ambiente totalmente diferente do habitual: por um lado, era evidente o desenvolvimento das paixões, do carinho e da simpatia de toda a gente que lhes era próxima, mas, por outro, viam-se afastados pelas jovens que não se queriam comprometer com um possível “condenado”.
É assim que se acentua o relacionamento baseado em correspondência entre os militares e as madrinhas de guerra. Esta prática foi muito incentivada pelas associações religiosas (católicas) e pelo MNF- Movimento Nacional Feminino.
Penso que ninguém é capaz de descrever com realismo a importância de que se revestia o facto de recebermos cartas da Metrópole. O correio era o elo que mantinha o sentido racional e moralizador de todos os militares. Assisti a situações dramáticas relacionadas com as notícias recebidas ou a ausência delas.
Havia uma excepção que muito me admirava. Era o caso do Feliciano de Santa Maria da Feira que raramente recebia correspondência e que várias vezes, talvez por sermos do mesmo concelho, me perguntava se eu conhecia alguma vizinha que quisesse ser sua madrinha de guerra.
![](http://2.bp.blogspot.com/-KjIY_Odg9gs/TVVlazp0XwI/AAAAAAAAP2I/3Y83R6RE1wk/s400/76343_177072538971722_100000069300718_604693_766184_n.jpg)
Curiosamente, eu conhecia uma vizinha que gostaria imenso de ter um afilhado. Ela também me havia pedido isso.
Inicialmente não dei grande importância a este pedido mas, depois de notar a necessidade do Feliciano, vi uma oportunidade de se satisfazerem os dois desejos. Todavia, devo confessar que não sentia vontade alguma em “oferecer” a Idalina Crista a um dos meus camaradas militares. E porquê?
Penso que o facto de a Idalina ter apenso o apelido de Crista, se devia mais à sua atitude de permanente crispação e arrogância do que a um prémio à sua religiosidade, apesar de, pelo apelido, parecer concluir-se da existência de parentesco com o Salvador do Mundo, o que muito a envaidecia. Não saía da igreja. Era uma beata assumida, que aproveitava todos os momentos para defender a Igreja Católica e combater ostensivamente quem não acreditasse nos seus princípios e dogmas. Era solteira e, seguramente, ainda virgem. O seu aspecto não cativava ninguém. Teria mais de 65 anos, pernas muito arqueadas e escondidas com meias escuras e saia comprida. Esticava os cabelos lisos e grisalhos, arranjados em carrapito. que segurava na nuca e que cobria com um lenço também escuro. Não cortava os pelos do bigode (tipo chinês) nem os da verruga, perto do queixo. Faltavam-lhe já muitos dentes, mas mantinha bem visíveis dois incisivos em cima e dois em baixo, que se encaixavam perfeitamente. Não se lhe notavam seios nem curvas no corpo. Parecia uma tábua lisa. Usava sempre sapatos fechados, tipo homem. De altura teria, incluindo o carrapito do cabelo, cerca de um metro e meio. Sobrancelhas tipo Álvaro Cunhal, encimadas nos óculos de fundo de garrafa bem assentes numa penca avançada.
No dizer do vizinho Néquita era, realmente, uma carcaça de primeira. Segundo a minha sobrinha Margarida, só lhe faltava o chapéu e a vassoura para ser a bruxa má!…
Ela não tinha culpa de a beleza não lhe ter sido atribuída. E, possivelmente, também não a teve quando não foi aceite para fazer os seus votos de castidade numa irmandade de freirinhas descalças (?).
Tinha imensas razões para viver triste e complexada. Porém, ela não o mostrava e, contrariamente, vivia exuberantemente a sua devoção, a sua vaidade e o seu orgulho através das suas actividades religiosas. Digamos mesmo que ela merecia alguma compensação do Deus a quem tanto se dedicava.
O Feliciano era bom moço, muito alto e desengonçado, um tanto gago, ingénuo e pouco atraente. Claro que merecia melhor mas para o fim em questão, nada o iria prejudicar. Tive ainda o cuidado de lhe dizer que ela já não era jovem. E ele, perguntou:
– Tem mais de trinta? Acenei-lhe afirmativamente, ao que ele acrescentou que não tinha problema. E, como sempre acreditei que a Idalina Crista não lhe enviaria fotografias, resolvi dar-lhe o endereço.
Dois meses depois, era notório que o rapaz andava muito mais animado. E fazia-me várias perguntas sobre a Idalina Crista. – Que tal é a Idalina? Que relacionamento tínhamos? Se era boa rapariga? Etc., etc. Sem procurar entusiasmá-lo, lá lhe fui dizendo meias verdades para não prejudicar esse saudável e santo relacionamento.
O tempo ia passando e eu via o Feliciano cada vez mais ligado à Idalina. Ele ainda não tinha recebido qualquer fotografia dela mas trazia no bolso as santas imagens que ela lhe mandava, desde a Senhora de Fátima à Sta. Teresinha do Menino Jesus. Parecia uma criança a coleccionar os cromos da bola. O curioso é que ele, conhecendo a minha posição pouco entusiasta sobre essas causas religiosas, passou a evitar-me parcialmente. Eu não me preocupava, porque o que queria era que ele se sentisse bem.
Já faltavam poucos meses para regressarmos e eu começava a preocupar-me com o desfecho daquela paixoneta, que eu, afinal, causara.
Quando o Feliciano me perguntou como se ia para casa dela, senti um calafrio. Estávamos a um mês do regresso e eu ainda não sabia como havia de desatar esse nó. Mas tinha que começar a “desmontar” a relação. Mostrei interesse em saber como estavam as coisas e perguntei-lhe se ela lhe tinha mandado alguma foto. Ele disse que não e que até não estava muito contente com ela porque lhe tinha pedido fotografias e ela lhe mandava santinhos. Já tinha mais de 5 gravuras da Senhora de Fátima com os três pastorinhos. E que quando lhe pediu uma foto na praia ela lhe mandou uma da irmã Lúcia, vestida de freira. Mostrei-me surpreendido e aproveitei, então, para lhe dar razão e dizer que ela não precisava de se portar assim. Prometi-lhe que iria saber o que se passava.
Pouco mais de uma semana depois procurei-o para lhe dizer umas novidades. Apercebi-me de que a correspondência entre eles havia refreado um pouco, devido à não satisfação do pedido da foto.
- Oh Feliciano, tenho muita pena mas, por aquilo que me dizem, a Idalina anda embeiçada com um sobrinho de um tal Padre Inácio, que está a viver com ele na residência paroquial. E continuei: – Não sei se tem notado alguma coisa, mas ela agora deve estar a aproveitar esse relacionamento mais próximo. No entanto, ela não o quer magoar a si e vai mantendo a correspondência ou, então, está a aproveitar para fazer ciúmes a alguém.
Ele ouviu atentamente e disse:
– Pensei sempre que ela era uma rapariga séria e até acreditei no namoro mas, à medida que íamos avançando, ela não deu “chances”. Já há uns tempos que ando a matutar que ainda não é aquela que vai ser a minha mulher.
Já faltavam poucos dias para o regresso e o Feliciano disse-me:
- Oh Silva, se calhar não vou ver a Idalina porque afinal, as mulheres são todas iguais e as que andam pela igreja, às vezes, são as piores.
Logo que cheguei da Guiné dei, de repente, com a Sra. Idalina, que me veio perguntar pelo Feliciano. Fiquei de boca aberta quando a vi toda recauchutada, que nem parecia a mesma. Tinha o cabelo armado, barba feita a rigor, verruga disfarçada como se fosse um sinal e uma dentadura nova tipo actriz de cinema. Com as sobrancelhas aparadas, uma blusa ligeiramente aberta, uma saia pelos joelhos, pernas descobertas e rapadas e usava sapatos altos. Parecia uma boneca.
- Então, onde está o meu afilhado? Quando é que ele me vem ver? E acrescentou - Tenho muito que falar àquele maroto. Respondi-lhe, então:
- Olhe, Dona Idalina, ele não é o que eu pensava. Acabei por saber que ele já andava a namorar com uma sobrinha dum tal Padre Inácio, que agora vive com ele na residência paroquial. Pelo menos, foi isso que eu me apercebi, devido à fotografia que vi de uma rapariga em “maillot” tirada na praia de Cortegaça. Sabe, é muito tempo para um homem novo, viver afastado de uma mulher. Ela, matreira e orgulhosa, respondeu:
- Ó Zeca não te preocupes com o assunto, porque quando ele me começou a pedir fotografias obscenas, cheguei logo à conclusão de que os homens são todos iguais, o que eles querem bem o sei e os que andam pela igreja, às vezes, são os piores.
Então, gritou: - Oh meu Deus, será verdade que não há ninguém que se aproveite neste mundo?
Benzeu-se, deitou os olhos ao céu, puxou o crucifixo para o centro do peito e exclamou: - Já vi, meu Senhor, que me queres pura e honrada, junto de ti!
Silva da CART 1689
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7710: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (11): Chico d'Alcântara, um homem de exceção